FM – Sua estreia na poesia se deu
aos 31 anos de idade e, no ensaio, aos 44 anos. Há alguma razão específica para
tal fato?
AP – Penso que se trata de um problema de ritmo vital. Os livros vão se
escrevendo lentamente e, em algum momento, estão prontos. Às vezes são mais de
um, como no caso de Góngora, pois investigando o poeta barroco surgiu um estudo
sobre sua obra, uma edição de escritos e uma antologia da poesia culterana.
Três livros crescendo a um só tempo.
Ainda que não pareça, a Antología
de la poesía surrealista me levou dez anos, talvez mais, ainda que intermitentemente.
Ainda agitam a cauda alguns projetos à sombra do surrealismo e nestes dias
estou começando a traduzir panfletos, proclamas e outros escritos surrealistas
que agruparei com o título Razonado desorden
(Textos surrealistas). Digo que estou traduzindo, mas também recolherei
textos escritos em espanhol por Pellegrini, Dalí etc.
Não me preocupa a escritura, mesmo que não possa viver sem escrever.
Digo escrever, não publicar. Minha poesia – boa ou má – cresce lentamente e
publico apenas algo do que escrevo. Algumas vezes por capricho, e outras pela
insistência de alguns amigos.
FM – Reconhece uma poética em sua
poesia?
AP – Não sei se a tenho. Suponho que sim, mas, em todo caso, espero que
meu hipócrita leitor possa intuí-la (mas não a entenda de todo) ao ler meus poemas.
FM – Para o poeta Enrique Molina “não há conhecimento mais verdadeiro que o da
experiência direta”, e conclui: “o mundo sempre está se entregando a todo
aquele que esteja disposto a pagar-lhe em paixão e crueldade”. A poesia é forma
de conhecimento? Ou, ainda citando o poeta argentino, “a mais desesperada
tentativa de salvação de uma conduta existencial”?
AP – A poesia é uma forma de conhecimento? Uma paixão do conhecimento,
como escreveu Vicente Aleixandre? É, suponho, uma proposta de marginalização
ante uma sociedade imposta, feliz em todos os seus momentos e ansiosamente
obsecada em seus esquecimentos. Todos os indivíduos, todas as sociedades
(inclusive as mais miseráveis, a partir de seu ponto de vista material), são
felizes ou esperam sê-lo. O poeta tem que marginalizar-se para ser.
FM – Stefan Baciu, em sua Antología de la poesía surrealista latinoamericana
(Ediciones Universitarias de Valparaíso. Chile. 1981), estabelece uma distinção
necessária entre aqueles poetas que eram de fato surrealistas – Aldo
Pellegrini, Braulio Arenas, César Moro etc. – e os que eram apenas tocados pelo
surrealismo, que ele chamava de surrealizantes – Federico García Lorca, Rafael
Alberti, Pablo Neruda, Vicente Aleixandre etc. Observa ainda que “esta mistura
permanente do surrealista com o surrealizante é um dos perigos que enfrentam a
literatura e a história literária, e a confusão tem sido tão grande que se
organizam listas, livros e até antologias com surrealistas que, na realidade, são
surrealizantes, e mesmo assim somente até certa época”. O que você pensa acerca
de tal distinção?
AP – Fujamos dos historiadores da literatura. Envelhecem com cada
geração e seus juízos valem menos que promessa de político. Daí excluo minha
modesta entrada materializada em alguns ensaios, entre os quais se conta a Antología de la poesía surrealista, em
língua espanhola, que agora nos ocupa. Não sou professor, nem vivo esse mundo
de catalogações e fichas. Sou – ou pretendo ser, daí minha exclusão – um poeta,
ávido leitor, que pretende fixar suas obsessões literárias. Por fim, estudo o
que me agrada e me encontro totalmente alheio, por minha profissão e minha
vontade, à burocracia do ensino.
Tudo isto vem como cotejo à distinção de Stefan Baciu sobre poetas surrealistas
ou surrealizantes. O livro de Baciu é estimável mas esta afirmação está, a meu
ver, fora de lugar. Não conheço a edição chilena de 1981 que você me cita, já
que consultei a mexicana de 1974 e talvez este acerto tenha sido matizado. Se
se aplicar, por exemplo, este critério a outras escolas ou movimentos
literários de épocas precedentes, notar-se-ia então a debilidade do raciocínio.
Pensemos no romantismo, desde o aparecimento de Lyrical ballads, em 1798, e nas escolas românticas na Alemanha, França
e, não nos esqueçamos, Espanha e América. Hoje é difícil distinguir os
“romantizantes”. Como é difícil distinguir, segundo a divisão de Baciu, o poeta
surrealista do surrealizante, pelo menos tal como nos é apresentada. Estamos
seguros de que Octavio Paz é um poeta surrealista – já que não somente o
próprio Baciu o inclui em sua antologia mas que também se encontra nas antologias
do surrealismo francês –, e que são surrealizantes Lorca, Alberti e Aleixandre?
Poeta en Nueva York, Sobre los ángeles e Pasión de la tierra são surrealizantes e
¿Águila o sol? ou Vuelta surrealistas? Temo que esta distinção se faça porque se está tendo em conta outros
livros destes poetas; possivelmente os romances gitanos de Lorca e a poesia
política de Alberti, que efetivamente não são surrealistas. Porém este critério
nos levaria a excluir do surrealismo os iniciadores deste movimento na França,
como Louis Aragón, Paul Éluard e um longo etc., por causa de Le musée grévin ou Poèmes politiques. Sejamos prudentes e tentemos excluir os
partidarismos. Aragon, Éluard, são surrealistas em Une vague de rèves, Le pausan
de Paris, Capitale de la douleur
e L’amour la poèsie, e não o são em Les communistes, La diane française e Une
leçon de morale, da mesma forma que o são Lorca, Alberti, Cernuda,
Aleixandre e Neruda em Poeta en Nueva York, Sobre los ángeles, Un río, un
amor e Residencia en la tierra e
não o são em Romancero gitano, De un momento a otro, Desolación de la quimera, Historia del corazón e Las uvas y el viento. Mas se se trata de
mesclar a política com a literatura, perfeitamente normal por outro lado, a
mesma balança deveria ser utilizada para pesar a “Oda a Stalin”, de Neruda, e
os louvores à Junta Militar chilena, de Braulio Arenas.
FM – Quais os critérios adotados
na feitura desta sua antologia? Por exemplo: Enrique Gómez-Correa, Francisco
Madariaga, Teófilo Cid, que são poetas essencialmente
surrealistas, estão fora da antologia, enquanto outros que tiveram importância
menor dentro do quadro geral do surrealismo, tais como Camilo José Cela, Leopoldo Panero e Juan Sierra, estão ali presentes.
AP – Sobre os critérios para selecionar os textos e autores da antologia,
queria dizer que, além da adscrição literária que dá título ao volume,
tencionei – e não sei se consegui – selecionar os poemas de mais qualidade e só
então, finalmente os agrupei por autores. O livro pretende antologar poesias
surrealistas e somente em segundo termo apresenta-se como uma antologia de
autores. É por isto que a extensão que ocupa cada poeta dentro do livro não deve
ser entendida como uma hierarquia de valores literários. É, ou pretende ser,
repito, uma reunião de poesias surrealistas, e não de autores.
FM – Que poeta teria representado
o papel de precursor do Surrealismo na Espanha?
AP – Em sentido estrito é difícil falar de precursores do surrealismo.
Os surrealistas, como os românticos, não nascem já na cúspide de sua perfeição
e há um longo caminho balizado de referências culturais; mas não só destas. O
poeta surrealista é devedor de um grupo numeroso de pessoas que, de alguma
forma, estiveram em conflito com seu meio. Em meu livro chamo de “ancestros” os
homens e mulheres aos quais os surrealistas franceses foram especialmente
devotos (e não sei se a palavra devotos
é a apropriada): Rimbaud, Lewis Carrol, Baudelaire, Lautréamont, Sade, Apollinaire,
Nerval, são alguns deles.
De qualquer maneira, não há nenhuma dúvida de que antes de 1924 o
embrião que conduz ao surrealismo teve um nome: Dadá. Na Espanha, o
criacionismo ou o ultraísmo merecem figurar como o primeiro motor da futura
revolução literária. Se no movimento Dadá figuram Tzara, Breton e Aragón, no
criacionismo e no ultraísmo estiveram Vicente Huidobro e Gerardo Diego, como
aproximações marginais do primeiro Alberti. Outros nomes presentes no ultraísmo
e que posteriormente encontraram outra forma de expressão, talvez convenha
citá-los agora: Jorge Luis Borges, José Rivas Panedas, César A. Comet,
Guillermo de Torre, Isaac del Vando Villar, Eliodoro Puche,
ultraístas/criacionistas americanos e espanhóis, unidos pelo idioma em uma
mesma aventura cultural.
FM – Que características
diferenciariam o Surrealismo espanhol do americano?
AP – Não me atrevo a opinar sobre as diferenças entre um e outro. São
mais notórios os traços comuns que os diferenciais. Talvez os poetas americanos
(Moro, Westphalen, Pellegrini etc.) tenham sido mais audaciosos, mais
revolucionários, na busca de uma linguagem poética.
FM – Na seleção de poemas do
chileno Vicente Huidobro e do peruano César Vallejo, você não incluiu textos de
Altazor e Trilce, que são, respectivamente, suas obras de
maior importância no que se refere à renovação da linguagem poética. Há algum
motivo em especial?
AP – A não inclusão de Altazor,
de Huidobro, em minha
Antologia surrealista, foi decisão de última hora. Por
problemas de edição não era possível incluir o poema inteiro e eu resistia a
selecionar um fragmento de um texto tão difícil de fracionar. Talvez estas
vacilações devessem ter sido expostas no livro.
Minha opinião é que Trilce, de
César Vallejo, da mesma forma que Manual
de espuma, de Gerardo Diego, não são surrealistas. No caso do segundo
livro, faz parte desse grupo de publicações que hoje conhecemos com o nome de
Dadá, ultraísmo ou criacionismo e que, em rigor, pertencem a outra época.
FM – Você incluiu Cinco metros de poemas, do peruano
Carlos Oquendo de Amat, em uma lista de livros, ao lado
de Pasión de la tierra, Poeta en Nueva York, Altazor etc., que teriam revolucionado a poesia
espanhola – segundo texto de contracapa da antologia. Quais critérios foram
adotados para a configuração de tal lista? Poderia nos falar um pouco mais a
respeito destes livros? Acaso En la masmédula, do argentino Oliverio Girondo, não deveria ser incluído como
um dos principais livros n a poesia de língua espanhola?
AP – Não intervi na confecção do texto onde se relacionam os livros
“destinados a revolucionar a poesia espanhola”. Este texto da capa do livro foi
preparado pela editora, ainda que recolha minhas opiniões sobre a poesia
escrita em espanhol em finais dos anos vinte e princípios da década seguinte. O
livro de Oliverio Girondo, En la masmédula, cujas poesias recolho
em minha antologia, foi publicado no ano de 1954 e fica fora da relação de sete
títulos por razões cronológicas. Sem fazer agora aborrecidas análises comparativas,
quero dizer que a influência de Altazor,
Poeta en Nueva York, Sobre los ángeles, Residencia en la tierra, foi considerável. Livros lidos por várias
gerações de poetas na Espanha e na América. Talvez a influência de Cinco metros de poemas seja menos
visível, mas este texto singular de um poeta raro e maldito tem mais
continuadores do que supomos. En la
masmédula é um grande livro, mas sua influência foi consideravelmente menor
por ter sido publicado fora de seu tempo. Isto é o que eu acho.
FM – Você incluiu Pablo Neruda em tua antologia. Isto me faz lembrar o fato
de que Breton o repudiava. Certa vez comentou que o poeta
chileno costumava exagerar a narração de suas perseguições políticas “para o
uso de certa propaganda”, afirmando que este fato seria suficiente para
“desqualificá-lo do ponto de vista surrealista”.
AP – Quem tem dúvidas de que Residencia
en la tierra bebeu da fonte surrealista? O surrealismo é um grupo, escola,
facção, ou como quer que seja chamado, contraditório, e é esta, talvez, uma de
suas muitas virtudes. O surrealismo é liberdade e como tal há que ser
entendido, e estaria espartilhado com um programa prévio. Nem sequer Breton deve ser seguido ao pé da letra. Se Breton
pensou que Neruda exagerava suas perseguições
políticas e este fato o desqualificava do ponto de vista surrealista, não se
pode duvidar que Paul Éluard, Louis Aragon, Antonin
Artaud, Philippe Soupault, Jacques Prévert, Ribemont-Dessaignes e Robert Desnos não formem parte do surrealismo por sua
militância política ou por outras causas. Estes aspectos contraditórios do
surrealismo e do próprio Breton constituem sua idiossincrasia.
FM – O escândalo era uma das
grandes armas surrealistas. Quais algumas das intervenções escandalosas mais
célebres dos surrealistas espanhóis?
AP – Os surrealistas espanhóis não foram promotores de escândalos.
Talvez por excesso de escrúpulos, coisa que na Espanha dos anos 30 era difícil
de romper. Alguns deles, conto em meu livro. Recordemos este protagonizado por
Buñuel e Lorca:
Barbeados e maquilados cuidadosamente, entravam nos ônibus de Madrid disfarçados de monjas na hora de maior afluência. Olhares insinuantes e apertões provocados semeavam o desconcerto, talvez o pânico, entre os passageiros masculinos. Buñuel explicava esta ação como fruto de uma campanha anticlerical de fabricação própria, minuciosamente preparada.
Barbeados e maquilados cuidadosamente, entravam nos ônibus de Madrid disfarçados de monjas na hora de maior afluência. Olhares insinuantes e apertões provocados semeavam o desconcerto, talvez o pânico, entre os passageiros masculinos. Buñuel explicava esta ação como fruto de uma campanha anticlerical de fabricação própria, minuciosamente preparada.
Como fato verídico narra-o um de seus protagonistas. Depois de 1936 os
escândalos, se acaso existiram, passariam despercebidos.
FM – Em relação ao Surrealismo, o
que viria acrescentar o postismo, de Carlos Edmundo de Ory, Eduardo Chicharro e Silvano Sernesi?
AP – O postismo foi um
movimento estranho no panorama literário da Espanha do pós-guerra. A sordidez
mental, para não falar também de torpezas materiais, não ajudava à consolidação
de escolas cujo mérito principal era a busca do novo. Em uma Espanha obrigada a
recordar seu passado imperial como antídoto para esquecer um presente, com uma
censura férrea, uma literatura cuja premissa principal era a provocação e o
escândalo – ainda que fossem apenas literários –, não encontrava nenhuma
possibilidade de expressar-se. Foi uma ação testemunhal, uma ilha de vegetação
exótica e espontânea, rodeada por um mar sulcado por couraçados e mercantes.
Restam do postismo seus poemas e a
figura, hoje patriarcal e marginalizada, de Carlos Edmundo de Ory.
FM – Há dois livros seus de
estudos sobre a obra de Luis de Góngora. De onde vem este seu interesse
pelo poeta das Soledades, o
poeta da “metáfora ao quadrado”, segundo o cubano Severo Sarduy?
AP – A paixão por Góngora é uma paixão de juventude. E eu já a estou
vendo da distância dos anos. Góngora é um “poeta da transgressão”. Como não
admirar-lhe dentro deste nosso ordenado século XX? Há no poeta culterano a
decisão de escrever construindo uma língua poética, e isto é, de algum modo, o
que aspiramos todos os poetas. Juan Larrea, o
surrealista espanhol, escreveu: “o gongorismo […] cuja obscuridade nasce de um
desejo de distinção e não de uma emoção”.
FM – Concorda, para finalizarmos,
com Borges, ao dizer que “a página da perfeição, a pagina onde nenhuma palavra
pode ser alterada sem dano, é a mais precária de todas”?
AP – Não estou de
acordo. Ou, pelo menos, creio que essa página perfeita não o é nunca para seu
autor. Por outro lado não sei muito bem o que quer dizer Borges com a palavra
“precário” neste contexto. Talvez se trate de um gracejo ou o reverso do verso
de Keats: “A thing of beauty is a joy for ever”, mesmo que razoável de forma bastante
livre.
[1985]
[Entrevista
incluída no livro O Começo da Busca - O
surrealismo na poesia da América Latina, de Floriano Martins (São Paulo:
Escrituras Editora, 2001).]
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