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Abraxas | Entrevistas
segunda-feira, 1 de dezembro de 2014
ANTONIO CÁNDIDO FRANCO & NICOLAU SAIÃO | Surrealismo em Portugal
segunda-feira, 25 de agosto de 2014
SÉRGIO LIMA | Aventuras do surrealismo
FM Qual a tua visão crítica acerca do Surrealismo em relação à sua
influência na cultural ocidental contemporânea?
SL O Surrealismo permanece como a mais radical contestação da Civilização
Ocidental e seus modernismos (prefiro o termo “Civilização” a Cultura, visto
não ser apenas uma atividade artística e seus similares). Por outro lado, é
inegável – como já se observou em outras ocasiões – que o Surrealismo
influenciou todo um contexto do Amor e da Poesia contemporânea, restituindo,
digamos, uma certa noção do sagrado extra-religioso. Como já frisaram diversas
personalidades do pensamento contemporâneo (Gaston Bachelard, Jules Monnerot,
Georges Bataille, Walter Benjamin, Octavio Paz, Herbert Marcuse, Norman O.
Brown, Kostas Axelos, Juan-Eduardo Cirlot, Nicolas Calas e outros), a busca
espiritual que funda o Surrealismo – “libertação total do espírito e de todos
os meios à sua mão” – é um dos fundamentos da experiência humana e sua
afirmação na época Moderna, o que vale dizer que em outras épocas também houve
tal questionamento, embora sem constituir-se, no entanto, como um movimento
grupal, afora as exceções. Assim, em cadeia com as demais recusas dos continuísmos
modernistas, seu questionamento é absolutamente moderno, como queria Rimbaud, e
sua permanência até à atualidade não deixa de ser uma denúncia flagrante das
diversas minimizações e diluições de que foi alvo. Suas inúmeras influências
falam das deturpações e não de sua perspectiva, de sua direção, de seu vetor
revolucionário.
Contrário ao sucesso e aos nacionalismos (e todos os modernismos brasileiros
apoiaram-se em um forte pendor nacionalista, salvo a “Antropofagia”), o
movimento surrealista não se inscreve na seriação dos “ismos” como se vem
pretendendo há um bom tempo nas suas abordagens acadêmicas e historicistas. Se
por um lado podemos constatar o insucesso de seu projeto de transformar o
mundo, aspecto idealista de seu projeto, por outro não se deve calar o quanto
de transformações sua práxis dialética realizou em vários domínios, desde o
pessoal até àqueles dos ditos tabus: a condição do poeta, do artista, da
sexualidade, do social e do psíquico. Com o Surrealismo foram alçadas à
categoria de valor certas práticas até então mal vistas ou desqualificadas: o automatismo
formal e informal; o ditado do desejo e o registro parapsicológico; o
espontâneo e o acaso-objetivo; a collage
e a poesia-objeto; os princípios de magia na operação plástica; a revelação
como condição da poesia; o tão decantado frenesi da imagem e a primazia da
beleza convulsiva; o amor incondicional (amor paixão, amor absoluto, amor
louco, amor sublime) etc. etc.
FM Quais motivos te impulsionaram à realização desta imensa pesquisa que
ora resulta na publicação deste primeiro volume de A aventura surrealista?
SL Como persistiam as mais variadas malversações do Surrealismo e seu
movimento na historiografia brasileira, resolvi estabelecer um referencial
significativo para eventuais estudos e aproximações que pudessem ocorrer.
Sobretudo subsidiar o aspecto mais grave da questão no Brasil, que é a ausência
de reflexão sobre o Surrealismo e sua afirmação no país, em que pese os ditos
contrários. Reflexão essa que vinha esbarrando nas reiteradas pás de cal já de
uso nos meios de informação (o Surrealismo é, sem dúvida, o movimento no
período moderno que mais avisos de óbito já recebeu, o que aliás continua a se
dar). É ponto pacífico que tal recenseamento não visa a entronização do
Surrealismo no escaninho dos gêneros literários ou outras compartimentações do
oficial, mas sim o acesso a seu repertório de provocações e feitos.
O levantamento documental da história e percurso, subterrâneo em geral,
no cenário brasileiro, fez-me deparar com os prejuízos que aqui se instituíram
– da metade dos anos 20 para cá. Ao contrário do que rezam as crônicas
oficiais, a presença marcante de obras do Movimento no Brasil provocou uma
primeira dilatação do projeto inicial, ao qual vinha se somar a necessidade de
incluir um critério de prospecção e de exposição objetiva dos seus feitos e
fatos. A ausência de reflexões aprofundadas sobre sua vigência no país (um dos
artifícios do seu religioso encobrimento), implicou, por sua vez, em
acrescentar as coordenadas principais de sua constituição como movimento e
posição: o que veio a ser esse primeiro volume (tomo 1) de A aventura surrealista. As poucas referências brasileiras no
capítulo das coordenadas, ou vertentes formadoras da concepção do Surrealismo
decorre, portanto, do que acabamos de afirmar.
Já os tomos 2 e 3 são propriamente a Cronologia Essencial do Surrealismo
no Brasil, ano a ano, dos 20 até 1992 – fatos que estão pautados com
comentários críticos e que vêm dispostos, face a face, com quadro sincrônico
internacional do Movimento (com destaque para América Latina, Espanha, Portugal
e Estados Unidos). A ênfase no caráter documental e sua exposição cronológica,
preenchendo as lacunas de referências existentes, resultou em uma longa
extensão, pela própria natureza de suas incidências e pertinências. Além do
mais, a montagem sincrônica e espacial (datas, fatos e obras) pretende situar
historicamente os diversos eventos e seus respectivos contextos, deixando de se
abordar o Brasil como um recorte regionalista, nacionalista e isolado de tudo
que medrou e se inter-relacionou com as nossas figuras neste século. Assim, o
quadro sincrônico e as reproduções, texto e visual, funcionarão como ilustração
ao ininterrupto fluir da datação brasileira exposta, a qual se estende
regularmente, visto que acompanhamos as etapas de todos os diversos autores
referentes do movimento do Surrealismo.
Como é sabido, certos autores, se bem que identificados ao Movimento e
mesmo fazendo recurso a certas de suas reivindicações, nem por isso
vincularam-se à sua militância (grupal e polêmica). Assim, tanto no Brasil
quanto no exterior, temos no Surrealismo as participações grupais e as
singulares. Estabelecemos como método três casos distintamente abordados: os
autores do Surrealismo (grupais e singulares); os autores com ligação com o
movimento, mas não participantes de seu espírito; e determinados autores que,
mesmo contrários ao movimento, cometeram obras singulares e às quais o
Surrealismo reivindica sua pertinência. Tal critério explicita ao mesmo tempo
que o Surrealismo não é um clube fechado e nem uma seita ou igreja, muito
embora não deixe de ser uma sociedade secreta ou bando de cavaleiros com a
mesma direção, a mesma busca, o mesmo ideal.
FM Em texto que abre o segundo volume de A aventura
surrealista há uma clara referência à
“distorção e o consequente sequestro sofrido pelos Manifestos do Surrealismo,
por parte das elites do pensamento e das artes, no modernismo brasileiro”.
Lembro também que o título de uma conferência tua na Espanha (em abril de 1994)
era exatamente “O surrealismo no Brasil: a construção interessada de uma
ausência”. Poderias aclarar um pouco a respeito desse ocultamento intencional?
SL É notório o consenso de que “não houve” o movimento do Surrealismo no
Brasil por parte da crítica oficial. De Tristão de Athayde a Afrânio Coutinho,
de Antônio Cândido a outros historiadores mais recentes. Porém os fatos dizem justamente
o contrário: não só houve obras e publicações e mesmo atividades coletivas nos
anos 20 (além da presença e das atividades e dos escritos de Benjamin Péret, de
1929 a
1931, junto à “Antropofagia” e ao Mário Pedrosa, ao Osório César e ao Flávio de
Carvalho), como também episódios de relevo nos anos 30 e 40 (apesar da
hegemonia totalitária do stalinismo e do realismo-socialista, do regionalismo e
da arte engajada), como também toda a efervescência dos 50 e a formação do
primeiro grupo do movimento no Brasil, de 1965 a 1969. Fatos que
continuaram a se suceder, até o atual grupo surrealista de São
Paulo/Fortaleza/Porto Alegre, com 12 artistas e escritores militantes, fundado
em 1991.
Da mesma forma que à recepção de Péret implicam um antes e um depois, o
mesmo vale para as atuações de Flávio de Carvalho ou Maria Martins ou Aníbal
Machado ou Murilo Mendes. Contudo, a documentação histórica e fatual também
comprova uma resistência quase feroz por parte dos chefes-de-fila dos modernismos
brasileiros, sob a bandeira do nacionalismo e da “identidade nacional” (Mário
de Andrade), ou do tradicionalismo-regionalista (Gilberto Freyre) e seus
ufanismos e suas xenofobias explícitas. Bandeira nacionalista que encobriu
diversos aspectos da política brasileira e que tem se pautado ao longo deste
século por uma discutível auto-suficiência e “originalidade” bem próxima do
racismo vigente (encobriu, por exemplo, as diferenças da pluralidade brasileira
e desqualificou a mestiçagem como contribuição inovadora, substituindo-a pelo
famoso “sincretismo” etno-religioso).
O silêncio sobre o Surrealismo e sua presença no Brasil é complexo de se
aclarar, não só pela sedimentação da desinformação intencional ao longo destas
últimas seis décadas, como ainda pelas relações íntimas que entretêm com a face
política de “oposição de esquerda” e do empenho revolucionário e libertário,
além de incluir nomes literalmente riscados de revisões críticas. Muito embora
o Surrealismo, ao contrário dos vanguardismos, tenha primado por sucessivas revisões
críticas e correções de rumo, em uma atualização permanente frente à realidade
em que opera – tal não acontecendo com a historiografia crítica no Brasil,
neste caso, ainda pendente de preconceitos e injustiças que se
institucionalizaram, em prol de interesses e posições políticas bastante
discutíveis. A base política do encobrimento por que tem passado a
marginalização do Surrealismo no Brasil (além de sua postura à margem, como é
sabido), configura-se em um processo explícito de sequestro – similar ao que
propiciou a exclusão do Barroco dos sistemas literários de maior aceitação em
nosso país: fora também uma questão de nacionalismo. Nacionalismo que permitiu
e permite, conforme o artigo “Uma palavra instável”, do Prof. Antônio Cândido,
recentemente publicado na Folha de São
Paulo (27/08/95), avançar que “hoje nacionalismo é pelo menos uma
estratégia indispensável de defesa, porque é na escala da nação que temos de
lutar contra a absorção econômica do imperialismo”, ou, citando o mesmo autor,
“consagrando a palavra ‘nacionalismo’ como algo progressista, tanto na busca de
uma cultura vinculada ao povo, quanto na politização da inteligência e da
arte”. Ora, como se sabe muito bem, todos os vanguardismos foram progressistas,
e logo se transformaram em regionalismos nacionalistas, ao passo que o
Surrealismo assume por definição a crítica do(s) modernismo(s) e seu
continuísmo, seu progressismo – posição
esta muito clara e imediatamente percebida pelos modernistas brasileiros que
logo irão aderir ao nacionalismo e, na década seguinte, ao regime ditatorial
e/ou populismo. Observa ainda Antônio Cândido, “a palavra ‘nacionalismo’ foi
mais do que nunca um rótulo querido pelas concepções tradicionalistas e
conservadoras”. Como se pode ver, o nacionalismo tem longa duração nas áreas do
poder e do pensamento brasileiros. Porém, é inequívoco que a discussão do
Surrealismo ou da Oposição Comunista e do trotskismo no Brasil insere-se na
discussão da oposição ao nacionalismo e seu auge verde-amarelo. O silêncio que
pesa sobre estas oposições é o da “ordem e progresso”.
[1988]
[Entrevista
incluída no livro O Começo da Busca - O
surrealismo na poesia da América Latina, de Floriano Martins (São Paulo:
Escrituras Editora, 2001).]
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FRANCISCO MADARIAGA | Uma breve conversa
FM – Conhecimento do mundo, ordenação do espírito (“sou aquele que
possui os desejos do zelo da terra”), experiência da experiência, duelo com o
indizível, caudal de evocações… De que nos fala a poesia?
FM – A poesia eclode do fundo solar do poeta e projeta-se diretamente nas
ventarolas da consciência e no coração dos homens. Não recolhe impurezas em seu
caminho, como a prosa; tudo sai por inteiro e a um só tempo, inclusive a
história, na imagem.
FM – Se pensarmos em nomes tão distantes entre si, como Leopoldo
Marechal, Jorge Luis Borges, Oliverio Girondo, Leopoldo Lugones, teríamos aí
algumas de suas influências?
FM – Conheci e fui muito amigo de Oliverio Girondo, o maior poeta deste
país e um dos enormes poetas latino-americanos. Não creio haver tido nenhuma
influência dele, e muito menos de Marechal, Lugones e Borges… Os poetas de
todos os tempos, desde Hesíodo, mesclaram-se com a minha natureza e os homens
pânicos de Corrientes, e eu sou apenas um peão do planeta.
FM – Corrientes é o ponto de partida de tua poesia. Como disse Juan
Antonio Vasco, no prefácio de uma antologia tua publicada na Venezuela em 1983,
tornaste Corrientes o “centro de tua própria universalidade autêntica”. Achas
possível pensar o poema como criação da comunidade, fusão entre realidade e
imaginário de uma coletividade? Acreditas que tenhas realizado tal fusão?
FM – Corrientes é um cosmos, qualquer outra palavra sobre isto terá que ser
buscada em meus poemas, se de mim se trata.
FM – O que significou, no quadro geral de tua obra, tua passagem pelo
Surrealismo? Até que ponto o Surrealismo – no que pese o fato de que o grupo
formado por Aldo Pellegrini tenha tido um caráter precursor em toda a extensão
do idioma – alterou o cenário da poesia argentina?
FM – A grande tentativa de liberdade, amor, purificação e rebeldia do
Surrealismo, seu grande salto ao amor (e por amor), deixaram, sim, muitas
trilhas em mim. Fui
um aliado leal do Surrealismo que, já o sabemos, na América se encontra em
estado natural. A escrita automática me foi ordenada pelas almas e as fadas de
Corrientes, e, repito, fui apenas o peão do planeta diante dessas ordens. Aldo
Pellegrini, não se pode esquecer, fez muitíssimo pela verdadeira poesia na
América Latina.
FM – Eis o fragmento de um ensaio de Octavio Paz sobre Castañeda: “as
drogas, as práticas ascéticas e os exercícios de meditação não são fins mas sim
meios. Se o meio se torna fim, converte-se em agente de destruição. O resultado
não é a liberação interior, mas sim a escravidão, a loucura e não a sabedoria,
a degradação e não a visão. Isto é o que tem ocorrido nos últimos anos. As drogas
alucinógenas têm se tornado potências destrutivas porque têm sido arrancadas de
seu contexto teológico e ritual.” O que pensa a este respeito? Alguma vez
recorreste às drogas na feitura de teus poemas?
FM – Estou de acordo com o fragmento de Paz sobre as drogas. As únicas
drogas que tenho conhecido são as que exalam os grandes rios, pântanos, lagoas
e palmeirais de Corrientes, vapores com cheiro de serpentes e sáurios e cavalos.
FM – Em teu livro Resplandor
de mis bárbaras (1985) há uma citação de
Baudelaire: “Deus é o único ser que para reinar não tem necessidade de
existir”. Qual é o teu Deus?
FM – Meu Deus é o DEUS RAS… do horizonte, entre o céu, a terra e a água.
Somente a ele me recomendo.
FM – Tiveste algum contato com a poesia de Jacobo Fijman? O conheceste
pessoalmente? Poderia nos falar dele, de até que ponto teria sido injustiçado
dentro do panorama geral da poesia argentina (penso, por exemplo, no caso de
Juan Ortiz)?
FM – Conheço a obra de Fijman, é válida sua inserção no panorama poético
argentino. Quanto a Juan L. Ortiz, foi um grande e verdadeiro poeta. Também fui
seu amigo.
FM – Mário Benedetti declarou certa vez que as ditaduras instaladas ao
longo do continente americano seriam o fator determinante do isolamento
cultural aí encontrado. Concordarias com ele ou acaso seriam outras as razões
de tal isolamento (que ainda hoje persiste)?
FM – Teríamos talvez que convocar as almas de Bernardo de Monteagudo, na
Argentina, e as de Simón Bolívar. Talvez elas pudessem definitivamente nos dar
uma luz sobre as causas do isolamento em geral.
FM – Gostarias de falar sobre a situação da atual poesia argentina?
Penso em uma verdadeira avalanche de nomes: Roberto Juarroz, Leónidas
Lamborghini, Santiago Perednik, Victor Redondo, Hugo Pedaletti, Arturo Carrera,
Nahuel Santana, Néstor Perlongher etc. Quais, a teu ver, as mudanças ocorridas
na poesia argentina após os ventos fortes do Surrealismo?
FM – Enrique Molina, Edgar Bayley, Olga Orozco, Hugo Gola e outros, estão
em plena e elevada maturidade. Estou de acordo com que recordes, por exemplo,
Victor Redondo e Arturo Carrera – eu acrescentaria outros, como Daniel
Freidemberg e Diana Bellessi, e muitos outros jovens que caminham muito bem, e
que são poetas.
[1987]
[Entrevista
incluída no livro O Começo da Busca - O
surrealismo na poesia da América Latina, de Floriano Martins (São Paulo:
Escrituras Editora, 2001).]
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ÁNGEL PARIENTE | Sobre surrealismo
FM – Sua estreia na poesia se deu
aos 31 anos de idade e, no ensaio, aos 44 anos. Há alguma razão específica para
tal fato?
AP – Penso que se trata de um problema de ritmo vital. Os livros vão se
escrevendo lentamente e, em algum momento, estão prontos. Às vezes são mais de
um, como no caso de Góngora, pois investigando o poeta barroco surgiu um estudo
sobre sua obra, uma edição de escritos e uma antologia da poesia culterana.
Três livros crescendo a um só tempo.
Ainda que não pareça, a Antología
de la poesía surrealista me levou dez anos, talvez mais, ainda que intermitentemente.
Ainda agitam a cauda alguns projetos à sombra do surrealismo e nestes dias
estou começando a traduzir panfletos, proclamas e outros escritos surrealistas
que agruparei com o título Razonado desorden
(Textos surrealistas). Digo que estou traduzindo, mas também recolherei
textos escritos em espanhol por Pellegrini, Dalí etc.
Não me preocupa a escritura, mesmo que não possa viver sem escrever.
Digo escrever, não publicar. Minha poesia – boa ou má – cresce lentamente e
publico apenas algo do que escrevo. Algumas vezes por capricho, e outras pela
insistência de alguns amigos.
FM – Reconhece uma poética em sua
poesia?
AP – Não sei se a tenho. Suponho que sim, mas, em todo caso, espero que
meu hipócrita leitor possa intuí-la (mas não a entenda de todo) ao ler meus poemas.
FM – Para o poeta Enrique Molina “não há conhecimento mais verdadeiro que o da
experiência direta”, e conclui: “o mundo sempre está se entregando a todo
aquele que esteja disposto a pagar-lhe em paixão e crueldade”. A poesia é forma
de conhecimento? Ou, ainda citando o poeta argentino, “a mais desesperada
tentativa de salvação de uma conduta existencial”?
AP – A poesia é uma forma de conhecimento? Uma paixão do conhecimento,
como escreveu Vicente Aleixandre? É, suponho, uma proposta de marginalização
ante uma sociedade imposta, feliz em todos os seus momentos e ansiosamente
obsecada em seus esquecimentos. Todos os indivíduos, todas as sociedades
(inclusive as mais miseráveis, a partir de seu ponto de vista material), são
felizes ou esperam sê-lo. O poeta tem que marginalizar-se para ser.
FM – Stefan Baciu, em sua Antología de la poesía surrealista latinoamericana
(Ediciones Universitarias de Valparaíso. Chile. 1981), estabelece uma distinção
necessária entre aqueles poetas que eram de fato surrealistas – Aldo
Pellegrini, Braulio Arenas, César Moro etc. – e os que eram apenas tocados pelo
surrealismo, que ele chamava de surrealizantes – Federico García Lorca, Rafael
Alberti, Pablo Neruda, Vicente Aleixandre etc. Observa ainda que “esta mistura
permanente do surrealista com o surrealizante é um dos perigos que enfrentam a
literatura e a história literária, e a confusão tem sido tão grande que se
organizam listas, livros e até antologias com surrealistas que, na realidade, são
surrealizantes, e mesmo assim somente até certa época”. O que você pensa acerca
de tal distinção?
AP – Fujamos dos historiadores da literatura. Envelhecem com cada
geração e seus juízos valem menos que promessa de político. Daí excluo minha
modesta entrada materializada em alguns ensaios, entre os quais se conta a Antología de la poesía surrealista, em
língua espanhola, que agora nos ocupa. Não sou professor, nem vivo esse mundo
de catalogações e fichas. Sou – ou pretendo ser, daí minha exclusão – um poeta,
ávido leitor, que pretende fixar suas obsessões literárias. Por fim, estudo o
que me agrada e me encontro totalmente alheio, por minha profissão e minha
vontade, à burocracia do ensino.
Tudo isto vem como cotejo à distinção de Stefan Baciu sobre poetas surrealistas
ou surrealizantes. O livro de Baciu é estimável mas esta afirmação está, a meu
ver, fora de lugar. Não conheço a edição chilena de 1981 que você me cita, já
que consultei a mexicana de 1974 e talvez este acerto tenha sido matizado. Se
se aplicar, por exemplo, este critério a outras escolas ou movimentos
literários de épocas precedentes, notar-se-ia então a debilidade do raciocínio.
Pensemos no romantismo, desde o aparecimento de Lyrical ballads, em 1798, e nas escolas românticas na Alemanha, França
e, não nos esqueçamos, Espanha e América. Hoje é difícil distinguir os
“romantizantes”. Como é difícil distinguir, segundo a divisão de Baciu, o poeta
surrealista do surrealizante, pelo menos tal como nos é apresentada. Estamos
seguros de que Octavio Paz é um poeta surrealista – já que não somente o
próprio Baciu o inclui em sua antologia mas que também se encontra nas antologias
do surrealismo francês –, e que são surrealizantes Lorca, Alberti e Aleixandre?
Poeta en Nueva York, Sobre los ángeles e Pasión de la tierra são surrealizantes e
¿Águila o sol? ou Vuelta surrealistas? Temo que esta distinção se faça porque se está tendo em conta outros
livros destes poetas; possivelmente os romances gitanos de Lorca e a poesia
política de Alberti, que efetivamente não são surrealistas. Porém este critério
nos levaria a excluir do surrealismo os iniciadores deste movimento na França,
como Louis Aragón, Paul Éluard e um longo etc., por causa de Le musée grévin ou Poèmes politiques. Sejamos prudentes e tentemos excluir os
partidarismos. Aragon, Éluard, são surrealistas em Une vague de rèves, Le pausan
de Paris, Capitale de la douleur
e L’amour la poèsie, e não o são em Les communistes, La diane française e Une
leçon de morale, da mesma forma que o são Lorca, Alberti, Cernuda,
Aleixandre e Neruda em Poeta en Nueva York, Sobre los ángeles, Un río, un
amor e Residencia en la tierra e
não o são em Romancero gitano, De un momento a otro, Desolación de la quimera, Historia del corazón e Las uvas y el viento. Mas se se trata de
mesclar a política com a literatura, perfeitamente normal por outro lado, a
mesma balança deveria ser utilizada para pesar a “Oda a Stalin”, de Neruda, e
os louvores à Junta Militar chilena, de Braulio Arenas.
FM – Quais os critérios adotados
na feitura desta sua antologia? Por exemplo: Enrique Gómez-Correa, Francisco
Madariaga, Teófilo Cid, que são poetas essencialmente
surrealistas, estão fora da antologia, enquanto outros que tiveram importância
menor dentro do quadro geral do surrealismo, tais como Camilo José Cela, Leopoldo Panero e Juan Sierra, estão ali presentes.
AP – Sobre os critérios para selecionar os textos e autores da antologia,
queria dizer que, além da adscrição literária que dá título ao volume,
tencionei – e não sei se consegui – selecionar os poemas de mais qualidade e só
então, finalmente os agrupei por autores. O livro pretende antologar poesias
surrealistas e somente em segundo termo apresenta-se como uma antologia de
autores. É por isto que a extensão que ocupa cada poeta dentro do livro não deve
ser entendida como uma hierarquia de valores literários. É, ou pretende ser,
repito, uma reunião de poesias surrealistas, e não de autores.
FM – Que poeta teria representado
o papel de precursor do Surrealismo na Espanha?
AP – Em sentido estrito é difícil falar de precursores do surrealismo.
Os surrealistas, como os românticos, não nascem já na cúspide de sua perfeição
e há um longo caminho balizado de referências culturais; mas não só destas. O
poeta surrealista é devedor de um grupo numeroso de pessoas que, de alguma
forma, estiveram em conflito com seu meio. Em meu livro chamo de “ancestros” os
homens e mulheres aos quais os surrealistas franceses foram especialmente
devotos (e não sei se a palavra devotos
é a apropriada): Rimbaud, Lewis Carrol, Baudelaire, Lautréamont, Sade, Apollinaire,
Nerval, são alguns deles.
De qualquer maneira, não há nenhuma dúvida de que antes de 1924 o
embrião que conduz ao surrealismo teve um nome: Dadá. Na Espanha, o
criacionismo ou o ultraísmo merecem figurar como o primeiro motor da futura
revolução literária. Se no movimento Dadá figuram Tzara, Breton e Aragón, no
criacionismo e no ultraísmo estiveram Vicente Huidobro e Gerardo Diego, como
aproximações marginais do primeiro Alberti. Outros nomes presentes no ultraísmo
e que posteriormente encontraram outra forma de expressão, talvez convenha
citá-los agora: Jorge Luis Borges, José Rivas Panedas, César A. Comet,
Guillermo de Torre, Isaac del Vando Villar, Eliodoro Puche,
ultraístas/criacionistas americanos e espanhóis, unidos pelo idioma em uma
mesma aventura cultural.
FM – Que características
diferenciariam o Surrealismo espanhol do americano?
AP – Não me atrevo a opinar sobre as diferenças entre um e outro. São
mais notórios os traços comuns que os diferenciais. Talvez os poetas americanos
(Moro, Westphalen, Pellegrini etc.) tenham sido mais audaciosos, mais
revolucionários, na busca de uma linguagem poética.
FM – Na seleção de poemas do
chileno Vicente Huidobro e do peruano César Vallejo, você não incluiu textos de
Altazor e Trilce, que são, respectivamente, suas obras de
maior importância no que se refere à renovação da linguagem poética. Há algum
motivo em especial?
AP – A não inclusão de Altazor,
de Huidobro, em minha
Antologia surrealista, foi decisão de última hora. Por
problemas de edição não era possível incluir o poema inteiro e eu resistia a
selecionar um fragmento de um texto tão difícil de fracionar. Talvez estas
vacilações devessem ter sido expostas no livro.
Minha opinião é que Trilce, de
César Vallejo, da mesma forma que Manual
de espuma, de Gerardo Diego, não são surrealistas. No caso do segundo
livro, faz parte desse grupo de publicações que hoje conhecemos com o nome de
Dadá, ultraísmo ou criacionismo e que, em rigor, pertencem a outra época.
FM – Você incluiu Cinco metros de poemas, do peruano
Carlos Oquendo de Amat, em uma lista de livros, ao lado
de Pasión de la tierra, Poeta en Nueva York, Altazor etc., que teriam revolucionado a poesia
espanhola – segundo texto de contracapa da antologia. Quais critérios foram
adotados para a configuração de tal lista? Poderia nos falar um pouco mais a
respeito destes livros? Acaso En la masmédula, do argentino Oliverio Girondo, não deveria ser incluído como
um dos principais livros n a poesia de língua espanhola?
AP – Não intervi na confecção do texto onde se relacionam os livros
“destinados a revolucionar a poesia espanhola”. Este texto da capa do livro foi
preparado pela editora, ainda que recolha minhas opiniões sobre a poesia
escrita em espanhol em finais dos anos vinte e princípios da década seguinte. O
livro de Oliverio Girondo, En la masmédula, cujas poesias recolho
em minha antologia, foi publicado no ano de 1954 e fica fora da relação de sete
títulos por razões cronológicas. Sem fazer agora aborrecidas análises comparativas,
quero dizer que a influência de Altazor,
Poeta en Nueva York, Sobre los ángeles, Residencia en la tierra, foi considerável. Livros lidos por várias
gerações de poetas na Espanha e na América. Talvez a influência de Cinco metros de poemas seja menos
visível, mas este texto singular de um poeta raro e maldito tem mais
continuadores do que supomos. En la
masmédula é um grande livro, mas sua influência foi consideravelmente menor
por ter sido publicado fora de seu tempo. Isto é o que eu acho.
FM – Você incluiu Pablo Neruda em tua antologia. Isto me faz lembrar o fato
de que Breton o repudiava. Certa vez comentou que o poeta
chileno costumava exagerar a narração de suas perseguições políticas “para o
uso de certa propaganda”, afirmando que este fato seria suficiente para
“desqualificá-lo do ponto de vista surrealista”.
AP – Quem tem dúvidas de que Residencia
en la tierra bebeu da fonte surrealista? O surrealismo é um grupo, escola,
facção, ou como quer que seja chamado, contraditório, e é esta, talvez, uma de
suas muitas virtudes. O surrealismo é liberdade e como tal há que ser
entendido, e estaria espartilhado com um programa prévio. Nem sequer Breton deve ser seguido ao pé da letra. Se Breton
pensou que Neruda exagerava suas perseguições
políticas e este fato o desqualificava do ponto de vista surrealista, não se
pode duvidar que Paul Éluard, Louis Aragon, Antonin
Artaud, Philippe Soupault, Jacques Prévert, Ribemont-Dessaignes e Robert Desnos não formem parte do surrealismo por sua
militância política ou por outras causas. Estes aspectos contraditórios do
surrealismo e do próprio Breton constituem sua idiossincrasia.
FM – O escândalo era uma das
grandes armas surrealistas. Quais algumas das intervenções escandalosas mais
célebres dos surrealistas espanhóis?
AP – Os surrealistas espanhóis não foram promotores de escândalos.
Talvez por excesso de escrúpulos, coisa que na Espanha dos anos 30 era difícil
de romper. Alguns deles, conto em meu livro. Recordemos este protagonizado por
Buñuel e Lorca:
Barbeados e maquilados cuidadosamente, entravam nos ônibus de Madrid disfarçados de monjas na hora de maior afluência. Olhares insinuantes e apertões provocados semeavam o desconcerto, talvez o pânico, entre os passageiros masculinos. Buñuel explicava esta ação como fruto de uma campanha anticlerical de fabricação própria, minuciosamente preparada.
Barbeados e maquilados cuidadosamente, entravam nos ônibus de Madrid disfarçados de monjas na hora de maior afluência. Olhares insinuantes e apertões provocados semeavam o desconcerto, talvez o pânico, entre os passageiros masculinos. Buñuel explicava esta ação como fruto de uma campanha anticlerical de fabricação própria, minuciosamente preparada.
Como fato verídico narra-o um de seus protagonistas. Depois de 1936 os
escândalos, se acaso existiram, passariam despercebidos.
FM – Em relação ao Surrealismo, o
que viria acrescentar o postismo, de Carlos Edmundo de Ory, Eduardo Chicharro e Silvano Sernesi?
AP – O postismo foi um
movimento estranho no panorama literário da Espanha do pós-guerra. A sordidez
mental, para não falar também de torpezas materiais, não ajudava à consolidação
de escolas cujo mérito principal era a busca do novo. Em uma Espanha obrigada a
recordar seu passado imperial como antídoto para esquecer um presente, com uma
censura férrea, uma literatura cuja premissa principal era a provocação e o
escândalo – ainda que fossem apenas literários –, não encontrava nenhuma
possibilidade de expressar-se. Foi uma ação testemunhal, uma ilha de vegetação
exótica e espontânea, rodeada por um mar sulcado por couraçados e mercantes.
Restam do postismo seus poemas e a
figura, hoje patriarcal e marginalizada, de Carlos Edmundo de Ory.
FM – Há dois livros seus de
estudos sobre a obra de Luis de Góngora. De onde vem este seu interesse
pelo poeta das Soledades, o
poeta da “metáfora ao quadrado”, segundo o cubano Severo Sarduy?
AP – A paixão por Góngora é uma paixão de juventude. E eu já a estou
vendo da distância dos anos. Góngora é um “poeta da transgressão”. Como não
admirar-lhe dentro deste nosso ordenado século XX? Há no poeta culterano a
decisão de escrever construindo uma língua poética, e isto é, de algum modo, o
que aspiramos todos os poetas. Juan Larrea, o
surrealista espanhol, escreveu: “o gongorismo […] cuja obscuridade nasce de um
desejo de distinção e não de uma emoção”.
FM – Concorda, para finalizarmos,
com Borges, ao dizer que “a página da perfeição, a pagina onde nenhuma palavra
pode ser alterada sem dano, é a mais precária de todas”?
AP – Não estou de
acordo. Ou, pelo menos, creio que essa página perfeita não o é nunca para seu
autor. Por outro lado não sei muito bem o que quer dizer Borges com a palavra
“precário” neste contexto. Talvez se trate de um gracejo ou o reverso do verso
de Keats: “A thing of beauty is a joy for ever”, mesmo que razoável de forma bastante
livre.
[1985]
[Entrevista
incluída no livro O Começo da Busca - O
surrealismo na poesia da América Latina, de Floriano Martins (São Paulo:
Escrituras Editora, 2001).]
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ROBERTO PIVA | O banquete do poeta
FM Durante os anos de 1959
a 1961, você participou de um curso sobre a Divina Comédia, curso este
ministrado por Edoardo Bizzarri, no Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro. Dante
teria sido a porta de entrada para a sua poesia?
RP Eu não tinha nenhum interesse em ser poeta. Eu
queria ser gangster. Então eu andava pelas ruas de São Paulo, armado de
revólver, com capa, imitando os filmes de gangster americanos, Humphrey Bogart
etc. O problema é que eu não consegui ser gangster. Então acabei escrevendo
poesia, que é uma forma de incentivar ao gangsterismo. Este curso sobre a Divina Comédia foi dado pelo então adido
cultural da Itália no Brasil, e ali comentamos e discutimos os três livros de
Dante (Inferno, Purgatório e Paraíso), um ano para cada livro. Eu acompanhei os
três anos. O que aconteceu é que Dante, como todo verdadeiro poeta, era um
nômade. Foi expulso da cidadezinha dele, entrou em choque com todos os poderes
constituídos de sua cidade, com o tipo de governo que havia lá, e passou a vida
como nômade, cada hora na corte de um nobre daqueles que lhe dava guarida. Eu
também me sentia muito nômade, e havia uma grande identificação minha com todos
os personagens de Dante. Eu talvez não seja nada mais do que um personagem do
Inferno de Dante, que saltou fora da obra para deixar a realidade em completa
desordem.
FM Em entrevista que fiz ao Claudio Willer, ele me falou de certas leituras
de Heidegger que vocês faziam na casa do Vicente Ferreira da Silva.
RP O Vicente foi o único filósofo original que teve o
Brasil. Era um cara que levava, não literariamente, não vegetarianamente, a proposição
do Oswald de Andrade, de antropofagia. Para ele, antropofagia era antropofagia
mesmo. Não era essa coisa literária, pasteurizada, que esses professores de
literatura estão tentando fazer. Para ele, era devorar o outro, era comer o
outro, comer, matar e comer. Ele achava que isto era o fundamental, porque ele
era um filósofo dionisíaco, um filósofo do delírio. Como as Bacantes, tem que
chegar lá e arrancar, matar os Penteus e devorar. Tem que ser devorado, que ser
estuprado. Vicente lia ao pé da letra a antropofagia, e era um amigo íntimo do
Oswald de Andrade. Daí que foram leituras e discussões de Heidegger e outros
filósofos, outros autores, envolvendo muita gente, porque a casa do Vicente era
um espaço cosmopolita, onde caras do mundo inteiro frequentavam, desde o
Guimarães Rosa, passando por físicos italianos, poetas franceses, críticos
americanos etc. Daí que eu acho que 99,9% dos poetas brasileiros são altamente
provincianos. Provavelmente o único poeta brasileiro não provinciano foi o
Murilo Mendes, dotado de uma visão internacional, geral, cosmopolita. Por isto
que a minha grande influência poética no Brasil é o Murilo Mendes, e isto em
todos os sentidos, porque eu vinha de uma escola que era a mesma do Vicente
Ferreira da Silva, e a minha própria formação, sempre em contato com pessoas de
várias nacionalidades, eu saí fora da tribo, ao mesmo tempo conhecendo
profundamente essa tribo. Então esse provincianismo de escolinha, de
igrejinhas, de tertúlias caretas de literatura, essa coisa de grupo, do tipo o
cara vai no jornal e só elogia os caras do grupo dele, isto tudo é uma coisa
medíocre, uma coisa provinciana que existe entre 99,9% dos poetas brasileiros.
E na casa do Vicente não tinha isto. Lá se discutia Heidegger, se discutia Fernando
Pessoa. Conheci lá, por exemplo, o Eudoro de Sousa, famoso intelectual
português, exegeta de Fernando Pessoa. Eram momentos de grande participação,
nossas leituras de poesia, nossas discussões de Heidegger. Na USP, veja bem, os
comunistas da USP, os positivistas, nos olhavam como a molecada. Já o Vicente e
a esposa dele, a Dora Ferreira da Silva, nos recebiam da mesma forma como a um
Guimarães Rosa. Isto é que era bacana. Enquanto o pessoal da USP estava sempre
nos marginalizando. Atualmente são os mesmos caras da USP, que naquela época
combateram o meu livro Paranóia
(1933), que atualmente, quando me vêem, ficam de olho arregalado e
embasbacados, porque acham uma coisa maravilhosa, brilhante, e que descobriram
isto vinte anos depois. No entanto, o Vicente, já naquela época – e ele morreu
logo em seguida –, mostrava nossos textos para todas essas pessoas, e discutia
com a gente com a mesma seriedade com que discutia com um Ernesto Grassi, um
Eudoro de Sousa, um Guimarães Rosa. Enfim, todos bebíamos a mesma porção desse
caldo filosófico que era a casa do Vicente Ferreira da Silva.
FM Há em sua poesia inúmeras referências musicais – “Miles Davis a 150 quilômetros por
hora / caçando minhas visões como um demônio” ou “Paul Desmond com seu sax alto
floreando em stacatto meu apartamento” – quase sempre jazzísticas.
RP O ritmo do jazz é inseparável da minha poesia. Aliás, agora que está na
moda badalar o Chet Baker, você observa que em 1963 eu já falo dele em um verso
meu. Agora ele está na moda, descobriram o cara quando ele está uma ruína,
quando está em franca decadência, está democrático, convidando uns babacas do
Rio de Janeiro, um pessoal que não sabe o que diz nem o que toca, para tocar
com ele. Ele democratizou essa sua energia, e daí perdeu todo o pique.
Atualmente ele é um cara totalmente sem aquele pique, aquela genialidade, sem
aquela energia de transformação e de invenção que ele tinha, a ponto de
influenciar a nossa Bossa Nova. E todo esse balanço da bossa é o balanço da
minha poesia. Uma poesia sem música, sem jogo de cintura, é uma poesia rígida,
dos comunistas, dos marxistas, uma poesia absolutamente trancada dentro de um
túmulo que é o túmulo do leninismo, que já está fedendo. É claro que o rock
também me influenciou, mas não teve a mesma importância que o jazz, o cool
jazz. Mas há evidentemente alguma influência do rock, uma vez que pessoas como
o Jim Morrison, Bob Dylan, Frank Zappa, são excelentes poetas. Então o rock me
influenciou também, e até mesmo antes do jazz. Eu fui, por exemplo, um dos
caras que em 1957 foi receber o Bill Haley, com um grupo de jovens, lá na Praça
do Patriarca, onde ele se hospedou. Fomos fazer uma manifestação de carinho, de
afeto. Posteriormente o jazz me influenciou, e logo em seguida a Bossa Nova. Eu
fui apaixonado pela Bossa Nova. Então essas três correntes – o rock, a Bossa
Nova e principalmente o jazz – são uma constante da influência musical na minha
obra.
FM Há a seguinte passagem no livro 20
poemas com brócoli (1981): “não serei vossa sobremesa nesta curta
temporada no inferno”. A rebeldia seria o último caminho para a arte no sentido
de liquidar com o dopping da sociedade de consumo ou mesmo essa negação já teria sido absorvida
pelo status quo, convertendo-se na “própria instituição burguesa do poético”
(Luís Costa Lima)?
RP Minha obra tem que ser vista como um plano de fuga desta civilização.
Tudo aquilo que eu escrevo, tudo aquilo que eu falo, que eu vivo, todas as
trepadas que dou, é porque eu não tenho grana. Por isto eu queria ser gangster,
para ter muito dinheiro e evadir desta civilização, morar em uma ilha, saltar
fora, morar entre maometanos, eu não sei mais. Trata-se de um plano de fuga
desta civilização. Evidente que toda a poesia, que grande parte da poesia
brasileira, atualmente está pasteurizada e conchavada com a mídia. Tem jornais
brasileiros – e seus suplementos – que são verdadeiros lobbies editoriais. As
redações desses jornais tentam pegar poetas em que eles possam oferecer ao
público uma visão uniforme da poesia brasileira. Há portanto uma castração em
processo, uma castração em
massa. Então está na hora dos verdadeiros poetas caírem fora
deste circuito, de novo, e ficar naquela eterna de emergir e submergir, porque
a pasteurização está aí, cada dia os versinhos estão mais bem comportados, as
bordadeiras de poesia estão de volta, tudo isto. Então, eu acredito que a
poesia-porrada, a poesia-cancerosa, a poesia-lisérgica, esta jamais será
conchavada pelo sistema.
FM Você acredita que a vida se modifique, que o homem se aperfeiçoe?
RP A vida é um monte de ruínas. Não existe evolução, coisa nenhuma. E cada
dia mais as pessoas estão voltando praticamente para uma idade da pedra da qual
elas nunca saíram. Vale a pena escrever porque três ou quatro pessoas, meia
dúzia aqui, outros tantos ali, amigos, um pequeno grupo de pessoas, no meu caso
os garotos de periferia, os garotos subproletários, enfim, eles são pessoas que
se identificam muito com o tipo de coisa que eu escrevo, porque eles não
abolem, eles não tiram da cabeça um princípio básico para entender a minha
poesia, a palavra criminal. Uma poesia cuja transgressão aponta, em última
instância, para o crime, e para a anarquia generalizada – não o anarquismo, mas
a Anarquia. A minha poesia nada mais é do que a tentativa de instaurar essa
desordem no cotidiano das pessoas.
FM Recordo aqui Pasolini: “talvez a verdadeira tragédia de todo poeta seja
a de só atingir o mundo metaforicamente, segundo as regras de uma magia
definitivamente limitada na sua apropriação do mundo”.
RP Não tenha dúvida, o poeta é um solitário. Poeta que não é solitário são
os poetas oficiais, professores universitários bem situados, casados,
direitinho. Tem toda uma mídia atrás disso, visando transformar a poesia em
mais uma armadilha que faz movimentar o rebanho. Então essa espécie de
cumplicidade dessas pessoas com o sistema visa a venda de obras, ou seja, uma
poesia feita em função do ego. A minha poesia não é feita em função do ego, e
sim em função do delírio. Eu só acredito no delírio, do qual a poesia é uma das
manifestações. Eu estou muito próximo da arte bruta, da arte com loucos, com
crianças, dos meus amigos grafiteiros de muros… A poesia é para conduzir a
isto. A poesia, diz Lautréamont, deve ser feita por todos. Não para todos, mas
por todos, cada um à sua maneira. Agora, querer impingir para o povo brasileiro
uma escola, um único capítulo da história da literatura como sendo o capítulo,
isto é um absurdo. Existem milhares. A verdade é a variedade. Fora disto é a
uniformidade, a coisa totalitária que eles querem impor, tanto os de direita
quanto os de esquerda e os de centro, do alto, de baixo, todos querem uma visão
uniforme da vida, como se isto fosse possível. Então todos estão aí querendo
botar essa máscara, impingir esse túmulo para a sociedade brasileira, para a
juventude. Agora, você sabe, tem aquele princípio zen, aquele princípio
taoísta: quanto mais você pratica o não-agir mas as coisas correm a seu favor.
FM Encerro lembrando uma declaração recente do Pepe Escobar, publicada na Folha de São Paulo (27/07/85): “No
Brasil não existe nem mesmo uma poesia trágica capaz de compensar nosso descarrilhamento
histórico. Não temos nem mesmo uma Odisséia que retrate dignamente a agonia de nosso povo. Falta até mesmo o puro e
simples tesão na cultura brasileira. Tudo gira em torno de compromissos de
clubes, amanteigados por sublirismo. E tudo cai na impenitente banalização.”
RP Pois é, é tudo isto de que acabamos de falar. E tudo gira em torno de
uma única palavra: provincianismo. E o cara sendo provinciano ele está perdido.
O cara entrar nesse jogo da mídia, ele está perdido, porque isso passa, assim
como lembrando uma frase de Brecht: “das cidades só vai sobrar o vento que
passa sobre elas”.
[1985]
[Entrevista
incluída no livro O Começo da Busca - O
surrealismo na poesia da América Latina, de Floriano Martins (São Paulo:
Escrituras Editora, 2001).]
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