FM
| São palavras tuas: “A criação literária é, sempre, uma releitura, e não se
cria no vazio”. Apenas para situar este nosso início de conversa, gostaria de
um inventário de tuas identificações, principalmente em termos de textos.
CW | Em um
poema de fins de anos 1970, do Jardins da
provocação, fiz um bloco que aqui transcrevo:
Os poetas que eu li / se
quiserem saber / fernandopessoapierrereverdysaintjohnperserobertdesnosviniciusginsbergcorsoferlinghettibretonpaulÉluardmallarméartaudrilkerousselpongepoundcarlosdrummondoswaldmáriomichauxlautréamontnerudanovalisblakebenjaminpéretkleisthöelderlinnietzschesenghorcézaireoctaviopazpivamachadoalberticernudajarryeliotstephangeorgerimbaudcummingscabraltzaracrevelmuriloapollinairesoupaulttraklbennbaudelaire
/ porradas na mente com muita força / aguilhões no cérebro / o lixo da memória
pega fogo / imagens poéticas libertam-se em quartos de hotel / é como a
história de Raymond Roussel / que viajou pelo Índico sem sair do camarote do
navio / e achou elegante furar um pneu na Pérsia
Tenho poemas que
permanecerão engavetados, por serem epigonais com relação a Saint-John Perse.
Idem, quanto a Jorge de Lima, ou o Lorca do Poeta em Nova York, que me “fez a cabeça”, mostrou possibilidades
da escrita. Na época de Anotações para um
apocalipse, meu primeiro livro (1964), escrevia estimulado, entre outras coisas,
por um coquetel do Robert Desnos de Liberté
ou l’amour (que ainda pretendo traduzir), Michaux e Bataille. Além de
modernistas, surrealistas, beats, rebeldes & malditos, nos anos 1970 passei
a ler mais T. S. Eliot, dar mais atenção à revolução literária do Wasteland e à extraordinária fluência do
Quatro Quartetos. Acrescentaria ao
bloco acima, atualizando-o, Herberto Helder (tem poemas que, francamente,
gostaria do ter escrito), Cesariny, outros portugueses, vários contemporâneos
meus, Bonnefoy, Malcolm de Chazal – e outros, poesia de qualidade, felizmente,
não falta.
Literatura em prosa,
também. Acho impossível algum brasileiro sensível não se haver abalado com a
descoberta do Guimarães Rosa e de Clarice. Henry Miller tem
ótima prosa poética. Paul Bowles. Cortázar. Malcolm Lowry. Borges. Lezama Lima. Sarduy. E tantos outros… Textos teóricos também inspiram poesia,
Wilhelm Reich, Norman Brown (que fez um livro de filosofia em prosa poética, Love's Body), Bataille, Foucault, Walter Benjamin, Octavio Paz (principalmente). Ao longo desta
entrevista retomarei alguns desses e outros autores. Em meu livro em prosa, Volta, em boa parte, repasso isso.
FM
| Começas a publicar em meados dos anos 1960, em um grande ambiente cultural:
Surrealismo, as reuniões na casa de Vicente Ferreira da Silva, a coleção “Novíssimos”
do Massao Ohno, Teatro Oficina etc. Havia toda uma geração que se reunia,
discutia e produzia. Contudo, mesmo que tenhas participado de um grupo surrealista,
dizes que “não poderíamos e nunca conseguiríamos formar o tipo de movimento do
Surrealismo”. Há naturalmente razões específicas para isto. Quais? Acaso
estariam vinculadas a uma outra afirmação tua, a de que o Surrealismo é “um
empreendimento impossível, é evidente, e fracassado, mas grandioso, e de uma
extraordinária riqueza”? Dentro do possível, o que destacarias então na
produção artística daquela época?
CW | Foi
mesmo um grande ambiente cultural, onde circulava boa parte do que mencionei
acima. Éramos atualizados. Íamos comprando a obra completa do Artaud na
Livraria Francesa à medida que os volumes saíam na França. Recebemos Kaddish e Reality Sandwiches de Ginsberg em primeira mão, recém-lançados lá.
Podíamos formar grupos de estudo, ler poemas uns para os outros, organizar
eventos e programações, a par da mais desenfreada boêmia e provocações, e até
mais do que boêmia e provocações. Tenho um artigo, e pretendo escrever outros,
mostrando como tudo isso era atualização cultural de São Paulo, cenário desses
episódios, na direção do cosmopolitismo, da superação do provincianismo. O que
se passava aqui no início dos anos 1960 era sincrônico com a inquietação
mundial encarnada na geração Beat, juventude “existencialista” francesa, angry young men britânicos, a busca de
alternativas ao panorama sufocante da Guerra Fria, ao impasse entre estalinismo
e macarthismo, acabando por desaguar na contracultura do final da década. Por
maiores que fossem suas diferenças, os poetas paulistas da geração “novíssimos”,
na qual teve participação decisiva o editor Massao Ohno, caracterizaram-se pela
retomada do “eu”, da primeira pessoa, diferenciando-se dos formalismos e
construtivismos, poesia concreta inclusive, e do nacional-populismo.
A esse ambiente aportou, em
1963, Sérgio Lima, vindo de Paris e dois anos de participação efetiva no
movimento surrealista francês. Como já éramos uma fração radical naquele
contexto, procurou-nos para a formação de um grupo surrealista. Contatou
primeiro a Roberto Piva, que havia acabado de lançar Paranoia. Reunimo-nos regularmente, toda semana, em 1963-64, em
bares, no estilo do grupo francês. Praticamos jogos surrealistas, comentamos
leituras, discutimos muito. Fizemos algumas manifestações, distribuímos um necrológio
de autores de prestígio, mas não chegamos a realizar nenhuma publicação
coletiva. As obras do período são Amore, de
Sérgio, meu Anotações para um Apocalipse,
e Piazzas, o segundo livro de Piva.
Aos poucos, a ideia de um
grupo surrealista foi sendo abandonada, embora continuássemos nos vendo e frequentando.
Sérgio Lima voltou a promover reuniões em 65, que resultaram na exposição
surrealista de 1967 e na pub1icação coletiva A Phala. Mas já com outras pessoas, assim como encabeçou novas reuniões,
na década de 90, da qual saiu o opúsculo de um movimento surrealista internacional,
dessa vez com a tua participação, e um evento sobre o centenário de Breton, em
96.
O grupo de 1963/64 não teve continuidade por causa
de sua heterogeneidade. O fato de sermos neo-românticos e antiburgueses, idiossincráticos
(e vice-versa) com re1ação à ortodoxia do Partido, à poesia concreta e ao
academicismo, não implicava a mesma identidade com o Surrealismo em todos. Por
exemplo, De Franceschi nesta altura tem obra poética substanciosa, mas na qual
não há mínimo rastro de identificação com Surrealismo. Rodrigo de Haro, que era
do nosso grupo mas nem chegou a participar daquelas reuniões, é uma encarnação
atualizada de um decadentista de fim de século, da inquietação anárquica que
contribuiu para originar, entre outras coisas, o próprio Surrealismo (Huysmans,
que especificou e valorizou o que seria decadentismo, foi um dos autores
prediletos de Breton). Piva representa um encontro de Surrealismo, Beat, nosso
modernismo, e muitas outras coisas.
Em 1968, em Paris, às
vésperas da conflagração de maio, Paulo Paranaguá me levou a uma reunião do
grupo surrealista, já sem Breton, morto em 66. Fomos depois à casa de Vincent
Bounure, integrante ativo do grupo, com quem tive uma prolongada discussão por
causa de geração Beat, cujo valor literário não admitia. Provavelmente, me
entenderia melhor com a ponte entre contribuição surrealista e contracultura
que intelectuais como Alain Jouffloy estavam promovendo.
Piva, eu, e outros, com
períodos de expansão e contração, distanciamento e aproximação, fomos um
movimento literário informal. Tanto é que nos prefaciamos, posfaciamos,
entrevistamos, fizemos poemas coletivos. Talvez fôssemos e sejamos anárquicos
demais para caber em um movimento estruturado, surrealista ou qualquer que
seja. Por nossa diversidade, comportamento, contexto geracional, até por nossas
caras, como vejo em fotografias da época, éramos parecidos com a Beat.
Teria, em 1963/64, uma
abordagem menos geracional, menos paulista, mais diacrônica e nacional,
produzido mais resultados? Rosário Fusco, pivô de questionamentos sobre
Surrealismo no Brasil (em 1942, Antonio Cândido etc.), ainda estava aí, errando
por Cataguazes. Campos de Carvalho, que, antes de morrer declarou sua afinidade
com Surrealismo, e a quem considero um prosador magnifico, podíamos tê-lo
procurado. Manoel de Barros, outro que – …e autores mais excêntricos ainda,
como José Alcides Pinto; não sabíamos da existência deles, mas, também, nem
procuramos saber.
Não me provoca qualquer
constrangimento estar catalogado como integrante do trio surrealista brasileiro
dos anos 1960, junto com Sérgio Lima e Piva. Nem de estar em boa companhia,
minha identidade com o Surrealismo é evidente no que escrevo, em poemas, ensaios
como meu prefácio para Lautréamont, e minha narrativa Volta. Surrealismo ser um empreendimento impossível, em sua tentativa
de unir símbolo e realidade, arte e vida, política e estética, só o torna mais
instigante e atraente. Nunca hesitei, na opção entre pragmatismo e utopia.
Sobre a ideia de busca impossível, lembro o ensaio de Bataille sobre Baudelaire, em A Literatura e o Mal, onde
ele mostra que Baudelaire é grande por buscar o impossível, e que a “impossível
unicidade” está ligada à própria essência da poesia. Restrições da intelligentzia brasileira ao
Surrealismo, sua pouca circulação, sua influência menor que em outros países,
só me fazem recrudescer nessa identificação.
Por carta, já me referi a
alguns prefixos do Surrealismo, “paraSurrealismo” e “tardoSurrealismo”, que
acabam rotulando e desqualificando autores. ParaSurrealismo, utilizado por
Stefan Baciu (curioso, andou por São Paulo na época, frequentava Dora e Vicente
Ferreira da Silva, que nós também etc., e nunca falou conosco, nem deu sinais
de interesse por Surrealismo), se aplicaria a movimentos e manifestações dos
anos 1930, como aqueles ao redor de Georges Daumal, ou Pierre Mabille e Michel
Leiris, autores importantes que apresentaram divergências, e também notórias
afinidades. Mas não a um panorama em movimento, rico, diversificado, de
gradações, zonas cinzentas, em processo de transformação, como os anos 1960. É
um modo de omissão, de não examinar com clareza as relações entre Surrealismo,
Beat, a emergente contracultura, desconhecendo a especificidade e individualidade
de movimentos e autores.
Quanto a tardoSurrealismo,
em primeiro lugar lamento que a morte de José Paulo Paes (que utilizou o termo
na resenha do seu Escritura Conquistada
e outros lugares, além de questionar a pertinência do Surrealismo no Brasil já na
década anterior, no ensaio publicado em Gregos
e Baianos) impossibilitasse uma discussão que teria sido produtiva e
estimulante, pelo nível do interlocutor. Em meu prefácio para os Manifestos do Surrealismo, refiro-me às
proclamações de morte do Surrealismo, feitas desde os anos 1930. Cito as
ironias de Breton em Entrètiens, seu
livro de entrevistas. No plano da história, dez, vinte anos, um quarto de
século, são quase nada, ou pouca coisa. Ao promovermos reuniões surrealistas em
1963, e até antes disso, ao escrever textos com afinidade ou identidade com
Surrealismo (é importante frisar: reuniões, grupo, são algo complementar, o que
importa é a produção, a poesia de cada um) estávamos sintonizados com
manifestações contemporâneas. São do mesmo período, em termos históricos, o
movimento português (Cesariny etc.) por volta de 1950, a participação de
Octavio Paz no Surrealismo (também na mesma
época), vários movimentos hispano-americanos, principalmente o Techo de la
ballena venezuelano (1963), e o grupo americano com Franklin Rosemont e o
surrealista-beat Philip Lamantia (idem, 1963). Participamos de um processo de
renovação e ampliação de fronteiras do Surrealismo. Éramos atualizados, e não
tardígrafos.
FM
| Anoto observações tuas: “Minha poesia valoriza as imagens. Imagens visuais.
Mas a prosódia, ritmo, musicalidade, têm que estar presentes.” E há esta ênfase
na leitura em voz alta, onde inclusive dizes ter ficado “mais sensível à
prosódia ao traduzir Ginsberg”. É interessante lembrar aqui o que disse Enrique
Molina sobre o fato da poesia exigir um recolhimento
para seu entendimento. Defendia que a poesia somente era transmitida em
silêncio, embora costumasse ler poemas em público. Como abordarias uma dimensão
filosófica em tua poesia? consideras que haja mesmo algum comprometimento dessa
dimensão em sua transmissão em voz alta?
CW | Há
paralelos e analogias possíveis entre poesia, ou literatura de qualidade
poética, e música. Imaginemos uma audição da 10a Sinfonia de Maller
no Teatro Municipal lotado. Aquela do adágio, que se tornou fundo musical de Morte em Veneza de Visconti. As 1.500
pessoas no Municipal, ou 3.000 se fosse no Royal Festival Hall, mais o regente,
a orquestra, todos estariam em recolhimento, completa concentração.
Exteriorização sonora e audição pública não comprometem dimensão filosófica de
obra nenhuma.
Mudando de repertório, um
dos discos-fetiche de 1980 foi In a silent
way de Miles Davis. Menciono-o em um poema. Observe a inteligência do titulo:
música para ser ouvida, para execução pública, ao mesmo tempo, in a silent way. A criação literária tem
várias dimensões. Algumas, presentes na página, no texto impresso, outras na
exteriorização oral. A literatura, ou isso que hoje entendemos por literatura,
primeiro foi oral, depois escrita. Som é sentido, embora o sentido não se
esgote no som.
FM
| O livro Estranhas experiências
(ainda inédito)[1]
inclui uma seleção do que já foi publicado e mais textos novos. O que acentua
ou renova em tua poética? Outro aspecto: segue sendo uma mescla de versos,
prosa poética e textos críticos (depoimentos, manifestos). Em uma entrevista à
filósofa espanhola María Zambrano, ela refere-se a essa fusão de prosa e verso
em livros como Vita nuova (Dante) e
os Cánticos (San Juan de la Cruz) como um “exemplo de
unidade de pensamento”.
CW | Gostei
dessa ideia, de “unidade do pensamento”, evidente em escritores-ensaístas, sem
dúvida em Breton, em Octavio Paz, e também em Ginsberg, que publicou grande quantidade de ensaios,
depoimentos e transcrições de palestras. Nos clássicos, que expressavam um
sistema mais fechado, a unidade é evidente. Torna-se problemática no
Romantismo; daí talvez a enorme produção de Goethe em todos os campos, da
investigação cientifica à poesia. E mais problemática ainda na modernidade, de
Baudelaire, o poeta-critico, para cá. Daí, no ciclo iniciado pelas vanguardas,
tanta poesia acompanhada por uma poética, manifestos, filosofia, política etc.
Como faço poesia, ensaio, e
publiquei uma narrativa, impressionam-me obras nas quais há um trânsito entre
as três modalidades: Breton de Nadja
e L’Amour Fou; Octavio Paz, que fez um livro no qual funde e integra gêneros, El Mono Gramatical.
Comecei escrevendo poemas
em prosa, na fronteira do automatismo psíquico. Na década de 70, introduzi
temas: poema sobre Dashiell Hammett, sobre García Lorca, sobre a noite anterior etc. Em Jardins
da Provocação há um poema em prosa, sobre a luz filtrada pela persiana do
quarto durante um encontro amoroso, cena que ficou na minha cabeça por um bom
tempo, até eu escrevê-la do modo como queria. Mas esses textos mais temáticos,
intencionais, coexistem com outros assemelhados à escrita automática, inclusive
o extenso poema sobre a espécie humana escrito a seis mãos (com Piva e Juan
Hernández), de modo direto, como nos jogos surrealistas. Em Estranhas Experiências, também há poemas
mais ou menos explicitamente temáticos, mais ou menos elaborados, colagens de
textos, compondo, espero, uma unidade. Continuo escrevendo espontaneamente. O
poema sobre ruínas romanas, que você publicou na revista Blanco Móvil, foi anotado lá mesmo, na hora, diante do Senado Romano.
FM
| Duas observações tuas em torno do poema em prosa: o fato de que, como gênero
autônomo, só surge a partir de Rimbaud, e o entendimento de que se trata de algo verdadeiramente subversivo “por,
sendo uma coisa, ser outra”. O que faz com que não seja abertamente discutido
como gênero entre nós?
CW | Poesia
em prosa é exceção, gênero minoritário na literatura brasileira. E no mundo
todo, exceto na poesia francesa do século XX, onde adquire maior peso com Char,
Michaux, Ponge, Breton, Artaud. Herança de Baudelaire e Rimbaud, consolidada pelo modo como o Surrealismo rompeu a fronteira entre
gêneros e modalidades. Em nossa literatura, basta comparar a quantidade do que
se produz e publica de poesia em versos e em prosa, para eliminar dúvidas.
Para mim, poesia em prosa é
não-discursiva, não pode ser prosaica. Por dispensar versificação, métrica e
rima, a dimensão poética do poema em prosa é conferida pela imagem. Daí
entender que foi iniciada, como gênero autônomo, por Rimbaud, com Uma temporada no inferno e,
em especial, as Iluminuras ou Iluminações, exercício da liberdade
traduzido em imagens poéticas. Essa opinião é controvertida (provocou
controvérsia), mas Baudelaire, ao intitular de Pequenos poemas em prosa crônicas e
narrativas curtas, escolheu esse título com uma intenção crítica. Depois de
haver ampliado o campo do poético em As
Flores do Mal, ao escrever sobre o horror, morte e decomposição,
acrescentou, nos textos em prosa, o cotidiano em seus detalhes e misérias, em
contraposição ao sublime, então associados à poesia. Quis, também nisso,
dessacralizar, fazendo prosa e chamando-a de poesia (e até inventando uma
genealogia, as narrativas curtas de Aloysius Bertrand). A mesma intenção pode
ser atribuída a Lautréamont, ao chamar de Poesias
a reflexões e adulterações de outros autores.
FM
| Em uma de suas colunas semanais, Wilson Martins traçou uma síntese dos
penúltimos momentos da literatura brasileira, conformada pelo “regionalismo
pitoresco dos modernistas”, a “nostalgia retórica da Geração de 45” e a “esquizofrenia
concretista que, para salvar a poesia, achou necessário destruí-la”. Drummond reportou-se várias vezes a uma
vulgarização da linguagem, segundo ele uma decorrência da massificação dos
meios de comunicação. Contudo, ainda são os poetas, recorrendo a Elias Canetti,
os guardiães da metamorfose. A conclusão é simples?: não temos mais poesia no
Brasil?
CW | Wilson
Martins, ao fazer essas observações, fala da poesia brasileira atual como se
estivéssemos em 1958. Ou fala de 1958 como se fosse hoje. Na presente altura,
não dá mais para ver poesia concreta como “destruição da poesia” através da
redução ao ícone, ao visual, a que for. Nem que seja para criticá-lo, situá-lo
na devida perspectiva, é preciso reconhecer que o Concretismo, na teorização,
divulgação e criação, abrange muito mais do que a fase eufórica de Noigandres,
manifestos dos anos 1950, deslumbramento com o futuro traduzido em bites, texto substituído por figurinhas
etc.
Está cheio de bons poetas
no Brasil, hoje. Há, isso sim, crise das mediações, da crítica e ensino de
literatura, que se burocratizaram. E uma dificuldade, por não ser mais possível
a mesma delimitação de territórios, tendências fechadas: poesia concreta,
Violão de Rua, geração de 45, marginais. A diversidade e complexidade do
panorama atual criou um problema para a critica, incapaz de mapeá-lo, seja na
descrição de tendências, seja no exame de valores individuais.
FM
| Em entrevista que fiz ao Donizete Galvão, ele menciona certa obsessão pela
vanguarda que tem pautado nossos poetas: “Todos se valem da máxima do Make it new, sem se lembrar que ele se
referia ao novo reinventado a partir da tradição. Todos repetem o mesmo mantra
do ‘ostinato rigore’, como se todos os outros poetas fossem desleixados que
deixam a escrita correr solta. Essa obrigação da inovação a qualquer custo, de
se intitular poeta gráfico ou multimídia, é mesmo um beco sem saída.” Evidente
que este é um recurso extremo de quem é tudo menos poeta. Contudo, é comum
confundir-se no Brasil o recurso com o método.
CW | Não
escrevo a frio, sou mais movido pela inspiração que pela reflexão, mas me acho
rigoroso. Publiquei relativamente pouca poesia, por não confiar cegamente em
tudo o que ultrapassa minha caixa craniana. Em termos menos pessoais, até na
mais barroca das escritas, pautada pela estética do excesso, ou no mais
frenético automatismo psíquico, se houver qualidade literária, então haverá
rigor. Sempre, cada palavra obedece ao requisito da precisão e exatidão do famoso
ensaio de Pound.
A edição comentada de Howl, Uivo, de Ginsberg, com as versões
anteriores desse poema, é, sob esse aspecto, uma lição de poesia. Informalismo
associado ao descuido, à facilidade, como insiste a crítica acadêmica e
conservadora, coisa nenhuma! Por exemplo, detalhes como a substituição, logo na
frase inicial, de I saw the best minds of my generation, de mystical, místicos, inicialmente, por hysterical, histéricos, na versão final,
mostrando como se faz para que uma imagem ganhe força. Não se limitava a dar
por terminado e publicar o que anotava. Seu elogio da espontaneidade, do first tought, best tought, nunca o impediu
de reelaborar o texto.
O make it new poundiano é inseparável do valor, no sentido de que
banalidade e redundância são incompatíveis com literatura de qualidade. Mas tem
que ser entendido dialeticamente. Autores contemporâneos, como Ivan Junqueira
ou Alexei Bueno, têm publicado poesia com rimas, versificação, modos
tradicionais e clássicos. Mas o que tiverem feito de bom, merecedor de interesse,
será original e novo (e vice-versa).
FM
| Defende o poeta inglês A. Alvarez que a poesia é “um tipo de sonho involuntário”.
Segundo ele, o Surrealismo, diretamente interessado nos mecanismos do cérebro
que produziam as imagens oníricas, estreitou as fronteiras entre consciente e
inconsciente, modificando “a maneira pela qual o mundo é percebido”. Diz ainda
Alvarez que a Freud não interessava muito o Surrealismo, mas que este, por sua
vez, teria influído de maneira decisiva a torná-lo “o que Auden chamava de
‘todo um clima de opinião’”. Qual a tua observação acerca das relações entre a
aventura onírica desatada pelos surrealistas – afirma Alvarez que “a falácia do
Surrealismo é considerar que todos os sonhos são interessantes” – e a expedição
científica rumo ao inconsciente levada a termo pela psicanálise?
CW | Escrevi
sobre essa questão, Freud vs. Surrealismo, no prefácio para a edição brasileira
dos Manifestos do Surrealismo (Brasiliense,
1985), argumentando que Breton, e não Freud, tinha razão, a propósito da troca
de cartas entre ambos, se não me engano em 1936. Foi quando Breton convidou
Freud para uma das exposições internacionais do Surrealismo, cujo tema era o
sonho e o inconsciente. Resumindo (e simplificando), Freud não quis participar,
e afirmou que imagens dos sonhos eram conteúdos manifestos que o interessavam
como cientista, por permitir-lhe chegar a um conteúdo latente, e não como
fenômeno artístico. Eram material a ser interpretado, dentro do procedimento
analítico. Ele mostrou, penso, um viés cientificista e mecanicista. Tendências
mais recentes da psicanálise, como a de Lacan (que começou como participante do
Surrealismo), atribuem maior autonomia a símbolos e imagens do inconsciente.
Hoje, há maior interesse, uma postura menos excludente, com relação a
psicóticos e outros habitantes excêntricos de mundos paralelos, inclusive com o
reconhecimento da contribuição artística de alguns (aliás, um interesse e
reconhecimento inaugurados por Breton).
Uma contribuição inovadora
do Surrealismo foi trazer ideias da psicanálise, como a de inconsciente, para a
criação artística. Ao incorporar o pensamento freudiano, deu-lhe uma dimensão
transgressiva, mais crítica, pelo modo como valorizou sonho, loucura, delírio,
estados e condições habitualmente vistos e tratados como anomalia.
Sonhos, e a atividade do
inconsciente em geral, são um reflexo da vida. Poetas terão sonhos poéticos.
Contadores e administradores sonharão muito com planilhas e tabelas. Motoristas
de taxi se sonharão ao volante.
FM
| A propósito de Auden, o poeta inglês estabelecia uma distinção entre o
artista e o apóstolo, ou seja, entre o indivíduo que cria e aquele que expressa
uma mensagem, sugerindo que há alguns casos em que certos escritores são, a um
só tempo, artistas e apóstolos, e que isto “torna difícil uma avaliação justa
de sua obra”. Como exemplo, refere-se a William Blake e D. H. Lawrence. Alguns surrealistas, pensemos em Breton e Artaud, acaso não poderiam
ser observados por essa mesma ótica de Auden? Até que ponto a leitura de sua
obra não teria sido comprometida pelo peso da mensagem que a mesma expressa?
CW | Breton,
Artaud etc., foram demiurgos, da linhagem dos poetas como porta-vozes de uma
verdade, a exemplo de Blake. Neles, não é possível separar obra e
mensagem. Artaud, por exemplo, é literariamente mais poderoso e expressivo ao
invectivar psiquiatras e a burguesia, ao defender uma mudança radical da sociedade
e do homem, em Cartas de Rodez, Van Gogh ou
Para acabar com o julgamento de Deus, manifestações
veementes de ideias.
FM
| Ao conversar sobre certas tentativas frustradas de classificação de sua obra,
disse Picasso, em conversa com Jerome Secker, não tratar-se de um surrealista,
acrescentando: “Nunca estive fora da realidade. Sempre estive na essência da
realidade.” Esta conversa se deu em 1945, quando Picasso já havia há muito se
afastado do Surrealismo. Já em 1963, quando William Fifield entrevistou Jean
Cocteau, conversaram sobre a presença do outro na criação, declarando-se Cocteau
“habitado por uma força ou ser – do qual conheço muito pouco”. Naquela ocasião,
recorda o jornalista que Picasso lhe havia dito que esse outro seria “o
verdadeiro agente de sua própria criação”. Por sua vez, Cocteau indagava-se, ao
pensar na presença do inconsciente na criação artística, se acaso a genialidade
não seria “uma forma da memória ainda não descoberta”. Embora sabendo o quanto
Picasso cultivava caprichosamente seu pomar de boutades, até que ponto são contraditórias entre si a presença do
que ele chamou de “essência da realidade” e a ação do outro sobre a criação artística?
CW | Em
1945, Picasso, membro do PC, desenhava pombinhas da paz, e “essência da
realidade”, para ele, era seguir os ditames do Camarada Stalin. Quanto ao “outro”,
milhões de artistas já se pronunciaram sobre essa experiência da alteridade na
criação. Alguns – como Derrida, naquele ensaio sobre Jabés publicado em A Escritura e a Diferença, ou Octavio
Paz, enfaticamente, em toda a
sua obra – de modo mais consistente, apoiados em obra menos circunstancial que
a de Cocteau.
FM
| Ainda sobre o tema da realidade, para o poeta Yves Bonnefoy, embora tenha
dito que “poetas como Breton nos levaram a um ponto em que a realidade poética
está ao alcance da mão, misturada à vida”, por outro lado afirma que “quando
chegaram a esse ponto, os escritores surrealistas, de certo modo, retrocederam”,
exemplificando que “Breton trocou as imagens de um desejo universal e compartilhável
por fantasmas privados que quis tornar absolutos”. Logo a seguir, em conversa
telefônica com o jornalista Carlos Graieb, o poeta francês define: “A poesia
tem a função de nos reunir aos nossos semelhantes e ao mundo. Por isso, ao
longo de toda a vida, tenho destruído textos que sejam quimeras pessoais,
textos que tenham um código por demasiado íntimo. A poesia é comunicação universal
ou então não é.”
CW | Desde
quando escrever poemas sobre Charles Fourier, sobre a mulher amada, falar de
acaso objetivo, valorizar a loucura, delírio e sonho, mostrar que o maravilhoso
pode ser real, querer unir revolução social e revolta individual, romantismo e
socialismo, são “fantasmas privados”? Bonnefoy tem uma poesia sublime, mas
fechada, personalíssima, que paira na estratosfera. Aceitas as categorias universal
e particular, Breton é muito mais universal, Bonnefoy, mais particular!
O Surrealismo, pela
quantidade de artistas que passaram por ele, Bonnefoy inclusive, teve um peso
enorme na França. Acabou virando mainstream,
veio central. Por isso, franceses têm mania de marcar posição, para se diferenciar, mostrando que estão
trilhando um caminho diferente,
próprio. Aqui no Brasil, onde o Surrealismo não exerceu essa influência, muita
gente copia o mesmo questionamento, de modo inteiramente fora de contexto.
FM
| Conversemos um pouco sobre ilegibilidade, sobre o indecifrável, ou seja,
sobre a escrita cifrada, tomando aqui um exemplo sugerido por Blaise Cendrars:
as profecias de Nostradamus. Segundo ele, Nostradamus encontra-se entre os
grandes poetas franceses, e acrescenta: “todas as suas transformações
improvisadas a partir de uma linguagem convencional superam, de longe, as maluquices
do Dadaísmo, a escrita automática dos surrealistas e a decalcomania dos Calligrammes de Apollinaire”. Sendo a
escrita, como situa o próprio Cendrars, um “panorama do espírito”, uma
representação do ser, não se deve ali buscar sua interpretação? Até que ponto o
entendimento, a compreensão, deve determinar a apreciação (o gosto) de uma obra
de arte, sobretudo no caso da poesia?
CW | Não,
não e não! Cendrars nunca poderia ter feito essa comparação, nesses termos! Uma
coisa é alguém, Nostradamus no caso, se por a produzir associações em um
período anterior às revoluções científicas e ao cartesianismo, no qual o
pensamento analógico era regularmente praticado, não havia dúvida sobre
correspondências entre macro e microcosmos, astrologia e práticas divinatórias
eram aceitos como meios de conhecimento, e a alquimia era herética, mas não
anticientífica. Outra, produzir textos não discursivos, regidos pelo pensamento
analógico, em uma era na qual predominam e são oficiais o cientificismo e a
razão cartesiana. Não dá para descontextualizar desse jeito, desconsiderando a
diferença da “episteme”. Hoje, é subversivo restaurar o pensamento mágico
através da criação artística. Naquele tempo, os Nostradamus, Paracelso, Agripa
von Nettesheim, Van Helmont, Boehme, eram personalidades públicas. Podiam cair
em desgraça, processados como hereges, mas se apresentavam em cortes feudais e
imperiais, e disputavam cargos nas universidades. Quem fizer o mesmo hoje, a
não ser que se dilua bastante e faça toda sorte de compromissos (aí vira best seller de esoterismo e auto-ajuda,
ou líder de seita), pode ir parar em um hospício.
FM
| Esta conversa nos leva a um outro aspecto, que é o da precisão. De um lado
Breton menosprezava Valéry em sua busca determinada “dos alexandrinos mais ou
menos racinianos de A jovem Parca”. Por sua vez, declarou René Magritte que a
precisão é uma qualidade que “falta com frequência em escritos que são apaixonantes,
e que o seriam ainda mais se fossem mais precisos”. Mesmo uma série de
fragmentos aparentemente desordenados e inconclusos, como em Novalis ou
Schlegel, pode radicar em um cálculo obstinado da parte do poeta. Através da
precisão, portanto, o poema melhor define seu conteúdo ontológico, mesmo que
saibamos que o pensamento oculto em seus versos não cessará nunca de
revelar-se. Em muitos casos confundida com uma emoção asfixiada, a precisão tem
sido francamente relegada por inúmeros poetas contemporâneos, inundando páginas
e páginas de um borrão impenetrável, falsamente identificados com a transcendentalidade
da linguagem poética. Até que ponto uma dissidência inicial entre Valéry e o
Surrealismo teria influenciado nessa leitura simplista e equivocada da precisão
na criação artística? Por sinal, neste aparente antagonismo – o Surrealismo e
Valéry – não haveria mais de confluência do que seu decantado revés?
CW | Valéry
e restauração conservadora na revolução pós-simbolista. Diante do frenesi desencadeado
por Jarry, Apollinaire e, logo em seguida, Dada e Surrealismo, quis a volta à
criação contida, regrada, pensada. Sob esse aspecto, ele e Surrealismo são
antagônicos. Agora, conforme havia observado acima, mesmo na escrita delirante,
fragmentária, espontânea, do “outro”, cada palavra é exata. Hölderlin, em pleno
surto de esquizofrenia, sem saber quem era, assinando-se Scardanelli, achando
que estava na Grécia antiga, é perfeito, preciso no todo e nos detalhes.
FM
| Observa Paul Éluard que “o gosto pelo infortúnio faz de Baudelaire um poeta fundamentalmente
moderno, da mesma categoria que Lautréamont ou Rimbaud“, enquanto salienta Valéry que Rimbaud não teria sido o que foi sem a
leitura de As flores do mal “na idade
decisiva”. Estas recordações me vêm a propósito da leitura de Baudelaire o la vocación del poeta
(1963), de André Coyné, e aqui também acrescento a opinião de Ivan Junqueira,
em torno do aspecto indiscutível que configura Baudelaire como o pai da
modernidade, pontuando que ao proclamar em definitivo a “perda da aura do poeta”,
teria criado assim o poeta francês “um impasse para as possibilidades de toda a
poesia lírica contemporânea”. Já ao final do século XX, sob o rótulo evasivo do
que se condicionou chamar pós-modernidade, encontramo-nos ainda diante dos
mesmos problemas envolvendo o eu lírico – recorda Junqueira que a poesia de
Baudelaire caracteriza-se como “a diluição do indivíduo na multidão” –, a
figura do herói – segundo Walter Benjamin, “o verdadeiro objeto da modernidade”
– e a vocação do poeta – o sentido primeiro de uma “transfiguração intermitente”
que teu ensaio sugere identificar-se com a ascese. O que se pode vislumbrar
hoje, portanto, diante do cenário que se mostra à nossa frente, no tocante a
essas três forças essenciais para a poesia em todos os tempos?
CW | Sem
dúvida. Quem “estabeleceu”, para usar o galicismo, Mallarmé, Rimbaud e Lautréamont como pilares da
modernidade foi Jarry, naquela bibliografia do Dr. Faustroll e em outros lugares. Os três devem enormemente a Baudelaire. Se voltar a escrever sobre Lautréamont, será para mostrar a quantidade
de apropriações e citações de Baudelaire em sua obra, muitas ainda não
observadas pela crítica, até onde sei.
Devo citar-me? Sim!
Transcrevo o final do meu ensaio sobre Lautréamont, parecido com trechos do que
escrevi sobre Ginsberg e com tantos outros, valorizando a rebelião romântica: “A
dimensão universal da singularidade é especialmente bem examinada por Bataille
em seu ensaio sobre Baudelaire (em A Literatura e o Mal), outro personagem que foi pura exceção.
Argumenta, rebatendo sua condenação por
Sartre, que a destrutiva busca da impossível
unidade, movida pelo desejo insensato
de unir objetivamente o ser e a existência, invadindo o reino do impossível, da insaciabilidade,
através da fusão do sujeito e do
objeto, do homem e do mundo, não é apenas algo representado por Baudelaire,
mas sim, o desejo de todo poeta. A poesia
é o modo de escapar à condição de mero
reflexo das coisas; por isso, quer o
impossível. Semelhante busca da impossível síntese de contradições
profundas e insolúveis – do imutável e do
perecível, do ser e da existência, do
objeto e do sujeito – também é
exemplarmente representada por Lautréamont. […] Atravessou o século XX uma
enorme e importante discussão, que não se restringiu à atribuição do valor
literário, sobre o sentido e alcance do eixo formado por Baudelaire, por
Lautréamont e Rimbaud, e pelos surrealistas. Recebeu condenações e ataques, pela
impossibilidade, infantilidade e caráter regressivo, pelo niilismo, por seu
irracionalismo, de autores tão diversos e até divergentes como Sartre, Camus e
Lukács. E foi valorizado como crítica e subversão, entre outros, por Walter Benjamin,
Bataille e Octavio Paz. Assim, os dois polos, revolução social e rebelião individual, o transformar a sociedade e o mudar a vida, ora foram vistos como
antagônicos, ora como complementares. Um deles, o da revolução, empalidece ou desaparece de vista no horizonte. Não é
por isso que se deve descartar o outro, deixando à vista apenas uma paisagem de
marasmo conformista. Dizer que é superestrutural e que só existe no plano
simbólico não o diminui, pois a superestrutura é produtiva e constitutiva do
real: esse, para estar presente, tem que ter sentido e existir simbolicamente.”
FM
| Há pouco conversávamos sobre uma declaração de Breton, de 1928: “Acuso os
pederastas de proporem à tolerância humana uma carência mental e moral que busca
erigir-se em sistema, paralisando todas as empresas que respeito”. Na ocasião
me dizias que havia nele esse lado moralista, que o levava a dizer algumas
coisas desnecessárias. Lembro que Artaud comentou que o Surrealismo “teve uma
obsessão de nobreza, uma ideia fixa de pureza”. Mencionou ainda uma constância
na expressão surrealista: a exasperação. Nos anos 1960 estiveste vinculado
diretamente ao Surrealismo. Como se dava a convivência de vocês com essa “ideia
fixa de pureza”? Indago isto pensando também em teu convívio com a Beat generation, onde a exasperação não
conduzia a moralismos dessa mesma ordem.
CW | Lembro-me
de uma discussão entre Piva e Sérgio Lima, em 1964, que durou uma viagem de São
Paulo a Nova Friburgo, onde fomos participar de manifestações artísticas
promovidas por um grupo de tendência anarquista de Cataguazes, e acabamos
todos, ao terceiro dia, na delegacia local (ainda não havia happening, intervenção, performance…). Discussão, justamente, a
propósito de restrições a homossexualismo e idealização da mulher por Breton,
inaceitáveis, notoriamente, para Piva.
Agora, idiossincrasias de
Breton à parte, há uma questão que merece exame, a do signo ascendente, tão
importante para ele que se tornou título de um de seus livros de poesia, Signe Ascendant. É tema de um ensaio,
publicado na coletânea La Clé des Champs.
Octavio Paz a comenta e utiliza, de modo
inteligente, em Conjunções e Disjunções,
como fundamento de sua dialética entre a cara e o cu. Resumindo, através do exemplo
de Bashô, utilizado por Breton e por Paz: uma pimenta ganhar asas e
transformar-se em libélula é signo ascendente, algo que sobe; a libélula perder
as asas e virar pimenta é signo descendente. Não só nesse ensaio, mas no
Surrealismo todo, há, então, uma defesa do signo ascendente, da sublimação, e
uma desconfiança com relação à dessublimação, que pode ser limitadora,
excludente. As polêmicas de Breton com Bataille e com Artaud, autores bem
escatológicos, não são circunstanciais, a meu ver, porém ligadas a questões de
fundo, por mais que os três, Breton, Bataille e Artaud, façam parte da mesma
configuração cultural, da mesma revolução neorromântica. Daí, também, em
Breton, Péret, Éluard, a idealização da mulher, o elogio do amor sublime,
único, e a ambiguidade quanto à libertinagem, deboche e perversão, vistos com
simpatia ou entusiasmo, mas quando sob forma de humor negro, de algo que nega a
si mesmo. Tanto é, que em seu livro de entrevistas, Entrétiens, Breton faz o elogio de Sade, mas de modo esquisito:
dialeticamente, é um “sol negro”: o desregramento seria o pano de fundo
destacando mais ainda a claridade do amor sublime (será que estou citando
corretamente? – o sentido é esse, tenho certeza).
Uma perspectiva dessas
acaba deixando à margem, redunda em sua importância, a linhagem herética,
subterrânea, neopagã, subversiva dentro da cultura ocidental, cujo início está
nos gnósticos licenciosos dos primeiros séculos da nossa era, e cujas
expressões são, entre outros, Sade e, de modo consciente, Bataille (que se via
como continuador do gnosticismo licencioso). Penso que na geração Beat a
relação entre amor sublime, de um lado, e deboche, sacanagem, farra,
libertinagem, de outro, está melhor resolvida. Trato disso em meu prefácio para
essa nova edição de Ginsberg. Também não há essa ordenação de signos. Talvez
advenha daí a discussão Beat vs. Surrealismo, da qual presenciei um dos
momentos, conforme relatei acima (devia ter perguntado a Ginsberg, já que me
correspondi com ele, por que, em suas estadas em Paris, foi conversar com Tzara
e Michaux, e, aparentemente, não teve interesse em conhecer Breton e o grupo
surrealista – pena, ter deixado passar a oportunidade de esclarecer isso).
FM
| Dizes que até mesmo algumas vozes do academicismo destacam a contribuição
poética de Allen Ginsberg, situando-o não como inovador, mas como “continuador
de uma tradição”. Entre eles mencionas o Harold Bloom. Nas 550 páginas que
compõem seu O Cânone Ocidental,
encontramos apenas duas referências ao poeta estadunidense (“Ginsberg e outros
rebeldes profissionais”, e “Allen Ginsberg deriva mais de Henry Miller que de
Whitman”), ao passo em que não é incluído naquela lista final de principais
autores, dentro do que Bloom catalogou como “era do caos”. Octavio Paz, sim, o insere em uma tradição, porém o faz em um texto impreciso, onde
nos dá a entender que a poesia dos anos 1960 na América Hispânica é uma
diluição das duas gerações anteriores, ao mesmo tempo em que uma repetição de
Charles Olson ou Allen Ginsberg, isto sem dar nome a esses poetas supostamente
diluidores. Então gostaria de maior precisão nessa correlação entre vanguarda e
tradição no que diz respeito à poética de Ginsberg.
CW | Li um
artigo de Harold Bloom, publicado em 1998 na Folha de São Paulo, sobre Ginsberg. Reconhecia qualidades em Uivo e Kaddish. Observava que uma das fontes de Uivo é o poeta barroco inglês Christopher Smart. Grande descoberta,
já que o próprio Ginsberg disse isso e publicou Jubilate Agno de Smart como uma de suas fontes, na edição comentada
de Uivo. Uma das restrições que Bloom
fez a Ginsberg foi ser influenciado por Pound – alguém afirmar uma coisa dessas
obriga a dar o assunto por encerrado, deixar para lá, diante da cega
insistência do academicismo norte-americano em não reconhecê-lo. Acho
brilhantes as análises que Ginsberg faz da prosódia em Pound. Enfim, nesse
artigo Bloom estava chutando, ditando regras de modo superficial.
FM
| A uma distância de praticamente um século e meio da publicação original de Cantos de Maldoror, Lautréamont sempre
cumpriu na cultura brasileira a fatia obscura do mito, ou seja, a larga referência
aliada ao parco conhecimento. Dezessete anos após a primeira edição de tua
tradução deste livro (Vertente. São Paulo. 1970), nos chega agora a edição da Obra Completa, precedida de lúcido e
extenso estudo introdutório. Quem foi mesmo o uruguaio Isidore Ducasse?
CW | Fiz
50 páginas de prefácio a Lautréamont –
Obra Completa, tentando avançar nessa questão, quem foi Isidore Ducasse. Voltarei ao assunto, escreverei mais
sobre Ducasse-Lautréamont. A bem da síntese, transcrevo um trecho de um dos
últimos artigos de Marcos Faerman, publicado no jornal O Escritor, sobre Lautréamont
– Obra Completa: “Como Arthur Rimbaud, Artaud ou Breton, o Conde é um dos signos da aventura literária – um
inventor, na insuperada classificação de Ezra Pound. Mais do que outros
personagens criadores da literatura contemporânea, Lautréamont (ou Ducasse? ou
Maldoror?) dilui em termos absolutos a sua existência no plano da literatura.
Seu livro é um jogo de amarelinha de construções e estruturas literárias. Um
brinquedo nas mãos de um rapazinho que cultiva – no universo simbólico – tudo o
que lhe parece mais inadequado aos bons costumes, à ordem, à moral…”
FM
| Entre os célebres prefaciadores de Lautréamont encontram-se Remy de Gourmont,
Léon Bloy, André Breton, Roger Caillois, Maurice Blanchot e Gaston Bachelard.
Do susto provocado em Bloy, considerado por Mario Cesariny “o primeiro lobo mau
da bibliografia ducassiana” à descoberta de um “dinamitador arcangélico” consignada
por Julien Gracq, nos deparamos quase sempre com uma leitura algo prejudicada
pelo excesso de assombro diante do autor estudado. O que este teu alentado
prefácio pode acrescentar ao entendimento da obra de Lautréamont?
CW | Reexamino
essa bibliografia básica. Analiso em detalhe a sua coerência na negação, algo
como sua coerência na incoerência radical. Examino-o como homem do seu tempo.
Insinuo que pode ter-se suicidado, ao examinar Poesias II como suicídio simbólico, entre outras hipóteses sobre a
pessoa Isidore Ducasse. Agora, a bibliografia sobre Lautréamont é gigantesca.
São sites na internet, Cahiers
Lautréamont, megaensaios, hipermonografias. Até que ponto acrescentei algo,
é difícil dizer.
FM
| Nos anos 1970 se publicou em Buenos Aires uma edição das Obras Completas de Lautréamont, com estudo preliminar, tradução e
notas de Aldo Pellegrini, o poeta responsável pela formação do primeiro grupo surrealista no
continente americano e também tradutor de Antonin Artaud. Sendo Lautréamont um
francófono, a exemplo do também uruguaio Jules Laforgue, qual a primeira edição
americana de sua obra e que impacto provocou?
CW | A
primeira tradução completa em espanhol dos Cantos
de Maldoror, que circulou na América Hispânica, é de 1925, de Julio Gómez
de la Serna, irmão do vanguardista Ramón Gómez de la Serna, que escreveu aquele
prefácio em que transforma Ducasse em personagem imaginário. Antes, desde Rubén
Darío, ainda no século XIX, Lautréamont circulava no universo de língua
espanhola, mas no original. Sua influência na geração espanhola de 27, e, por
decorrência, nas vanguardas ibero-americanas, foi colossal. Nossos modernistas
o citavam, mas o haviam lido em francês. Em português, a primeira tradução completa
deve ser a minha, de 1970. A tradução do argentino Aldo Pellegrini, dos Cantos de Maldoror e de Poesias, é importante; mas me parece
normalizar um pouco o texto, ao endireitar algumas ordens inversas, torná-lo
menos arcaico, grandiloquente, mais coloquial. Fui na direção oposta, e
procurei acompanhar Lautréamont no exagero retórico.
FM
| Disse Aimé Cesaire que Lautréamont foi o primeiro poeta “a compreender que a
poesia começa com o excesso”. É curioso observar que, em O Cânone Ocidental, Harold Bloom não menciona uma só vez
Lautréamont, deixando patente sua nenhuma relevância do ponto de vista
canônico. Independente do fato de haver ali outras ausências questionáveis,
diria que a importância de Lautréamont se resumiria ao que o próprio Bloom
chama de “ansiedade da influência”?
CW | Bloom
me parece corresponder ao neorretrô na crítica. Essa história de cânone é uma
tentativa de reintroduzir o bom comportamento na literatura, querer que nos
prosternemos diante dos modelos. Angústia da influência é bobagem, decalque do Totem e Tabu de Freud feito para
equiparar vanguardas e movimentos de ruptura à horda selvagem freudiana,
invenção e instauração do novo reduzidos a parricídio simbólico, vanguardistas
como neuróticos, Édipos mal-resolvidos.
FM
| Outro crítico, a espanhola Fátima Gutiérrez, observa que o tema da “santidade
do crime”, tocado logo no primeiro dos Cantos
de Maldoror, na verdade define a obra como um todo, onde a perversão é
abordada em um espectro amplo. Em ensaio justamente sobre a perversão, nos
lembra Marcel Schwob que “o ponto de partida moral do homem é o egoísmo”. Em
que sentido exato radica a transgressão da obra de Lautréamont?
CW | Nesse
sentido, mesmo. Em meu prefácio, insisto em que se trata de obra perversa, mais
que paródica. A proclamação da “santidade do crime” é uma metáfora da
transgressão em todos os níveis, do todo aos detalhes. Marcel Schwob, escritor
de formação ocultista e gnóstica, foi amigo e interlocutor de Jarry, por sua
vez o primeiro lautréamontiano consciente, que não só entendeu Lautréamont, mas
percebeu como era possível escrever daquele jeito.
FM
| No plano ainda de uma rebelião poética, Bachelard observou muito bem o
aspecto blasfematório da poesia de Lautréamont. Para situar melhor o leitor,
poderias falar um pouco da relação deste poeta com seus pares, tanto europeus
(Mallarmé, Rimbaud) como hispano-americanos (Rubén Darío, Ramón López Velarde, Julio Herrera
y Reissig)?
CW | Rimbaud e Lautréamont nunca se
conheceram. Mallarmé deve ter lido Maldoror já na década de 90, através dos
simbolistas belgas que o redescobriram. Mas os três fazem parte da mesma configuração
revolucionária, de superação dialética do Romantismo, do Esteticismo e do próprio
Simbolismo, negados e ao mesmo tempo radicalizados.
Desde aquela época,
Lautréamont impressionou a autores de língua espanhola, a começar por Rubén Darío. Observo que não dá para falar dessas
literaturas ibero-americanas em si, isoladamente, sem lembrar seu extremo
cosmopolitismo, o trânsito e as estadas de todos esses autores, até os mais
regionalistas, pela Europa, especialmente Espanha e França. Fechar-se em sua província
é coisa de brasileiro. Lautréamont nunca precisou chegar aos países
hispano-americanos, pois, antes disso, seus autores já haviam chegado a ele.
FM
| Tristan Tzara refere-se a Lautréamont como autor cuja poesia “parece haver
superado a fase de atividade do espírito para chegar a ser verdadeiramente uma
ditadura do espírito”. Na segunda metade do século XX, com a entrada em cena da
massificação cultural, o sentido da grande recusa em que implicava o
Surrealismo, cedeu lugar a uma burocratização do bund, registrando-se um declínio daquilo que o Mario Cesariny chama
de “espírito de seita”. Se é verdade, como afirmou Aldo Pellegrini, que a poesia “tem uma porta hermeticamente fechada para os imbecis”, o
que se passa hoje com a poesia em um mundo definitivamente tomado por frivolidades?
CW | Na
metade do século XIX, Baudelaire havia percebido e mostrado
claramente que existia massificação. Termos como “indústria cultural” são mais
recentes, mas então já havia lojas enormes cheias de gente, jornais que todo
mundo lia, livros que se vendiam em larga escala, espetáculos que atraíam
multidões. Mesmo com a substituição do megafone pela amplificação eletrônica,
do telégrafo pela net, o confronto
entre poesia e mediocridade continua fundamentalmente o mesmo.
FM
| Situações temáticas como a fascinação pelo fracasso, o elogio da prostituição
e da homossexualidade, a mulher fatal e a renúncia do amor, definem, mais do
que um decadente gosto pelo escândalo, como alguns críticos apontam, uma
discórdia fulminante diante dos padrões morais de seu tempo. Abolida toda espécie
de refutação da moral estabelecida, que valores assumem a transgressão e o
escândalo, em nossa sociedade finissecular?
CW | Em
palestras, leituras e encenações teatrais de Lautréamont, reparei na
consternação de alguns dos circunstantes, diante de algumas coisas que são até
corriqueiras, noticiário de jornais, e outras flagrantemente impossíveis, como
a história da fêmea do tubarão. Trechos de Maldoror
ainda podem espantar e até chocar. Ainda bem. O que impressiona, obviamente,
não é o objeto da narrativa, mas a exacerbação simbólica, o delírio.
Felizmente, resta muito escândalo a ser provocado, muito a ser transgredido.
Quem disse que a moral estabelecida
e sua refutação foram abolidas? Em 1988, Uivo
de Ginsberg podia ser lido no rádio, nos Estados Unidos, só da meia noite
às 6 da manhã. Na mesma época, aqui, a Rádio Cultura recebeu uma advertência do
Dentel, Ministério das Comunicações, por causa de umas poucas coisas a mais que
Piva falou em um programa de entrevistas de Maria Rita Kehl. A exposição de
Maplethorpe, em 95, acusada de pornográfica, provocou corte de verbas do
National Endowment for Arts. Na mesma época, tivemos um episódio semelhante com
uma exposição de Nelson Leiner na Funarte do Rio, objeto de um processo por
suposta pedofilia – como se figuras em quadros pudessem fazer sexo! E o
episódio, em 97, da proibição de grupos musicais que estariam incentivando o
consumo da maconha? Ainda pretendo voltar a essas confusões entre símbolos e
acontecimentos reais, à esquizofrenia da censura e da repressão. Não nos
iludamos: eles estão aí, à espreita, aguardando o momento de intervir para
retomar o controle da situação…
FM
| Há uma prática corrente na publicação de antologias da poesia brasileira que
é o deslocamento do eixo central, que deveria ser a própria poesia, para
atender a tendências de toda ordem, gerando uma leitura desfocada, algo
criminosa, de nossa produção literária. Casos assim verificamos nas publicações
mais recentes: Pedro Lyra inventando uma Geração de 60 com enfoque puramente
acadêmico, de catalogação geracional; Nelson Ascher e Régis Bonvicino reduzindo
a poesia brasileira a um desdobramento do Concretismo; e mais recentemente a
segunda dose de equívoco da Heloísa Buarque de Hollanda. Além disto, há aquela
leviandade típica de aventureiros como Assis Brasil, mapeando o Brasil pelo
ângulo da quantidade em oposição à qualidade, em uma leitura completamente despida
de valoração crítica. A publicação de todos esses livros ao menos prova uma
coisa: que há mercado para tanto. Então por que não se realizar um trabalho
sério de reflexão sobre nossa produção literária?
CW | Escrevi
um artigo extenso sobre antologias, na revista Cult de abril de 99. Há dificuldade, neste momento, em especificar
tendências e movimentos. O valor poético parece estar sendo substituído por
outra coisa, que não se sabe bem o que é. Quanto às antologias, gosto daquela
de Massi, acho-a original. Lyra fez algo ambicioso, um trabalho de fôlego, objeto
das críticas que se sabe, por esticar a década de 60, traçar limites vagos,
dissociar “geração” de movimento literário. Mas sua antologia contém
informação, apresenta bem seus poetas, coisa que poucos fazem. Quanto à de
Ascher e Bonvicino, até que é bem menos eufórica e excedente do que aquelas do
Concretismo propriamente dito, décadas atrás. Heloísa é uma professora de
literatura que raciocina como socióloga; dá a impressão, a julgar por sua
última antologia, de haver entrado em um grave surto de pós-modernidade.
O panorama da poesia
brasileira é complexo, muita gente escrevendo de modos diversos. Temos
superexposição de alguns autores, obliteração de outros. Há pouco, toda vez que
ligava o televisor, aparecia na tela o Waly Salomão. Nada contra, mas outros
poetas da mesma “geração”, com características afins, poderiam receber a mesma
atenção. Agora, por ordem nisso? – Santo Deus, não vejo como… Iniciativas
setoriais, resgate da Dora Ferreira da Silva pelo próximo Azougue, do Sebastião Nunes pela Medusa, mais o que você anda fazendo, talvez apontem caminhos.
FM
| Falas do absurdo que é a “pouca atenção da crítica e a pouca quantidade de
estudos sobre poetas como Piva, Affonso Henriques, Rodrigo de Haro, entre
outros”. A teu ver, quem faz crítica literária consistente neste país, e em
razão de que acreditas que um poeta como Roberto Piva jamais tenha sido
comentado com seriedade por essa crítica? Como aplicar esse raciocínio a poetas
como José Santiago Naud e Sérgio Lima, e até mesmo outros de gerações
anteriores, a exemplo de Dora Ferreira da Silva e José Alcides Pinto, para
ficarmos apenas entre os vivos?
CW | Ainda
não conheço a poesia do Naud. Você me mandaria livros dele? Ou pediria para
ele, ou o editor dele me mandarem? Mas tem mais. Você conhece a poesia do Pedro
Garcia? Catarinense do Rio de Janeiro, conheci-o através do Rodrigo de Haro
(outro da lista dos que etc.), e me parece extremamente consistente, com vários
livros publicados. Talvez por não estar aí para badalação literária, ninguém
fala nele. Já fiz, em outros lugares, listas de poetas que tinham que ser mais
divulgados, comentados e discutidos. Age de Carvalho, por exemplo, quando saiu
o livro dele, escrevi que estava começando onde João Cabral havia parado. Será
que residir em Viena (reside em Viena) influi na quantidade de boquiabertos
diante de sua obra? Se for isso, então, viva o provincianismo!
Crítica literária e
pesquisa acadêmica são regidas, hoje, pelas mesmas normas e cacoetes da
burocracia dos órgãos públicos: medo de arriscar, preguiça, tendência a rolar
com a barriga, a eximir-se de responsabilidades, preferir pratos feitos, releases mastigados, portfolios preparados por agentes e
corporações do setor, repetição ritualística das mesmas pautas. O registro
sistemático de novos poetas nunca foi dessas maravilhas; mas, por essa razão,
vem piorando.
FM
| Ao contrário do México, onde a subvenção estatal para a publicação de
revistas literárias é já uma tradição, aqui a figura do Estado-editor manifesta-se
apenas no tocante à sua própria revista, no caso, a Poesia Sempre. Também no México e na Colômbia, por exemplo,
verifica-se a sistematização de edições críticas e obras completas dos
principais valores literários de cada país, o que é distinto desse programas de
edições oriundo de convênio entre Biblioteca Nacional e Universidade Mogi das
Cruzes. Além disto, temos algumas iniciativas isoladas, as chamadas leis
estaduais de incentivo à cultura, que não cumprem com o real papel, não estabelecendo
ação conjunta entre produção e distribuição. Como acreditas que o Estado deva
se portar no tocante ao assunto?
CW | Aqui
você toca em um grave problema de política cultural. Talvez, o nó da
questão. Acho que, para cada exemplar de Poesia
Sempre, tinham que destinar uma verba no mínimo equivalente para
iniciativas como as revistas do Guido de Uberaba (Dimensão), da Jurema de Santo André (Cigarra), do Sérgio da Barra Funda (Azougue), do Ricardo & Rodrigo de Curitiba (Medusa), e tantas outras. E por aí,
através dos periódicos, que poesia e crítica respiram. No início do século, em
lados opostos do Canal da Mancha, Pound e Breton faziam com que a literatura se
movesse, através de revistas, veículo do melhor da criação e da crítica naquele
momento. Esse é um dos muitos exemplos de como o periodismo cultural pode ser
decisivo, definidor de movimentos e tendências. Pela dificuldade econômica,
hoje, desse tipo de iniciativa, devia ser prioridade da administração cultural
pública.
Temos alguns mecanismos de
subvenção para espetáculos, teatro e cinema, e entendo que poderia haver mais
ainda. Porém, considerando que palavra é mediação fundamental, constitutiva da
cultura, deveria haver mecanismos equivalentes, no mínimo, em favor da circulação
do livro, da literatura, de ideias. Fala-se (com razão) da importância da
educação – pois bem; favorecer a palavra escrita faria, rapidamente, subir o nível
educacional. Francamente, acho que a quantidade e qualidade do investimento
nesse campo (livro e literatura) podem ser definidoras do futuro deste país. A
inteligência não pode continuar entregue apenas ao miserabilíssimo oficial e à
burocracia das corporações privadas, sob risco de agravar mais ainda o quadro
que temos denunciado. Essa, para mim, é uma grande questão política, da qual a
sociedade deve ser sensibilizada.
[2000]
NOTA
Claudio
Willer (Brasil, 1940). Poeta, ensaísta e tradutor. Traduziu a obra completa de
Lautréamont e parcial de Allen Ginsberg e Antonin Artaud. Publicou livros como Jardins da provocação (1981), Volta (1996), Estranhas experiências (2004) e Geração
Beat (2009). Dividiu com Floriano Martins, no período 2000-2009, a editoria
da primeira fase da Agulha Revista de
Cultura. Entrevista originalmente publicada em Espéculo. Revista de Estudios Literarios. Universidad Complutense de Madrid, 2000.
[1] Este livro seria publicado em
2004, pela Lamparina Editora, no Rio de Janeiro.
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