segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

ANTONIO CÁNDIDO FRANCO & NICOLAU SAIÃO | Surrealismo em Portugal














O diálogo que segue vem sendo preparado como parte integrante de um livro de Floriano Martins dedicado ao estudo do Surrealismo na Península Ibérica. Aqui reproduzimos um fragmento de conversa que o poeta e ensaísta brasileiro teve com dois importantes nomes ligados ao surrealismo português: o poeta, tradutor, ensaísta e artista plástico Nicolau Saião (1946) e o poeta, ensaísta e editor Antonio Cándido Franco (1956).



António Cândido Franco

FLORIANO MARTINS | Simbolismo, Modernismo, Futurismo – com quais desses momentos melhor se identifica o Surrealismo em Portugal? O crítico brasileiro, de origem austríaca, Otto Maria Carpeaux (1900-1978), em sua História da literatura ocidental, aponta “a ausência de um verdadeiro Simbolismo em Portugal”, ao mesmo tempo em que situa Mario de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa como “dois poetas de formação esteticista mas de ambições que já antecipam o Surrealismo”. Por onde começamos? Gostaria aqui de fazer menção a um termo valioso do António Cándido Franco, o de “afinidade involuntária”.

ANTONIO CÁNDIDO FRANCO | Quando lemos alguns dos poemas de Oaristos (1890), por exemplo o décimo primeiro, ou “A Epifania dos Licornes” de Horas (1891), ou ainda “Um Cacto no Polo” do mesmo livro, percebemos que a poesia de Eugénio de Castro, um poeta hoje quase esquecido, mas que na época foi admirado por Ruben Dario e pelos simbolistas franceses, chega para impugnar a asserção de Carpeaux (e, claro, para tirar muita novidade à poesia de Pessoa – que em alguns momentos se limita quase a glosar a poesia de Eugénio de Castro).
Faltou-te porém referir o Saudosismo, que é talvez a afinidade involuntária do Surrealismo português. O Saudosismo pode ser encarado como um desenvolvimento português do Simbolismo ou dos aspectos mais misteriosos dele. O poeta crucial deste movimento, Teixeira de Pascoaes, foi o antecedente poético de Mário Cesariny; entre os poetas portugueses logo anteriores que ele tinha à disposição, e muitos eram (Antero, Gomes Leal, Junqueiro, Nobre, Eugénio de Castro, Ângelo de Lima, Pessanha, Pessoa, Sá-Carneiro, Florbela, Raul Leal, Almada, Régio), foi Teixeira de Pascoaes que ele elegeu.
As relações entre o Saudosismo e o Surrealismo estão infelizmente por estudar. O próprio Saudosismo, sobretudo na evolução da sua linha interna, aquela que vai por exemplo de 1912 a 1942, quer dizer, do momento do seu nascimento à publicação dum livro tão excepcional como Duplo Passeio, é muito mal conhecido e em geral tende a passar despercebido (como a tua pergunta confirma).

NICOLAU SAIÃO | O nó do problema creio que assenta nas condições de antidemocracia que sempre – sublinho, sempre) – existiram em Portugal, não só propiciadas por uma classe dominante extremamente cínica e autoritária mas, ainda, pelo seu tipo de cultura primarizada e pela sua mentalidade inculta, plebeia no sentido exato e o seu reacionarismo incrementado e sustentado por um tipo de fideísmo profundamente limitado e preconceituoso que tentava eliminar, espingardear ou suster tudo o que lhe cheirasse a modernidade ou trouxesse o selo de algo menos academizado. Sempre dominaram os estabelecimentos de ensino a alto nível, que em Portugal são os órgãos que controlam apertadamente os sectores intelectuais que fazem entre nós a chuva e o bom tempo por razões óbvias. Era assim dantes e continua a ser assim hoje. Daí que as afinidades entre os autores/criadores tenham de ser involuntárias ou, dizendo de outra maneira, conforme se pode…
Isso faz com que, ainda neste tempo em que vivemos, ou sobrevivemos, a arte moderna em geral e o surrealismo em especial sejam olhados como excrescências carnosas, produtos de quase marginais, de gente que não se deve deixar entrar, preferentemente, nos salões onde os donos da sociedade exercem a sua música e a sua dança contra tudo o que é legítimo em vida sã.
Portugal segue sendo um entreposto claramente de signo cripto-fascista, mau grado a maquiagem arranjada nos primeiros tempos a seguir ao 25 de Abril – maquiagem essa que, por já não lhes fazer falta, têm estado a abandonar com decisão. Só têm algum respeito pela chamada arte moderna em sentido lato porque esta, nos lugares onde o ambiente é mais salubre, vale muito dinheiro! Sá- Carneiro e Fernando Pessoa, como se sabe, foram sempre corpos estranhos no tempo em que estavam inseridos. E o panorama continua a ser assim… exceto se o autor/artista se alcandorou por companheirismos ou afeições, geralmente, aos lugares de topo da “árvore dos níveis”…

FM | O que evidencia a revolução surrealista em Portugal e como ela se insere em um mapa da Península Ibérica? Penso aqui nas relações entre Cesariny e Buñuel, que bem poderiam ter sido ampliadas, considerando afinidades históricas. Cesariny chega a comentar tangencialmente acerca de Juan Larrea, J. V. Foix, José María de Hinojosa… Porém nunca houve entendimento entre as duas vertentes surrealistas. Algum motivo determinante?

ACF | O choque do surrealismo em Espanha e em autores de língua espanhola (como Cesar Moro) foi temporão. Basta pensar na importância que Buñuel e Dali têm nos primeiros anos de afirmação do Surrealismo francês. Nada de parecido aconteceu em Portugal ou em criadores da língua portuguesa, e isto mau grado Péret ter passado quase dois anos no Sul do Brasil nos anos heroicos que se seguiram à criação do Surrealismo. Logo o destino dos dois movimentos foi distinto e raras vezes coincidente. Ainda assim Mário Cesariny, além de traduzir Buñuel e ter relações próximas no seu círculo, penso em José Francisco Aranda, teve uma afinidade expressa e um convívio intenso com Eugenio Granell, o grande criador catalão, que viveu exilado muitos anos em Nova Iorque. O mesmo se passou com Cruzeiro Seixas.

NS | O que a revolução surrealista, encarada a nível europeu ou mesmo ibérico, evidencia, é a meu ver as enormes dificuldades de se existir autonomamente, livremente. O poder político-social, precisamente pelas razões históricas nos dois países, tentou sempre impedir que fôsse fácil existirem relações entre os criadores daqui e dali. Por isso o cardo foi sempre enorme, parafraseando uma expressão de Cesariny…

FM | As cartas de António Maria Lisboa constituem uma fonte de iluminação sobre inúmeros aspectos referentes ao Surrealismo em Portugal. Poucos anos antes de sua morte, já descrente da perspectiva de reestruturação grupal do movimento, lemos em uma carta destinada a Cesariny ali imprimir seu desejo de ver seus amigos uma vez mais a seu lado, “desta vez não com a sombra de um Breton”. E em uma de suas últimas cartas, já no Sanatório da Quinta dos Vales Covões, em Coimbra, 1952, comenta com Mário Henrique Leiria acerca de uma “fundamental dificuldade” dos surrealistas: “sair da fácil expressão, do hábito a que dialeticamente se deram e onde anti-dialeticamente permanecem”, finalizando: “Breton será mil vezes culpado”. Até onde acerta António Maria Lisboa, não propriamente acerca de uma culpa de Breton, mas antes de uma falta de identidade no tocante ao Surrealismo em Portugal?

ACF | É natural que um poeta com a dimensão invulgar dum António Maria Lisboa se quisesse autonomizar de Breton, isto depois de o procurar e de com ele ter aprendido muito ou mesmo tudo. Caso tivesse sobrevivido à doença que o levou em 1953, aos 25 anos, convenço-me que não teria tido qualquer questão em se associar ao folheto com que o grupo de Cesariny homenageou A. Breton, no momento da morte deste, em 1966. O texto, chamado (Neófito) Não há morte na morte de André Breton, está hoje recolhido no livro As mãos na água a cabeça no mar (1985). Só um movimento consciente de si, atento às suas infinitas possibilidades, muito rodado na estrada do mistério e do amor, podia produzir tão altiva e bela homenagem.

NS | A culpa de Breton, digamos assim simbolicamente, assentou no fato de que ele vivia numa França aberta e os surrealistas portugueses, ou que tentavam sê-lo, viviam num Portugal do antigo regime, ultraconservador e muitas vezes ultramontano. Em França era-se hostilizado pela mentalidade academicista da classe dominante, mas em Portugal ia-se parar diretamente, sem paninhos quentes, à prisão, à miséria econômica e à marginalização pura e simples. O que agravava as divergências, as questiúnculas e os destrambelhamentos até, dos autores portugueses, meros sobreviventes de uma nação dominada por gente nefanda.

FM | Há um comentário de Adolfo Casais Monteiro - A palavra essencial, 1972 - sobre composição e espontaneidade em que recorda que, “tal como em toda a literatura, também nas criações surrealistas havia uma diferença abissal entre a poesia espontânea de uns e a espontânea… vacuidade dos restantes”. Como lidou o Surrealismo em Portugal com essa aparente ambiguidade?

ACF | Ao contrário do que pensava Casais Monteiro, o Surrealismo não era uma questão de talento. O terreno matricial do Surrealismo não é o da estética (literária ou artística) mas o da ética humana, que procura conciliar a liberdade explosiva das pulsões interiores com a ordem clássica e exterior da sociedade. Pode-se ser surrealista sem se ter escrito uma única linha; pode-se ser surrealista sem se ter pegado uma única vez num pincel; pode-se passar de todo ao lado do Surrealismo depois de se terem escrito muitos poemas ou pintado muitas telas “surrealistas”. A “vacuidade”, para quem se situa no plano da aventura interior, como sucede com o Surrealismo, só pode ser a dos “artistas”. Também houve destes em Portugal, e de peso, a começar por António Pedro e a acabar em José-Augusto França, passando ainda por Jorge de Sena. Trataram o Surrealismo como uma questão de ter ou não ter “jeitinho”. Passaram assim ao lado do que mais importa.

NS | Lidou mal, necessariamente. E o contrário é que seria estranho. Um surrealista autentico, em Portugal, vive ainda hoje, como vivia dantes, sob a férula de poetinhas que promovem, controlam, selecionam e acatitam muitíssimas vezes ilustres mediocratas que exibem como gente de grande gabarito.
Não é pois uma ambiguidade, mas uma consequência de Portugal ter sempre vivido no domínio apertado de aparelhagens de extermínio moral que epigrafa os “surrealistas” que lhes convém epigrafar. Liofilizados ou amansados. Objetos de literatura no pior sentido do termo. E quem se rebela… fica frito por esses cozinheiros de más iguarias.

Nicolau Saião

FM | Seria possível imaginar um Surrealismo outro em Portugal sem a figura tutelar de Mário Cesariny de Vasconcelos?

ACF | Sem Cesariny, o Surrealismo português ainda seria o mesmo, se o António Maria Lisboa que tivemos ainda tivesse podido, sem ele, Cesariny, ser o que foi (até no diálogo com Pedro Oom), o que se duvida, pois cada um deles foi uma parte do outro e não podia porventura ser o que foi sem ela. Sem Cesariny e sem Lisboa, o Surrealismo português teria sido porém “outro”, muito menos autêntico e muito mais estético. O que se perdia em aventura e exaltação ganhava-se em truque e habilidade. A poesia, que no Surrealismo português se elevou altura ímpar, digna da mais alta aventura humana, teria decaído em simples literatura descartável.

NS | A realidade é que foi como foi. Cesariny, da maneira que pôde ou lhe consentiram, foi um resistente. Bem, mal, assim-assim? Sei das dificuldades que teve, que muitas vezes lhe criaram, já pela hostilidade já, depois, por o querem jungir a um surrealismo que, se fosse como eles determinavam, seria então credor de aplausos e de carinhos…duvidosos. Acresce que Cesariny tinha uma orientação sexual que essa gente tentava fosse a marca da sua totalidade enquanto ser humano/autor. O truque infame é bem conhecido…numa sociedade fideísta e, mais que isso, que se serve do fideísmo, tal qual se serve doutras afins, como arma de repressão e opressão.

FM | Quais relações podemos encontrar entre Surrealismo e o happening, como já o propusera Ernesto de Sousa em 1969, ao reunir poemas de Almada Negreiros, Mário Cesariny, Herberto Helder e Luiza Neto Jorge? E quais desdobramentos relevantes podemos comentar?

ACF | Se o happening se situar apenas no domínio da arte multimédia, ou mesmo da poesia dita literária, consagrada pela História da Literatura, não me parece que tenha alguma coisa a ver com Surrealismo. Se entrar pelo campo magnético da expansão de fenômenos psíquicos desconhecidos aí o contacto estabelece-se. O teatro ritualístico e mágico de Judith Malina e de Julian Beck parece-me modelar de como o happening, pondo a nu a alma, se pode tornar uma forma de viver em colectivo o Surrealismo.
NS | Não o sei exatamente. Só sei que Cesariny, por várias vezes, me referiu que em Portugal o fenômeno happening corria o risco de acabar por ser uma coisa em estilo Parque Mayer. O que eu pude observar deixou-me muitas vezes com a sensação de que ele, que era um fino observador, percebera que numa sociedade como a nossa se corria sempre o risco de se mergulhar num “melting pot” transversalmente atravessado por um ar eventualmente percorrido por fumos e odores nada salubres.

FM | O que o tema Surrealismo significa hoje em Portugal?

ACF | Para uns significa criação estética e está por isso confinado a um período limitado que vai da década de 40 à década seguinte (e pouco mais); para outros significa uma porta aberta, que nunca mais se fechou, para metamorfosear o mundo e conhecer sem limites o interior do homem.

NS | Algo que foi e continua a ser, da parte dos seus criadores sem jaça, qualquer coisa de muito luminoso, mau-grado as sombras que lhe tentaram sempre criar na figura. Da parte dos observadores que estabelecem os seus figurinos e as suas indumentárias para o baile social, algo que conviria desaparecesse o mais depressa possível. Apesar de o surrealismo praticamente não contar para nada socialmente, neste país, se pudesse ser exterminado deixaria muitíssimo mais felizes os que sentem no sapatinho essa pedra incómoda.