FM Diz
o Kenneth White em um poema: “o que agora chamo arte não é a obra criada mas
sim pura patologia do corpo e da mente no centro de um mundo alegre e
terrível”. O que chamas poesia? Caberia acaso uma definição à poesia?
AMG Alegre
e terrível, eis uma associação que me agrada, aliás um pouco rilkeana. O belo
é, muitas vezes, o começo do terrível. Não há, para mim, alegria sem dor, luz
sem sombra. À poesia considero-a indefinível, bem como à noite, metáfora que
arrasta, no contexto de Nocturnos, a ideia de impossibilidade do
amor. Há amores recíprocos infelizes… Já nos inéditos - parte integrante de um
outro livro que tenho para publicar, com a pintora Paula Rego – a noite é um
lugar mais terrífico, o das relações de poder, da violência intersubjectiva, da
ambiguidade amorosa. Esse jogo de contrários, claro-escuro, dir-se-ia também o
da escrita, da minha, pelo menos. O poema de que extraí o título da antologia
acabada de sair no Brasil fala disso, dessa desorganização em que escrevo,
brincando com o incurável, tentando vizualizar o impossível, o ilimitado ou o
insuportável. O entendimento passa, na minha perspectiva, pela criação e, como
escreveu Silesius, “a rosa é sem porquê”. Para quê explicar? Algures, em A
Paixão segundo G. H., Clarice Lispector diz qualquer coisa como isto:
“Enquanto escrever (…) vou ter que fingir que alguém está segurando a minha
mão”. Prefiro tentar a invenção do que arriscar-me a viver só. Não deixa de ser
um risco.
FM E
exatamente por onde começa a poesia em ti?
AMG Na
fadiga, na vivência concreta e intensa das coisas (no êxtase ou na queda), na
observação, num certo sonambulismo que me traz a lucidez e, às vezes, no
apontar para algo que não atinjo. Mas nem todos os poemas são sobre a perda. As
palavras dão eco a um movimento íntimo, no desdobramento de um exercício de
racionalidade. O júbilo também pode entrar aí. A escrita começa quando descubro
a crueza perante o excesso de vida, de morte ou de impossibilidade ou no ponto
em que surge a pergunta e as palavras avançam na ausência de mim própria. Não
me interessa, muitas vezes, saber quem sou, mas quem sou com os outros. A
ignorância tem uma eficácia, ensina sempre qualquer coisa, como o poema, não no
sentido didáctico e pomposo do termo, mas nos mínimos estremecimentos e
transformações de uma interioridade. A casa da linguagem que a poesia é obriga
também, por outro lado, ao rigor existencial. No processo de escrita
encontra-se aquilo que une, como tão bem salientou Celan, mesmo no
desequilíbrio ou na percepção fragmentada das coisas.
FM Concordas
então com o António Maria Lisboa quando afirma que “a Poesia não servirá fim
nenhum e jamais será o relato do destino do homem”, logo lembrando que ela
“conta a história na verdade mas só porque é já desde logo toda a
história”. Vem daí o rigor existencial a que te referes, dessa compreensão
de certa ubiquidade, não?
AMG Não
considero a poesia, num sentido estrito, um objecto de consumo, muito menos
fácil; rebuçado a digerir num ápice. Gosto que o poema me resista. Nesse
sentido não tem utilidade prática, mas há risco e este exige rigor na medida em
que o poeta, e estou apenas a falar de mim, tem um Eu dentro, que fala a partir
dos diversos ângulos da sua existência, embora não numa perspectiva
confessional ou derramada. O meu rigor é o do espelho, ainda que inverso. Sou,
por outro lado, também, a minha própria ficção. Nesse sentido, aceito a ideia
de ubiquidade. Assumi, no entanto, um lugar biográfico em Terra sem Mãe,
aceitando com a escrita fazer perdurar a memória de minha mãe. A linguagem não
é, para mim, o único instrumento, embora seja vital. Não quero com isto dizer
que, quando escrevo, esteja sempre dentro do real, tendo em atenção que o “moi
se fait de tout (…) Si le oui est mien, le non est-il un deuxième moi?” (Michaux). Nunca sabemos
verdadeiramente quem somos, vivemos de um jogo de opostos. Mas procura-se
saber, não é?, então escrevemos, reescrevemos. No caso
específico desse livro, quis debruçar-me sobre a morte, essa “passagem do
mediato ao imediato” sobre a qual Jankélevitch tão bem soube reflectir. A morte
de quem nos está próximo (o desaparecimento dos vivos é um processo semelhante,
mais cruel talvez) dir-se-ia uma partida sem regresso a não ser dentro de nós.
A morte do outro não nos é estrangeira, é a nossa própria morte.
FM Tens
uma relação intensa com a noite, imagem-chave que te define a poética. Contudo,
cabe uma distinção entre a noite que ilumina e a que enferma, por exemplo. A
noite que nos guia e aquela na qual nos extraviamos. De que está constituída
tua noite pessoal?
AMG De
incompletude, de desamparo, mas simultaneamente noite é, a meu ver, uma
totalidade inalcançável, lugar fundador, e aí existem ressonâncias de um
diálogo entre visível e invisível, no qual a materialidade da existência se
esvai. Três Vezes Deus, escrito em co-autoria com António Rego
Chaves e Armando Silva Carvalho, passa pela tentativa de escutar o silêncio, o
barulho excessivo de Deus ou por sentir a sua morte. São “histórias” de um
(des)encontro improvável. Quando falo de queda não quer dizer que exista uma
preferência íntima por uma infelicidade como no mito de Tristão; reconheço, sim
que o caos é estruturador e não receio a tristeza, nem esse fluxo perceptível
entre ficção e realidade. Descobrir-se em derrocada ajuda a caminhar por dentro
da luz. Há que conseguir essa distância interior, o jogo entre imaginação e
entendimento.
FM O
jogo entre desejo e experiência, claro. E que espaço ocupariam os sonhos dentro
dessa ambientação da noite em tua poética?
AMG O
desejo é o maior companheiro na voragem da experiência, o que nos remete, de
novo, para a ideia de impossibilidade. Escreveu Heidegger: “Fazer uma
experiência do que quer que seja, uma coisa, um homem ou um deus, quer dizer:
deixá-la vir até nós, que ela nos atinja, nos caia em cima, nos perturbe e nos
transforme.” Esperemos que a pedra não seja demasiado pesada (risos). Nunca
chegamos a alcançar, essa a maior tragédia e também o maior impulso de vida. A
poesia, como lugar inter-relacional e de justeza da palavra, dir-se-ia esse
“redemoinhar” labiríntico em torno do nada que somos e que simultaneamente é
quase tudo. E retira-nos, ainda que por instantes, da nossa insuficiência. O
sonho, esse, pode ser, ocasionalmente, a gramática do poema e este um
cerimonial da noite, até no sentido de um agir erótico.
FM Chegas
ao Brasil juntamente com outro importante poeta português, António Osório, num
momento em que não se pode mais desconsiderar a necessidade de diálogo entre
nossas culturas. O que conheces da poesia brasileira?
AMG António
Osório, curiosamente, prefaciou o meu primeiro livro em Portugal. Foi uma
coincidência feliz publicarmos neste momento no Brasil, eu pela primeira vez.
Há muito para conhecer ainda da cultura literária brasileira, muito. Já é um
lugar-comum falar-se disso e não passarmos à prática. Carlos Drummond de
Andrade, João Cabral de Mello Neto, Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Murilo
Mendes, Cecília Meireles, Ferreira Gullar, Manoel de Barros, Carlos Nejar,
recordo-os como nomes de sempre com toda a renovação da linguagem que de alguns
deles partiu, assimilada pelos portugueses também. Impossível nomear todos. Por
incrível que pareça, muitos dos históricos não estão editados entre nós; o
mesmo acontece no Brasil. Há poetas dentro de poetas, vozes dentro da voz,
assim se faz a revisão da literatura, transfusão construtiva. Não desprezemos a
língua em comum e as enriquecedoras divergências! Malraux escreveu que qualquer
processo inventivo é, em si mesmo, desde logo, uma resposta. Nada somos sem
quem nos precedeu. Mas isso de admirar poetas é só para alguns… Há que ter, no
entanto, a ousadia de editar os novos (cronologicamente ou porque são
desconhecidos até agora entre nós); e eles estão a chegar: Eucanaã Ferraz,
Antonio Cicero, Carlito Azevedo, Armando Freitas Filho, Leonardo Fróes, Paulo
Henriques Britto, Wally Salomão, Fabrício Carpinejar, Rodrigo Petronio, tu
próprio, entre outros. Maria Ângela Alvim e Adélia Prado, curiosamente ambas
“apadrinhadas por Drummond”, são as únicas poetas editadas recentemente em
Portugal. O alargamento da comunicação virtual, o advento das revistas na
internet e a produção de pequenas/médias editoras têm ajudado. Esperemos que o
diálogo luso-brasileiro se intensifique e que a qualidade (mais do que tudo)
seja o motor de busca.
FM Destaco
a inexistência de um diálogo entre tradições. Ao pensar nos brasileiros que
mencionas, em um primeiro momento, recordo uma não percepção mútua, nas duas
margens do Atlântico, das afinidades estéticas que ligam esses nomes aos de
Pessoa, Sá Carneiro, António Maria Lisboa, Herberto Helder, Cruzeiro Seixas,
Ana Hatherly, dentre outros. Evidente que há descompassos editoriais internos,
e tanto Brasil quanto Portugal ainda estão a descobrir-se a si mesmos. A que
atribuis essas duas exigüidades?
AMG O
diálogo entre tradições não é inexistente, mas muito ténue. Oiço falar desse
desencontro entre literaturas portuguesa e brasileira desde que me conheço. Já
Gilberto Freyre, numa conferência pronunciada, salvo erro, em 1940, falava de
uma cultura ameaçada – a luso-brasileira. O desencontro vem, portanto, de
sempre e tem contornos políticos, económicos, históricos, até, culturais,
burocráticos. A classe política é geralmente muito ignorante, não tenhamos
ilusões! O slogan “a cultura não vende” coloca-a sempre no
patamar inferior de qualquer opção. Vamos, então, avançando pontualmente. E há
tanto para explorar…
FM Já
em relação às gerações mais recentes, a uma pequena leva de brasileiros
editados em Portugal começa a corresponder, muito timidamente, uma presença da
poesia portuguesa no Brasil. Contudo, o diálogo é ainda inexistente. Qual
parcela de responsabilidade creditas à imprensa cultural no tocante à
persistência deste assunto?
AMG A
cultura não é “a” prioridade da imprensa portuguesa, ou pelo menos, no sentido
de um pensamento estruturado, basta dizer que deixaram de existir suplementos
literários, passaram a ser híbridos (nada contra, mas a literatura, a
filosofia, a sociologia, etc, ficaram um pouco para trás); há, por outro lado,
pouquíssimas revistas da especialidade e a sua periodicidade ou não é regular
ou extremamente espaçada. Sinto alguma movimentação do lado do Brasil,
sobretudo do ponto de vista da divulgação no hiperespaço; em Portugal
estamo-nos a mover mais nesse domínio agora. A Storm, da
responsabilidade de Helena Vasconcelos, foi pioneira e ocupa um espaço vital;
outras fecharam, como a Ciberkiosk. Tendo isso em conta, claro que
todos temos responsabilidades num quadro a que a escassez financeira não é
alheia. Sinto ainda uma imensa debilidade no que se refere à crítica publicada
nos jornais, muitas vezes desqualificada. Persistem, como sempre acontecerá,
ditaduras mediáticas, académicas, de pretensas unidades geracionais e escolas
literárias. Vão-se revelando alguns nomes timidamente, porém com o risco de se
criarem visões distorcidas de realidades culturalmente vastas e múltiplas.
Existirão sempre vozes isoladas à margem de tudo isso. A história acaba por
descobrir quem tem qualidade.
[2003]
[Visite a página de Ana
Marques Gastão (1962) no Projeto
Editorial Banda Lusófona: http://www.jornaldepoesia.jor.br/BLBLanamarquesgastao01.htm.]
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