segunda-feira, 25 de agosto de 2014

SÉRGIO LIMA | Aventuras do surrealismo



FM Qual a tua visão crítica acerca do Surrealismo em relação à sua influência na cultural ocidental contemporânea?

SL O Surrealismo permanece como a mais radical contestação da Civilização Ocidental e seus modernismos (prefiro o termo “Civilização” a Cultura, visto não ser apenas uma atividade artística e seus similares). Por outro lado, é inegável – como já se observou em outras ocasiões – que o Surrealismo influenciou todo um contexto do Amor e da Poesia contemporânea, restituindo, digamos, uma certa noção do sagrado extra-religioso. Como já frisaram diversas personalidades do pensamento contemporâneo (Gaston Bachelard, Jules Monnerot, Georges Bataille, Walter Benjamin, Octavio Paz, Herbert Marcuse, Norman O. Brown, Kostas Axelos, Juan-Eduardo Cirlot, Nicolas Calas e outros), a busca espiritual que funda o Surrealismo – “libertação total do espírito e de todos os meios à sua mão” – é um dos fundamentos da experiência humana e sua afirmação na época Moderna, o que vale dizer que em outras épocas também houve tal questionamento, embora sem constituir-se, no entanto, como um movimento grupal, afora as exceções. Assim, em cadeia com as demais recusas dos continuísmos modernistas, seu questionamento é absolutamente moderno, como queria Rimbaud, e sua permanência até à atualidade não deixa de ser uma denúncia flagrante das diversas minimizações e diluições de que foi alvo. Suas inúmeras influências falam das deturpações e não de sua perspectiva, de sua direção, de seu vetor revolucionário.
Contrário ao sucesso e aos nacionalismos (e todos os modernismos brasileiros apoiaram-se em um forte pendor nacionalista, salvo a “Antropofagia”), o movimento surrealista não se inscreve na seriação dos “ismos” como se vem pretendendo há um bom tempo nas suas abordagens acadêmicas e historicistas. Se por um lado podemos constatar o insucesso de seu projeto de transformar o mundo, aspecto idealista de seu projeto, por outro não se deve calar o quanto de transformações sua práxis dialética realizou em vários domínios, desde o pessoal até àqueles dos ditos tabus: a condição do poeta, do artista, da sexualidade, do social e do psíquico. Com o Surrealismo foram alçadas à categoria de valor certas práticas até então mal vistas ou desqualificadas: o automatismo formal e informal; o ditado do desejo e o registro parapsicológico; o espontâneo e o acaso-objetivo; a collage e a poesia-objeto; os princípios de magia na operação plástica; a revelação como condição da poesia; o tão decantado frenesi da imagem e a primazia da beleza convulsiva; o amor incondicional (amor paixão, amor absoluto, amor louco, amor sublime) etc. etc.

FM Quais motivos te impulsionaram à realização desta imensa pesquisa que ora resulta na publicação deste primeiro volume de A aventura surrealista?

SL Como persistiam as mais variadas malversações do Surrealismo e seu movimento na historiografia brasileira, resolvi estabelecer um referencial significativo para eventuais estudos e aproximações que pudessem ocorrer. Sobretudo subsidiar o aspecto mais grave da questão no Brasil, que é a ausência de reflexão sobre o Surrealismo e sua afirmação no país, em que pese os ditos contrários. Reflexão essa que vinha esbarrando nas reiteradas pás de cal já de uso nos meios de informação (o Surrealismo é, sem dúvida, o movimento no período moderno que mais avisos de óbito já recebeu, o que aliás continua a se dar). É ponto pacífico que tal recenseamento não visa a entronização do Surrealismo no escaninho dos gêneros literários ou outras compartimentações do oficial, mas sim o acesso a seu repertório de provocações e feitos.
O levantamento documental da história e percurso, subterrâneo em geral, no cenário brasileiro, fez-me deparar com os prejuízos que aqui se instituíram – da metade dos anos 20 para cá. Ao contrário do que rezam as crônicas oficiais, a presença marcante de obras do Movimento no Brasil provocou uma primeira dilatação do projeto inicial, ao qual vinha se somar a necessidade de incluir um critério de prospecção e de exposição objetiva dos seus feitos e fatos. A ausência de reflexões aprofundadas sobre sua vigência no país (um dos artifícios do seu religioso encobrimento), implicou, por sua vez, em acrescentar as coordenadas principais de sua constituição como movimento e posição: o que veio a ser esse primeiro volume (tomo 1) de A aventura surrealista. As poucas referências brasileiras no capítulo das coordenadas, ou vertentes formadoras da concepção do Surrealismo decorre, portanto, do que acabamos de afirmar.
Já os tomos 2 e 3 são propriamente a Cronologia Essencial do Surrealismo no Brasil, ano a ano, dos 20 até 1992 – fatos que estão pautados com comentários críticos e que vêm dispostos, face a face, com quadro sincrônico internacional do Movimento (com destaque para América Latina, Espanha, Portugal e Estados Unidos). A ênfase no caráter documental e sua exposição cronológica, preenchendo as lacunas de referências existentes, resultou em uma longa extensão, pela própria natureza de suas incidências e pertinências. Além do mais, a montagem sincrônica e espacial (datas, fatos e obras) pretende situar historicamente os diversos eventos e seus respectivos contextos, deixando de se abordar o Brasil como um recorte regionalista, nacionalista e isolado de tudo que medrou e se inter-relacionou com as nossas figuras neste século. Assim, o quadro sincrônico e as reproduções, texto e visual, funcionarão como ilustração ao ininterrupto fluir da datação brasileira exposta, a qual se estende regularmente, visto que acompanhamos as etapas de todos os diversos autores referentes do movimento do Surrealismo.
Como é sabido, certos autores, se bem que identificados ao Movimento e mesmo fazendo recurso a certas de suas reivindicações, nem por isso vincularam-se à sua militância (grupal e polêmica). Assim, tanto no Brasil quanto no exterior, temos no Surrealismo as participações grupais e as singulares. Estabelecemos como método três casos distintamente abordados: os autores do Surrealismo (grupais e singulares); os autores com ligação com o movimento, mas não participantes de seu espírito; e determinados autores que, mesmo contrários ao movimento, cometeram obras singulares e às quais o Surrealismo reivindica sua pertinência. Tal critério explicita ao mesmo tempo que o Surrealismo não é um clube fechado e nem uma seita ou igreja, muito embora não deixe de ser uma sociedade secreta ou bando de cavaleiros com a mesma direção, a mesma busca, o mesmo ideal.

FM Em texto que abre o segundo volume de A aventura surrealista há uma clara referência à “distorção e o consequente sequestro sofrido pelos Manifestos do Surrealismo, por parte das elites do pensamento e das artes, no modernismo brasileiro”. Lembro também que o título de uma conferência tua na Espanha (em abril de 1994) era exatamente “O surrealismo no Brasil: a construção interessada de uma ausência”. Poderias aclarar um pouco a respeito desse ocultamento intencional?

SL É notório o consenso de que “não houve” o movimento do Surrealismo no Brasil por parte da crítica oficial. De Tristão de Athayde a Afrânio Coutinho, de Antônio Cândido a outros historiadores mais recentes. Porém os fatos dizem justamente o contrário: não só houve obras e publicações e mesmo atividades coletivas nos anos 20 (além da presença e das atividades e dos escritos de Benjamin Péret, de 1929 a 1931, junto à “Antropofagia” e ao Mário Pedrosa, ao Osório César e ao Flávio de Carvalho), como também episódios de relevo nos anos 30 e 40 (apesar da hegemonia totalitária do stalinismo e do realismo-socialista, do regionalismo e da arte engajada), como também toda a efervescência dos 50 e a formação do primeiro grupo do movimento no Brasil, de 1965 a 1969. Fatos que continuaram a se suceder, até o atual grupo surrealista de São Paulo/Fortaleza/Porto Alegre, com 12 artistas e escritores militantes, fundado em 1991.
Da mesma forma que à recepção de Péret implicam um antes e um depois, o mesmo vale para as atuações de Flávio de Carvalho ou Maria Martins ou Aníbal Machado ou Murilo Mendes. Contudo, a documentação histórica e fatual também comprova uma resistência quase feroz por parte dos chefes-de-fila dos modernismos brasileiros, sob a bandeira do nacionalismo e da “identidade nacional” (Mário de Andrade), ou do tradicionalismo-regionalista (Gilberto Freyre) e seus ufanismos e suas xenofobias explícitas. Bandeira nacionalista que encobriu diversos aspectos da política brasileira e que tem se pautado ao longo deste século por uma discutível auto-suficiência e “originalidade” bem próxima do racismo vigente (encobriu, por exemplo, as diferenças da pluralidade brasileira e desqualificou a mestiçagem como contribuição inovadora, substituindo-a pelo famoso “sincretismo” etno-religioso).
O silêncio sobre o Surrealismo e sua presença no Brasil é complexo de se aclarar, não só pela sedimentação da desinformação intencional ao longo destas últimas seis décadas, como ainda pelas relações íntimas que entretêm com a face política de “oposição de esquerda” e do empenho revolucionário e libertário, além de incluir nomes literalmente riscados de revisões críticas. Muito embora o Surrealismo, ao contrário dos vanguardismos, tenha primado por sucessivas revisões críticas e correções de rumo, em uma atualização permanente frente à realidade em que opera – tal não acontecendo com a historiografia crítica no Brasil, neste caso, ainda pendente de preconceitos e injustiças que se institucionalizaram, em prol de interesses e posições políticas bastante discutíveis. A base política do encobrimento por que tem passado a marginalização do Surrealismo no Brasil (além de sua postura à margem, como é sabido), configura-se em um processo explícito de sequestro – similar ao que propiciou a exclusão do Barroco dos sistemas literários de maior aceitação em nosso país: fora também uma questão de nacionalismo. Nacionalismo que permitiu e permite, conforme o artigo “Uma palavra instável”, do Prof. Antônio Cândido, recentemente publicado na Folha de São Paulo (27/08/95), avançar que “hoje nacionalismo é pelo menos uma estratégia indispensável de defesa, porque é na escala da nação que temos de lutar contra a absorção econômica do imperialismo”, ou, citando o mesmo autor, “consagrando a palavra ‘nacionalismo’ como algo progressista, tanto na busca de uma cultura vinculada ao povo, quanto na politização da inteligência e da arte”. Ora, como se sabe muito bem, todos os vanguardismos foram progressistas, e logo se transformaram em regionalismos nacionalistas, ao passo que o Surrealismo assume por definição a crítica do(s) modernismo(s) e seu continuísmo, seu progressismo – posição esta muito clara e imediatamente percebida pelos modernistas brasileiros que logo irão aderir ao nacionalismo e, na década seguinte, ao regime ditatorial e/ou populismo. Observa ainda Antônio Cândido, “a palavra ‘nacionalismo’ foi mais do que nunca um rótulo querido pelas concepções tradicionalistas e conservadoras”. Como se pode ver, o nacionalismo tem longa duração nas áreas do poder e do pensamento brasileiros. Porém, é inequívoco que a discussão do Surrealismo ou da Oposição Comunista e do trotskismo no Brasil insere-se na discussão da oposição ao nacionalismo e seu auge verde-amarelo. O silêncio que pesa sobre estas oposições é o da “ordem e progresso”.
[1988]

[Entrevista incluída no livro O Começo da Busca - O surrealismo na poesia da América Latina, de Floriano Martins (São Paulo: Escrituras Editora, 2001).]

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