quarta-feira, 13 de agosto de 2014

CLAUDIO WILLER | Sobre surrealismo



FM | São palavras tuas: “A criação literária é, sempre, uma releitura, e não se cria no vazio”. Apenas para situar este nosso início de conversa, gostaria de um inventário de tuas identificações, principalmente em termos de textos.

CW | Em um poema de fins de anos 1970, do Jardins da provocação, fiz um bloco que aqui transcrevo:

Os poetas que eu li / se quiserem saber / fernandopessoapierrereverdysaintjohnperserobertdesnosviniciusginsbergcorsoferlinghettibretonpaulÉluardmallarméartaudrilkerousselpongepoundcarlosdrummondoswaldmáriomichauxlautréamontnerudanovalisblakebenjaminpéretkleisthöelderlinnietzschesenghorcézaireoctaviopazpivamachadoalberticernudajarryeliotstephangeorgerimbaudcummingscabraltzaracrevelmuriloapollinairesoupaulttraklbennbaudelaire / porradas na mente com muita força / aguilhões no cérebro / o lixo da memória pega fogo / imagens poéticas libertam-se em quartos de hotel / é como a história de Raymond Roussel / que viajou pelo Índico sem sair do camarote do navio / e achou elegante furar um pneu na Pérsia

Tenho poemas que permanecerão engavetados, por serem epigonais com relação a Saint-John Perse. Idem, quanto a Jorge de Lima, ou o Lorca do Poeta em Nova York, que me “fez a cabeça”, mostrou possibilidades da escrita. Na época de Anotações para um apocalipse, meu primeiro livro (1964), escrevia estimulado, entre outras coisas, por um coquetel do Robert Desnos de Liberté ou l’amour (que ainda pretendo traduzir), Michaux e Bataille. Além de modernistas, surrealistas, beats, rebeldes & malditos, nos anos 1970 passei a ler mais T. S. Eliot, dar mais atenção à revolução literária do Wasteland e à extraordinária fluência do Quatro Quartetos. Acrescentaria ao bloco acima, atualizando-o, Herberto Helder (tem poemas que, francamente, gostaria do ter escrito), Cesariny, outros portugueses, vários contemporâneos meus, Bonnefoy, Malcolm de Chazal – e outros, poesia de qualidade, felizmente, não falta.
Literatura em prosa, também. Acho impossível algum brasileiro sensível não se haver abalado com a descoberta do Guimarães Rosa e de Clarice. Henry Miller tem ótima prosa poética. Paul Bowles. Cortázar. Malcolm Lowry. Borges. Lezama Lima. Sarduy. E tantos outros… Textos teóricos também inspiram poesia, Wilhelm Reich, Norman Brown (que fez um livro de filosofia em prosa poética, Love's Body), Bataille, Foucault, Walter Benjamin, Octavio Paz (principalmente). Ao longo desta entrevista retomarei alguns desses e outros autores. Em meu livro em prosa, Volta, em boa parte, repasso isso.

FM | Começas a publicar em meados dos anos 1960, em um grande ambiente cultural: Surrealismo, as reuniões na casa de Vicente Ferreira da Silva, a coleção “Novíssimos” do Massao Ohno, Teatro Oficina etc. Havia toda uma geração que se reunia, discutia e produzia. Contudo, mesmo que tenhas participado de um grupo surrealista, dizes que “não poderíamos e nunca conseguiríamos formar o tipo de movimento do Surrealismo”. Há naturalmente razões específicas para isto. Quais? Acaso estariam vinculadas a uma outra afirmação tua, a de que o Surrealismo é “um empreendimento impossível, é evidente, e fracassado, mas grandioso, e de uma extraordinária riqueza”? Dentro do possível, o que destacarias então na produção artística daquela época?

CW | Foi mesmo um grande ambiente cultural, onde circulava boa parte do que mencionei acima. Éramos atualizados. Íamos comprando a obra completa do Artaud na Livraria Francesa à medida que os volumes saíam na França. Recebemos Kaddish e Reality Sandwiches de Ginsberg em primeira mão, recém-lançados lá. Podíamos formar grupos de estudo, ler poemas uns para os outros, organizar eventos e programações, a par da mais desenfreada boêmia e provocações, e até mais do que boêmia e provocações. Tenho um artigo, e pretendo escrever outros, mostrando como tudo isso era atualização cultural de São Paulo, cenário desses episódios, na direção do cosmopolitismo, da superação do provincianismo. O que se passava aqui no início dos anos 1960 era sincrônico com a inquietação mundial encarnada na geração Beat, juventude “existencialista” francesa, angry young men britânicos, a busca de alternativas ao panorama sufocante da Guerra Fria, ao impasse entre estalinismo e macarthismo, acabando por desaguar na contracultura do final da década. Por maiores que fossem suas diferenças, os poetas paulistas da geração “novíssimos”, na qual teve participação decisiva o editor Massao Ohno, caracterizaram-se pela retomada do “eu”, da primeira pessoa, diferenciando-se dos formalismos e construtivismos, poesia concreta inclusive, e do nacional-­populismo.
A esse ambiente aportou, em 1963, Sérgio Lima, vindo de Paris e dois anos de participação efetiva no movimento surrealista francês. Como já éramos uma fração radical naquele contexto, procurou-nos para a formação de um grupo surrealista. Contatou primeiro a Roberto Piva, que havia acabado de lançar Paranoia. Reunimo-nos regularmente, toda semana, em 1963-64, em bares, no estilo do grupo francês. Praticamos jogos surrealistas, comentamos leituras, discutimos muito. Fizemos algumas manifestações, distribuímos um necrológio de autores de prestígio, mas não chegamos a realizar nenhuma publicação coletiva. As obras do período são Amore, de Sérgio, meu Anotações para um Apocalipse, e Piazzas, o segundo livro de Piva.
Aos poucos, a ideia de um grupo surrealista foi sendo abandonada, embora continuássemos nos vendo e frequentando. Sérgio Lima voltou a promover reuniões em 65, que resultaram na exposição surrealista de 1967 e na pub1icação coletiva A Phala. Mas já com outras pessoas, assim como encabeçou novas reuniões, na década de 90, da qual saiu o opúsculo de um movimento surrealista internacional, dessa vez com a tua participação, e um evento sobre o centenário de Breton, em 96.
O grupo de 1963/64 não teve continuidade por causa de sua heterogeneidade. O fato de sermos neo-românticos e antiburgueses, idiossincráticos (e vice-versa) com re1ação à ortodoxia do Partido, à poesia concreta e ao academicismo, não implicava a mesma identidade com o Surrealismo em todos. Por exemplo, De Franceschi nesta altura tem obra poética substanciosa, mas na qual não há mínimo rastro de identificação com Surrealismo. Rodrigo de Haro, que era do nosso grupo mas nem chegou a participar daquelas reuniões, é uma encarnação atualizada de um decadentista de fim de século, da inquietação anárquica que contribuiu para originar, entre outras coisas, o próprio Surrealismo (Huysmans, que especificou e valorizou o que seria decadentismo, foi um dos autores prediletos de Breton). Piva representa um encontro de Surrealismo, Beat, nosso modernismo, e muitas outras coisas.
Em 1968, em Paris, às vésperas da conflagração de maio, Paulo Paranaguá me levou a uma reunião do grupo surrealista, já sem Breton, morto em 66. Fomos depois à casa de Vincent Bounure, integrante ativo do grupo, com quem tive uma prolongada discussão por causa de geração Beat, cujo valor literário não admitia. Provavelmente, me entenderia melhor com a ponte entre contribuição surrealista e contracultura que intelectuais como Alain Jouffloy estavam promovendo.
Piva, eu, e outros, com períodos de expansão e contração, distanciamento e aproximação, fomos um movimento literário informal. Tanto é que nos prefaciamos, posfaciamos, entrevistamos, fizemos poemas coletivos. Talvez fôssemos e sejamos anárquicos demais para caber em um movimento estruturado, surrealista ou qualquer que seja. Por nossa diversidade, comportamento, contexto geracional, até por nossas caras, como vejo em fotografias da época, éramos parecidos com a Beat.
Teria, em 1963/64, uma abordagem menos geracional, menos paulista, mais diacrônica e nacional, produzido mais resultados? Rosário Fusco, pivô de questionamentos sobre Surrealismo no Brasil (em 1942, Antonio Cândido etc.), ainda estava aí, errando por Cataguazes. Campos de Carvalho, que, antes de morrer declarou sua afinidade com Surrealismo, e a quem considero um prosador magnifico, podíamos tê-lo procurado. Manoel de Barros, outro que – …e autores mais excêntricos ainda, como José Alcides Pinto; não sabíamos da existência deles, mas, também, nem procuramos saber.
Não me provoca qualquer constrangimento estar catalogado como integrante do trio surrealista brasileiro dos anos 1960, junto com Sérgio Lima e Piva. Nem de estar em boa companhia, minha identidade com o Surrealismo é evidente no que escrevo, em poemas, ensaios como meu prefácio para Lautréamont, e minha narrativa Volta. Surrealismo ser um empreendimento impossível, em sua tentativa de unir símbolo e realidade, arte e vida, política e estética, só o torna mais instigante e atraente. Nunca hesitei, na opção entre pragmatismo e utopia. Sobre a ideia de busca impossível, lembro o ensaio de Bataille sobre Baudelaire, em A Literatura e o Mal, onde ele mostra que Baudelaire é grande por buscar o impossível, e que a “impossível unicidade” está ligada à própria essência da poesia. Restrições da intelligentzia brasileira ao Surrealismo, sua pouca circulação, sua influência menor que em outros países, só me fazem recrudescer nessa identificação.
Por carta, já me referi a alguns prefixos do Surrealismo, “paraSurrealismo” e “tardoSurrealismo”, que acabam rotulando e desqualificando autores. ParaSurrealismo, utilizado por Stefan Baciu (curioso, andou por São Paulo na época, frequentava Dora e Vicente Ferreira da Silva, que nós também etc., e nunca falou conosco, nem deu sinais de interesse por Surrealismo), se aplicaria a movimentos e manifestações dos anos 1930, como aqueles ao redor de Georges Daumal, ou Pierre Mabille e Michel Leiris, autores importantes que apresentaram divergências, e também notórias afinidades. Mas não a um panorama em movimento, rico, diversificado, de gradações, zonas cinzentas, em processo de transformação, como os anos 1960. É um modo de omissão, de não examinar com clareza as relações entre Surrealismo, Beat, a emergente contracultura, desconhecendo a especificidade e individualidade de movimentos e autores.
Quanto a tardoSurrealismo, em primeiro lugar lamento que a morte de José Paulo Paes (que utilizou o termo na resenha do seu Escritura Conquistada e outros lugares, além de questionar a pertinência do Surrealismo no Brasil já na década anterior, no ensaio publicado em Gregos e Baianos) impossibilitasse uma discussão que teria sido produtiva e estimulante, pelo nível do interlocutor. Em meu prefácio para os Manifestos do Surrealismo, refiro-me às proclamações de morte do Surrealismo, feitas desde os anos 1930. Cito as ironias de Breton em Entrètiens, seu livro de entrevistas. No plano da história, dez, vinte anos, um quarto de século, são quase nada, ou pouca coisa. Ao promovermos reuniões surrealistas em 1963, e até antes disso, ao escrever textos com afinidade ou identidade com Surrealismo (é importante frisar: reuniões, grupo, são algo complementar, o que importa é a produção, a poesia de cada um) estávamos sintonizados com manifestações contemporâneas. São do mesmo período, em termos históricos, o movimento português (Cesariny etc.) por volta de 1950, a participação de Octavio Paz no Surrealismo (também na mesma época), vários movimentos hispano-americanos, principalmente o Techo de la ballena venezuelano (1963), e o grupo americano com Franklin Rosemont e o surrealista-beat Philip Lamantia (idem, 1963). Participamos de um processo de renovação e ampliação de fronteiras do Surrealismo. Éramos atualizados, e não tardígrafos.

FM | Anoto observações tuas: “Minha poesia valoriza as imagens. Imagens visuais. Mas a prosódia, ritmo, musicalidade, têm que estar presentes.” E há esta ênfase na leitura em voz alta, onde inclusive dizes ter ficado “mais sensível à prosódia ao traduzir Ginsberg”. É interessante lembrar aqui o que disse Enrique Molina sobre o fato da poesia exigir um recolhimento para seu entendimento. Defendia que a poesia somente era transmitida em silêncio, embora costumasse ler poemas em público. Como abordarias uma dimensão filosófica em tua poesia? consideras que haja mesmo algum comprometimento dessa dimensão em sua transmissão em voz alta?

CW | Há paralelos e analogias possíveis entre poesia, ou literatura de qualidade poética, e música. Imaginemos uma audição da 10a Sinfonia de Maller no Teatro Municipal lotado. Aquela do adágio, que se tornou fundo musical de Morte em Veneza de Visconti. As 1.500 pessoas no Municipal, ou 3.000 se fosse no Royal Festival Hall, mais o regente, a orquestra, todos estariam em recolhimento, completa concentração. Exteriorização sonora e audição pública não comprometem dimensão filosófica de obra nenhuma.
Mudando de repertório, um dos discos-fetiche de 1980 foi In a silent way de Miles Davis. Menciono-o em um poema. Observe a inteligência do titulo: música para ser ouvida, para execução pública, ao mesmo tempo, in a silent way. A criação literária tem várias dimensões. Algumas, presentes na página, no texto impresso, outras na exteriorização oral. A literatura, ou isso que hoje entendemos por literatura, primeiro foi oral, depois escrita. Som é sentido, embora o sentido não se esgote no som.

FM | O livro Estranhas experiências (ainda inédito)[1] inclui uma seleção do que já foi publicado e mais textos novos. O que acentua ou renova em tua poética? Outro aspecto: segue sendo uma mescla de versos, prosa poética e textos críticos (depoimentos, manifestos). Em uma entrevista à filósofa espanhola María Zambrano, ela refere-se a essa fusão de prosa e verso em livros como Vita nuova (Dante) e os Cánticos (San Juan de la Cruz) como um “exemplo de unidade de pensamento”.

CW | Gostei dessa ideia, de “unidade do pensamento”, evidente em escritores-­ensaístas, sem dúvida em Breton, em Octavio Paz, e também em Ginsberg, que publicou grande quantidade de ensaios, depoimentos e transcrições de palestras. Nos clássicos, que expressavam um sistema mais fechado, a unidade é evidente. Torna-se problemática no Romantismo; daí talvez a enorme produção de Goethe em todos os campos, da investigação cientifica à poesia. E mais problemática ainda na modernidade, de Baudelaire, o poeta-critico, para cá. Daí, no ciclo iniciado pelas vanguardas, tanta poesia acompanhada por uma poética, manifestos, filosofia, política etc.
Como faço poesia, ensaio, e publiquei uma narrativa, impressionam-me obras nas quais há um trânsito entre as três modalidades: Breton de Nadja e L’Amour Fou; Octavio Paz, que fez um livro no qual funde e integra gêneros, El Mono Gramatical.
Comecei escrevendo poemas em prosa, na fronteira do automatismo psíquico. Na década de 70, introduzi temas: poema sobre Dashiell Hammett, sobre García Lorca, sobre a noite anterior etc. Em Jardins da Provocação há um poema em prosa, sobre a luz filtrada pela persiana do quarto durante um encontro amoroso, cena que ficou na minha cabeça por um bom tempo, até eu escrevê-la do modo como queria. Mas esses textos mais temáticos, intencionais, coexistem com outros assemelhados à escrita automática, inclusive o extenso poema sobre a espécie humana escrito a seis mãos (com Piva e Juan Hernández), de modo direto, como nos jogos surrealistas. Em Estranhas Experiências, também há poemas mais ou menos explicitamente temáticos, mais ou menos elaborados, colagens de textos, compondo, espero, uma unidade. Continuo escrevendo espontaneamente. O poema sobre ruínas romanas, que você publicou na revista Blanco Móvil, foi anotado lá mesmo, na hora, diante do Senado Romano.

FM | Duas observações tuas em torno do poema em prosa: o fato de que, como gênero autônomo, só surge a partir de Rimbaud, e o entendimento de que se trata de algo verdadeiramente subversivo “por, sendo uma coisa, ser outra”. O que faz com que não seja abertamente discutido como gênero entre nós?

CW | Poesia em prosa é exceção, gênero minoritário na literatura brasileira. E no mundo todo, exceto na poesia francesa do século XX, onde adquire maior peso com Char, Michaux, Ponge, Breton, Artaud. Herança de Baudelaire e Rimbaud, consolidada pelo modo como o Surrealismo rompeu a fronteira entre gêneros e modalidades. Em nossa literatura, basta comparar a quantidade do que se produz e publica de poesia em versos e em prosa, para eliminar dúvidas.
Para mim, poesia em prosa é não-discursiva, não pode ser prosaica. Por dispensar versificação, métrica e rima, a dimensão poética do poema em prosa é conferida pela imagem. Daí entender que foi iniciada, como gênero autônomo, por Rimbaud, com Uma temporada no inferno e, em especial, as Iluminuras ou Iluminações, exercício da liberdade traduzido em imagens poéticas. Essa opinião é controvertida (provocou controvérsia), mas Baudelaire, ao intitular de Pequenos poemas em prosa crônicas e narrativas curtas, escolheu esse título com uma intenção crítica. Depois de haver ampliado o campo do poético em As Flores do Mal, ao escrever sobre o horror, morte e decomposição, acrescentou, nos textos em prosa, o cotidiano em seus detalhes e misérias, em contraposição ao sublime, então associados à poesia. Quis, também nisso, dessacralizar, fazendo prosa e chamando-a de poesia (e até inventando uma genealogia, as narrativas curtas de Aloysius Bertrand). A mesma intenção pode ser atribuída a Lautréamont, ao chamar de Poesias a reflexões e adulterações de outros autores.

FM | Em uma de suas colunas semanais, Wilson Martins traçou uma síntese dos penúltimos momentos da literatura brasileira, conformada pelo “regionalismo pitoresco dos modernistas”, a “nostalgia retórica da Geração de 45” e a “esquizofrenia concretista que, para salvar a poesia, achou necessário destruí-la”. Drummond reportou-se várias vezes a uma vulgarização da linguagem, segundo ele uma decorrência da massificação dos meios de comunicação. Contudo, ainda são os poetas, recorrendo a Elias Canetti, os guardiães da metamorfose. A conclusão é simples?: não temos mais poesia no Brasil?

CW | Wilson Martins, ao fazer essas observações, fala da poesia brasileira atual como se estivéssemos em 1958. Ou fala de 1958 como se fosse hoje. Na presente altura, não dá mais para ver poesia concreta como “destruição da poesia” através da redução ao ícone, ao visual, a que for. Nem que seja para criticá-lo, situá-lo na devida perspectiva, é preciso reconhecer que o Concretismo, na teorização, divulgação e criação, abrange muito mais do que a fase eufórica de Noigandres, manifestos dos anos 1950, deslumbramento com o futuro traduzido em bites, texto substituído por figurinhas etc.
Está cheio de bons poetas no Brasil, hoje. Há, isso sim, crise das mediações, da crítica e ensino de literatura, que se burocratizaram. E uma dificuldade, por não ser mais possível a mesma delimitação de territórios, tendências fechadas: poesia concreta, Violão de Rua, geração de 45, marginais. A diversidade e complexidade do panorama atual criou um problema para a critica, incapaz de mapeá-lo, seja na descrição de tendências, seja no exame de valores individuais.

FM | Em entrevista que fiz ao Donizete Galvão, ele menciona certa obsessão pela vanguarda que tem pautado nossos poetas: “Todos se valem da máxima do Make it new, sem se lembrar que ele se referia ao novo reinventado a partir da tradição. Todos repetem o mesmo mantra do ‘ostinato rigore’, como se todos os outros poetas fossem desleixados que deixam a escrita correr solta. Essa obrigação da inovação a qualquer custo, de se intitular poeta gráfico ou multimídia, é mesmo um beco sem saída.” Evidente que este é um recurso extremo de quem é tudo menos poeta. Contudo, é comum confundir-se no Brasil o recurso com o método.

CW | Não escrevo a frio, sou mais movido pela inspiração que pela reflexão, mas me acho rigoroso. Publiquei relativamente pouca poesia, por não confiar cegamente em tudo o que ultrapassa minha caixa craniana. Em termos menos pessoais, até na mais barroca das escritas, pautada pela estética do excesso, ou no mais frenético automatismo psíquico, se houver qualidade literária, então haverá rigor. Sempre, cada palavra obedece ao requisito da precisão e exatidão do famoso ensaio de Pound.
A edição comentada de Howl, Uivo, de Ginsberg, com as versões anteriores desse poema, é, sob esse aspecto, uma lição de poesia. Informalismo associado ao descuido, à facilidade, como insiste a crítica acadêmica e conservadora, coisa nenhuma! Por exemplo, detalhes como a substituição, logo na frase inicial, de I saw the best minds of my generation, de mystical, místicos, inicialmente, por hysterical, histéricos, na versão final, mostrando como se faz para que uma imagem ganhe força. Não se limitava a dar por terminado e publicar o que anotava. Seu elogio da espontaneidade, do first tought, best tought, nunca o impediu de reelaborar o texto.
O make it new poundiano é inseparável do valor, no sentido de que banalidade e redundância são incompatíveis com literatura de qualidade. Mas tem que ser entendido dialeticamente. Autores contemporâneos, como Ivan Junqueira ou Alexei Bueno, têm publicado poesia com rimas, versificação, modos tradicionais e clássicos. Mas o que tiverem feito de bom, merecedor de interesse, será original e novo (e vice-versa).

FM | Defende o poeta inglês A. Alvarez que a poesia é “um tipo de sonho involuntário”. Segundo ele, o Surrealismo, diretamente interessado nos mecanismos do cérebro que produziam as imagens oníricas, estreitou as fronteiras entre consciente e inconsciente, modificando “a maneira pela qual o mundo é percebido”. Diz ainda Alvarez que a Freud não interessava muito o Surrealismo, mas que este, por sua vez, teria influído de maneira decisiva a torná-lo “o que Auden chamava de ‘todo um clima de opinião’”. Qual a tua observação acerca das relações entre a aventura onírica desatada pelos surrealistas – afirma Alvarez que “a falácia do Surrealismo é considerar que todos os sonhos são interessantes” – e a expedição científica rumo ao inconsciente levada a termo pela psicanálise?

CW | Escrevi sobre essa questão, Freud vs. Surrealismo, no prefácio para a edição brasileira dos Manifestos do Surrealismo (Brasiliense, 1985), argumentando que Breton, e não Freud, tinha razão, a propósito da troca de cartas entre ambos, se não me engano em 1936. Foi quando Breton convidou Freud para uma das exposições internacionais do Surrealismo, cujo tema era o sonho e o inconsciente. Resumindo (e simplificando), Freud não quis participar, e afirmou que imagens dos sonhos eram conteúdos manifestos que o interessavam como cientista, por permitir-lhe chegar a um conteúdo latente, e não como fenômeno artístico. Eram material a ser interpretado, dentro do procedimento analítico. Ele mostrou, penso, um viés cientificista e mecanicista. Tendências mais recentes da psicanálise, como a de Lacan (que começou como participante do Surrealismo), atribuem maior autonomia a símbolos e imagens do inconsciente. Hoje, há maior interesse, uma postura menos excludente, com relação a psicóticos e outros habitantes excêntricos de mundos paralelos, inclusive com o reconhecimento da contribuição artística de alguns (aliás, um interesse e reconhecimento inaugurados por Breton).
Uma contribuição inovadora do Surrealismo foi trazer ideias da psicanálise, como a de inconsciente, para a criação artística. Ao incorporar o pensamento freudiano, deu-lhe uma dimensão transgressiva, mais crítica, pelo modo como valorizou sonho, loucura, delírio, estados e condições habitualmente vistos e tratados como anomalia.
Sonhos, e a atividade do inconsciente em geral, são um reflexo da vida. Poetas terão sonhos poéticos. Contadores e administradores sonharão muito com planilhas e tabelas. Motoristas de taxi se sonharão ao volante.

FM | A propósito de Auden, o poeta inglês estabelecia uma distinção entre o artista e o apóstolo, ou seja, entre o indivíduo que cria e aquele que expressa uma mensagem, sugerindo que há alguns casos em que certos escritores são, a um só tempo, artistas e apóstolos, e que isto “torna difícil uma avaliação justa de sua obra”. Como exemplo, refere-se a William Blake e D. H. Lawrence. Alguns surrealistas, pensemos em Breton e Artaud, acaso não poderiam ser observados por essa mesma ótica de Auden? Até que ponto a leitura de sua obra não teria sido comprometida pelo peso da mensagem que a mesma expressa?

CW | Breton, Artaud etc., foram demiurgos, da linhagem dos poetas como porta-vozes de uma verdade, a exemplo de Blake. Neles, não é possível separar obra e mensagem. Artaud, por exemplo, é literariamente mais poderoso e expressivo ao invectivar psiquiatras e a burguesia, ao defender uma mudança radical da sociedade e do homem, em Cartas de Rodez, Van Gogh ou Para acabar com o julgamento de Deus, manifestações veementes de ideias.

FM | Ao conversar sobre certas tentativas frustradas de classificação de sua obra, disse Picasso, em conversa com Jerome Secker, não tratar-se de um surrealista, acrescentando: “Nunca estive fora da realidade. Sempre estive na essência da realidade.” Esta conversa se deu em 1945, quando Picasso já havia há muito se afastado do Surrealismo. Já em 1963, quando William Fifield entrevistou Jean Cocteau, conversaram sobre a presença do outro na criação, declarando-se Cocteau “habitado por uma força ou ser – do qual conheço muito pouco”. Naquela ocasião, recorda o jornalista que Picasso lhe havia dito que esse outro seria “o verdadeiro agente de sua própria criação”. Por sua vez, Cocteau indagava-se, ao pensar na presença do inconsciente na criação artística, se acaso a genialidade não seria “uma forma da memória ainda não descoberta”. Embora sabendo o quanto Picasso cultivava caprichosamente seu pomar de boutades, até que ponto são contraditórias entre si a presença do que ele chamou de “essência da realidade” e a ação do outro sobre a criação artística?

CW | Em 1945, Picasso, membro do PC, desenhava pombinhas da paz, e “essência da realidade”, para ele, era seguir os ditames do Camarada Stalin. Quanto ao “outro”, milhões de artistas já se pronunciaram sobre essa experiência da alteridade na criação. Alguns – como Derrida, naquele ensaio sobre Jabés publicado em A Escritura e a Diferença, ou Octavio Paz, enfaticamente, em toda a sua obra – de modo mais consistente, apoiados em obra menos circunstancial que a de Cocteau.

FM | Ainda sobre o tema da realidade, para o poeta Yves Bonnefoy, embora tenha dito que “poetas como Breton nos levaram a um ponto em que a realidade poética está ao alcance da mão, misturada à vida”, por outro lado afirma que “quando chegaram a esse ponto, os escritores surrealistas, de certo modo, retrocederam”, exemplificando que “Breton trocou as imagens de um desejo universal e compartilhável por fantasmas privados que quis tornar absolutos”. Logo a seguir, em conversa telefônica com o jornalista Carlos Graieb, o poeta francês define: “A poesia tem a função de nos reunir aos nossos semelhantes e ao mundo. Por isso, ao longo de toda a vida, tenho destruído textos que sejam quimeras pessoais, textos que tenham um código por demasiado íntimo. A poesia é comunicação universal ou então não é.”

CW | Desde quando escrever poemas sobre Charles Fourier, sobre a mulher amada, falar de acaso objetivo, valorizar a loucura, delírio e sonho, mostrar que o maravilhoso pode ser real, querer unir revolução social e revolta individual, romantismo e socialismo, são “fantasmas privados”? Bonnefoy tem uma poesia sublime, mas fechada, personalíssima, que paira na estratosfera. Aceitas as categorias universal e particular, Breton é muito mais universal, Bonnefoy, mais particular!
O Surrealismo, pela quantidade de artistas que passaram por ele, Bonnefoy inclusive, teve um peso enorme na França. Acabou virando mainstream, veio central. Por isso, franceses têm mania de marcar posição, para se diferenciar, mostrando que estão trilhando um caminho diferente, próprio. Aqui no Brasil, onde o Surrealismo não exerceu essa influência, muita gente copia o mesmo questionamento, de modo inteiramente fora de contexto.

FM | Conversemos um pouco sobre ilegibilidade, sobre o indecifrável, ou seja, sobre a escrita cifrada, tomando aqui um exemplo sugerido por Blaise Cendrars: as profecias de Nostradamus. Segundo ele, Nostradamus encontra-se entre os grandes poetas franceses, e acrescenta: “todas as suas transformações improvisadas a partir de uma linguagem convencional superam, de longe, as maluquices do Dadaísmo, a escrita automática dos surrealistas e a decalcomania dos Calligrammes de Apollinaire”. Sendo a escrita, como situa o próprio Cendrars, um “panorama do espírito”, uma representação do ser, não se deve ali buscar sua interpretação? Até que ponto o entendimento, a compreensão, deve determinar a apreciação (o gosto) de uma obra de arte, sobretudo no caso da poesia?

CW | Não, não e não! Cendrars nunca poderia ter feito essa comparação, nesses termos! Uma coisa é alguém, Nostradamus no caso, se por a produzir associações em um período anterior às revoluções científicas e ao cartesianismo, no qual o pensamento analógico era regularmente praticado, não havia dúvida sobre correspondências entre macro e microcosmos, astrologia e práticas divinatórias eram aceitos como meios de conhecimento, e a alquimia era herética, mas não anticientífica. Outra, produzir textos não discursivos, regidos pelo pensamento analógico, em uma era na qual predominam e são oficiais o cientificismo e a razão cartesiana. Não dá para descontextualizar desse jeito, desconsiderando a diferença da “episteme”. Hoje, é subversivo restaurar o pensamento mágico através da criação artística. Naquele tempo, os Nostradamus, Paracelso, Agripa von Nettesheim, Van Helmont, Boehme, eram personalidades públicas. Podiam cair em desgraça, processados como hereges, mas se apresentavam em cortes feudais e imperiais, e disputavam cargos nas universidades. Quem fizer o mesmo hoje, a não ser que se dilua bastante e faça toda sorte de compromissos (aí vira best seller de esoterismo e auto-ajuda, ou líder de seita), pode ir parar em um hospício.

FM | Esta conversa nos leva a um outro aspecto, que é o da precisão. De um lado Breton menosprezava Valéry em sua busca determinada “dos alexandrinos mais ou menos racinianos de A jovem Parca”. Por sua vez, declarou René Magritte que a precisão é uma qualidade que “falta com frequência em escritos que são apaixonantes, e que o seriam ainda mais se fossem mais precisos”. Mesmo uma série de fragmentos aparentemente desordenados e inconclusos, como em Novalis ou Schlegel, pode radicar em um cálculo obstinado da parte do poeta. Através da precisão, portanto, o poema melhor define seu conteúdo ontológico, mesmo que saibamos que o pensamento oculto em seus versos não cessará nunca de revelar-se. Em muitos casos confundida com uma emoção asfixiada, a precisão tem sido francamente relegada por inúmeros poetas contemporâneos, inundando páginas e páginas de um borrão impenetrável, falsamente identificados com a transcendentalidade da linguagem poética. Até que ponto uma dissidência inicial entre Valéry e o Surrealismo teria influenciado nessa leitura simplista e equivocada da precisão na criação artística? Por sinal, neste aparente antagonismo – o Surrealismo e Valéry – não haveria mais de confluência do que seu decantado revés?

CW | Valéry e restauração conservadora na revolução pós-simbolista. Diante do frenesi desencadeado por Jarry, Apollinaire e, logo em seguida, Dada e Surrealismo, quis a volta à criação contida, regrada, pensada. Sob esse aspecto, ele e Surrealismo são antagônicos. Agora, conforme havia observado acima, mesmo na escrita delirante, fragmentária, espontânea, do “outro”, cada palavra é exata. Hölderlin, em pleno surto de esquizofrenia, sem saber quem era, assinando-se Scardanelli, achando que estava na Grécia antiga, é perfeito, preciso no todo e nos detalhes.

FM | Observa Paul Éluard que “o gosto pelo infortúnio faz de Baudelaire um poeta fundamentalmente moderno, da mesma categoria que Lautréamont ou Rimbaud“, enquanto salienta Valéry que Rimbaud não teria sido o que foi sem a leitura de As flores do mal “na idade decisiva”. Estas recordações me vêm a propósito da leitura de Baudelaire o la vocación del poeta (1963), de André Coyné, e aqui também acrescento a opinião de Ivan Junqueira, em torno do aspecto indiscutível que configura Baudelaire como o pai da modernidade, pontuando que ao proclamar em definitivo a “perda da aura do poeta”, teria criado assim o poeta francês “um impasse para as possibilidades de toda a poesia lírica contemporânea”. Já ao final do século XX, sob o rótulo evasivo do que se condicionou chamar pós-modernidade, encontramo-nos ainda diante dos mesmos problemas envolvendo o eu lírico – recorda Junqueira que a poesia de Baudelaire caracteriza-se como “a diluição do indivíduo na multidão” –, a figura do herói – segundo Walter Benjamin, “o verdadeiro objeto da modernidade” – e a vocação do poeta – o sentido primeiro de uma “transfiguração intermitente” que teu ensaio sugere identificar-se com a ascese. O que se pode vislumbrar hoje, portanto, diante do cenário que se mostra à nossa frente, no tocante a essas três forças essenciais para a poesia em todos os tempos?

CW | Sem dúvida. Quem “estabeleceu”, para usar o galicismo, Mallarmé, Rimbaud e Lautréamont como pilares da modernidade foi Jarry, naquela bibliografia do Dr. Faustroll e em outros lugares. Os três devem enormemente a Baudelaire. Se voltar a escrever sobre Lautréamont, será para mostrar a quantidade de apropriações e citações de Baudelaire em sua obra, muitas ainda não observadas pela crítica, até onde sei.
Devo citar-me? Sim! Transcrevo o final do meu ensaio sobre Lautréamont, parecido com trechos do que escrevi sobre Ginsberg e com tantos outros, valorizando a rebelião romântica: “A dimensão universal da singularidade é especialmente bem examinada por Bataille em seu ensaio sobre Baudelaire (em A Literatura e o Mal), outro personagem que foi pura exceção. Argumenta, rebatendo sua condenação por Sartre, que a destrutiva busca da impossível unidade, movida pelo desejo insensato de unir objetivamente o ser e a existência, invadindo o reino do impossível, da insaciabilidade, através da fusão do sujeito e do objeto, do homem e do mundo, não é apenas algo representado por Baudelaire, mas sim, o desejo de todo poeta. A poesia é o modo de escapar à condição de mero reflexo das coisas; por isso, quer o impossível. Semelhante busca da impossível síntese de contradições profundas e insolúveis – do imutável e do perecível, do ser e da existência, do objeto e do sujeito – também é exemplarmente representada por Lautréamont. […] Atravessou o século XX uma enorme e importante discussão, que não se restringiu à atribuição do valor literário, sobre o sentido e alcance do eixo formado por Baudelaire, por Lautréamont e Rimbaud, e pelos surrealistas. Recebeu condenações e ataques, pela impossibilidade, infantilidade e caráter regressivo, pelo niilismo, por seu irracionalismo, de autores tão diversos e até divergentes como Sartre, Camus e Lukács. E foi valorizado como crítica e subversão, entre outros, por Walter Benjamin, Bataille e Octavio Paz. Assim, os dois polos, revolução social e rebelião individual, o transformar a sociedade e o mudar a vida, ora foram vistos como antagônicos, ora como complementares. Um deles, o da revolução, empalidece ou desaparece de vista no horizonte. Não é por isso que se deve descartar o outro, deixando à vista apenas uma paisagem de marasmo conformista. Dizer que é superestrutural e que só existe no plano simbólico não o diminui, pois a superestrutura é produtiva e constitutiva do real: esse, para estar presente, tem que ter sentido e existir simbolicamente.”

FM | Há pouco conversávamos sobre uma declaração de Breton, de 1928: “Acuso os pederastas de proporem à tolerância humana uma carência mental e moral que busca erigir-se em sistema, paralisando todas as empresas que respeito”. Na ocasião me dizias que havia nele esse lado moralista, que o levava a dizer algumas coisas desnecessárias. Lembro que Artaud comentou que o Surrealismo “teve uma obsessão de nobreza, uma ideia fixa de pureza”. Mencionou ainda uma constância na expressão surrealista: a exasperação. Nos anos 1960 estiveste vinculado diretamente ao Surrealismo. Como se dava a convivência de vocês com essa “ideia fixa de pureza”? Indago isto pensando também em teu convívio com a Beat generation, onde a exasperação não conduzia a moralismos dessa mesma ordem.

CW | Lembro-me de uma discussão entre Piva e Sérgio Lima, em 1964, que durou uma viagem de São Paulo a Nova Friburgo, onde fomos participar de manifestações artísticas promovidas por um grupo de tendência anarquista de Cataguazes, e acabamos todos, ao terceiro dia, na delegacia local (ainda não havia happening, intervenção, performance…). Discussão, justamente, a propósito de restrições a homossexualismo e idealização da mulher por Breton, inaceitáveis, notoriamente, para Piva.
Agora, idiossincrasias de Breton à parte, há uma questão que merece exame, a do signo ascendente, tão importante para ele que se tornou título de um de seus livros de poesia, Signe Ascendant. É tema de um ensaio, publicado na coletânea La Clé des Champs. Octavio Paz a comenta e utiliza, de modo inteligente, em Conjunções e Disjunções, como fundamento de sua dialética entre a cara e o cu. Resumindo, através do exemplo de Bashô, utilizado por Breton e por Paz: uma pimenta ganhar asas e transformar-se em libélula é signo ascendente, algo que sobe; a libélula perder as asas e virar pimenta é signo descendente. Não só nesse ensaio, mas no Surrealismo todo, há, então, uma defesa do signo ascendente, da sublimação, e uma desconfiança com relação à dessublimação, que pode ser limitadora, excludente. As polêmicas de Breton com Bataille e com Artaud, autores bem escatológicos, não são circunstanciais, a meu ver, porém ligadas a questões de fundo, por mais que os três, Breton, Bataille e Artaud, façam parte da mesma configuração cultural, da mesma revolução neorromântica. Daí, também, em Breton, Péret, Éluard, a idealização da mulher, o elogio do amor sublime, único, e a ambiguidade quanto à libertinagem, deboche e perversão, vistos com simpatia ou entusiasmo, mas quando sob forma de humor negro, de algo que nega a si mesmo. Tanto é, que em seu livro de entrevistas, Entrétiens, Breton faz o elogio de Sade, mas de modo esquisito: dialeticamente, é um “sol negro”: o desregramento seria o pano de fundo destacando mais ainda a claridade do amor sublime (será que estou citando corretamente? – o sentido é esse, tenho certeza).
Uma perspectiva dessas acaba deixando à margem, redunda em sua importância, a linhagem herética, subterrânea, neopagã, subversiva dentro da cultura ocidental, cujo início está nos gnósticos licenciosos dos primeiros séculos da nossa era, e cujas expressões são, entre outros, Sade e, de modo consciente, Bataille (que se via como continuador do gnosticismo licencioso). Penso que na geração Beat a relação entre amor sublime, de um lado, e deboche, sacanagem, farra, libertinagem, de outro, está melhor resolvida. Trato disso em meu prefácio para essa nova edição de Ginsberg. Também não há essa ordenação de signos. Talvez advenha daí a discussão Beat vs. Surrealismo, da qual presenciei um dos momentos, conforme relatei acima (devia ter perguntado a Ginsberg, já que me correspondi com ele, por que, em suas estadas em Paris, foi conversar com Tzara e Michaux, e, aparentemente, não teve interesse em conhecer Breton e o grupo surrealista – pena, ter deixado passar a oportunidade de esclarecer isso).

FM | Dizes que até mesmo algumas vozes do academicismo destacam a contribuição poética de Allen Ginsberg, situando-o não como inovador, mas como “continuador de uma tradição”. Entre eles mencionas o Harold Bloom. Nas 550 páginas que compõem seu O Cânone Ocidental, encontramos apenas duas referências ao poeta estadunidense (“Ginsberg e outros rebeldes profissionais”, e “Allen Ginsberg deriva mais de Henry Miller que de Whitman”), ao passo em que não é incluído naquela lista final de principais autores, dentro do que Bloom catalogou como “era do caos”. Octavio Paz, sim, o insere em uma tradição, porém o faz em um texto impreciso, onde nos dá a entender que a poesia dos anos 1960 na América Hispânica é uma diluição das duas gerações anteriores, ao mesmo tempo em que uma repetição de Charles Olson ou Allen Ginsberg, isto sem dar nome a esses poetas supostamente diluidores. Então gostaria de maior precisão nessa correlação entre vanguarda e tradição no que diz respeito à poética de Ginsberg.

CW | Li um artigo de Harold Bloom, publicado em 1998 na Folha de São Paulo, sobre Ginsberg. Reconhecia qualidades em Uivo e Kaddish. Observava que uma das fontes de Uivo é o poeta barroco inglês Christopher Smart. Grande descoberta, já que o próprio Ginsberg disse isso e publicou Jubilate Agno de Smart como uma de suas fontes, na edição comentada de Uivo. Uma das restrições que Bloom fez a Ginsberg foi ser influenciado por Pound – alguém afirmar uma coisa dessas obriga a dar o assunto por encerrado, deixar para lá, diante da cega insistência do academicismo norte-americano em não reconhecê-lo. Acho brilhantes as análises que Ginsberg faz da prosódia em Pound. Enfim, nesse artigo Bloom estava chutando, ditando regras de modo superficial.

FM | A uma distância de praticamente um século e meio da publicação original de Cantos de Maldoror, Lautréamont sempre cumpriu na cultura brasileira a fatia obscura do mito, ou seja, a larga referência aliada ao parco conhecimento. Dezessete anos após a primeira edição de tua tradução deste livro (Vertente. São Paulo. 1970), nos chega agora a edição da Obra Completa, precedida de lúcido e extenso estudo introdutório. Quem foi mesmo o uruguaio Isidore Ducasse?

CW | Fiz 50 páginas de prefácio a Lautréamont – Obra Completa, tentando avançar nessa questão, quem foi Isidore Ducasse. Voltarei ao assunto, escreverei mais sobre Ducasse-Lautréamont. A bem da síntese, transcrevo um trecho de um dos últimos artigos de Marcos Faerman, publicado no jornal O Escritor, sobre Lautréamont – Obra Completa: “Como Arthur Rimbaud, Artaud ou Breton, o Conde é um dos signos da aventura literária – um inventor, na insuperada classificação de Ezra Pound. Mais do que outros personagens criadores da literatura contemporânea, Lautréamont (ou Ducasse? ou Maldoror?) dilui em termos absolutos a sua existência no plano da literatura. Seu livro é um jogo de amarelinha de construções e estruturas literárias. Um brinquedo nas mãos de um rapazinho que cultiva – no universo simbólico – tudo o que lhe parece mais inadequado aos bons costumes, à ordem, à moral…”

FM | Entre os célebres prefaciadores de Lautréamont encontram-se Remy de Gourmont, Léon Bloy, André Breton, Roger Caillois, Maurice Blanchot e Gaston Bachelard. Do susto provocado em Bloy, considerado por Mario Cesariny “o primeiro lobo mau da bibliografia ducassiana” à descoberta de um “dinamitador arcangélico” consignada por Julien Gracq, nos deparamos quase sempre com uma leitura algo prejudicada pelo excesso de assombro diante do autor estudado. O que este teu alentado prefácio pode acrescentar ao entendimento da obra de Lautréamont?

CW | Reexamino essa bibliografia básica. Analiso em detalhe a sua coerência na negação, algo como sua coerência na incoerência radical. Examino-o como homem do seu tempo. Insinuo que pode ter-se suicidado, ao examinar Poesias II como suicídio simbólico, entre outras hipóteses sobre a pessoa Isidore Ducasse. Agora, a bibliografia sobre Lautréamont é gigantesca. São sites na internet, Cahiers Lautréamont, megaensaios, hipermonografias. Até que ponto acrescentei algo, é difícil dizer.

FM | Nos anos 1970 se publicou em Buenos Aires uma edição das Obras Completas de Lautréamont, com estudo preliminar, tradução e notas de Aldo Pellegrini, o poeta responsável pela formação do primeiro grupo surrealista no continente americano e também tradutor de Antonin Artaud. Sendo Lautréamont um francófono, a exemplo do também uruguaio Jules Laforgue, qual a primeira edição americana de sua obra e que impacto provocou?

CW | A primeira tradução completa em espanhol dos Cantos de Maldoror, que circulou na América Hispânica, é de 1925, de Julio Gómez de la Serna, irmão do vanguardista Ramón Gómez de la Serna, que escreveu aquele prefácio em que transforma Ducasse em personagem imaginário. Antes, desde Rubén Darío, ainda no século XIX, Lautréamont circulava no universo de língua espanhola, mas no original. Sua influência na geração espanhola de 27, e, por decorrência, nas vanguardas ibero-americanas, foi colossal. Nossos modernistas o citavam, mas o haviam lido em francês. Em português, a primeira tradução completa deve ser a minha, de 1970. A tradução do argentino Aldo Pellegrini, dos Cantos de Maldoror e de Poesias, é importante; mas me parece normalizar um pouco o texto, ao endireitar algumas ordens inversas, torná-lo menos arcaico, grandiloquente, mais coloquial. Fui na direção oposta, e procurei acompanhar Lautréamont no exagero retórico.

FM | Disse Aimé Cesaire que Lautréamont foi o primeiro poeta “a compreender que a poesia começa com o excesso”. É curioso observar que, em O Cânone Ocidental, Harold Bloom não menciona uma só vez Lautréamont, deixando patente sua nenhuma relevância do ponto de vista canônico. Independente do fato de haver ali outras ausências questionáveis, diria que a importância de Lautréamont se resumiria ao que o próprio Bloom chama de “ansiedade da influência”?

CW | Bloom me parece corresponder ao neorretrô na crítica. Essa história de cânone é uma tentativa de reintroduzir o bom comportamento na literatura, querer que nos prosternemos diante dos modelos. Angústia da influência é bobagem, decalque do Totem e Tabu de Freud feito para equiparar vanguardas e movimentos de ruptura à horda selvagem freudiana, invenção e instauração do novo reduzidos a parricídio simbólico, vanguardistas como neuróticos, Édipos mal-resolvidos.

FM | Outro crítico, a espanhola Fátima Gutiérrez, observa que o tema da “santidade do crime”, tocado logo no primeiro dos Cantos de Maldoror, na verdade define a obra como um todo, onde a perversão é abordada em um espectro amplo. Em ensaio justamente sobre a perversão, nos lembra Marcel Schwob que “o ponto de partida moral do homem é o egoísmo”. Em que sentido exato radica a transgressão da obra de Lautréamont?

CW | Nesse sentido, mesmo. Em meu prefácio, insisto em que se trata de obra perversa, mais que paródica. A proclamação da “santidade do crime” é uma metáfora da transgressão em todos os níveis, do todo aos detalhes. Marcel Schwob, escritor de formação ocultista e gnóstica, foi amigo e interlocutor de Jarry, por sua vez o primeiro lautréamontiano consciente, que não só entendeu Lautréamont, mas percebeu como era possível escrever daquele jeito.

FM | No plano ainda de uma rebelião poética, Bachelard observou muito bem o aspecto blasfematório da poesia de Lautréamont. Para situar melhor o leitor, poderias falar um pouco da relação deste poeta com seus pares, tanto europeus (Mallarmé, Rimbaud) como hispano-americanos (Rubén Darío, Ramón López Velarde, Julio Herrera y Reissig)?

CW | Rimbaud e Lautréamont nunca se conheceram. Mallarmé deve ter lido Maldoror já na década de 90, através dos simbolistas belgas que o redescobriram. Mas os três fazem parte da mesma configuração revolucionária, de superação dialética do Romantismo, do Esteticismo e do próprio Simbolismo, negados e ao mesmo tempo radicalizados.
Desde aquela época, Lautréamont impressionou a autores de língua espanhola, a começar por Rubén Darío. Observo que não dá para falar dessas literaturas ibero-americanas em si, isoladamente, sem lembrar seu extremo cosmopolitismo, o trânsito e as estadas de todos esses autores, até os mais regionalistas, pela Europa, especialmente Espanha e França. Fechar-se em sua província é coisa de brasileiro. Lautréamont nunca precisou chegar aos países hispano-americanos, pois, antes disso, seus autores já haviam chegado a ele.

FM | Tristan Tzara refere-se a Lautréamont como autor cuja poesia “parece haver superado a fase de atividade do espírito para chegar a ser verdadeiramente uma ditadura do espírito”. Na segunda metade do século XX, com a entrada em cena da massificação cultural, o sentido da grande recusa em que implicava o Surrealismo, cedeu lugar a uma burocratização do bund, registrando-se um declínio daquilo que o Mario Cesariny chama de “espírito de seita”. Se é verdade, como afirmou Aldo Pellegrini, que a poesia “tem uma porta hermeticamente fechada para os imbecis”, o que se passa hoje com a poesia em um mundo definitivamente tomado por frivolidades?

CW | Na metade do século XIX, Baudelaire havia percebido e mostrado claramente que existia massificação. Termos como “indústria cultural” são mais recentes, mas então já havia lojas enormes cheias de gente, jornais que todo mundo lia, livros que se vendiam em larga escala, espetáculos que atraíam multidões. Mesmo com a substituição do megafone pela amplificação eletrônica, do telégrafo pela net, o confronto entre poesia e mediocridade continua fundamentalmente o mesmo.

FM | Situações temáticas como a fascinação pelo fracasso, o elogio da prostituição e da homossexualidade, a mulher fatal e a renúncia do amor, definem, mais do que um decadente gosto pelo escândalo, como alguns críticos apontam, uma discórdia fulminante diante dos padrões morais de seu tempo. Abolida toda espécie de refutação da moral estabelecida, que valores assumem a transgressão e o escândalo, em nossa sociedade finissecular?

CW | Em palestras, leituras e encenações teatrais de Lautréamont, reparei na consternação de alguns dos circunstantes, diante de algumas coisas que são até corriqueiras, noticiário de jornais, e outras flagrantemente impossíveis, como a história da fêmea do tubarão. Trechos de Maldoror ainda podem espantar e até chocar. Ainda bem. O que impressiona, obviamente, não é o objeto da narrativa, mas a exacerbação simbólica, o delírio. Felizmente, resta muito escândalo a ser provocado, muito a ser transgredido.
Quem disse que a moral estabelecida e sua refutação foram abolidas? Em 1988, Uivo de Ginsberg podia ser lido no rádio, nos Estados Unidos, só da meia noite às 6 da manhã. Na mesma época, aqui, a Rádio Cultura recebeu uma advertência do Dentel, Ministério das Comunicações, por causa de umas poucas coisas a mais que Piva falou em um programa de entrevistas de Maria Rita Kehl. A exposição de Maplethorpe, em 95, acusada de pornográfica, provocou corte de verbas do National Endowment for Arts. Na mesma época, tivemos um episódio semelhante com uma exposição de Nelson Leiner na Funarte do Rio, objeto de um processo por suposta pedofilia – como se figuras em quadros pudessem fazer sexo! E o episódio, em 97, da proibição de grupos musicais que estariam incentivando o consumo da maconha? Ainda pretendo voltar a essas confusões entre símbolos e acontecimentos reais, à esquizofrenia da censura e da repressão. Não nos iludamos: eles estão aí, à espreita, aguardando o momento de intervir para retomar o controle da situação…

FM | Há uma prática corrente na publicação de antologias da poesia brasileira que é o deslocamento do eixo central, que deveria ser a própria poesia, para atender a tendências de toda ordem, gerando uma leitura desfocada, algo criminosa, de nossa produção literária. Casos assim verificamos nas publicações mais recentes: Pedro Lyra inventando uma Geração de 60 com enfoque puramente acadêmico, de catalogação geracional; Nelson Ascher e Régis Bonvicino reduzindo a poesia brasileira a um desdobramento do Concretismo; e mais recentemente a segunda dose de equívoco da Heloísa Buarque de Hollanda. Além disto, há aquela leviandade típica de aventureiros como Assis Brasil, mapeando o Brasil pelo ângulo da quantidade em oposição à qualidade, em uma leitura completamente despida de valoração crítica. A publicação de todos esses livros ao menos prova uma coisa: que há mercado para tanto. Então por que não se realizar um trabalho sério de reflexão sobre nossa produção literária?

CW | Escrevi um artigo extenso sobre antologias, na revista Cult de abril de 99. Há dificuldade, neste momento, em especificar tendências e movimentos. O valor poético parece estar sendo substituído por outra coisa, que não se sabe bem o que é. Quanto às antologias, gosto daquela de Massi, acho-a original. Lyra fez algo ambicioso, um trabalho de fôlego, objeto das críticas que se sabe, por esticar a década de 60, traçar limites vagos, dissociar “geração” de movimento literário. Mas sua antologia contém informação, apresenta bem seus poetas, coisa que poucos fazem. Quanto à de Ascher e Bonvicino, até que é bem menos eufórica e excedente do que aquelas do Concretismo propriamente dito, décadas atrás. Heloísa é uma professora de literatura que raciocina como socióloga; dá a impressão, a julgar por sua última antologia, de haver entrado em um grave surto de pós-modernidade.
O panorama da poesia brasileira é complexo, muita gente escrevendo de modos diversos. Temos superexposição de alguns autores, obliteração de outros. Há pouco, toda vez que ligava o televisor, aparecia na tela o Waly Salomão. Nada contra, mas outros poetas da mesma “geração”, com características afins, poderiam receber a mesma atenção. Agora, por ordem nisso? – Santo Deus, não vejo como… Iniciativas setoriais, resgate da Dora Ferreira da Silva pelo próximo Azougue, do Sebastião Nunes pela Medusa, mais o que você anda fazendo, talvez apontem caminhos.

FM | Falas do absurdo que é a “pouca atenção da crítica e a pouca quantidade de estudos sobre poetas como Piva, Affonso Henriques, Rodrigo de Haro, entre outros”. A teu ver, quem faz crítica literária consistente neste país, e em razão de que acreditas que um poeta como Roberto Piva jamais tenha sido comentado com seriedade por essa crítica? Como aplicar esse raciocínio a poetas como José Santiago Naud e Sérgio Lima, e até mesmo outros de gerações anteriores, a exemplo de Dora Ferreira da Silva e José Alcides Pinto, para ficarmos apenas entre os vivos?

CW | Ainda não conheço a poesia do Naud. Você me mandaria livros dele? Ou pediria para ele, ou o editor dele me mandarem? Mas tem mais. Você conhece a poesia do Pedro Garcia? Catarinense do Rio de Janeiro, conheci-o através do Rodrigo de Haro (outro da lista dos que etc.), e me parece extremamente consistente, com vários livros publicados. Talvez por não estar aí para badalação literária, ninguém fala nele. Já fiz, em outros lugares, listas de poetas que tinham que ser mais divulgados, comentados e discutidos. Age de Carvalho, por exemplo, quando saiu o livro dele, escrevi que estava começando onde João Cabral havia parado. Será que residir em Viena (reside em Viena) influi na quantidade de boquiabertos diante de sua obra? Se for isso, então, viva o provincianismo!
Crítica literária e pesquisa acadêmica são regidas, hoje, pelas mesmas normas e cacoetes da burocracia dos órgãos públicos: medo de arriscar, preguiça, tendência a rolar com a barriga, a eximir-se de responsabilidades, preferir pratos feitos, releases mastigados, portfolios preparados por agentes e corporações do setor, repetição ritualística das mesmas pautas. O registro sistemático de novos poetas nunca foi dessas maravilhas; mas, por essa razão, vem piorando.

FM | Ao contrário do México, onde a subvenção estatal para a publicação de revistas literárias é já uma tradição, aqui a figura do Estado-editor manifesta-se apenas no tocante à sua própria revista, no caso, a Poesia Sempre. Também no México e na Colômbia, por exemplo, verifica-se a sistematização de edições críticas e obras completas dos principais valores literários de cada país, o que é distinto desse programas de edições oriundo de convênio entre Biblioteca Nacional e Universidade Mogi das Cruzes. Além disto, temos algumas iniciativas isoladas, as chamadas leis estaduais de incentivo à cultura, que não cumprem com o real papel, não estabelecendo ação conjunta entre produção e distribuição. Como acreditas que o Estado deva se portar no tocante ao assunto?

CW | Aqui você toca em um grave problema de política cultural. Talvez, o nó da questão. Acho que, para cada exemplar de Poesia Sempre, tinham que destinar uma verba no mínimo equivalente para iniciativas como as revistas do Guido de Uberaba (Dimensão), da Jurema de Santo André (Cigarra), do Sérgio da Barra Funda (Azougue), do Ricardo & Rodrigo de Curitiba (Medusa), e tantas outras. E por aí, através dos periódicos, que poesia e crítica respiram. No início do século, em lados opostos do Canal da Mancha, Pound e Breton faziam com que a literatura se movesse, através de revistas, veículo do melhor da criação e da crítica naquele momento. Esse é um dos muitos exemplos de como o periodismo cultural pode ser decisivo, definidor de movimentos e tendências. Pela dificuldade econômica, hoje, desse tipo de iniciativa, devia ser prioridade da administração cultural pública.
Temos alguns mecanismos de subvenção para espetáculos, teatro e cinema, e entendo que poderia haver mais ainda. Porém, considerando que palavra é mediação fundamental, constitutiva da cultura, deveria haver mecanismos equivalentes, no mínimo, em favor da circulação do livro, da literatura, de ideias. Fala-se (com razão) da importância da educação – pois bem; favorecer a palavra escrita faria, rapidamente, subir o nível educacional. Francamente, acho que a quantidade e qualidade do investimento nesse campo (livro e literatura) podem ser definidoras do futuro deste país. A inteligência não pode continuar entregue apenas ao miserabilíssimo oficial e à burocracia das corporações privadas, sob risco de agravar mais ainda o quadro que temos denunciado. Essa, para mim, é uma grande questão política, da qual a sociedade deve ser sensibilizada.

[2000]

NOTA
Claudio Willer (Brasil, 1940). Poeta, ensaísta e tradutor. Traduziu a obra completa de Lautréamont e parcial de Allen Ginsberg e Antonin Artaud. Publicou livros como Jardins da provocação (1981), Volta (1996), Estranhas experiências (2004) e Geração Beat (2009). Dividiu com Floriano Martins, no período 2000-2009, a editoria da primeira fase da Agulha Revista de Cultura. Entrevista originalmente publicada em Espéculo. Revista de Estudios Literarios. Universidad Complutense de Madrid, 2000.


[1] Este livro seria publicado em 2004, pela Lamparina Editora, no Rio de Janeiro.

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