sexta-feira, 8 de agosto de 2014

JACOB KLINTOWITZ | Acasos de acordo com o destino



FM Direto ao princípio das coisas: o que o teria levado à crítica das artes? 

JK O lugar onde eu me sinto perfeitamente à vontade é entre imagens, textos, palavras, diálogos. Desde sempre eu fui assim. Aos 10 anos li e fiz uma imediata análise de parte da obra de Fiodor Dostoievski e Honoré de Balzac. Acho que intuí elementos essenciais, inclusive sobre as diferenças entre os dois e seu processo de criação. Aos 14 anos fiz uma redação escolar de assunto livre e escolhi como tema “o medo”, na qual eu amalgamava tudo: a bíblia, especialmente “Eclesiastes”, Omar Khayyam, Freud, Marx, Darwin. Era uma bela salada mista, mas o professor, Luis Emilio Léo, era um verdadeiro mestre e me gratificou com um “10” por todo o ano, desde que eu entregasse duas redações por mês. Foi o meu começo e o meu primeiro público, um só indivíduo. E não parei mais. Curioso é que, por tantas vezes, à procura de ser mecenas comigo mesmo, eu tenha me desviado do caminho literário e enveredado na aridez executiva. 
Em Porto Alegre, RS, onde nasci, ainda adolescente e já amigo de artistas, seguidamente eu respondia às entrevistas por eles. Deduzia por sua obra o que eles deveriam pensar sobre as coisas do mundo. Eu nem me dava conta que isto já era crítica de arte. E comecei a escrever no maior jornal da terra, o Correio do Povo. Naturalmente eu escrevi sobre temas que estavam além da minha possibilidade, como Franz Kafka, Cervantes e Gil Vicente. Quando me senti asfixiado pela vida pequena da, na época, província, e perseguido pelo autoritarismo político, mudei para o Rio de Janeiro, repetiu-se o fenômeno. Fui procurado por um artista chamado Aloysio Zaluar. Ele e seu grupo queriam falar, dar opiniões, mas não sabiam como fazer. Eu escrevi os depoimentos em forma de reportagem. E foi publicado em página inteira no jornal A Tribuna da Imprensa. Eles tiveram a gentileza de colocar também o meu nome como co-autor. A segunda matéria, à falta de máquina, fui escrever na redação. Um senhor elegante e de olho brilhante chamado Hélio Fernandes, dono do jornal, perguntou quem eu era, identificou o nome com a matéria, declarou o meu “talento” e, para encurtar, me deu uma coluna diária no seu jornal a partir daquele momento. Eu me tornei publicamente crítico de arte. 
Parecem acasos e talvez sejam. Mas este acaso estava de acordo com o meu destino. E, agora, retornei os comentários sobre literatura e estou publicando a minha ficção. Estou em casa.

FM Como chegam ao Brasil os Klintowitz e de que maneira a origem familiar influenciaria a tua vida? 

JK A família da minha mãe, Knijnik e Beckerman, russos, vieram para o interior do Rio Grande do Sul numa leva chamada de pioneiros, imigração promovida por Rotschild, que previa a segunda guerra mundial, o assassinato de judeus, e deslocava os mais pobres para o cultivo da terra em lugares distantes. O meu pai, lituano, estava ameaçado de morte em sua terra por lutar pelo comunismo. Era imberbe, poeta, articulista, político. Jovem, sem profissão, numa terra estranha, em outra língua, parte de seu destino não foi cumprida. E a sua família, mãe, irmãos, primos, foi assassinada num único dia pelos nazistas. Tenho a sensação de que nunca saiu do estado de choque. 
O meu pai me influenciou por seu amor à verdade, a sua fidelidade aos conceitos éticos, o seu respeito mítico à cultura e à produção cultural. E o Balzac e o Dostoievski que li aos 10 anos foram presentes dele… 

FM Quais artistas foram aqueles que primeiro te despertaram a atenção para um diálogo mais sistemático com a criação? 

JK No campo da literatura, não tenho dúvida de que foi o Eclesiastes, bíblico, atribuído a Salomão; Shakespeare, Franz Kafka, os poetas e escritores árabes antigos. Nas artes visuais, acho que fui imediatamente capturado e encantado por Piranesi, Leonardo da Vinci, Paul Klee, Pablo Picasso, Constantin Brancusi. 

FM Mark Rothko, em sua última conferência, observou a impossibilidade de descrever o que ele então chamou de “a noção trágica da imagem”. A força com que este novo componente — a imagem — passa a definir a arte no século XX, como modificaria a visão da crítica? Como diferenciar as duas estações dessa atividade intelectual? 

JK Penso que o mundo se modificou. A derrota do assunto em favor do tema faz parte da rejeição ao anedótico em troca de uma visão do mundo e da intermitência da realidade. O que mudou foi o conceito do que seja o real. Alargou-se e perdeu as nítidas fronteiras. O que era considerado real, não é mais, do ponto de vista da ciência. Do ponto de vista da vida humana, cresceu a importância da intuição, da sensibilidade, da subjetividade. O homem é maior, depois de Freud. O oculto faz parte da totalidade do homem. A arte busca a arte e não o registro de fatos históricos. Ela é a própria história, é o próprio fato, não é a repórter do mundo, senão a biografia de si mesmo. Certamente a imagem, ainda mais a de Rothko, tem o sentido trágico da biografia profunda (não tópica), da narração da vida e, no caso, da narração da própria morte. E por que ele conseguiria expressar o que é esta imagem? Ele já o havia feito na linguagem certa, a sua. 
Não vejo dificuldade em falar da imagem. Eu nunca a descrevo, eu nunca quero substituí-la. O que faço é criar equivalências poéticas em outra linguagem, a da palavra. Pretender substituir uma linguagem por outra é amar o fracasso. 
A respeito da crítica de arte devo dizer que não sabemos bem o que seja, tantos são os críticos, tantas são as maneiras de fazer crítica. Há o comunicador, o que escreve em veículos de massa. Há o universitário, o que leva a vida no campus, faz parte de departamentos e participa de associações científicas de crítica. E os há como eu, para quem a ideia de uma crítica de arte científica é uma ideia de pesadelo, um mau sonho, e que se guiam pela sensibilidade, pelo amor da linguagem, pelo prazer supremo de descobrir na obra de arte aquilo que eles são, a sua identidade, a sua biografia profunda. A arte que eu gosto narra a minha biografia. 

FM A entrada na modernidade essencialmente se caracteriza por uma visão cosmopolita e a rejeição a toda forma de nacionalismo. O que vimos no Brasil, no entanto, foi justamente uma busca ou afirmação do caráter nacional. Como recorda o mexicano Octavio Paz, a ideia dos estilos nacionais, típica do século XIX, era fruto de países que desconheceram o Renascimento ou o Barroco. Qual o teu entendimento a este respeito? Haveria aí uma singularidade de nossa leitura da modernidade ou simplesmente o que chamamos de modernismo ainda é reflexo de uma cultura subdesenvolvida? 

JK Nós amamos, no Brasil, a hipocrisia do nacionalismo. É ele que justifica os nossos atrasos, que nos faz levantar o nariz e dizer que somos insensíveis, egoístas, destruidores, mas que isto é um jeito tipicamente nosso. O nosso nacionalismo esteve ligado ao fascismo, ao totalitarismo militar, ao atraso. No Brasil, lamentavelmente, toda pessoa terrível e prejudicial levanta a bandeira do amor acendrado e separatista da pátria. A pátria apenas para eles. Um horror. 

No caso do modernismo, custa a crer que seja entendido como um estilo, quando é uma postura científica e filosófica. Vingou por muitos séculos, teve a sua glória profana e superficial, e nos conduziu ao caos sem ética e a esta quase hecatombe final da humanidade. Está prestes a se encerrar, derrotado pela ciência quântica, pela psicologia, pela alta literatura, pela arte mais sensível. O mundo se torna mais completo e complexo. 
No Brasil, houve muitos equívocos. E como é comum no nosso país, os equívocos tornam-se dogmas. Tornam-se verdades religiosas. Há de tudo no nosso modernismo, até mesmo um pouco de modernismo. E nunca podemos esquecer que os resultados, as obras, são de nível bem mediano. 

FM Em que momento nasce a crítica de arte no Brasil? 

JK Há muitas manifestações críticas, diversos formatos, biografias, entrevistas, comentários, e a própria atitude de alguns artistas tem caráter crítico, como a recusa da luz artificial do ateliê, numa cópia do ambiente aconchegante, imaginário e nostálgico de Paris, e a busca da luz da paisagem brasileira na própria paisagem brasileira. É o nascimento da nossa pintura de paisagem. E eu, para responder a esta pergunta, devo ser absolutamente restritivo e injusto, pois deverei eleger um momento, iluminar este momento e obscurecer tempos anteriores e diversas formas de crítica. Entretanto, do ponto de vista do símbolo, é possível fazer esta eleição. Eu tenho para mim que o momento chave foi a crítica do escritor Monteiro Lobato à exposição de Anita Malfatti, em 20 de dezembro de 1917. O título da matéria, publicada no jornal O Estado de S. Paulo, era “Paranoia ou mistificação? A propósito da exposição Malfatti.” 
Anita Malfatti fez uma mostra na cidade de São Paulo, espécie de apresentação após o seu período de aprendizado nos Estados Unidos. A exposição tinha uma atmosfera expressionista, e era delicadamente lírica. Monteiro Lobato, escritor de alta relevância e, hoje, um mito literário nacional, investe violentamente contra o que chama de arte moderna, misturando impressionismo, futurismo e cubismo e extravagâncias à moda de Picasso & Cia. [sic] Na sua matéria, Malfatti parece um pretexto. Apresenta, como referência da verdadeira arte, Praxiteles, Rafael, Reynolds, Rodin. Foi esta crítica que transformou a pintora em uma espécie de mártir do modernismo brasileiro e que serviu de alvo, de inimigo ideal, para a Semana de Arte Moderna, em 1922, uma tardia manifestação. Deve-se notar que a Semana de 1922 só se tornou possível porque o escultor Victor Brecheret, então um quase desconhecido, tinha um conjunto magnífico de esculturas. Anita teve um papel mais limitado na Semana. 
Esta crítica foi um divisor de águas e serviu como paradigma pró e contra as inovações artísticas. Foi utilizada politicamente, manipulada, transformada em manifestação emblemática. E muito pouco analisada. Apesar de seu conteúdo conservador, da tolice e da incompreensão do que seja arte, do distanciamento do pensamento expressivo e do novo conhecimento científico e cultural, é importante a hipótese levantada por Monteiro Lobato das questões relativas à paranoia e à mistificação. A aparência libertária, o foco romântico no artista e não na obra, a simplificação das análises culturais, a contaminação da arte pela publicidade e pelo marketing, atualizam estas questões colocadas por Monteiro Lobato. 
Monteiro Lobato é um escritor seminal no Brasil. Ele não sucumbiu na mediocridade. O que ele confusamente chamou de arte moderna é hoje a única arte que se pratica, em suas múltiplas e infinitas facetas. E a nossa época, doente de narcisismo, corrupta e egocêntrica, uma época patológica, fez aflorar o deboche como método. Às vezes, por guerras na vida cultural, alguém perde o senso de medida, como foi este momento de Lobato, atira no que vê e acerta em outro alvo. É o caso. De qualquer maneira, não conheço nada no Brasil que tenha causado tanto impacto. É uma crítica injusta, desproporcional, abrangente e excessiva. E facilitou a causa que condenava. E foi o marco inaugural da nossa crítica de arte. 

FM Seria possível, cronologicamente, saltar daí para a última crítica, ou seja, há um exemplo de igual teor explosivo atualmente que, independente do sentido de justiça, possa ser destacado como marco na crítica de arte que (ainda) se faz no Brasil? 

JK Não haverá mais, imagino eu, este teor explosivo. Nada mais choca em nosso mundo. A antiga ideia, ainda hoje adotada por muitos artistas auto-denominados de “vanguarda”, de chocar o burguês, é um arcaísmo tolo. As imagens da destruição, das guerras, dos mortos, ou das vítimas da incúria governamental, com barracos destruídos por deslizamentos dos morros, ou vítimas de enchentes em razão da destruição ambiental, tribos aniquiladas por tribos rivais no poder, as epidemias de novas doenças como a AIDS, convivem com notícias fúteis do ambiente da moda e do comportamento. Morte, destruição, genocídio, convivem no mesmo espaço, dividem o mesmo tempo, nos noticiários. De que maneira uma pintura, ou auto-mutilação física e estética, ou sacos ensanguentados, ou um espaço artístico saturado de materiais de embalagens, podem chocar? Também um texto crítico não será explosivo. Hoje as novas ideias se remetem à inteligência e têm um fatal tempo de amadurecimento. 

FM O grande enriquecimento da crítica, não somente a crítica de arte, mas da criação artística de uma maneira geral, se deu justamente com a busca de um caráter literário para a mesma, sem restringir-se à linguagem cientificista. Escritores como Octavio Paz e Milan Kundera, por exemplo — pensando aqui nas duas áreas, da poesia e da narrativa —, deram um novo brilho à crítica literária. Como observas o tema? 

JK Existe no Brasil, uma tentativa de restringir a crítica de arte a um instrumento técnico ou científico. É o mecanicismo, aliado ao oportunismo burocrático que se instalou nas nossas universidades. Nada pode ser mais contrário ao meu ser do que isto. Aceito que existam muitos tipos de crítica, é claro. Mas o meu espírito pertence à aventura da descoberta sensível e intuitiva. Eu nunca abandonei a ideia de que a crítica de arte é um aspecto da literatura. Em defesa do meu ponto de vista, recolhi no mundo mais de 50 escritores que fizeram crítica de arte. Alguns de maneira constante, outros mais eventuais. Mas não é a persistência ou o número que caracteriza o crítico de arte… Eu considero o Honoré de Balzac, com o seu conto “A obra prima desconhecida”, um crítico de arte fundamental. Quem pode determinar que a crítica deva ser escrita de maneira cartesiana? Você me pergunta sobre o Brasil, mas citou autores não brasileiros… Eu gosto da qualidade literária de alguns críticos que tivemos e, em alguns casos, talvez a crítica não tenha sido a sua atividade literária principal, mas isto não importa: Walmir Ayala, Geraldo Ferraz, Haroldo de Campos, Clarival do Prado Valladares, Antonio Callado, Jayme Mauricio, Antonio Bento, José Geraldo Vieira, Mario Garcia-Guillén, Lélia Coelho Frota. 

FM O quanto a arte pode mudar a vida de uma pessoa ou do mundo? 

JK A arte muda o mundo. Eu acredito na força do espiritual. Mas leva o tempo que for. A medida da vida humana é curta. Para mim, a arte é o espelho que mostrou e demonstrou a minha identidade. Eu pouco seria sem ela. É o que me alimenta. Uma época eu tive uma doença que parecia grave e que não era diagnosticada corretamente pelo médico, de resto uma escolha errada minha. Insone e com dores terríveis, eu lia Borges e tudo entrava em harmonia: o mundo parecia ter sentido. 

FM Esquecemos algo? 

JK Esquecemos de reafirmar que o princípio que rege a arte, em qualquer gênero, é o do prazer. Não só na concepção, mas como entendimento do mundo. Eu estou neste universo das imagens e das palavras porque eu sinto prazer. A alegria da descoberta, do encontro, da identificação com determinadas formas. Este universo da arte — não o circuito da arte — é de encantamento. 

[2011]

[Entrevista com Jacob Klintowitz (Brasil, 1941), publicada em Invenção do Brasil. São Paulo: Editora Descaminhos, 2013. http://www.amazon.com/Inven%C3%A7%C3%A3o-Brasil-entrevistas-Portuguese-Edition-ebook/dp/B00FTBMR24]

Nenhum comentário:

Postar um comentário