FM Qual a tua visão crítica acerca do Surrealismo em relação à sua
influência na cultural ocidental contemporânea?
SL O Surrealismo permanece como a mais radical contestação da Civilização
Ocidental e seus modernismos (prefiro o termo “Civilização” a Cultura, visto
não ser apenas uma atividade artística e seus similares). Por outro lado, é
inegável – como já se observou em outras ocasiões – que o Surrealismo
influenciou todo um contexto do Amor e da Poesia contemporânea, restituindo,
digamos, uma certa noção do sagrado extra-religioso. Como já frisaram diversas
personalidades do pensamento contemporâneo (Gaston Bachelard, Jules Monnerot,
Georges Bataille, Walter Benjamin, Octavio Paz, Herbert Marcuse, Norman O.
Brown, Kostas Axelos, Juan-Eduardo Cirlot, Nicolas Calas e outros), a busca
espiritual que funda o Surrealismo – “libertação total do espírito e de todos
os meios à sua mão” – é um dos fundamentos da experiência humana e sua
afirmação na época Moderna, o que vale dizer que em outras épocas também houve
tal questionamento, embora sem constituir-se, no entanto, como um movimento
grupal, afora as exceções. Assim, em cadeia com as demais recusas dos continuísmos
modernistas, seu questionamento é absolutamente moderno, como queria Rimbaud, e
sua permanência até à atualidade não deixa de ser uma denúncia flagrante das
diversas minimizações e diluições de que foi alvo. Suas inúmeras influências
falam das deturpações e não de sua perspectiva, de sua direção, de seu vetor
revolucionário.
Contrário ao sucesso e aos nacionalismos (e todos os modernismos brasileiros
apoiaram-se em um forte pendor nacionalista, salvo a “Antropofagia”), o
movimento surrealista não se inscreve na seriação dos “ismos” como se vem
pretendendo há um bom tempo nas suas abordagens acadêmicas e historicistas. Se
por um lado podemos constatar o insucesso de seu projeto de transformar o
mundo, aspecto idealista de seu projeto, por outro não se deve calar o quanto
de transformações sua práxis dialética realizou em vários domínios, desde o
pessoal até àqueles dos ditos tabus: a condição do poeta, do artista, da
sexualidade, do social e do psíquico. Com o Surrealismo foram alçadas à
categoria de valor certas práticas até então mal vistas ou desqualificadas: o automatismo
formal e informal; o ditado do desejo e o registro parapsicológico; o
espontâneo e o acaso-objetivo; a collage
e a poesia-objeto; os princípios de magia na operação plástica; a revelação
como condição da poesia; o tão decantado frenesi da imagem e a primazia da
beleza convulsiva; o amor incondicional (amor paixão, amor absoluto, amor
louco, amor sublime) etc. etc.
FM Quais motivos te impulsionaram à realização desta imensa pesquisa que
ora resulta na publicação deste primeiro volume de A aventura surrealista?
SL Como persistiam as mais variadas malversações do Surrealismo e seu
movimento na historiografia brasileira, resolvi estabelecer um referencial
significativo para eventuais estudos e aproximações que pudessem ocorrer.
Sobretudo subsidiar o aspecto mais grave da questão no Brasil, que é a ausência
de reflexão sobre o Surrealismo e sua afirmação no país, em que pese os ditos
contrários. Reflexão essa que vinha esbarrando nas reiteradas pás de cal já de
uso nos meios de informação (o Surrealismo é, sem dúvida, o movimento no
período moderno que mais avisos de óbito já recebeu, o que aliás continua a se
dar). É ponto pacífico que tal recenseamento não visa a entronização do
Surrealismo no escaninho dos gêneros literários ou outras compartimentações do
oficial, mas sim o acesso a seu repertório de provocações e feitos.
O levantamento documental da história e percurso, subterrâneo em geral,
no cenário brasileiro, fez-me deparar com os prejuízos que aqui se instituíram
– da metade dos anos 20 para cá. Ao contrário do que rezam as crônicas
oficiais, a presença marcante de obras do Movimento no Brasil provocou uma
primeira dilatação do projeto inicial, ao qual vinha se somar a necessidade de
incluir um critério de prospecção e de exposição objetiva dos seus feitos e
fatos. A ausência de reflexões aprofundadas sobre sua vigência no país (um dos
artifícios do seu religioso encobrimento), implicou, por sua vez, em
acrescentar as coordenadas principais de sua constituição como movimento e
posição: o que veio a ser esse primeiro volume (tomo 1) de A aventura surrealista. As poucas referências brasileiras no
capítulo das coordenadas, ou vertentes formadoras da concepção do Surrealismo
decorre, portanto, do que acabamos de afirmar.
Já os tomos 2 e 3 são propriamente a Cronologia Essencial do Surrealismo
no Brasil, ano a ano, dos 20 até 1992 – fatos que estão pautados com
comentários críticos e que vêm dispostos, face a face, com quadro sincrônico
internacional do Movimento (com destaque para América Latina, Espanha, Portugal
e Estados Unidos). A ênfase no caráter documental e sua exposição cronológica,
preenchendo as lacunas de referências existentes, resultou em uma longa
extensão, pela própria natureza de suas incidências e pertinências. Além do
mais, a montagem sincrônica e espacial (datas, fatos e obras) pretende situar
historicamente os diversos eventos e seus respectivos contextos, deixando de se
abordar o Brasil como um recorte regionalista, nacionalista e isolado de tudo
que medrou e se inter-relacionou com as nossas figuras neste século. Assim, o
quadro sincrônico e as reproduções, texto e visual, funcionarão como ilustração
ao ininterrupto fluir da datação brasileira exposta, a qual se estende
regularmente, visto que acompanhamos as etapas de todos os diversos autores
referentes do movimento do Surrealismo.
Como é sabido, certos autores, se bem que identificados ao Movimento e
mesmo fazendo recurso a certas de suas reivindicações, nem por isso
vincularam-se à sua militância (grupal e polêmica). Assim, tanto no Brasil
quanto no exterior, temos no Surrealismo as participações grupais e as
singulares. Estabelecemos como método três casos distintamente abordados: os
autores do Surrealismo (grupais e singulares); os autores com ligação com o
movimento, mas não participantes de seu espírito; e determinados autores que,
mesmo contrários ao movimento, cometeram obras singulares e às quais o
Surrealismo reivindica sua pertinência. Tal critério explicita ao mesmo tempo
que o Surrealismo não é um clube fechado e nem uma seita ou igreja, muito
embora não deixe de ser uma sociedade secreta ou bando de cavaleiros com a
mesma direção, a mesma busca, o mesmo ideal.
FM Em texto que abre o segundo volume de A aventura
surrealista há uma clara referência à
“distorção e o consequente sequestro sofrido pelos Manifestos do Surrealismo,
por parte das elites do pensamento e das artes, no modernismo brasileiro”.
Lembro também que o título de uma conferência tua na Espanha (em abril de 1994)
era exatamente “O surrealismo no Brasil: a construção interessada de uma
ausência”. Poderias aclarar um pouco a respeito desse ocultamento intencional?
SL É notório o consenso de que “não houve” o movimento do Surrealismo no
Brasil por parte da crítica oficial. De Tristão de Athayde a Afrânio Coutinho,
de Antônio Cândido a outros historiadores mais recentes. Porém os fatos dizem justamente
o contrário: não só houve obras e publicações e mesmo atividades coletivas nos
anos 20 (além da presença e das atividades e dos escritos de Benjamin Péret, de
1929 a
1931, junto à “Antropofagia” e ao Mário Pedrosa, ao Osório César e ao Flávio de
Carvalho), como também episódios de relevo nos anos 30 e 40 (apesar da
hegemonia totalitária do stalinismo e do realismo-socialista, do regionalismo e
da arte engajada), como também toda a efervescência dos 50 e a formação do
primeiro grupo do movimento no Brasil, de 1965 a 1969. Fatos que
continuaram a se suceder, até o atual grupo surrealista de São
Paulo/Fortaleza/Porto Alegre, com 12 artistas e escritores militantes, fundado
em 1991.
Da mesma forma que à recepção de Péret implicam um antes e um depois, o
mesmo vale para as atuações de Flávio de Carvalho ou Maria Martins ou Aníbal
Machado ou Murilo Mendes. Contudo, a documentação histórica e fatual também
comprova uma resistência quase feroz por parte dos chefes-de-fila dos modernismos
brasileiros, sob a bandeira do nacionalismo e da “identidade nacional” (Mário
de Andrade), ou do tradicionalismo-regionalista (Gilberto Freyre) e seus
ufanismos e suas xenofobias explícitas. Bandeira nacionalista que encobriu
diversos aspectos da política brasileira e que tem se pautado ao longo deste
século por uma discutível auto-suficiência e “originalidade” bem próxima do
racismo vigente (encobriu, por exemplo, as diferenças da pluralidade brasileira
e desqualificou a mestiçagem como contribuição inovadora, substituindo-a pelo
famoso “sincretismo” etno-religioso).
O silêncio sobre o Surrealismo e sua presença no Brasil é complexo de se
aclarar, não só pela sedimentação da desinformação intencional ao longo destas
últimas seis décadas, como ainda pelas relações íntimas que entretêm com a face
política de “oposição de esquerda” e do empenho revolucionário e libertário,
além de incluir nomes literalmente riscados de revisões críticas. Muito embora
o Surrealismo, ao contrário dos vanguardismos, tenha primado por sucessivas revisões
críticas e correções de rumo, em uma atualização permanente frente à realidade
em que opera – tal não acontecendo com a historiografia crítica no Brasil,
neste caso, ainda pendente de preconceitos e injustiças que se
institucionalizaram, em prol de interesses e posições políticas bastante
discutíveis. A base política do encobrimento por que tem passado a
marginalização do Surrealismo no Brasil (além de sua postura à margem, como é
sabido), configura-se em um processo explícito de sequestro – similar ao que
propiciou a exclusão do Barroco dos sistemas literários de maior aceitação em
nosso país: fora também uma questão de nacionalismo. Nacionalismo que permitiu
e permite, conforme o artigo “Uma palavra instável”, do Prof. Antônio Cândido,
recentemente publicado na Folha de São
Paulo (27/08/95), avançar que “hoje nacionalismo é pelo menos uma
estratégia indispensável de defesa, porque é na escala da nação que temos de
lutar contra a absorção econômica do imperialismo”, ou, citando o mesmo autor,
“consagrando a palavra ‘nacionalismo’ como algo progressista, tanto na busca de
uma cultura vinculada ao povo, quanto na politização da inteligência e da
arte”. Ora, como se sabe muito bem, todos os vanguardismos foram progressistas,
e logo se transformaram em regionalismos nacionalistas, ao passo que o
Surrealismo assume por definição a crítica do(s) modernismo(s) e seu
continuísmo, seu progressismo – posição
esta muito clara e imediatamente percebida pelos modernistas brasileiros que
logo irão aderir ao nacionalismo e, na década seguinte, ao regime ditatorial
e/ou populismo. Observa ainda Antônio Cândido, “a palavra ‘nacionalismo’ foi
mais do que nunca um rótulo querido pelas concepções tradicionalistas e
conservadoras”. Como se pode ver, o nacionalismo tem longa duração nas áreas do
poder e do pensamento brasileiros. Porém, é inequívoco que a discussão do
Surrealismo ou da Oposição Comunista e do trotskismo no Brasil insere-se na
discussão da oposição ao nacionalismo e seu auge verde-amarelo. O silêncio que
pesa sobre estas oposições é o da “ordem e progresso”.
[1988]
[Entrevista
incluída no livro O Começo da Busca - O
surrealismo na poesia da América Latina, de Floriano Martins (São Paulo:
Escrituras Editora, 2001).]
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