FM Acaso se poderia falar
em um primeiro momento onde sentes uma inclinação para a poesia ou a filosofia,
algum momento em que ambas te pareçam conflitantes? E de que maneira uma
transborda na esfera da outra?
AC São impulsos muito
diferentes os que me levam a querer escrever um poema dos que me levam a querer
escrever um ensaio filosófico. Para mim, a filosofia consiste no empreendimento
racional de crítica sistemática das ilusões e das ideologias que pretendem congelar
ou cercear a vida. Para tanto, ela precisa conhecer e expor a verdade.
A poesia é a atividade em que ponho em jogo, até
onde não possam mais ir, todos os meus recursos — todo o meu intelecto, toda a
minha sensibilidade, toda a minha intuição, toda a minha razão, toda a minha
experiência, todo o meu vocabulário, todo o meu conhecimento — a serviço de uma
expressão concentrada da vida, numa escritura que mereça intrinsecamente
existir.
Entre outras coisas, a filosofia defende e
guarda o espaço da poesia; para tanto, porém, ela não deve ser poética, mas
veraz.
Por outro lado, é evidente que a filosofia é um —
mas apenas um — dos elementos que posso pôr em jogo, ao escrever poemas.
FM Poderíamos dizer então
que defendes que em ambas a relação entre conteúdo e continente deva ser
recíproca, ou crês que a filosofia teria um vínculo maior com a imanência ao
passo que à poesia coubesse mais ambientar-se com a transcendência?
AC Na boa poesia, é
impossível separar conteúdo de continente. No limite, o bom poema é
intraduzível. O próprio material imediato da poesia são as palavras. Mas penso
que a boa filosofia não é poesia. O seu material são conceitos que podem ser
expressos por intermédio de diferentes palavras. Ao contrário de Heidegger ou
de Wittgenstein, que, cada um à sua maneira, movido por um intenso ódio à
modernidade, tentou relativizar a própria razão, penso que, em última análise,
as palavras devem e podem ser continentes arbitrários para os conteúdos da
filosofia.
A filosofia deve em primeiro lugar defender as
suas próprias condições de possibilidade. Em segundo lugar, porém, ela é a
expressão necessária do princípio da necessidade reduzido ao mínimo, isto é,
reduzido à mera função de proteger a vigência máxima do princípio da liberdade;
em outras palavras, é o mínimo de não-poesia necessário para garantir-se o
máximo de poesia no mundo.
Em outras palavras, tenho a poesia como
hierarquicamente superior à filosofia, pois esta existe em virtude da
necessidade de defender aquela. Isto, porém, significa que, para mim, é a
poesia que é autotélica, isto é, que tem a sua finalidade em si própria,
enquanto que a filosofia é heterotélica, isto é, tem a sua finalidade na defesa
da liberdade, inclusive da liberdade poética.
Quanto à questão de imanência versus transcendência, tenho que
confessar que me é inconcebível qualquer transcendência radical e absoluta,
isto é, religiosa. Não concebo a transcendência senão relativa, no interior de
uma imanência última. Dito isto, a poesia pode ser tomada como o exercício e o
esplendor da transcendência na imanência.
FM Estava lendo um livro
do Luther Link (The Devil, 1995), e
há uma passagem em que diz que “às vezes a fonte de uma obra é a própria obra”,
salientando que “os diabos com asas de morcego de Giotto parecem ser um exemplo
específico disso”. Poderíamos pensar em uma fonte revelável de tua poética?
AC Concordo com a
afirmação de que muitas vezes a fonte da obra é a própria obra. Mas acho que a
verdadeira fonte de uma poética não é
revelável; ou, pelo menos, não é revelável para o próprio poeta. Para mim, a
fonte e o fim se confundem num ponto de fuga ao qual a minha visão e a minha
razão instrumental não têm acesso pleno. Estas são muito adequadas para falar
de meios, e o que dizem, quando são totalmente lúcidas, é que os meios dependem
dos fins; ora, dos fins (que, de novo, se confundem com as fontes), elas não
sabem falar.
FM O Eduardo Lourenço
refere-se a um aspecto essencial na poesia, uma natural exigência de “que
inequivocamente a leiamos nos poemas mesmos e não que deles a extraiamos depois
de lá a ter metido”. Concordas com isto? E de que maneira podemos situar na
filosofia essa “dimensão inultrapassável da poesia”, segundo Fernando
Guimarães?
AC Concordo. O que metemos
num poema não é o que faz com que um poema seja um poema: não é o que faz com
que um poema mereça existir. O que faz com que um poema seja um poema — isto é,
a poesia propriamente dita — é algo que não pode ser nem metido num poema nem
extraído dele. Filosoficamente, a poesia é, como diz Kant, falando da beleza,
um universal sem conceito.
FM O Caetano Veloso
comenta que, durante a coincidente estadia de vocês em Londres, nos anos 60,
tua relação com a Tropicália expressava um “entusiasmo contido”. Qual seria a
dimensão desse entusiasmo, e de que maneira te sentias integrado ao movimento?
AC Não participei da
Tropicália e, quando conheci o Caetano, esse movimento já tinha terminado.
Antes disso, porém, eu já avaliava a importância enorme da Tropicália na
cultura brasileira. Entendo-a como um movimento libertário que, entre outras
coisas, explodiu os muros ideológicos elitistas que pretendiam desclassificar
tudo o que não se enquadrasse em estreitos parâmetros nacionalistas,
bom-gostistas e pseudo-machistas dentro dos quais se pretendia confinar a
produção cultural brasileira. Em termos de música, ela completou o processo,
iniciado pela bossa-nova, de elucidação conceitual da natureza da música
popular brasileira, em particular, e da música popular, em geral. Falo
detalhadamente desse assunto num artigo que está publicado na revista Continente, no número de setembro deste
ano.
FM O nacionalismo
populista que então se combatia — e não somente com o Tropicalismo, mas também
com a atenção voltada para a Beat, o pop, o Surrealismo etc. — hoje se encontra
substituído pelas táticas de consumo. A própria afirmação do novo não vai mais
além do acento nas repetições e diluições de fórmulas já de todo reveladas.
Recordo aqui tua clara distinção entre progresso artístico e cognitivo. Não te
parece que o dilema permanece, apenas atualizados os mecanismos de negação dos
valores universais?
AC Na resposta anterior,
mencionei o papel de elucidação conceitual que o Tropicalismo teve na música
popular brasileira. Ele é equivalente ao papel que a arte conceitual teve na
pintura. Em outras palavras, o Tropicalismo é arte conceitual. Depois da
elucidação que ele fez, a música popular brasileira se livrou de todas as
restrições formais ou temáticas que lhe eram impostas em nome do epíteto “popular”
ou em nome do epíteto “brasileira”. Isso não quer dizer que tudo seja bom, ou
que valha tudo. Quer dizer apenas que não se pode a priori determinar o que é que é bom ou o que é que vale. Cada
obra de arte é sui generis e exige
ser considerada em si. Isso
é o que todo artista sabe ou deve saber. O fato de que a indústria cultural e o
grande público ignorem essa lição da arte conceitual é outra questão, que
interessa antes ao sociólogo do que ao artista. De todo modo, a elucidação
conceitual só precisa ser feita uma vez em cada arte e o Tropicalismo já a fez,
no que diz respeito à música popular.
FM Ao referir-se à
influência da metafísica sobre as culturas de uma maneira em geral, Michel
Leiris distinguiu as sociedades primitivas daquelas a que supostamente
pertencemos recorrendo a uma característica nossa de “irremediavelmente
degenerados”. O que pretende conservar hoje a filosofia ao buscar uma aplicação
na realidade?
AC Não conheço o texto nem
o contexto em que Leiris
diz isso, mas, prima facie, a
distinção entre culturas primitivas e culturas degeneradas é inaceitável. “Degenerado”
é o que se afastou da sua raça ou linhagem, ou das qualidades que a ela são
atribuídas. Nas culturas tradicionais, baseadas em castas, é a aristocracia que
cultiva a sua linhagem, da qual pretende que derivem os seus privilégios.
Servos ou escravos não têm linhagem que se preze. O mesmo ocorre com as
culturas racistas, tais como os nazistas alemães, os brancos sul-africanos, na
época do Apartheid, ou os brancos do sul dos Estados Unidos. É por isso que, em
tais culturas, afastar-se da sua linhagem é uma coisa terrível, de modo que
nada lhes parece pior do que o adultério e a miscigenação. Na realidade, porém,
toda cultura surge ou progride como “degeneração” de uma cultura anterior. Onde
há mais cultura é onde há mais mistura. Entende-se assim que, no Ocidente, as
grandes culturas e a própria civilização tenham surgido no leste do
Mediterrâneo, onde se encontram os caminhos da Ásia, da África e da Europa.
Toda cultura humana já é “degeneração” da natureza. Mais ainda, cada espécie
que surge na evolução é a “degeneração” de uma espécie anterior. O caráter
primitivo das “culturas primitivas” está no fato de ignorar a sua condição “degenerada”.
Outra observação: os nazistas consideravam toda
a arte moderna como “entartete”, isto
é, degenerada e, como se sabe, fizeram, em 1937, uma exposição destinada a
ridicularizar a chamada “arte degenerada”. Pois bem, eles tinham razão. Dizer,
como eu disse acima, que cada obra de arte moderna é sui generis é exatamente dizer que ela se separa do genus, da raça, a que tradicionalmente
pertencia. Isto significa que, fazendo-se degenerada, cada obra de arte
constitui o seu próprio genus,
constitui a sua raça individual. Em outras palavras, os nazistas desprezavam
exatamente o feito — cognitivo — de que os artistas modernos mais podem se
orgulhar.
FM Leiris mostrava-se
então cegamente apaixonado pelas culturas africanas. A miscigenação está na
outra ponta desse conceito de “raça individual”. Mesmo recorrendo ao que o
mercado absorve e expele como “world music”, o fato é que há um caráter excludente
na cultura europeia que ainda é determinante entre nós. Uma intensificação de
misturas em escala planetária de que maneira se confunde com um aproveitamento
para erradicação de algumas culturas?
AC Não creio que o mercado
tenha realmente interesse positivo em erradicar cultura alguma. O que realmente
me parece acontecer é que as diferentes culturas se apresentam, ao mundo
moderno, como diferentes opções de vida, que podem ser livremente adotadas ou rejeitadas:
e adotadas ou rejeitadas não só por razões profundas, mas também por razões
superficiais; não só por razões sérias, mas também por razões fúteis: e isso é
explorado pelo mercado. Mais ainda é explorado o fato de que elementos de
diferentes culturas podem perfeitamente ser destacados da cultura em que se
integravam ritual ou miticamente, e transportados para outras culturas, às
quais se integram de modos inteiramente imprevisíveis. Assim, no Leblon,
come-se sushi com fois-gras, acompanhado por vinho australiano, ao som ora de
Belchior ora de Madonna. Mas o fato de que assim seja significa que o homem
moderno já fez a opção fundamental por uma atitude crítica, uma atitude de
distanciamento em relação a todas as culturas, inclusive àquela em que, acidentalmente,
nasceu. Lévi-Strauss dizia que, quando jovem, defendia as culturas “primitivas”
que estavam ameaçadas de desaparecer, mas que, depois de velho, percebeu que a
própria cultura europeia estava ameaçada de desaparecer: e passou a defendê-la.
Na verdade, não acho que cultura alguma esteja ameaçada de desaparecer. O que
acontece é que a instância fundamental, a instância decisiva, a instância
última da subjetividade, a metalinguagem das metalinguagens é hoje a instância
crítica, que é individual e não pertence a cultura alguma, mas sim à
modernidade, isto é, à civilização, que é a meta-cultura. Ante essa instância,
todos os ingredientes de todas as culturas — da brasileira, da francesa, da
alemã, da americana — são meras opções individuais. Todas as culturas
sobrevivem nos museus ou nos shopping centers, mas nenhuma é essencial: todas
são acidentais, todas são contingentes, todas são disponíveis e descartáveis.
Mas estou longe de lamentar que seja assim. Este é o meu mundo. Eu detestaria
viver num mundo pré-moderno.
FM Recordo uma afirmação
tua de que “a poesia é compatível com uma infinidade de formas”. O assunto
seria de todo óbvio não fosse o fato de que vez por outra ouvimos falar no
anacronismo do soneto ou na rejeição à letra de canção como eventual
protagonista do poético. Não te parece que de alguma maneira idealizamos um
modelo de vanguarda, estritamente formalista e congelado no tempo?
AC Sim. Estou convencido
de que a vanguarda, tendo cumprido a sua função libertadora, acabou. O legado
da vanguarda foi a desfetichização das formas tradicionais. O fetiche, como o
feitiço, é um objeto ao qual falsamente se atribuem poderes mágicos. Um exemplo
muito claro de fetiche é a rima. Os poemas gregos e latinos não eram rimados. A
rima é uma invenção da era medieval adequada às línguas modernas. No século
XIX, ela já tinha sido tão associada à poesia, já que a maioria esmagadora dos
poemas que se faziam eram rimados que, por um lado, o que não fosse rimado não
era tomado como poesia e, por outro, um conjunto de versos rimados era
automaticamente tomado como poesia. É porque à rima se atribui, desse modo, o
poder de produzir poesia, que ela é um fetiche. Ora, o modernismo do século XX
deu preferência aos versos brancos, sem rima. Inicialmente, questionava-se se
tais versos podiam ser considerados poesia. Com o tempo, porém, a qualidade
patente de muitos de tais versos tornou impossível negar que fossem poesia: o
que também chamou atenção para o fato de que a maioria esmagadora dos versos
rimados não chegava a ser poesia, no sentido forte da palavra, isto é, de que
não chegava a ser boa poesia. Estava assim desmascarado o caráter de fetiche da
rima.
Ao desencantar as formas encantadas, a vanguarda
mostrou que a poesia ou o poético não existe prêt-à-porter à disposição do poeta, nestas ou naquelas formas
fixas ou rimas ou metros ou palavras; inversamente, mostrou também que a poesia
não é necessariamente incompatível com nenhuma forma determinada. Ela se
encontra somente em obras singulares, onde é o produto de uma combinação
absolutamente imprevisível e irreproduzível de fatores que não podem ser
definidos a priori. Mas essa
descoberta é o resultado final da atividade das vanguardas: é o que ficou
depois que elas terminaram o seu trabalho, isto é, depois que percorreram o
caminho que nos trouxe da pré-modernidade à modernidade plena. Esse caminho,
porém, não foi uma linha reta. A história nunca é assim. Antes de desfetichizar
as formas tradicionais, a vanguarda as manteve fetichizadas, porém inverteu o
valor desse feitiço. Se tradicionalmente as formas convencionais haviam sido as
únicas formas admissíveis na poesia, a vanguarda passou a tomá-las como as
únicas formas inadmissíveis na poesia. É o que chamo o “fetichismo negativo” da
vanguarda. Pois bem, o modelo de vanguarda a que você se refere é exatamente o
que ainda praticava o fetichismo negativo. Que pode haver de mais superado?
Por outro lado, dizer que a vanguarda acabou não
é dizer que acabou a poesia experimental. Ao contrário, a poesia experimental
pode ser muito boa e é às vezes brilhante. Apenas, ela não é a única forma
legítima de se fazer poesia, no mundo pós-vanguardista em que vivemos.
FM Recordo uma passagem do
livro Verdade Tropical, em que o
Caetano Veloso diz, a teu respeito: “depois de algum tempo, ele se afastou da
canção para poder dedicar-se àquilo de que mais gosta: filosofia e poesia”.
Houve mesmo esse afastamento?
AC De fato, faço menos
letras hoje. Faço mais poemas para serem lidos. Reconheço-me mais nestes do que
naquelas. Por que? Porque o sentido da letra de música é fazer parte de uma
bela canção. Ora, como não sou compositor nem cantor, a letra que faço é sempre
apenas uma parte — e possivelmente uma parte secundária — da canção que ajudo
meu parceiro ou parceira a fazer. Já o poema que faço vale (ou não vale) por
si, independentemente de qualquer outra consideração. Em suma, uma canção é uma
obra parcialmente minha, enquanto um poema é uma obra totalmente minha.
FM Não te parece que isto
poderia ser remediado com a presença (descoberta) de um parceiro único, um
cúmplice mais cônscio do que pretendes dizer através da canção?
AC Não. Acho que tenho os
melhores parceiros possíveis: que são inteligentes e percebem as minhas
intenções. Mas o que ocorre é que a minha forma de expressão é realmente a
palavra e não a música. Gosto de fazer coisas que possam ser entendidas
imediatamente, num primeiro nível, mas que, para serem realmente apreciadas,
exijam uma concentração, uma atenção para os detalhes e para sugestões que não
são compatíveis com a audição, mas somente com a leitura e a releitura. Ou
seja, a finalidade de tudo o que faço é ser lido.
FM Um dos maiores
equívocos do Surrealismo foi o de considerar a música como uma atividade de
mentalidades inferiores. Breton era tão surdo
quanto João Cabral. E ambos eram essencialmente metódicos, considerando de
menor importância as imagens auditivas. Como vês o assunto?
AC Para dizer a verdade,
com o passar do tempo a música tem se tornado menos importante para mim. Mas a
sonoridade do poema me é fundamental.
FM Suponho que essa menor
importância não é sinal de recusa à música em si, mas antes uma saturação. Eu
sinto o mesmo em relação ao poema e acho bastante natural. Creio que há uma
proporcionalidade no ramo de prostituição das artes a ser observado
corretamente, ou seja, como a música está mais presente nessa tática voraz de
anulação do ser, acredita-se que maneje a sós todos os disparates, digamos.
Contudo, há comportamentos igualmente desprezíveis ou quando menos aborrecidos
verificados no teatro, na poesia, no cinema etc. Não te parece?
AC Não é que eu recuse a
música, mas que a música não é o meu medium artístico. O meu médium é a poesia,
que, por isso, tem uma importância muito maior do que as outras, para mim.
Agora, de fato, acho que é cada dia mais difícil fazer arte, e isso vale para todas
as artes.
FM Tuas observações sobre
a poesia brasileira sempre me parecem muito pertinentes. No entanto, sinto
falta de uma leitura crítica dos poetas da canção popular, que seja feita a
eles uma avaliação correspondente. Acabamos limitando o assunto, simplesmente
enfaixando-o. O que pensas, por exemplo, de um letrista como Belchior? E como
convives com esses pares todos?
AC Acho Belchior muito
bom. De modo geral, acho que há mais letristas bons no Brasil do que nos
Estados Unidos ou na Inglaterra.
FM Tendo a concordar
contigo, mas ao mesmo tempo penso em letristas como Nick Cave ou Tom Waits e
mesmo o canadense Leonard Cohen, que me parecem haver alcançado uma densidade
invejável. Claro que não se deve misturar o assunto tocando no refinamento
harmônico e melódico de nossa canção popular. Não é fácil encontrar um Edu Lobo
a qualquer momento, por exemplo. O que estava sugerindo é que não temos uma
discussão estética sobre a canção popular pensada a partir de seus letristas,
como se não fosse possível detectar ali a presença de algumas sólidas poéticas.
AC Acho que realmente faz
falta esse tipo de estudo. Mas os brasileiros têm uma tendência tão grande ao
corporativismo que esse tipo de discussão tende a se transformar na luta entre
a corporação virtual dos poetas livrescos, que querem negar o título de “poeta”
aos letristas, e a corporação virtual dos letristas, que acham que merecem tal
título. Posta nesses termos, a questão não me interessa.
FM Teu novo livro de
poemas inicia-se com uma indagação (“por onde começar?”) e conclui-se por uma
afirmação (“largar”). Temos aí a ideia do poeta a desfazer-se de si, em busca
do outro, suponho. Que outro buscas através de tua poesia?
AC Eu não poderia
antecipá-lo, defini-lo, nomeá-lo. Busco o que quer que, sendo terrestre,
material, imanente, concreto, temporal, objetivo, empírico, sensual etc. e,
portanto, precário, relativo, acidental, contingente, finito etc., seja também
maravilhoso (quando poderia não ser).
FM Claro, Cícero, claro.
Nem te peço que o prenuncies. Contudo, imagino que cobices algo deste objeto
eternamente inconciliável com teu desejo. Ou não esperas nunca nada de ti?
AC Talvez o que eu queira
dizer seja que o que busco na minha poesia é imanente ao poema, isto é, que se
manifesta exclusivamente no poema, e que, fora do poema, eu não saberia dizer o
que é. É o poema que o traz à vida.
FM Por último uma
provocação: em uma entrevista lembraste aquela do Yeats de que se pode mexer
nos poemas porque eles significam uma mudança ulterior (“é a mim próprio que
estou mudando”). Em um outro diálogo, desta vez a respeito do que se
convencionou chamar de “poesia marginal”, dizes que isto nunca te interessou,
porque “era claro que a poesia não era vida, mas escritura, isto é, produção de
formas”. Então me vem a curiosidade de saber como convives com tal contradição.
AC Acho que essa
contradição é mais aparente do que real. Enquanto poeta, levo a sério a palavra
de Mallarmé segundo a qual o mundo — a vida — existe para virar um livro. Não
penso que a poesia seja simplesmente idêntica à vida porque o poema é, como diz
o belo título de um livro de Drummond, A
vida passada a limpo. Se o poema é a vida passada a limpo, então a vida é o
rascunho do poema. Ora, o rascunho ainda não é o poema. O poema, por sua vez,
já não é mais o rascunho. E o processo de passar a vida a limpo é a poesia, a
poesia-escritura, que faz parte da vida, mas nem se reduz à vida-rascunho nem
ao poema pronto.
Nesses termos, quando Yeats escreve um poema,
está passando a sua vida a limpo. Quando o corrige, ainda está passando a sua
vida a limpo: ainda era rascunho o poema que ele erroneamente pensara estar
pronto. Como, porém, o poema é o telos
da vida do poeta, podemos dizer dele que é o poeta em sua realização
definitiva. É nesse sentido que o poeta muda a si próprio, quando muda um
poema: muda-se “tel qu’en lui-même enfin l’éternité le change”.
[2002]
[Entrevista com Antonio Cícero (Brasil, 1945), publicada em Invenção do Brasil. São Paulo: Editora
Descaminhos, 2013. http://www.amazon.com/Inven%C3%A7%C3%A3o-Brasil-entrevistas-Portuguese-Edition-ebook/dp/B00FTBMR24]
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