FM Em 1996, você situava Cidade vertigem como
“um livro sobre a megalópole, poemas e textos imersos no puro delírio
persecutório/labiríntico/atordoante de um meio ambiente cada vez mais adverso à
vida humana e por extensão à poesia”. Qual o saldo desta aventura? De que
maneira você considera satisfatória a aventura deste livro?
AHN A publicação de Cidade vertigem me deu grande
prazer. Realizá-lo foi, sem dúvida, uma aventura. É verdade que, desde o início
de minha trajetória poética, a preocupação com a vida humana nas grandes cidades
industriais modernas sempre se mostrou presente. Mas foi a partir de 1985 que
resolvi trabalhar um projeto com temática bem definida. Ou seja, iniciei, mais
ou menos naquela data, a construção do livro sobre a cidade. Quando fui
realizar doutorado na Escola de Comunicação da UFRJ, em 1993, propus como tese
desenvolver um trabalho a partir daquele longo poema que vinha escrevendo sobre
a ideia de cidade: busquei então “explicitar” as fontes que havia utilizado
para a produção do poema, “explicando” assim a sua gênese, ou melhor,
descrevendo os processos e os caminhos utilizados pelo eu literário (ou
subjetividade do autor, ou ainda a tal voz poética). Foram escritos, assim,
vários ensaios que procuraram dar conta dos principais assuntos tratados no
poema: entre outros, a presença da utopia desde Platão até a atualidade; o
exame da história da cidade e de algumas ideias de urbanistas que sempre me
interessaram; e um passeio pelas visões urbanas de escritores como Baudelaire,
Eliot, Kafka e Joyce. Utilizei também a prosa poética na forma de uma passagem
do poema para os ensaios. Enfim, busquei revelar, pela linguagem, os
delirantes, complexos e labirínticos mecanismos daquele “monstro” que se
convencionou chamar de megalópole, esse meio ambiente adverso a tantos sonhos e
esperanças. Quando, recentemente, fui dar forma final ao livro, procurei
estruturá-lo sem me preocupar com um formato de tese, montando os textos (e
escrevendo novos) com total liberdade, de modo que o resultado ficasse o mais
interessante possível para o leitor.
FM No livro, você recolhe inúmeros depoimentos. Um
deles é de Ferreira Gullar: “Uma cidade/ é um amontoado de gente que não
planta/ e que come o que compra/ e pra comprar se vende”. Contudo, o livro não
se limita a uma visão pessimista do homem e de sua condição urbana. Sob esse
prisma, qual a utopia do Afonso Henriques Neto?
AHN É isso mesmo: o livro busca uma visão bastante abrangente
do assunto, não se limitando à óbvia crítica dos aspectos desumanos da
megalópole. A grande cidade tem a nos oferecer também possibilidades luminosas.
Minha utopia permanece na direção de um humanismo socialista: educação, saúde,
habitação, trabalho, liberdade e lazer para todos. O cinismo contemporâneo pode
até falar na ingenuidade dessa formulação, colocada assim de maneira tosca
(afinal, todos querem isso), mas, do meu ponto de vista, o trabalho poético
quer sempre contribuir para o sonho de se tentar construir um homem melhor, que
possa viver numa sociedade mais tolerante, defensora da justiça e da paz (mesmo
quando a poesia vem carregada de conflitos, de sangue, de guerra: reflexo da
crua realidade que nos submete ou que, ao longo dos séculos, nos submeteu).
Seja como for, sempre procurei pensar uma cidade mais democrática, socialmente
mais equilibrada, mais humana, e, se o nome disso é utopia, sigo com ela.
FM Numa entrevista à revista Azougue , você observou
que “a cultura de massa em todos os seus desdobramentos, inclusive pelos
caminhos da informática, tem levado a uma mudança para pior na construção de
obras literárias”. Num depoimento à revista Poesia Sempre ,
você destacou “a profunda crise atualmente vivida em função da multipresença da
imagem televisiva e de certo tipo de retórica imbecilizante que invade a
comunicação de massa”. De que maneira a poesia se sente, efetivamente, impedida
por tais aspectos, e o que tem se modificado nesses últimos oito anos em que
supostamente os poetas já deveriam ter aprendido a combater essa pirotecnia?
AHN Vamos separar as coisas para que fique mais claro o meu
pensamento sobre essa tal cultura de massa. De um lado coloquemos a literatura
de massa: são, por exemplo, os romances escritos para um amplo público,
seguindo determinados padrões de estrutura e de estilo, com situações e
personagens modelados pelo (ou colados ao) senso comum (falamos de um Sidney
Sheldon ou de um Paulo Coelho). É óbvio que há que se ter “talento” para bem
trabalhar nesse registro, pois o sucesso não está garantido pela simples
aplicação de fórmulas mais do que gastas. Do outro lado do estereótipo, se
movimentam as estranhas atmosferas que trocam de sinal todo o tempo, um oceano
que se move no registro da permanente invenção, o reino sem palavras que
costumamos chamar de espaço mitopoético (e que só pode ser tocado,
paradoxalmente, por meio da utilização dessas palavras há muito gastas). Roland
Barthes vai dizer que a literatura é o logro consciente, o jogo inventado pelo
escritor para fugir do lugar-comum, esse monstro emboscado na curva de cada
signo, de cada palavra. É por isso que a poesia “vende pouco”, nada tendo que
ver com o universo da comunicação de massa: no poema circula uma linguagem
rarefeita, uma língua sem traduções nítidas, delírio a dançar o infinito (mesmo
que seja só jogo…). Portanto, penso que o poeta não deve se preocupar em
excesso com a retórica imbecilizante de toda a comunicação de massa (ela estará
sempre presente em todas as mídias, na sociedade do dinheiro/espetáculo, no
discurso do mesmo, da redundância): o poeta precisa é afiar as suas armas e
gastar a sua energia na produção de uma obra que valha a pena. Pois todo mundo
sabe que a arte ajuda demais na construção do sentido/caminho para uma vida
mais rica, mais plena.
FM Nos poetas da geração de 70, havia um certo
descuido com a linguagem. Saltamos de uma geração que aparentemente tinha o que
dizer, sem saber como fazê-lo, para uma que aprendeu o domínio de uma técnica —
mas que nada tem a dizer. Como você vê essa passagem, havendo mesmo uma?
AHN O mundo literário, como tudo mais, não é simples. Disse uma
vez, em entrevista, sobre a minha “impregnação literária”, fruto principalmente
da convivência com o meu pai poeta e com os livros da biblioteca dele. E falei
também de certo “descaso” dos poetas da minha geração com a linguagem e com a
busca de uma sólida formação literária. Mas veja o exemplo do Cacaso, um dos
bons nomes da geração: ele produzia muitos poemas com certo ar “largado”,
trabalhando dentro do registro coloquial, com pitadas irônicas um pouco à moda
dos modernistas de 1922, mas todo mundo sabia de sua excelente formação
literária, sendo ele inclusive professor de literatura (o ar “largado” era uma
construção consciente). O mesmo aconteceu com a Ana Cristina César, com o
Eudoro Augusto. O Francisco Alvim também produz obra bem construída e de grande
força lírica, e nos seus poemas sempre ficaram nítidas as influências de vários
mestres, como Drummond e Bandeira. Chacal, que já pertence ao time dos que não
lidam de forma contumaz com o passado literário, aposta mais no seu “faro”
poético, produzindo um trabalho de muita qualidade. E assim a coisa vai. A
minha crítica ao “relaxo” de alguns poetas pode ser aplicada em qualquer tempo.
O problema é que, como a tal “geração marginal” trabalhou muito no campo do
coloquial, ficou mais difícil separar o joio do trigo. Mas ainda prefiro a
atitude visceral da geração de 1970 do que certa retórica beletrista que vem
povoando os livros de hoje: não basta o domínio técnico, uma certa postura
formalista, para se fazer um bom poeta. O melhor, talvez, seja juntar as duas
coisas: visceralidade e consciência técnica. Mas uma coisa é certa: se você
quiser mesmo saber o que é grande literatura, siga os passos de Ezra Pound e
procure Homero, Safo, Propércio, Catulo, Dante, Shakespeare, Camões, Fernando
Pessoa. No Brasil, Gregório de Matos, Gonçalves Dias, Castro Alves, Augusto dos
Anjos, Alphonsus de Guimaraens, Cruz e Sousa e os modernos.
FM Concordo com você em relação a Jorge de Lima e
Murilo Mendes. Eles “alcançam grandiosidade imagética a partir de um
catolicismo vivido na profundidade da presença de um Cristo cósmico, arquiteto
de todas as tessituras da vida e da morte etc”. Encontramos essa mesma dimensão
ou zona de tensão, por exemplo, em um poeta como o boliviano Jaime Sáenz
(1921-1985). No Brasil, Jorge e Murilo acabaram sendo vítimas de um duplo
preconceito, mal compreendidos ora por serem católicos, ora por serem
surrealistas. Essa ausência de uma coexistência de princípios opostos entre nós
não lhe parece impeditiva de certo crescimento existencial, garantia inclusive
de uma miserabilidade intelectual?
AHN Sem dúvida alguma. Murilo Mendes e Jorge de Lima foram “esquecidos”
por longo tempo por serem católicos e desenvolverem suas imagens a partir da
estranheza do universo surrealista. Até hoje ainda esbarramos com esses
preconceitos, apesar de eles se encontrarem mais diluídos. Acho que Murilo e
Jorge são atualmente curtidos com mais liberdade, sem essa bobagem de “esquerda”
ou “direita” no mundo da qualidade literária, e isso é muito bom. A verdade é
que os melhores poetas apresentam sempre múltiplas faces no seu trabalho, pois
a mente humana não é linear, e sim exemplo bem acabado do que hoje se costuma
chamar de campo da complexidade.
[2005]
[Entrevista com Afonso Henriques Neto (Brasil, 1944), publicada em Invenção
do Brasil. São Paulo: Editora Descaminhos, 2013. http://www.amazon.com/Inven%C3%A7%C3%A3o-Brasil-entrevistas-Portuguese-Edition-ebook/dp/B00FTBMR24]
Nenhum comentário:
Postar um comentário