FM Após tantos livros publicados, evoco a
indagação contida em um deles: qual o sentido em passar a vida escrevendo
livros?
TC Ainda não sei se vou passar a vida
escrevendo livros. Talvez escreva apenas até o dia em que aprender a escrever.
Poderei, então, parar de escrever. Talvez.
Por que escrevo?
Aparentemente, os desejos que temos de
realizar, aqueles que nos perseguem e nos assombram até que tenhamos condições
de satisfazê-los, são os desejos que surgiram em nós, em nossa cabeça e nosso
corpo, quando crianças. São atrás desses que corremos, a vida toda. Eu tenderia
a generalizar, mas falarei de mim apenas: escrevo não por querer comunicar-me
com o outro, ou por querer colaborar com o processo social (na hipótese de ter
condições de fazê-lo…) — isto são racionalizações que surgem mais tarde, na
adolescência ou depois ainda — mas por ter um dia, quando criança, desejado ser
escritor, decidido ser escritor. Escrever — ou pintar, ou compor, ou tantas
outras coisas análogas — me parece uma ação intransitiva: não quero escrever o quê, não quero escrever para quem, apenas desejo escrever.
Talvez já esteja, agora, desejando um dia parar de escrever. Mas não sei se
este desejo pode ter tanta ou mais força do que o primeiro, o de escrever.
Talvez um dia eu possa decidir que meu desejo foi satisfeito. Ou talvez este
desejo me alucine até o fim.
FM Jean Cocteau nos disse certa vez que “a única obra bem
sucedida é aquela que falha”. Sua obra percorre caminhos diversos, tais como um
romance, ensaios sobre teatro, aspectos gerenciais da cultura, socialismo, etc.
É possível pensá-la como deliberadamente fragmentária, como algo que se desfaz
a si mesma, digamos, como anti-obra?
TC Ainda não pensei, e não penso, no que
venho fazendo como uma obra. Em todo
caso, o conjunto do que faço é sem dúvida fragmentário. Sob esse aspecto, ele
terá sido talvez falho. Por outro lado, cada livro escrito me aproxima mais de
meu desejo de ser escritor, me dá mais condições de atender a esse desejo. E,
ao mesmo tempo, claro, cada livro me afasta da satisfação desse desejo: cada
livro publicado é a renovação de uma mesma pergunta: “Mas, é isso ser escritor?
O que é isso, afinal, qual o sentido disso?”
Essa é a punição por
deixar que desejos infantis me invadam. Na cabeça da criança há um mundo de
fantasmas e alucinações sobre o que podem ser as coisas e as ações e as
relações. Mais tarde, quando se pode tocar essas brumas com as mãos, elas
dissipam-se um pouco e é possível entrever alguma coisa por trás delas, é
possível entrever, frequentemente, a ausência
que há por trás delas. Isso assusta. Mas, essa revelação, às vezes, como parece
ser meu caso, chega tarde demais: vinda de fora, do mundo exterior, não tem a
força de meu desejo infantil que parece paradoxalmente revigorar-se a cada nova
desmistificação que é o aparecimento de um novo livro.
O aspecto fragmentário
de minha produção deriva do fato de
eu ser um escritor e não um
especialista. Não sou historiador da arte, nem sociólogo, ou semioticista, ou
arquiteto ou qualquer outra coisa. Sou um escritor: tenho curiosidades,
envolvo-me em circunstâncias que me impõem ou sugerem a escritura de um livro e
o escrevo para descobrir, enquanto o escrevo, aquilo que sei ou posso saber
sobre o tema. Meu desejo dominante não é esgotar um tema, mas escrever — o que
significa que, feita uma parada numa estação, faço uma baldeação e tomo outro
trem, ou outra linha, com outra direção. Estou, de todo modo, dentro da rede dos trilhos, dentro do
sistema dos trilhos: em algum momento, a estação para a qual convergem todos os
trilhos será uma única e a mesma — ou então, em algum momento do passado a
estação da qual partiram todos os trilhos foi uma única e a mesma.
Nunca pensei em minha
produção como “deliberadamente” fragmentária. Não sei se em um país como este é
possível ser “deliberado” a respeito de um projeto deste tipo. Nunca me
interessou dirigir meu projeto de escrever para esta ou aquela direção — ou
nunca tive forças para fazê-lo. Tenho, sim, um objetivo, ainda não alcançado
como quero: escrever ficção. Este, persigo de modo intencional. O projeto
ensaístico é fragmentário porque, para mim, não havia outro modo de pensá-lo.
Como disse, sou
escritor — significando que meu interesse é pelo formato, como se diz hoje. O
conteúdo não me é indiferente, não se trata disso. Mas o conteúdo é apenas um
pretexto para dar matéria à forma. O aspecto material na literatura não será
tão evidente quanto na pintura ou no cinema, mas existe aqui também. E deve
estar na origem de minha fascinação infantil pelo papel impresso. É possível
também que, vivendo em um país que atribuía ainda naquela época tanta importância
à escrita quanto o Egito dos escribas, eu tenho percebido, mesmo criança, que
através da manipulação das palavras eu poderia conseguir aquilo que, diz Freud,
é o objetivo de todo artista: fama, riqueza e o amor das mulheres. Riqueza
através dos livros, neste país, é quimera. Fama é algo relativo demais. Sobre o
amor das mulheres: já é um motivo bom demais para se escrever.
Por tudo isto, não me
preocupa muito saber para quem escrevo. Não creio que escreva para um público
muito claramente definido em minha cabeça. Apenas, escrevo. Quero ver meus
textos publicados, claro: na gaveta, nada são. Um dia, talvez, não me preocupe
com o fato de ficarem nas gavetas; por enquanto, quero vê-los publicados e isso
deveria implicar numa certa preocupação com o público. Não é assim, porém. Isso
será, acaso, um paradoxo — mas os paradoxos têm tanto direito à existência
quanto as coerências e as logicidades. E, sabendo da função com frequência
atribuída às coerências, prefiro os paradoxos e suas inexplicações.
De todo modo, de pouco
adianta formar uma imagem clara daquele para quem se escrever: o caminho entre
o autor e o leitor está sempre tão pavimentado de imprevistos, formando tantas
imagens inesperadas, que pensar na figura do leitor possível acaba sendo um exercício
intelectual quase gratuito. Basta-me a certeza de que o que sinto e penso é
sentido e pensado por outros, muitos e variados outros; sendo diferente, sou um
igual, é isso que arma a ponte entre mim e os outros e é isso que me autoriza a
escrever. Basta assim.
FM Para que serve um intelectual?
TC Houve um momento em que pensei conhecer
a resposta. Um dia, procurando inspiração para responder a pergunta semelhante,
abri, ao acaso, A República, de
Platão, que trata do
tema. Abri o livro totalmente ao acaso. Na página que surgiu a meus olhos, meu
polegar fixou-se, por acaso, bem sobre esta observação: os melhores cultores da
filosofia são inúteis porque o resto da humanidade não quer servir-se deles. Um
verdureiro cultiva suas verduras. Um artista forma suas obras de arte. De um
intelectual se esperaria que produzisse a crítica da sociedade — de toda a sociedade, e não apenas de parte
dela, quer dizer, só da burguesia ou do proletariado, só dos governantes e não
dos governados, e assim por diante. Mas, parece que tanto agora quanto na época
de Platão, um intelectual não serve para nada porque, antes de mais nada,
ninguém pretende servir-se dele. Exatamente por isso, talvez se devesse esperar
do intelectual que assumisse a atitude do cético que nada propõe, que apenas destrói todos os partis pris, como diz Cioran, e desnuda os
delírios daí resultantes.
FM Considera a cultura como uma fatalidade
à qual estamos condenados?
TC Se por cultura se entender o contrário
de barbárie, creio que estamos antes condenados a esta do que àquela. A cultura
é a pausa em um universo acelerado em direção à entropia. O certo é a barbárie,
a cultura é apenas o possível. No jogo das probabilidades, a barbárie é a
favorita. A barbárie é um dado; a cultura, um contrato — que se faz e no qual
se acredita cada vez menos. Da barbárie não há como duvidar, mas a cultura é
uma ficção que sobrevive apenas enquanto se crê nela. E sua cota de
credibilidade anda bem baixa.
Nos muros de Paris, em
maio de 68, escreveu-se que “A cultura é a inversão da vida”. O mínimo que se
deve fazer é reconhecer esse jogo entre a vida e seu contrário e jogar o jogo,
repetidas vezes, ao infinito, sem grandes preocupações quanto ao vencedor.
FM Como nos lembra Umberto Eco, “o cúmulo da
banalidade deixa entrever uma suspeita de sublime”. Sob esse aspecto, estamos
vivendo o instante do sublime, seu apogeu espetacular. Olhos atentos a tudo o
que passa, à estática velocidade dos novos velhos conceitos. Visões
paratáticas, realidade, irrealidade: onde reside o real atualmente?
TC O problema não seria grande se o banal
fosse vivido intensamente como sensação e ação vividas por cada um. O problema
é o banal ser vivido mediatamente, enquanto símbolo: é o banal do outro, um banal simbolizado, que as
pessoas são levadas a viver. A realidade só existe como elemento da
regularidade e o banal, de todo regular, é a própria imagem da realidade. A
realidade, porém, exatamente porque regularidade — isto é, norma, convenção —,
é experimentada enquanto símbolo. Nada de errado com isso se cada um
construísse seu símbolo. No entanto, por ser facilmente normalizado, o símbolo
pode ser não menos facilmente traficado, comunicado e comprado por outro
enquanto ready-made, enquanto coisa
pronta e acabada e, até, já vivida: basta expor-se ao símbolo para viver a vida
que ele já viveu, para viver a vida que um outro já viveu, na vida verdadeira
ou imaginariamente como nas telas pequenas e grandes ou nos romances. Todo o
real é vivido assim, como símbolo; o banal, parte do real, não é menos símbolo.
O real, hoje, está no símbolo — e à fantasia, ao imaginário, se atribui o lugar
da sensação e da ação, o lugar do ícone e do índice. O real deveria estar na
somatória dos três níveis: sensação
transformada em ação e abstraída em norma ou lei ou argumentação. Nosso
real, hoje, está — fragmentariamente, ideologicamente — apenas no terceiro
nível. Como uma casa que só tivesse telhado, sem paredes e sem estruturas para
suportar o telhado. Mas o telhado está ali, acreditamos que ele está ali e ele
até nos protege da chuva — protege pelo menos a cabeça da chuva, mas nossos pés
estão na poça d’água. Talvez por isso temos tanta frieira mental.
FM Vivemos sob o signo orgíaco da moda. O
desejo dopado/aturdido pela velocidade vertiginosa de todas as coisas que o
cercam, multiplicação avassaladora dos mídias. Daí que a nossa crise central
seja uma crise do desejo. A pergunta certamente seria se há saída para tal
crise, mas você já disse que talvez não, que “talvez a única coisa que se possa
fazer seja aprender com ela a estabelecer novos conceitos, novos modos de vida,
nova organização e distribuição do tempo”. Acha mesmo isto possível, digo, este
convívio com a crise, sem que sejamos totalmente devorados por ela?
TC Devemos ser muitos os que não suportamos
mais a arenga sobre A Crise e todas as crises-ramais. Que significado está
coberto e encoberto pela palavra crise?
“Alteração que sobrevém no curso de uma doença.” “Acidente repentino que
sobrevém numa pessoa em estado aparente de boa saúde, ou agravamento brusco de
um estado crônico.” Ou então, de outro lado: “Manifestação violenta e repentina
de ruptura de equilíbrio.” “Fase difícil na evolução das coisas.”
De um lado, a ideia de
crise como alteração no curso de uma doença ou alteração em um estado de aparente saúde, isto é, de doença real.
De outro, a ideia de crise como perturbação de um equilíbrio, de um curso
ordeiro das coisas.
É normal que se
prefira ficar com o segundo conceito de crise, é compreensível que se
privilegie a ideia de que as coisas vão normalmente
bem e que a crise sobrevém para perturbar essa tranquilidade. O primeiro
sentido de crise, no entanto, é mais antigo e historicamente, parece, mais
adequado — particularmente quando se pensa na história das sociedades. As
sociedades — e tudo que as compõe, inclusive os desejos — sempre estiveram
doentes e as crises nada mais são do que alterações de intensidade nesse
estado, não alterações de qualidade. Prova de que as sociedades sempre tiveram
como estado normal a doença são as utopias. Sem a desordem, a desorganização, a
entropia — a doença — não se pensa em forjar utopias.
Hoje não está pior do
que ontem, hoje a crise não é mais grave que a de ontem, hoje o desejo não está
mais sufocado ou desorientado ou falsificado do que ontem. O que se faz é viver
cada um desses momentos, o momento de ontem e o momento de hoje, e o que ocorre
é que frequentemente essa vivência se dá em estado de crise num terceiro
sentido dessa palavra, o de tensão, conflito. A tensão é tão inerente à vida
quanto seu oposto, a distensão. Será talvez incômodo aceitar essa ideia mas de
outro lado não nos adianta muito ficar acusando a existência dessa crise — isto
é, alimentando-a — e deplorando que ela exista.
A crise de hoje não é
maior do que a de ontem — a não ser que se transfira para o campo social e
humano a tendência para a entropia, para a desorganização, de que falam os
físicos referindo-se ao universo ou, pelo menos, ao nosso sistema solar, à
nossa galáxia.
A crise é um dado de
nossa existência. Então, poderíamos manipulá-la como se manipulam as palavras
em literatura, que procede ao contrário da poesia: nesta, as palavras aparecem
em plano próximo; na literatura, elas se tornam transparentes, funcionam mais
como meio do que como fim. Os sociólogos, entre outros, adoram fazer dos meios
da arte e da literatura seus próprios fins: não falam através da crise, por exemplo, mas da crise. São tão ineficazes na resolução desse problema quanto os
artistas e escritores e poetas e cineastas. São também, frequentemente, muito
mais aborrecidos e exasperantes do que estes. Prefiro os artistas.
FM Nos dás notícias de que temos um
considerável patrimônio cultural nacional. No entanto, a gerência desse
patrimônio esbarra sempre nas tradicionais desculpas das dificuldades
econômicas e da incultura de seu (nosso) público. Então não temos patrimônio algum.
O que temos é um simulacro de patrimônio, servindo unicamente para fortalecer
os costados de sua inoperância.
TC Perguntar se temos ou não um patrimônio
cultural equivale a perguntar se temos uma cultura. Temos uma cultura ou,
apenas, efeitos de cultura?
A cultura, como todo
sistema de produção, é um processo que, para ser completo, atravessa quatro
fases: 1) a produção propriamente dita, quando o produto ou bem cultural, como
se queira chamá-lo, é materializado: a feitura de um filme, a composição de uma
obra musical, a escritura de um romance; 2) a distribuição, momento em que o
produto cultural sai da esfera fechada e restrita de seu produtor para começar
a circular por outros domínios, mais amplos e gerais: é o caso da distribuidora
que leva as latas do filme aos cinemas que o exibirão; 3) a troca, instante da
aproximação entre o produto cultural e aquele que vai usá-lo ou apenas
consumi-lo e que é regido pelas leis sociais em vigor: as pessoas devem ou não
depositar algum dinheiro na bilheteria do cinema para poderem ver o filme: têm
de pagar menos ou mais por isso e, portanto, têm de trabalhar tanto ou quanto
para terem acesso a esse filme; e 4) o uso, que é a apropriação concreta do bem
pela pessoa, o momento em que ser humano e produto cultural fundem-se num só — quando
o processo falha, aqui, não se tem o uso mas, apenas, o consumo: espreme-se
algum suquinho, sente-se um cheirinho da coisa e joga-se o mais importante
fora.
Pode-se ter a produção
perfeita sem que haja distribuição (há dezenas de filmes brasileiros nas
prateleiras de embrafilmes e museus, filmes nunca exibidos comercialmente por
cinema algum). Pode-se ter produção e distribuição sem que se dê a troca:
filmes são exibidos mas uma parcela da população não os pode ver, apenas por
não ter dinheiro bastante para isso. E pode-se ter produção, distribuição e
troca sem que se use o produto: o
filme foi feito e distribuído, a pessoa comprou o ingresso ou o Estado assegura
seu direito de ver o filme gratuitamente mas esse filme nada lhe diz simplesmente
porque ela não estava preparada para recebê-lo. Pense-se numa livraria
abarrotada de livros e, do outro lado da vitrina, analfabetos…
O que há no Brasil é
um processo cultural capenga, durante longo tempo entregue à própria sorte ou
então, como durante os últimos vinte anos de ditadura e desde os tempos de
Capanema, orientado apenas para a produção e para os produtores entendidos como
seres privilegiados. É o que fez a EMBRAFILME, a FUNARTE, o INACEN, o INL, etc.
Da distribuição, da troca, do uso, ainda não se pensa, ou quase.
O resultado é que
temos, sim, uma produção e produtos culturais sem que tenhamos uma cultura
entendida enquanto processo completo — ou a temos para pequeníssima parcela da
população, como acontece aliás com todo o resto neste país. Temos uma cultura e
ao mesmo tempo um simulacro de cultura. Nossa realidade não é feita de
componentes mutuamente excludentes.
FM Roland Barthes comenta que se poderia chamar as sociedades em
que a revolução triunfou de “sociedades decepcionantes”, uma vez que o triunfo
da revolução é a constatação última de que o Estado não se enfraqueceu. Sua
experiência de Cuba diz o mesmo? Ainda há saídas para o socialismo?
TC Não estou em nada preocupado com as
saídas possíveis para o socialismo — ou qualquer outro regime político. Há
muito tempo deixei de sacar contra certos sistemas
para investir em
outros. Interessa-me saber se há saídas para o homem.
O que se poderia
perguntar é se há saída para o homem independentemente da existência de um
Estado e, talvez, de um Estado forte. No começo do século ainda era possível
para um grupo de pessoas refugiar-se no interior do Paraná e mais ou menos
brincar de instalar ali uma comunidade autônoma e razoavelmente comunizante
onde o controle da vida estava nas mãos de todos. Aparentemente, não estava nas
mãos de ninguém, três anos depois de fundada a Colônia praticamente se
extinguira… De todo modo, era vagamente viável pensar numa ideia como essa.
Hoje, com sociedades compostas por centenas de milhões de pessoas, fazer de
conta que se acredita na possibilidade de uma vida civilizada sem a
intermediação do Estado, ou que esta vida é praticável no regime da
livre-iniciativa e na regulação natural
das relações sociais, é dar mostras de um infantilismo aceitável apenas quando
proveniente de crianças biologicamente crianças, nunca de crianças barbudas ou
adultificadas.
O problema não é tanto
a existência ou não de um Estado, e de um Estado forte ou fraco. A questão é
contar com um Estado identificado com a nação ou, quando esta não existe, como
parece ser ainda nosso caso, um Estado pelo menos identificado com a sociedade.
Esta parece ser a saída para o homem em sociedade. A única que talvez ainda se possa
tentar.
Quanto às “sociedades
decepcionantes”, aquelas onde a Revolução triunfou, é preciso ver as coisas
dentro de alguma perspectiva histórica. Elas são de fato, por um lado,
decepcionantes: talvez quiséssemos todos que, uma vez no poder, a Revolução
apertasse um botão e todos passassem a ter TV e carro e roupas finas e livros
de arte ilustrados e tantas outras coisas mais, além da liberdade politica em si. Muito disso não
existe em Cuba, por exemplo, e sob esse aspecto talvez se possa dizer que a
experiência cubana decepcionou. De outro lado, nossa memória histórica, às
vezes intencionalmente curta demais, se esquece de que Cuba ante de 1959 era
literalmente um bordel econômico, turístico e sexual dos EUA. Isso Cuba não é
mais. Os cubanos mais velhos não se esquecem disso. Os jovens, nascidos com a
Revolução, nem sabem, nem querem saber de nada disso. É um problema. Para eles,
a Revolução será talvez uma decepção. Mas, não creio que caiba a eles ou aos
que estão de fora determinar a orientação da resultante que deriva de todo o
processo.
É curioso que se possa
falar dessas sociedades como decepcionantes. É mais esdrúxulo ainda que um
francês possa referir-se a elas como decepcionantes. Em primeiro lugar, o que
são sociedades como a nossa, aqui no Brasil, senão decepcionantes,
profundamente decepcionantes? E se uma sociedade como a francesa — onde uma
Revolução também triunfou um dia e onde o Estado não é em nada tão fraco assim —
não é decepcionante, ou inteiramente decepcionante (e como ela as sociedades
inglesa, italiana, alemã, etc., etc., etc.), é porque não apenas contam com a
bagagem cultural de séculos e séculos atrás de si, ou sob seus pés, como também
porque puderam pagar-se o preço dessa não-decepção graças ao saque desenfreado
de toda a América Latina e de toda a África e de toda a Ásia. E houve sobras dessa ação também para cima da
União Soviética, sangrada até o último limite pelos Aliados durante a II
Guerra.
Ao lado disso houve,
sem dúvida, fatores endógenos,
digamos, que contribuíram para a decepção: os gulags, a perseguição política variada,
falta de liberdade diversificada, etc. Ingenuidade supor que coisas assim não
se passariam na sociedade revolucionária. O homem é o lobo do homem tanto sob o
capitalismo quanto no comunismo. O que tem sido decepcionante não é a sociedade
onde a revolução triunfou; o que não tem sido muito entusiasmante é a história
da sociedade humana toda.
Isto não significa que
se deva deixar de sonhar com a Revolução ou com uma sociedade
não-decepcionante. Há um verso de Mário Quintana que diz mais ou menos isto: se
as coisas são irrealizáveis, isto não quer dizer que devamos deixar de
querê-las…
[1987]
[Entrevista com Teixeira Coelho (Brasil, 1944), publicada em Invenção do Brasil. São Paulo: Editora
Descaminhos, 2013. http://www.amazon.com/Inven%C3%A7%C3%A3o-Brasil-entrevistas-Portuguese-Edition-ebook/dp/B00FTBMR24]
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