FM Quando em 2009,
pensaste em sistematizar uma publicação periódica através da Internet,
juntamente com Adriano Lobão Aragão, qual era o plano editorial?
WL Não tínhamos um plano
editorial bem delineado. Mas duas coisas estavam claras em minha cabeça, e creio
que na do Adriano Lobão também — se isto pode ser chamado rigorosamente de “plano
editorial” não sei. Primeiro, queríamos um espaço aberto, cosmopolita: nada
dessa coisa de usar a revista para “divulgar os valores da terra” nem de
transformá-la na igrejinha onde só a “nossa” turma tem voz. Tínhamos
consciência de que o diálogo com a diversidade do Brasil, com Portugal e com a
América Latina seria imprescindível. Em segundo lugar, desejávamos que a dEsEnrEdoS alcançasse o meio-termo
entre as revistas acadêmicas — chamo
assim àquelas cheias de protocolos, em geral ligadas a departamentos de letras
ou programas de pós-graduação — e as revistas
de debate, com textos mais livres, formal e metodologicamente falando, que
enfrentam com mais liberdade e empenho subjetivo os temas que discutem, e são
mais atentas à contemporaneidade — como é o caso da Agulha, da Zunái, do Rascunho, da Sibila e da Celuzlose,
entre outras. Estes dois “princípios” nos obrigou a incluir na dEsEnrEdoS muitas seções, algumas
voltadas para a criação literária — coisa dispensável ou de pouca relevância
para a maioria das revistas acadêmicas — e outras para reflexão crítica. Além
disso, na parte crítica criamos variadas seções para que nenhum texto fosse
dispensado por ser mais ou menos rigoroso do ponto de vista acadêmico, mais ou
menos extenso, mais ou menos subjetivo. Para ser mais preciso, a parte crítica
tem quatro subdivisões na revista: na seção “Artigo acadêmico”, ficam os textos
escritos dentro dos protocolos exigidos pela ABNT (Associação Brasileira de
Normas Técnicas) e pelos diversos programas de pós-graduação espalhados pelo
país. A seção “Ensaio” é voltada para textos com um toque mais informal e
subjetivo, sem necessidade de tanta referência bibliográfica, seguindo, neste
sentido, a tradição fundada por Montaigne e tão bem captada na definição que
Ortega y Gasset deu ao ensaio: “A ciência, menos a prova explícita”. A seção “Prosa”
ficou reservada tanto para os textos abertamente ficcionais como para aqueles
de caráter híbrido e semificcional, como é o caso da crônica. Por fim, temos a
seção “Resenha”, cujo nome já é demasiado explicativo. Sei quão questionável
pode ser esta divisão, mas penso que, apesar disso, ela é um excelente farol
para o leitor: se ele nos frequenta habitualmente, já sabe o que pode ou não
esperar de cada seção. Enquanto as seções “Artigo acadêmico” e “Resenha” estão
mais para o que chamei revista acadêmica,
naquelas denominadas “Ensaio” e “Prosa” nos aproximamos das aqui denominadas revistas de debate. Sublinho que a
identidade da dEsEnrEdoS está mais
evidente na parte não acadêmica, por dois motivos: os próprios membros da
revista costumam publicar ensaios e, além disso, enquanto os autores de “Ensaio”
e “Prosa”, assim como de “Entrevista”, são geralmente convidados os que
publicam artigos acadêmicos e resenhas nos enviam espontaneamente seus
trabalhos.
FM Qual a razão de seu
nome, dEsEnrEdoS, incluindo esse curioso
tratamento dado às letras?
WL Simplesmente não sei! Só
posso dizer que gosto muito do nome e desse tratamento dado às letras, que faz
com que a irreverência prevista no significado salte para o significante. Era
para se chamar Amálgama, mesma
denominação de uma revista impressa (a partir de certa altura ela virou um
jornal) que o Adriano, eu e outros amigos editamos esporadicamente entre 2002 e
2004. O problema é que já existia na internet, se não me engano, dois sites
chamados Amálgama, um deles inclusive
tratava de literatura. Foi então que o Adriano trouxe a sugestão de dEsEnrEdoS, que acatei de pronto pela
referência ao belo conto de Guimarães Rosa.
FM Como funciona a revista
em termos de circulação? Quais as tuas táticas de difusão?
WL Acho que a dEsEnrEdoS sofre de um mal não raro
entre as revistas similares: seus editores são apaixonados pela literatura,
fazem tudo com um amor genuíno pela difusão da cultura, mas são péssimos
propagandistas. Devido a isso, a divulgação é a mais convencional possível:
lista de e-mails e chamadas em blogs nossos e de colaboradores. Nunca fui a
nenhum jornal impresso, a nenhuma emissora de TV e mesmo na universidade em que
sou professor, a divulgação se limita a um aviso aos meus alunos quando há nova
edição no ar. Ainda assim, me impressiona o número de leitores. Alguns textos
têm um número impressionante de acessos, como é o caso do ensaio “A crise da
poesia brasileira contemporânea”, texto de Ranieri Ribas que saiu na primeira
edição. Percebo também que muita gente que tem seu texto aprovado, por gratidão
ou seja lá porque for, nos ajuda bastante na divulgação. Por fim, cabe citar os
departamentos de Letras e coordenadorias de programas de pós-graduação que
gentilmente enviam para alunos e professores nossas chamadas para publicação.
FM De que maneira dEsEnrEdoS convive com outros
projetos circulares, no país e no exterior?
WL Acho fundamental o
diálogo com projetos semelhantes, mas, como você sabe, tal diálogo esbarra
muitas vezes em posturas dogmáticas ou em vaidades pessoais que tendem a
superdimensionar as diferenças e obstar a troca de experiências. Já me
disseram, por exemplo, que a dEsEnrEdoS
tem ojeriza por poesia concreta e visual; ora, tenho minhas restrições a este
tipo de poesia, mas a revista não sou eu, nem o Adriano Lobão. Mande seu poema
visual que nosso conselho editorial o julgará com isenção, pelo que ele é, e
não o tomando em comparação com o soneto seiscentista. Se eu quisesse publicar
só aquilo que me agrada pessoalmente e com que eu concordo sem restrições,
então meu blog individual, O fazedor,
seria suficiente. Já me disseram também que, sendo a revista oriunda do Piauí,
deveria valorizar mais os autores piauienses. Aí temos uma mentira e uma
falácia. A mentira é fácil desfazer: basta conferir, edição a edição, o número
representativo de escritores e professores nascidos no Piauí que colaboram
conosco (e não porque sejam piauienses, diga-se de passagem, mas porque têm o
que dizer); a falácia consiste em achar que uma categoria nada estética como o
local de nascimento possa definir a essência de um escritor. O que é um
escritor piauiense, ou paulista, ou roraimense? Quem achar que pode dar uma
resposta bem fundamentada a esta pergunta que o faça; eu prefiro ficar com
Octavio Paz: “O nacionalismo não é só uma aberração moral; é também uma falácia
estética”. Em suma, a rigidez ideológica, o espírito de bairro, a preguiça e
até a burrice nos impedem muitas vezes de fundar um diálogo produtivo com
nossos pares. Não obstante estes problemas, sou extremamente feliz de contar
com a parceria de revistas como Agulha,
Celuzlose, TriploV, Imburana, RUA, AO
Revista e Pequena Morte, bem como com as Edições Nephelibata. Com estes
parceiros, trocamos experiências, discutimos estratégias de divulgação,
sugestões de nomes, entre outros assuntos. Quanto ao exterior, tenho mais
contatos com pessoas individuais do que com revistas.
FM Acreditas que seja possível (funcional) a criação de um fórum
permanente de debates, entre editores de revistas, através da Internet?
WL Sim. Penso que assim se poderia arquitetar estratégias mais
eficazes de divulgação bem com diretrizes comuns para o melhoramento das
revistas e do nível cultural do país — sem que isto signifique, é claro, perda
da identidade de nenhuma revista. Particularmente, tenho “no papel” a ideia de
organizar um encontro, aqui em Teresina, com os editores de revistas e sites de
literatura do Brasil.
FM Como vês as possibilidades da Internet como ferramenta aplicada à
cultura?
WL Sou um entusiasta tão fervoroso que muitas vezes acabo sendo
unilateral, só enxergando o lado positivo da Internet enquanto ferramenta
aplicada à cultura. Acho muito apressadas e de limitado senso histórico
pesquisas que culpam a Internet pelo decréscimo da leitura ou pela fragmentação
do conhecimento. Não poderia, objetivamente, dar uma resposta satisfatória à
sua pergunta, a menos que eu resumisse alguns argumentos que li em Pierre Lévy e Manuel
Castells. No lugar de fazer isto, vou falar um pouco da minha relação subjetiva
com a Internet. Posso dizer que a Internet favoreceu, e muito, a ampliação de
meus horizontes culturais. Ajudou a aprimorar meu conhecimento de línguas
estrangeiras; permitiu que eu acessasse uma gama gigantesca de textos, a muitos
dos quais dificilmente teria acesso em versão impressa; e acima de tudo me deu
a oportunidade de estabelecer diálogo com interlocutores tão especiais como
Rodrigo Petronio, Paulo Franchetti, Luiz Costa Lima, Floriano Martins, Carlos
Felipe Moisés, dentre outros. Vejo que falta a muitas pessoas maior
conhecimento do potencial da Internet. Parece que chegamos numa fase em que dar
a conhecer o que já tem na Rede é tão importante quanto expandir seu conteúdo
cultural. Darei um exemplo simples e pessoal. Em 2010, ministrei em duas
cidades distintas, em cursos de especialização, uma disciplina cujo nome exato
já não lembro mas que tratava da literatura feita no espaço virtual, dos novos
gêneros que emergiram neste espaço etc. A certa altura, eu dividia os alunos em
grupos e cada um ficava responsável de analisar uma revista virtual. Minha
surpresa foi imensa quando soube que a maioria daqueles professores, diria que
uns 90% deles, embora usassem a Internet com frequência, desconheciam as
revistas virtuais. Mais que isso: desconheciam o Google Scholar, o SciELO, o
portal Domínio Público, o Projeto Gutenberg, o Wikisource. Tinham um conceito
de blog restrito à ideia de diário online. Ressalto que se tratava de
professores esforçados, com bom nível econômico e cultural, que estavam ali
numa pós-graduação em
literatura. No fim da disciplina, grande parte deles
ressaltou que o maior contributo que demos foi possibilitá-los um uso mais
proveitoso da Internet.
FM Como devem proceder aqueles interessados em ter seus textos
publicados em dEsEnrEdoS?
WL| As normas para colaboração podem
ser acessadas neste endereço: www.desenredos.com.br/normas_45.html.
FM No momento está
circulando a edição nº 10 da revista, entrando no 3º ano de atividade, o que é
uma boa conquista em um país que sofre certa síndrome da novidade permanente,
com os prejuízos daí decorrentes. Arriscas um balanço possível, inclusive no
que diz respeito à influência da dEsEnrEdoS
no ambiente virtual?
WL Ainda não parei para
pensar nisso detidamente. Mas vamos lá, vejamos. Buscamos estreitar nossos
laços com Portugal e com a América Hispânica. Demos mais visibilidade para
ensaístas e poetas de evidente talento que estão em começo de carreira.
Divulgamos o trabalho de excelentes artistas plásticos. Tentamos, como afirmei
no início, mediar o abismo entre as revistas acadêmicas e as revistas de
debates. Fugindo à “barbárie do especialismo” — para lembrar de novo Ortega y
Gasset —, tentamos fazer uma revista de cultura que tivesse a literatura como
epicentro das Humanidades, mas nunca pensamos que a dEsEnrEdoS seria uma revista literária em sentido estrito: as
artes, a religião, a filosofia, o pensamento social sempre tiveram seu espaço
na revista. Fomentamos a prática da tradução, atividade fundamental para o
crescimento cultural de um país. Realizamos dois dossiês com temas urgentes
para o pensamento brasileiro… Enfim, empreendemos um esforço coletivo em prol
da cultura cuja abrangência e influência, ao menos para mim, ainda é incerta.
No máximo arrisco a dizer, sem citar exemplos pontuais, que alguns textos e
entrevistas da revista podem fazer escola — mas isso é mera especulação,
esperemos. No fundo, eu espero que, nestes três anos, a dEsEnrEdoS tenha pelo menos constituído uma identidade
institucional marcada pelo desejo de um debate sério e democrático — mesmo que
muitos de seus textos pereçam sem leitores lá no arquivo de suas edições
passadas.
[2011]
[Entrevista com Wanderson Lima (Brasil, 1975), publicada em Invenção do Brasil. São Paulo: Editora
Descaminhos, 2013. http://www.amazon.com/Inven%C3%A7%C3%A3o-Brasil-entrevistas-Portuguese-Edition-ebook/dp/B00FTBMR24]
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