JK O lugar onde eu me sinto perfeitamente à vontade é entre
imagens, textos, palavras, diálogos. Desde sempre eu fui assim. Aos 10 anos li
e fiz uma imediata análise de parte da obra de Fiodor Dostoievski e Honoré de
Balzac. Acho que intuí elementos essenciais, inclusive sobre as diferenças
entre os dois e seu processo de criação. Aos 14 anos fiz uma redação escolar de
assunto livre e escolhi como tema “o medo”, na qual eu amalgamava tudo: a
bíblia, especialmente “Eclesiastes”, Omar Khayyam, Freud, Marx, Darwin. Era uma
bela salada mista, mas o professor, Luis Emilio Léo, era um verdadeiro mestre e
me gratificou com um “10” por todo o ano, desde que eu entregasse duas redações
por mês. Foi o meu começo e o meu primeiro público, um só indivíduo. E não
parei mais. Curioso é que, por tantas vezes, à procura de ser mecenas comigo
mesmo, eu tenha me desviado do caminho literário e enveredado na aridez
executiva.
Em Porto Alegre, RS, onde nasci, ainda adolescente e já amigo
de artistas, seguidamente eu respondia às entrevistas por eles. Deduzia por sua
obra o que eles deveriam pensar sobre as coisas do mundo. Eu nem me dava conta
que isto já era crítica de arte. E comecei a escrever no maior jornal da terra,
o Correio do Povo. Naturalmente eu escrevi sobre temas que estavam além da
minha possibilidade, como Franz Kafka, Cervantes e Gil Vicente. Quando me senti
asfixiado pela vida pequena da, na época, província, e perseguido pelo
autoritarismo político, mudei para o Rio de Janeiro, repetiu-se o fenômeno. Fui
procurado por um artista chamado Aloysio Zaluar. Ele e seu grupo queriam falar,
dar opiniões, mas não sabiam como fazer. Eu escrevi os depoimentos em forma de
reportagem. E foi publicado em página inteira no jornal A Tribuna da Imprensa.
Eles tiveram a gentileza de colocar também o meu nome como co-autor. A segunda
matéria, à falta de máquina, fui escrever na redação. Um senhor elegante e de
olho brilhante chamado Hélio Fernandes, dono do jornal, perguntou quem eu era,
identificou o nome com a matéria, declarou o meu “talento” e, para encurtar, me
deu uma coluna diária no seu jornal a partir daquele momento. Eu me tornei
publicamente crítico de arte.
Parecem acasos e talvez sejam. Mas este acaso estava de
acordo com o meu destino. E, agora, retornei os comentários sobre literatura e
estou publicando a minha ficção. Estou em casa.
FM Como chegam ao Brasil os Klintowitz e de que maneira a
origem familiar influenciaria a tua vida?
JK A família da minha mãe, Knijnik e Beckerman, russos, vieram
para o interior do Rio Grande do Sul numa leva chamada de pioneiros, imigração
promovida por Rotschild, que previa a segunda guerra mundial, o assassinato de
judeus, e deslocava os mais pobres para o cultivo da terra em lugares
distantes. O meu pai, lituano, estava ameaçado de morte em sua terra por lutar
pelo comunismo. Era imberbe, poeta, articulista, político. Jovem, sem
profissão, numa terra estranha, em outra língua, parte de seu destino não foi
cumprida. E a sua família, mãe, irmãos, primos, foi assassinada num único dia
pelos nazistas. Tenho a sensação de que nunca saiu do estado de choque.
O meu pai me influenciou por seu amor à verdade, a sua
fidelidade aos conceitos éticos, o seu respeito mítico à cultura e à produção
cultural. E o Balzac e o Dostoievski que li aos 10 anos foram presentes dele…
FM Quais artistas foram aqueles que primeiro te despertaram a
atenção para um diálogo mais sistemático com a criação?
JK No campo da literatura, não tenho dúvida de que foi o
Eclesiastes, bíblico, atribuído a Salomão; Shakespeare, Franz Kafka, os poetas
e escritores árabes antigos. Nas artes visuais, acho que fui imediatamente
capturado e encantado por Piranesi, Leonardo da Vinci, Paul Klee, Pablo
Picasso, Constantin Brancusi.
FM Mark Rothko, em sua última conferência, observou a
impossibilidade de descrever o que ele então chamou de “a noção trágica da
imagem”. A força com que este novo componente — a imagem — passa a definir a
arte no século XX, como modificaria a visão da crítica? Como diferenciar as
duas estações dessa atividade intelectual?
JK Penso que o mundo se modificou. A derrota do assunto em
favor do tema faz parte da rejeição ao anedótico em troca de uma visão do mundo
e da intermitência da realidade. O que mudou foi o conceito do que seja o real.
Alargou-se e perdeu as nítidas fronteiras. O que era considerado real, não é
mais, do ponto de vista da ciência. Do ponto de vista da vida humana, cresceu a
importância da intuição, da sensibilidade, da subjetividade. O homem é maior,
depois de Freud. O oculto faz parte da totalidade do homem. A arte busca a arte
e não o registro de fatos históricos. Ela é a própria história, é o próprio
fato, não é a repórter do mundo, senão a biografia de si mesmo. Certamente a
imagem, ainda mais a de Rothko, tem o sentido trágico da biografia profunda
(não tópica), da narração da vida e, no caso, da narração da própria morte. E
por que ele conseguiria expressar o que é esta imagem? Ele já o havia feito na
linguagem certa, a sua.
Não vejo dificuldade em falar da imagem. Eu nunca a descrevo,
eu nunca quero substituí-la. O que faço é criar equivalências poéticas em outra
linguagem, a da palavra. Pretender substituir uma linguagem por outra é amar o
fracasso.
A respeito da crítica de arte devo dizer que não sabemos bem
o que seja, tantos são os críticos, tantas são as maneiras de fazer crítica. Há
o comunicador, o que escreve em veículos de massa. Há o universitário, o que leva
a vida no campus, faz parte de departamentos e participa de associações
científicas de crítica. E os há como eu, para quem a ideia de uma crítica de
arte científica é uma ideia de pesadelo, um mau sonho, e que se guiam pela
sensibilidade, pelo amor da linguagem, pelo prazer supremo de descobrir na obra
de arte aquilo que eles são, a sua identidade, a sua biografia profunda. A arte
que eu gosto narra a minha biografia.
FM A entrada na modernidade essencialmente se caracteriza por
uma visão cosmopolita e a rejeição a toda forma de nacionalismo. O que vimos no
Brasil, no entanto, foi justamente uma busca ou afirmação do caráter nacional.
Como recorda o mexicano Octavio Paz, a ideia dos estilos nacionais, típica do
século XIX, era fruto de países que desconheceram o Renascimento ou o Barroco.
Qual o teu entendimento a este respeito? Haveria aí uma singularidade de nossa
leitura da modernidade ou simplesmente o que chamamos de modernismo ainda é
reflexo de uma cultura subdesenvolvida?
JK Nós amamos, no Brasil, a hipocrisia do nacionalismo. É ele
que justifica os nossos atrasos, que nos faz levantar o nariz e dizer que somos
insensíveis, egoístas, destruidores, mas que isto é um jeito tipicamente nosso.
O nosso nacionalismo esteve ligado ao fascismo, ao totalitarismo militar, ao
atraso. No Brasil, lamentavelmente, toda pessoa terrível e prejudicial levanta
a bandeira do amor acendrado e separatista da pátria. A pátria apenas para
eles. Um horror.
No caso do modernismo, custa a crer que seja entendido como um
estilo, quando é uma postura científica e filosófica. Vingou por muitos
séculos, teve a sua glória profana e superficial, e nos conduziu ao caos sem
ética e a esta quase hecatombe final da humanidade. Está prestes a se encerrar,
derrotado pela ciência quântica, pela psicologia, pela alta literatura, pela
arte mais sensível. O mundo se torna mais completo e complexo.
No Brasil, houve muitos equívocos. E como é comum no nosso
país, os equívocos tornam-se dogmas. Tornam-se verdades religiosas. Há de tudo
no nosso modernismo, até mesmo um pouco de modernismo. E nunca podemos esquecer
que os resultados, as obras, são de nível bem mediano.
FM Em que momento nasce a crítica de arte no Brasil?
JK Há muitas manifestações críticas, diversos formatos,
biografias, entrevistas, comentários, e a própria atitude de alguns artistas
tem caráter crítico, como a recusa da luz artificial do ateliê, numa cópia do
ambiente aconchegante, imaginário e nostálgico de Paris, e a busca da luz da
paisagem brasileira na própria paisagem brasileira. É o nascimento da nossa
pintura de paisagem. E eu, para responder a esta pergunta, devo ser
absolutamente restritivo e injusto, pois deverei eleger um momento, iluminar
este momento e obscurecer tempos anteriores e diversas formas de crítica.
Entretanto, do ponto de vista do símbolo, é possível fazer esta eleição. Eu
tenho para mim que o momento chave foi a crítica do escritor Monteiro Lobato à
exposição de Anita Malfatti, em 20 de dezembro de 1917. O título da matéria,
publicada no jornal O Estado de S. Paulo, era “Paranoia ou mistificação? A
propósito da exposição Malfatti.”
Anita Malfatti fez uma mostra na cidade de São Paulo, espécie
de apresentação após o seu período de aprendizado nos Estados Unidos. A
exposição tinha uma atmosfera expressionista, e era delicadamente lírica.
Monteiro Lobato, escritor de alta relevância e, hoje, um mito literário
nacional, investe violentamente contra o que chama de arte moderna, misturando
impressionismo, futurismo e cubismo e extravagâncias à moda de Picasso &
Cia. [sic] Na sua matéria, Malfatti parece um pretexto. Apresenta, como
referência da verdadeira arte, Praxiteles, Rafael, Reynolds, Rodin. Foi esta
crítica que transformou a pintora em uma espécie de mártir do modernismo
brasileiro e que serviu de alvo, de inimigo ideal, para a Semana de Arte
Moderna, em 1922, uma tardia manifestação. Deve-se notar que a Semana de 1922
só se tornou possível porque o escultor Victor Brecheret, então um quase
desconhecido, tinha um conjunto magnífico de esculturas. Anita teve um papel
mais limitado na Semana.
Esta crítica foi um divisor de águas e serviu como paradigma
pró e contra as inovações artísticas. Foi utilizada politicamente, manipulada,
transformada em manifestação emblemática. E muito pouco analisada. Apesar de
seu conteúdo conservador, da tolice e da incompreensão do que seja arte, do
distanciamento do pensamento expressivo e do novo conhecimento científico e
cultural, é importante a hipótese levantada por Monteiro Lobato das questões
relativas à paranoia e à mistificação. A aparência libertária, o foco romântico
no artista e não na obra, a simplificação das análises culturais, a
contaminação da arte pela publicidade e pelo marketing, atualizam estas
questões colocadas por Monteiro Lobato.
Monteiro Lobato é um escritor seminal no Brasil. Ele não
sucumbiu na mediocridade. O que ele confusamente chamou de arte moderna é hoje
a única arte que se pratica, em suas múltiplas e infinitas facetas. E a nossa
época, doente de narcisismo, corrupta e egocêntrica, uma época patológica, fez
aflorar o deboche como método. Às vezes, por guerras na vida cultural, alguém
perde o senso de medida, como foi este momento de Lobato, atira no que vê e
acerta em outro alvo. É o caso. De qualquer maneira, não conheço nada no Brasil
que tenha causado tanto impacto. É uma crítica injusta, desproporcional,
abrangente e excessiva. E facilitou a causa que condenava. E foi o marco
inaugural da nossa crítica de arte.
FM Seria possível, cronologicamente, saltar daí para a última crítica,
ou seja, há um exemplo de igual teor explosivo atualmente que, independente do
sentido de justiça, possa ser destacado como marco na crítica de arte que
(ainda) se faz no Brasil?
JK Não haverá mais, imagino eu, este teor explosivo. Nada mais
choca em nosso mundo. A antiga ideia, ainda hoje adotada por muitos artistas
auto-denominados de “vanguarda”, de chocar o burguês, é um arcaísmo tolo. As
imagens da destruição, das guerras, dos mortos, ou das vítimas da incúria
governamental, com barracos destruídos por deslizamentos dos morros, ou vítimas
de enchentes em razão da destruição ambiental, tribos aniquiladas por tribos
rivais no poder, as epidemias de novas doenças como a AIDS, convivem com
notícias fúteis do ambiente da moda e do comportamento. Morte, destruição,
genocídio, convivem no mesmo espaço, dividem o mesmo tempo, nos noticiários. De
que maneira uma pintura, ou auto-mutilação física e estética, ou sacos ensanguentados,
ou um espaço artístico saturado de materiais de embalagens, podem chocar?
Também um texto crítico não será explosivo. Hoje as novas ideias se remetem à
inteligência e têm um fatal tempo de amadurecimento.
FM O grande enriquecimento da crítica, não somente a crítica de
arte, mas da criação artística de uma maneira geral, se deu justamente com a
busca de um caráter literário para a mesma, sem restringir-se à linguagem
cientificista. Escritores como Octavio Paz e Milan Kundera, por exemplo —
pensando aqui nas duas áreas, da poesia e da narrativa —, deram um novo brilho
à crítica literária. Como observas o tema?
JK Existe no Brasil, uma tentativa de restringir a crítica de
arte a um instrumento técnico ou científico. É o mecanicismo, aliado ao
oportunismo burocrático que se instalou nas nossas universidades. Nada pode ser
mais contrário ao meu ser do que isto. Aceito que existam muitos tipos de
crítica, é claro. Mas o meu espírito pertence à aventura da descoberta sensível
e intuitiva. Eu nunca abandonei a ideia de que a crítica de arte é um aspecto
da literatura. Em defesa do meu ponto de vista, recolhi no mundo mais de 50
escritores que fizeram crítica de arte. Alguns de maneira constante, outros
mais eventuais. Mas não é a persistência ou o número que caracteriza o crítico
de arte… Eu considero o Honoré de Balzac, com o seu conto “A obra prima
desconhecida”, um crítico de arte fundamental. Quem pode determinar que a
crítica deva ser escrita de maneira cartesiana? Você me pergunta sobre o
Brasil, mas citou autores não brasileiros… Eu gosto da qualidade literária de
alguns críticos que tivemos e, em alguns casos, talvez a crítica não tenha sido
a sua atividade literária principal, mas isto não importa: Walmir Ayala,
Geraldo Ferraz, Haroldo de Campos, Clarival do Prado Valladares, Antonio
Callado, Jayme Mauricio, Antonio Bento, José Geraldo Vieira, Mario
Garcia-Guillén, Lélia Coelho Frota.
FM O quanto a arte pode mudar a vida de uma pessoa ou do mundo?
JK A arte muda o mundo. Eu acredito na força do espiritual. Mas
leva o tempo que for. A medida da vida humana é curta. Para mim, a arte é o
espelho que mostrou e demonstrou a minha identidade. Eu pouco seria sem ela. É
o que me alimenta. Uma época eu tive uma doença que parecia grave e que não era
diagnosticada corretamente pelo médico, de resto uma escolha errada minha.
Insone e com dores terríveis, eu lia Borges e tudo entrava em harmonia: o mundo
parecia ter sentido.
FM Esquecemos algo?
JK Esquecemos de reafirmar que o princípio que rege a arte, em
qualquer gênero, é o do prazer. Não só na concepção, mas como entendimento do
mundo. Eu estou neste universo das imagens e das palavras porque eu sinto
prazer. A alegria da descoberta, do encontro, da identificação com determinadas
formas. Este universo da arte — não o circuito da arte — é de encantamento.
[2011]
[Entrevista com Jacob Klintowitz (Brasil, 1941), publicada em Invenção
do Brasil. São Paulo: Editora Descaminhos, 2013. http://www.amazon.com/Inven%C3%A7%C3%A3o-Brasil-entrevistas-Portuguese-Edition-ebook/dp/B00FTBMR24]
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