FM | Metáforas
colhidas ao céu dos séculos: “poesia como fonte de conhecimento”, “poesia como
um artifício consciente de si”, “poesia como objeto de conversão religiosa,
meditação moral ou ação heróica”, “poesia como fusão dos contrários” etc. De
que maneira a poesia toca o poeta
Sérgio Lima? De onde surge o teu diálogo com o mundo?
SL | A
Poesia é um canto. Um momento ou uma passagem, ou melhor, uma ultrapassagem, um
encanto que é em si mesmo provocação, chamamento para: um movimento do
espírito, certa emoção que co-move.
Vale lembrar que os primeiros cantos confundem-se com as frases balbuciantes
das pitonisas ou ainda com as recitações mágicas. A Poesia conserva por
definição o seu fundamento de relação e/ou transformação com o outro, o seu
sentido, pois, de transgressão e de excessivo na própria expressão do ser. A
Poesia sendo, nas palavras de René Char, “amor que permanece ainda desejo”
mesmo após a sua própria fruição. É por ele que entramos em contato com a nossa
possibilidade do absoluto, pois “o desejo é a medida do humano” (Spinoza).
Aliás, Poesia é inseparável de filosofia – “O lugar particular que a Poesia
ocupa entre as artes decorre de sua articulação com a filosofia”, cf. Gérard Legrand em Dicionário de filosofia. E mais: Poesia
e Erotismo têm o mesmo ponto de partida e o mesmo fim: são transfigurações, por
exemplo: “a analogia entre pintura e amor é que ambos começam em mecânicas e
continuam em poesia […] O todo está em saber o quanto é preciso para jogar a
pessoa pela janela, para cair de quatro como um gato, em algum outro lugar”, cf. André Breton em O Surrealismo e a pintura e Perspective
cavalière. Daí seu caráter de diálogo, de troca, de festa, que a constitui
nessa fala entrecortada e sigilosa, nessa compreensão maravilhosa da beleza que
nos ilumina.
FM
| Disse o poeta irlandês Louis MacNeice que “o poeta é um especialista em
alguma coisa que todo mundo pratica”, ao que acrescento Borges citando Enrique
Banchs em um ensaio sobre Góngora: “Como é seu dever mágico dão flores / as
árvores”. Há um dever mágico nos
poetas?
SL
| O poeta não é um especialista, Lautréamont já o advertira veementemente: “a
poesia deve ser feita por todos” (e não para todos, como o traduzem). O especialista
tem a ver com a noção grega de idiote
que nos deu termos como idiota, idioma etc. Pois é, os especialistas são
os técnicos, quer seja técnico em gramas ou em gramática. O técnico é aquela
pessoa informada por um conhecimento prático, por uma ciência específica, pelas
funções e uso, dados do saber lógico-racional; informação carreada por um texto
modelar, único, enquanto que o artista é formado pela multiplicidade do
sensível como um todo: transparente aos múltiplos sentidos e/ou fazeres,
através de um saber que é inicialmente sabor. O artista é formado assim pelo
saber/fazer e conserva, portanto detém o sentido mais amplo da Arte = o que
permeia a experiência (da relação) com o mundo. Mundo mágico é o mundo da Imagem.
Basta lembrar que toda
discussão da Imagem implica, necessariamente, a discussão da visão de mundo –
algo distante, convenhamos, para o contexto do especialista.
Ser artista é uma
identidade e não uma obrigação ou um dever.
O técnico deve agir em função de um fim ou um princípio exterior a si, enquanto
o artista é, afirma-se em si e a partir de si. Neste sentido, entendo a magia
como o universo da Arte, onde o artista é um mediador ou um “trabalhador do
fundo do mar”, como queria Victor Hugo. Como ele mesmo frisou, a Poesia fala
pela “boca da sombra”. O artista é o que dá passagem a esse dizer outro, ao
débito inapreciável que nos chega, que flui dessa fala mágica.
Como Borges sabia, a magia
de dar flores das árvores só seria um dever sob a Inquisição e suas premissas
e/ou conceituações extra-árvore, ou seja, desde que se coloque um fazedor
metafísico especialista em flores. Dever é a ênfase moral dada a obrigação.
FM
| Concordas com Bachelard ao afirmar que a imaginação é deformadora, que “a
atividade poética consiste em desfazer as imagens”?
SL
| Sim, com o detalhe que Bachelard não diz “desfazer as imagens”, mas sim “deformar
as imagens”, no sentido de dar-formas-de-novo. E mais: Bachelard indica que
esse deformar é a expressão própria
da imaginação, entendida como a atividade específica da ação do imaginário, o
qual não é uma categoria do conhecimento, mas, isto sim, a própria essência da
mobilidade do espírito humano. É justamente a condição de deformar imagens, de
descobrir imagens novas, que caracteriza o movimento
de busca, ou seja, de errâncias do nosso desejo, essa luz que a tudo ilumina. A
propósito, Bachelard, nesse trecho que você menciona, cita a afirmação de
Blake: “A imaginação não é um estado, é a própria existência humana” (no Segundo livro profético), ao que
Bachelard complementa: “Sem dúvida, em sua vida prodigiosa, o imaginário
deposita imagens, porém se apresenta sempre como algo além de suas imagens,
está sempre um pouco mais além do que elas. (Um trabalho de imaginação) é
essencialmente uma aspiração por imagens novas. Corresponde a essa necessidade
essencial de novidade que caracteriza o psiquismo humano. […] A imagem só pode
ser estudada por meio de imagem, sonhando imagens, tal como elas se compõem na
sonhação. […] o que nos interessa é o trabalho contínuo do real ao imaginário
[…] diremos que um elemento material é o princípio de um dado conturbador que
presta continuidade a um psiquismo imaginante […] importa persuadir-se do fato
de que um objeto pode sucessivamente mudar de sentido e de aspecto segundo a
chama poética o alcance, o consuma ou o respeite. […] O imaginário é a ação de
deformar (dar forma) às imagens”. Cito o trecho mencionado porque as traduções
brasileiras têm omitido certas passagens, além de traduzirem revêrie como sonho, fantasia ou
devaneio, descartando a própria característica de ação, de gesto de sonhar que o termo sonhação
pode explicitar mais, como o indicamos nos comentários de O corpo significa (1976).
E, se me permite, costumo
acrescentar ao trecho de Bachelard, nos seminários sobre “A Imagem como
conhecimento sensível”, a seguinte declaração de Novalis, destacada de suas
anotações para a inacabada Enciclopédia:
“Teoria da imaginação. Ela é o poder de tornar plástico. […] A imaginação é a
força fenomenológica”.
FM
| Escreveste Sete cadernos de escrita
automática (1957/1958). Se aceitarmos que não há escrita que não passe pelo
imaginário, poderemos então nos referir à escrita automática (“uma intoxicação
no espírito”, diria Artaud) como um simples jorro de estereótipos?
SL
| Primeiro estabeleçamos o que se entende por automatismo quando se fala de escrita automática ou écriture automatique, na terminologia
francesa.
Desde o primeiro manifesto,
dezembro de 1924, Breton especifica que o automatismo psíquico (e não
psicológico, como em geral o mal entendem) é responsável pelo fluxo da
escritura, e mecanismo primeiro de todo o pensamento; o nosso pensamento
articula-se assim, em processos semelhantes de fluxos e analogias, encadeamentos
e rasgos inesperados – aspectos que foram corroborados, assim, por todos os
enunciados da psicanálise até aquela data e mesmo depois. O pensamento humano é
automático, antes de ser educado para o racional e lógico.
De mais a mais, o fluxo
automático vinha de se destacar nas terapias clínicas justamente por não serem
discursos estereotipados, mas, sim, por apresentarem singularidades e
afloramentos manifestos de um extrato anterior às censuras. A escrita
convencional responde às restrições, aos modelos da escrita permitida, domada e
racionalizada (tipo monólogo interior), “aceita”, seja literária ou outra.
Assim, o que não era aceito ainda era a desordem brotando, livre e selvagem do
caos da escrita mesma. A novidade, portanto, não era o automatismo, mas a
ênfase no fluxo, nesse trajeto “contínuo do real ao imaginário” como vimos
acima, em oposição aos filtros mais
ou menos realistas então em voga, quase sempre implicando uma manipulação
técnica de adequar o fluxo às normas e aos preconceitos existentes, por
exemplo: reduzir o fluxo de poesia à
métrica do verso, ou seja, dito de outra forma, o automatismo psíquico
denunciava uma censura sobre a escrita, fosse essa da Igreja, de um impressionismo
ou de outro -ismo qualquer, quer
dizer, de qualquer a priori moral ou
formal, artístico ou não.
Ora, esse automatismo,
contudo e fato notável, está sempre presente tanto num desenho como numa cópia
caligrafada, numa carta ou num poema, embora encoberto pela convenção que o
qualificará segundo seus meios – enquanto desenho, caligrafia, carta ou poema
por sua versificação. Acontece que tal estágio inicial (de automatismo) é
encoberto, sucessivamente, por conceituações e normas e deveres outros que o
seu senso inicial, ou seja, o seu
sentido primeiro de contato com o todo, com o fundamento sensível/mágico de que
se origina.
A psicanálise já o
demonstrou, a bom tempo e a posteriori
dos poetas (é bom frisar) que desde muito se ocuparam desse jorro, que tal
fluir vem de uma região anterior àquela do discurso codificado, ou seja, o
texto linear. Vem de um substrato comum ao mágico, entendido por uma região
primeva onde o Desejo é soberano.
Como se sabe, a escrita
perdeu todos os sentidos que detinha anteriormente, como o demonstram suas
formas arcaicas (ou criptogramas em tabuletas de argila ou cera e, séculos
depois, os hieróglifos e os ideogramas), ficando reduzida a um código linear,
com a pobreza do abecedário. André Breton, nos Manifestos do Surrealismo,
acentua que a proposta do Surrealismo (a escritura automática ou o débito de
automatismo sendo uma de suas mecânicas ou artifícios) é a de resgatar o
sentido primeiro das palavras para que as mesmas “cessem de se comportar como
destroços num mar morto”, ao sabor das ondas e dos modismos. É uma volta à
palavra inaugural e ao seu sentido de oráculo, de revelação de uma verdade
outra que a dos conceitos e da utilidade imediata. A rigor, pois, é mais do que
uma volta, é uma re-volta. As baterias do Surrealismo eram contra a
mediocridade dos filtros, fossem eles cubistas, futuristas ou construtivistas,
visto que impedem o livre fluxo das imagens, emergentes no débito dessa fonte
perturbadora. O Surrealismo, com a prática do automatismo, reinveste da palavra
mágica a Poesia.
A escritura automática é
aquela que depende de um automatismo e não de um saber teórico. Ela se opõe, por exemplo, à intelectualização tout court.
O que vale dizer: os
estereótipos são justamente o lugar comum do texto linear, ou seja, as figuras da escrita convencional. As palavras
em liberdade, intuídas pelo Futurismo em seu primeiro momento, logo seguidas
pela “imaginação sem fio”, darão lugar no Surrealismo às imagens em liberdade,
essa expressão do Desejo em seu absoluto.
Depois de precisar que “o
amor é icompatível com a leitura dos jornais em voz alta”, Breton sinalizava
que “o amor e a pintura começam em mecânicas que acabam em poesia” (La Route de San Romano).
FM
| Em Andrés Sánchez Robayna – entrelaçamentos de Vico, Góngora, Novalis,
Barthes, Paz, Derrida etc. – sublinho: “O livro é a natureza pensando-se a si mesma,
vendo-se; é a natureza que se escreve e se lê a si mesma”. Estás de acordo?
SL
| Não conheço a obra do autor citado, mas concordo, valendo a ressalva,
contudo, de que a natureza é visão
(fascínio) antes de ser leitura ou um texto. Quando a natureza se escreve, ela
desenha. Os gregos chamavam a isto exatamente de desenho, ou seja, “a grafia do vivente” (zoographikê). Ora, é essa grafia sinuosa e ondulante que a forma e
a conforma e a extravasa. É esse rio de cristal que dá às árvores suas raízes
no céu (Saint-Pol Roux). É essa linfa mágica que embebe todo o seu ser e nos
embriaga. Costumo dizer que o desenho é a exposição de um pensamento e, como
tal, a sua figuração na desordem da beleza. Arte é a mediação desse fluir e,
como tal, enunciadora da natureza em sua cólera primeira, em seu mordente criador (Bachelard). O mundo é
encantamento, é beleza antes de ser pensado. Em tempo, convém reiterar um dos
aforismos contundentes de Nietzsche: “Toda linha reta é uma mentira”.
FM | Recordo aqui um ensaio
sobre T. S. Eliot, em que Ezra Pound o conclui com a seguinte afirmação: “Toda
arte autêntica é realismo, de uma ou de outra espécie”.
SL
| Faço reservas aos dois autores citados, sobretudo quando entendem a arte/a
poesia como invenção, porque justamente para mim arte é a expressão do real. De
outra realidade ou da realidade toda, inteira, não apenas da parte dada,
consumida e aceita – só a face objetiva e a mais imediata – quero tudo e não só
o permitido, o já dado. Novamente me apoio numa constatação de Gérard Legrand: “(A
invenção) é real na ordem técnica, mas duvidosa na ordem científica, ilusória
no domínio artístico e inútil em filosofia. […] A ‘psicologia’ da invenção é do
foro da descrição literária” (Dicionário
de filosofia).
Como invenção faz parte da ordem técnica, ou seja,
da lógica racionalista e não das artes, colocaria esta questão de forma mais
radical. Arte não é invenção, mas sim descobrimento.
Arte é descobrimento porque
revela algo que existe, que é, e não depende do resultado da invenção, do
inventado. O invento depende de fórmulas e regras, de uma informação ou de um
código, pois é fruto da técnica, do fazer informado por uma teoria. A arte de
um templo egípcio não é a sua redução a valores formais ou matemáticos
(inventados, construtivos) mas aquilo que abre para seu sentido extrarreligioso
ou mágico. E mesmo do inventado poderíamos dizer que vale a sua realidade e não a relojoaria do invento.
Como o sublinhava mais recentemente Marcel Duchamp, “a arte não é atividade
criativa, mas um meio de expandir a consciência”.
Existem centenas de
definições para Arte. Sugerimos, ou melhor, preferimos aquelas que incidam no
seu processo de “mais consciência” – “mais luz” disse Goethe. Assim, arte é
consciência da realidade em seu sentido maior, da realidade que engloba o
objetivo e o subjetivo, o consciente e o inconsciente, o todo e o duplo, o
único e o diverso, o mágico e o circunstancial. Arte é a expressão de mais consciência e, por conseguinte, do
excessivo de mais-realidade, e não de um modismo, tampouco do realismo acadêmico ou literário. Arte é
sempre autêntica e como tal uma realidade. O seu realismo ou não é a posteriori, pois não é a escola que
faz a realidade. (Vale frisar que a mais-consciência implica não-escola,
não-norma, não-código etc.) Os surrealistas sempre recusaram a versão ou a
tradução de Surrealismo como super-realismo (termo singularmente
impróprio, como já o observara o próprio Breton), dado que a tradução mais
correta seria mais (consciência da) realidade.
Não é por acaso que um dos
primeiros textos teóricos de maior fôlego de Breton, contemporâneo por assim
dizer do Primeiro Manifesto, é seu “Introdução ao discurso sobre o pouco de
realidade”. O poeta sempre quer tudo, como as crianças e as amadas. Já o sabia
Novalis, que afirmou: “Poesia é o real absoluto”.
FM
| Dirias que o acaso deva ser constantemente objeto de um cálculo rigoroso?
SL
| O termo cálculo reenvia-me imediatamente a Karl Marx e à sua constatação
sobre “as águas gélidas do cálculo egoísta”. O cálculo será sempre uma
economia, a começar da sujeição do sensível a um sentido restrito, one way ou mão única. Aliás, o termo cálculo vem do grego pedrinha, que eram as contas que
permitiam aos mercadores fazer os seus negócios, e foram essas mesmas pedrinhas
que, ligadas por um fio, supõe-se que deram origem ao que se entende por
escrita ou texto, já que introduziram, com esse artifício, a linearidade e/ou o
discursivo, ou seja, a história como historicismo linear, e toda a economia.
Ora, o acaso (“forma
interior da necessidade”, segundo Engels) é entendido no Surrealismo como fruto
do desejo e, portanto, estranho a cálculos. E como tal, como acaso-objetivo,
faz parte das relações, já que se instaura como elo de ligação entre “a
necessidade interna e a urgência externa” (Breton).
FM
| De acordo com Vilém Flusser, “a intenção da colagem é fazer lixo”. Entre o
que se suprime e aquilo que se escolhe, onde reside o collage, essa “linguagem do excesso”, de acordo com tuas palavras?
SL
| A linguagem do excesso, do excessivo, dessa mais-consciência que nos extravasa
e se dá entre, na brecha, na entre-aberta-fenda da visão (e não da técnica)
operatória mágica, da descoberta do envolvimento, no descobrimento do ser é
reveladora, pois “entre o que eu reconheço e o que eu não reconheço, há o eu”
(Breton).
Esse descobrimento é um des/cobrir erótico. O erótico entendido
sempre como um questionamento do ser, e não como uma complacência, seja ela
culposa ou não. Daí a sua linguagem de rupturas, de transgressão, de excesso.
“A tensão reveladora do eu
profundo é o excesso”, diz Georges Bataille.
A intenção da colagem é
fazer lixo, mas não a do collage que,
no mínimo, para manter a terminologia da teoria das comunicações empregada por
Flusser, seria uma reciclagem, e uma reciclagem onde se embrica um “salto
qualitativo” (Hegel) e uma “nova superfície”, aspectos ausentes da colagem
convencional. Outras questões, ausentes da prática da colagem, falam expressamente
do collage, por assim dizer um ramal
plástico da Poesia. Por exemplo, a) collage
é descontínuo; b) collage parte de um
automatismo (analogia mais imprevisto e acaso-objetivo) e não de um
planejamento, construção ou de uma proposição formal; c) collage é interferência
e se articula enquanto linguagem; como tal é território da imagem e não do texto.
Etc.
Enquanto linguagem que
excede e análoga ao transbordamento da Poesia no poético (no caso, no
plástico), o collage é uma linguagem
característica do Surrealismo – tendo sido enunciada primeiramente por Max
Ernst, em 1919, aplicando métodos e/ou recursos da imagem poética (Reverdy) no âmbito das artes plásticas. O mesmo já não
vale para a colagem, que se dá ao nível do material (justaposição de coisas
coladas) e não da linguagem. Sublinhemos que antes da colocação de Max Ernst
não existia o termo collage e, como
ele mesmo disse, “não é cola que faz o collage”.
Quer dizer, colagem, que tem como princípio o mosaico, existe, enquanto
expressão plástica de materiais diversos, desde o século VIII (vejamos: colagem
de tecidos de seda, tipo gravatas, e madeiras de origem chinesa, no Museu de
Antropologia de Nova Dhéli, representando uma paisagem); sua expressão moderna
veio a cristalizar-se nos papéis-colados do Cubismo (via Braque, Matisse, Juan
Gris e Picasso) e do Dada (via Schwitters), ou do Pop Art. No Surrealismo e no collage trata-se de outra coisa – não
mais se parte de um mosaico ou da ideia de um todo exemplar, de um cosmos
perfeito, e nem se usa fragmentos – pois se afirma a descontinuidade e a
própria concepção de um todo, visto que afirmamos a proeminência das partes, dos
pedaços numa grande e nova dinâmica do múltiplo, espécie de desordem que é
sobretudo amálgama da diferença, de mestiçagem ou pluralidade.
FM
| Quando dizes que “a intenção é que qualifica a arte”, isto acaso dá à
intenção um valor superior ao do objeto em si?
SL
| Uso intenção no sentido de intencionalidade, de projeto (pulsão-jato-para) e
não de programa, e menos ainda de intenção moral. A intenção, sendo a
in-tensão-para, é que caracteriza o movimento do espírito. Como se sabe, a
natureza das intenções varia em função da ideia que se tenha das relações
possíveis entre o sujeito e o objeto. Remeto a Hegel ou Kant, ou ainda a
Husserl (note-se o empenho deste último contra o “psicologismo”). O objeto
possui uma articulação com o inconsciente, outra que aquela de
sujeito-e-objeto. A Arte e/ou Poesia, sendo um processo de relação e de
mais-consciência dessa relação, é seu movimento que a qualifica e não sua forma
(que ela deforma, aliás). Quando
Apollinaire fala “Poesia, razão ardente”, ele não está indicando uma forma e
nem um formalismo, entretanto sua afirmação vale tanto para o formal, como para
o informal, para o verso-livre ou para o automatismo, ou mesmo para qualquer
outro tipo de expressão, porque ele enuncia uma razão outra que a do racionalismo,
ou seja, com outro sentido, com outra intenção. (Abro um parêntese para frisar
que o Surrealismo é o contrário do irracional, do fantástico etc.)
Na mesma medida que Arte é
razão ardente, reflexão e gesto, portanto, num campo de relações o objeto (o
feito) não preexiste à relação que o institui: é o uso que faz o objeto, pois o
objeto é fruto de. E mais, o objeto não é o real, mas é apenas “um bom condutor
do real” (M. Fondane). Ampliando um pouco a questão, coloco que o Surrealismo,
como nos disse Breton, é “uma certa filosofia de imanências”, onde prevalece o
campo de relações sobre a coisa em si, onde prevalece, pois, o humano e seu
desejo como natureza intensa sobre as coisas. Assim, no amor, por exemplo, o
Surrealismo privilegia a relação e não o objeto em si, como também não aceita a
Arte como um fim em si, mesmo que fosse a “arte do amor”, vide o caso de Don Juan.
A explanação de Ferdinand Alquié (Filosofia
do Surrealismo) é categórica: “Porém, diferentemente do além religioso, o
além-outro, a mais-realidade surrealista não pode se situar fora do nosso mundo
e nem após a nossa vida. Esse além-outro, esse mais é, paradoxalmente, um au-delà imanente, interior aos próprios
seres cuja experiência nos livra a aparência, cuja percepção nos livra a
presença. Só poderíamos descobrir a manifestação sua em estados desse mundo
mesmo, que todos os homens podem experimentar e onde o objeto, parecendo
ultrapassar a si mesmo, revela-se simultaneamente como cotidiano e quase
sagrado, natural e perturbador. […] É do amor que os surrealistas esperam a
grande revelação. […] A concepção surrealista é, pois, perfeitamente clara no
que recusa a ridícula explicação do amor pelo instinto sexual, no que afirma
que o amor longe de ser uma vã e enganadora exaltação a serviço dos interesses
da espécie (como dizem os amadores da biologia), possui um sentido, traz uma
válida revelação, exprime o que Breton, renunciando ao vocabulário
materialista, chama, em Arcane 17, ‘a
vida espiritual’. […] o amor não pode ser um fim em si porque em sua intenção
mais profunda é o amor daquilo que se ama” (passagem transcrita do livro Collage, pg. 92-93, 1984).
FM
| De acordo com Barthes, os surrealistas “falharam o corpo. É por isto que
deles sobra demasiada literatura”. É certo que não houve no Surrealismo uma
preocupação maior com a desconstrução
da língua? A que atribuirias tal fato?
SL | O corpo é uma falha que se entre-diz,
balbuciante e entrecortada, para sempre iluminado pelo Desejo: o corpo é a
expressão “do feminino” no ser e a memória do sexo – essa matriz da forma, essa
des-orientação e luminescência, essa luz central do amoroso que o configura.
Artaud já o disse com a devida veemência: “A potência de abismo que me fascina
em ti não é tua alma mas esse corpo do teu ser”.
O corpo é o nosso projeto,
a nossa apetência sensorial do mundo e no diverso mágico, como “teatro
simbólico” e/ou “arte-da-memória” do Desejo. É bom lembrar que Georges Bataille
(intimamente ligado ao Surrealismo, antes e depois de sua dissidência) apontara
o fato do corpo ser justamente a nossa experiência de descontinuidade. Não
custa repetir que as polêmicas colocações de Bataille originam-se da sua
militância no Surrealismo, digamos de 1924 a 1928 circa, somado ao fato de que
a proposição definitiva de sua tese, L’Érotisme
(1955), será saudada como a expressão mesma da perspectiva surrealista
nesse vórtice do humano. Fato corroborado publicamente pelo póprio Breton,
tanto em 1955 como em 1959, por ocasião da mostra internacional dos
surrealistas dedicada ao Erotismo, que se chama corpo da vertigem amorosa,
então intitulada “E.R.O.S”.
Ou seja, a colocação de
Barthes é uma falácia. Pois é facciosa, ou, no mínimo, tendenciosa. Barthes
mantém a mesma discriminação já avançada por Sartre, década antes. Desde as “recherches
sur la sexualité” (1929/1931) que os surrealistas denunciavam as ingerências do
literário e suas nódoas no campo do erótico. Tanto os stalinistas (Y.
Erenburgh) quanto Sartre, optaram por acusar o Surrealismo de “capricho
literário” com práticas de perversão e de exclusividade homossexual, o que é
falso, além de desviar da atenção o fato do Movimento ser o único a exaltar
sistematicamente a mulher e o feminino em todas as suas instâncias radicais. Em
seu ensaio sobre o Imaginário, Sartre, de quem Barthes é continuador, chegara a
eliminar a questão do inconsciente na discussão da Imagem (!). Mas fiquemos na
pergunta, nesta colocação de Barthes.
Digo que é tendenciosa e
situa-se num plano incompetente para “avaliar” a expressão do Surrealismo, dado
que se situa no plano das conceituações e da codificação da dita Teoria
Literária. Teórico por teórico, como em toda ciência ou conhecimento oficial, o
código sempre fala, no fundo, de si mesmo e não do que lhe é exterior. O
próprio Barthes já o anunciava: “Todo texto é um discurso autoritário”. Assim,
no seu caso, o texto (vale dizer: a mídia) é a mensagem. E no caso do
Surrealismo não – a sua essência é a Imagem ou, se quiserem, a Poesia.
Acrescentemos: em termos de
corpo, os próprios franceses sempre preferiram o bardismo ao barthismo, a BB ao B, visto que Barthes parece
ignorar ou silenciar, providencialmente, as contribuições daquilo que se
entende por Erótico. Aliás, por que ele não comenta Sade e Bataille e o que
ambos representam no Surrealismo? Ou os corpos transfigurados em personagens
por Gustave Moreau (Salomé, Galateia, Messalina, Penélope, Safo, Helena de Troia)?
E as mulheres de Paul Gauguin, em relação às de Breton (Nadja, Mélusina, Fata
Morgana, Jacqueline Lamba – a “nadadora no aquário do cabaré-music-hall”, ou
Elisa e seus objetos mágicos), de Péret (Elsie Houston e Remedios Varo), ou de
Éluard, de Desnos, de Aragon, de Man Ray? Ao mencionar que “falharam o corpo”,
por que ele não fala então das mulheres atuantes no Surrealismo – e das
inequívocas contribuições que trouxeram à visão do corpo – à afirmação decisiva
que trouxeram ao escândalo do corpo desejante? Por outro lado, como sói acontecer,
ignora-se tudo o que trouxeram Meret Oppenheim, Nora Mitrani, Leonora
Carrington, Gisèle Prassinos, Joyce Mansour, Mimi Parent, Dorothea
Tanning, Valentine Hugo, Kay Sage, Toyen, Lee Miller, Claude Cahun, Micheline
Bounoure, Claire Markale, Nelly Kaplan, Unica Zurm, Nicole Espagnole, Natália
Correia e outras tantas autoras extraordinárias, assim como seus
questionamentos sobre o corpo, e suas proposições verticais e beântes de corpo? A lista é longa porque
de todos os demais movimentos no século XX, o Surrealismo é, sem dúvida, o que
mais congregou mulheres em suas linhas de ação. Será que “o corpo” abordado por
Barthes não é o corpo vivido, nem a carne da fascinação ou tampouco a casa do
desejo?
A nível de conceituação e
análise de codificações (e de descodificações também), as abordagens de Barthes
podem ter algum interesse, mas estão bem distantes do que entendo por Poesia.
Não se aproximam jamais daquelas que verdadeira e penetrantemente se debruçaram
sobre o Surrealismo em aberto, como as aproximações de um Blanchot, Walter
Benjamin ou mesmo Marcuse. As observações de Barthes (e dos existencialistas em
geral) não estão desprovidas de preconceitos ou de partis-pris, pois se apresentam sujeitas às igrejas literárias locais – digo “sobre o Surrealismo em aberto” no
que ele é e foi, e não no que deveria ser
segundo os analistas de literatura, como aquele tipo que diz que o navio que
está passando na barra (ao pôr do sol ou não) está errado! Ora, é notório que
todas as abordagens em profundidade da questão do Surrealismo – que não são
tantas assim mas também não são poucas, como por exemplo as de Maurice
Blanchot, Ferdinand Alquié, Gaston Bachelard, Nicolas Calas, Jules Monnerot,
Octavio Paz e outros tantos do mesmo porte,
incluso aquelas de seus dissidentes (como Artaud, Bataille, Desnos, Éluard,
Dalí, Marcel Jean, Michel Carrouges etc.) – não deixam, em quaisquer dos casos,
de apontar que a Aventura do Surrealismo processa-se às bordas, nesse
transbordar dos limites da realidade possível.
Aventura que se quer num
extremo onde as medidas de segurança e as amarras falham, nessa combustão
incessante da errância, da busca, nessa perdição do maravilhoso, nessa
revolução permanente que se chama Liberdade; nessa margem enfim onde o corpo,
sobretudo o corpo, se faz e se fez presente.
Complementando: Barthes,
além do mais, pretende ser moralista-religioso, pois sabemos que o pensamento
teológico identificou a presença do Mal no mundo com uma falta, com uma falha ou diminuição do ser; porém,
sabemos também, e Baudelaire já o disse, que “o homem sabe
desde a nascença que no Mal reside toda a volúpia” a que temos direito. Ora, a
posição do Surrealismo, que tem a ver com o Existencialismo, não se confunde,
em hipótese alguma, com o pensamento judaico-cristão e menos ainda com o “existencialismo
cristão” (Sartre etc.), pois reenvia a outro tipo de sagrado, no caso; quando Simone de Beauvoir aborda a figura do
feminino no Surrealismo e a identifica com um ideal, ela omite precisa e
intencionalmente os próprios princípios que fazem do feminino e da mulher, e do
desregramento do corpo amoroso no Desejo, a ligne
du coeur da aventura surrealista.
No Surrealismo a
experiência do corpo, em todo seu espectro iridescente, é vida, é aventura da
carne não separada da vertigem do espírito. É a revelação do corpo que propicia
a busca, que permitiu Breton enunciar, de modo categórico em Arcane 17, que “a grande maldição está
suspensa – é no amor humano que reside todo o poder de regeneração do mundo”.
Assim sendo, o Surrealismo é uma proposição de vida, lugar da vigência amorosa
em oposição ao literário.
Entre outras coisas,
publicou-se durante 1919/1924 uma revista expressamente neste sentido. Revista
cujo título (proposto por Valéry como ironia) era Littérature, dirigida por André Breton e com a colaboração daqueles
que iriam constituir o primeiro núcleo surrealista de Paris – basta ver as
capas ilustradas por Picabia (uma delas é um borrão de nanquim intitulado “a
santa virgem”; outra é o jogo com o título lit-et-rature/leito-e-rasura
etc.). Todos os surrealistas sabem de cor o dito radical, publicado ainda em
1933 nas Notes sur la Poésie de
Breton/Éluard: “ao começar a construção do poema acaba a Poesia”, ou seja, por
desdobramento, ao começar a literatura acaba a Vida.
O fato de determinadas
publicações passarem a ser consumidas como littérature,
ou seja, apenas como produto literário, fala de seus consumidores e não do
Surrealismo, e não do princípio que lhes deu origem e os colocaram como ruptura
do discurso linear e redutor dos literatos, dos “reprodutores culturais”. O
mesmo vale, por exemplo, para a “visão plástica” das formas-matemáticas da
geometria no espaço, tipo as “figurações de Heisemberg”, que não correspondem
necessariamente à leitura matemática
das mesmas.
O Surrealismo não se ocupou
e nem se preocupa com o corpo abstrato da linguagem, pois se ocupa de sua
carne, da sua fala e do seu sentido de conjugação, de profanação e de
revelação. Ao Surrealismo diz respeito o canto das sibilas de Dodona ou de
Delfos e não a gramática grega. Para o Surrealismo a Arte, a pintura, por
exemplo, é uma janela onde o que importa é onde ela dá, para onde ela se abre e
não as técnicas dos caixilhos de sua construção. A Arte necessita estar em
contato com os ventos (“com os ventos da rua”, precisou Breton), é uma relação
exposta e não uma marcenaria e nem um design.
Como se subentende, os virtuosismos e as relojoarias das invenções estão nos devidos escaninhos acadêmicos, dimensionados
pelo muro que os guia.
Porque o Surrealismo sempre
se ocupa do coração das coisas e de toda essa linguagem incandescente é que se
liga e endossa a afirmação de Rimbaud: “la vraie vie est ailleurs”, está em outro domínio e não do lado de fora das coisas. Por isso, não se
situa nem como construção e nem como des-construção, mas como escultura de luz,
de Desejo, ou seja, como um anaglyphe,
diria Saint-Yves d’Alveidre, um dos grandes mestres do conhecimento analógico e
do ocultismo.
Quero dizer com isto que
discutir construção ou desconstrução, língua ou linguagem, a nível de códigos,
é uma discussão acadêmica (que só vai até à semiologia) e também uma maneira de
se deter num circuito-fechado, o do conhecimento discursivo lógico, racional,
formalista, simplista, redutor. A ciência não questiona as coisas pois
paralisa-se na rigidez mesma de seu saber conceitual. O Surrealismo não é uma
conceituação, mas sim uma proposição mágica de Vida e, como tal, é aventura em
seu sentido extremo.
FM
| De qualquer maneira, quero lembrar aqui a existência de dois extensos estudos
de Barthes sobre o Marquês de Sade, reunidos no livro Sade, Fourier, Loyola.
SL
| É verdade que Barthes escreveu sobre o Marquês de Sade e menciona Bataille.
Todavia, trata-se de algo menor ou pouco expressivo a meu ver (me nego a
discutir sua visão de Fourier, que beira o anedótico!). Mas, o que realmente
incomoda, é o fato de Barthes passar ao largo da “razão ardente” que movia a
ambos e iluminava, certamente, seus encontros, seus encantos. Ao privilegiar o
lado literário, estratificado ou codificado, como queriam, Barthes deixa de se
deter no inquietante, na flor da pele do corpo que fala, e grita e geme e clama
– acentos daquilo que faz toda a diferença nestes dois enormes vultos
debruçados em graus diversos mas ardentes, sobre os liames-limites da
experiência do humano, pois abismados em seus pedaços de êxtase.
Ora, tanto Sade quanto um
Barba-Azul (ou Gilles de Rais, a quem Bataille dedicou também estudos e um
alentado ensaio) são figuras capitais da transgressão do corpo e no corpo, do
êxtase e do desejante, do desiderio
continuum na descontinuidade mesma do nosso ser, como postulara Bataille.
Da mesma forma –
igualmente, portanto – é o próprio Bataille que nos traz e dá extraordinário
destaque aos artistas do Surrealismo (em outro ensaio definitivo que foi seu Les l'armes d'Éros, Paris: J.J. Pauvert,
1958) – justo aqueles que reiventaram o corpo do amor desejante, como já
anunciara Rimbaud em sua famosa carta, libelo e
proclama de um senso libertário que nos seria dado pelas “mulheres do porvir”,
pelo feminino enfim desbragado e plenamente triunfante, apesar da nossa
sociedade.
Assim, “mais além do texto
literário” ou “além da pintura”, seja o Divino Marquês ou Georges Bataille
(última expressão, este “além da pintura” que o autor de L'Histoire de l'OEil e Madame
Edwarda retoma de Max Ernst), ambos, portanto, apresentam-se enquanto as
mais altas personificações do excesso, do excessivo e do fulgor negro, e, como
tal, expoentes seminais do corpo, do carnal e sua trajetória arquejante de volúpias
em mil noites.
E mais: não se deve
esquecer que Sade, após as louvações de Apollinaire, teve seu resgate
determinante nas próprias páginas da Revolução Surrealista, a primeira
revista oficial do grupo parisiense, e nos estudos e pesquisas de Maurice
Heine, ocasião, aliás, do acesso de Bataille aos meandros incríveis do autor de
Juliette ou “a prosperidade do vício”,
circa 1924/25. Se Bataille soube se entregar às perdições do corpo amado, Sade
levou a experiência do corpo-e-alma até os mais extremos limites, às bordas da
loucura mesma, e não aos anteparos e simulacros literários de um vazio anódino,
de uma “desconstrução” ou “elocubração” ilustrada/letrada. Da mesma forma ainda
que, em 1995, a edição do centenário da Biennale de Venezia trouxe como tema
central “Identità e alterità. Figure del corpo 1895/1995” – não teria sido um
grande espanto para os detratores da arte no Surrealismo a presença
incontornável de praticamente todos os seus nomes mais destacados na referida
Bienal, dedicada ao corpo e sua representação, e não à sua “falha”? O que dizer
então das reinvenções da “anatomia da imagem” de Bellmer, ou do “sex-appeal
spectral” de Dalí, ou da “bela da tarde” de Buñuel? Ou do corpo da Pandora/Ava
em The Flying Dutchman, de Albert
Levin? O que dizer do “Le Temple dans l'Homme” de Schwaller de Lubicz? Ou
então, dos “corps tournants” de Lee Miller e Kiki, incensados até o abismado,
até a boca-de-flor e o violão por Man Ray?
Por último, reitero que uma
das contribuições máximas do Surrealismo ao pensamento contemporâneo e suas
formas de expressão é, sem dúvida, uma noção absolutamente moderna como a de um
“sagrado extrarreligioso”, a qual, como bem observou por umas tantas vezes o
próprio Breton, parte de uma concepção do corpo e do “homem do desejo” em sua
realidade mesma – noção que, como é sabido, está no fulcro mesmo das cogitações
e brilhantes desenvolvimentos de Georges Bataille ao longo das décadas
seguintes, de seus anos surrealistas aos da polêmica com seu l'Érotisme, apoiadíssimo por todo o
Movimento do Surrealismo. E L'érotisme
não se ocupa da ausência mas sim da presença do corpo, do desejo e do corpo
amado.
FM
| Quais as circunstâncias que envolveram o lançamento da revista A Phala (1967)? Havia, naquela ocasião,
um grupo surrealista atuante no Brasil ou estavas sozinho tocando o barco?
SL
| Em São Paulo, nos fins de 1962, dei início a um núcleo surrealista nos moldes
de um grupo de questionamentos e estudos e atividades ligadas ao Surrealismo,
ou seja, nos moldes dos famosos “bureau de recherches sur le surréalisme” dos
anos 1920 e 1930 (que ressurgiram também agora nos anos 1960, 1970 e 1980,
sobretudo em Amsterdam, Bruxelas, Londres, Chicago e mesmo, nos últimos anos,
em Paris e Praga), ligados ao Surrealismo. Participavam então, comigo, Claudio
Willer, Roberto Piva, Roberto Ruggiero, Ralph Camargo, Rengastein Rocha,
Antonio Fernando de Franceschi, Décio Bar, e outros com presenças episódicas
(como Rodrigo de Haro, Guilherme Faria, Yara Yavelberg, Argus Machado etc.) –
realizamos jogos (como cadáveres-deliciosos, um-dentro-do-outro, pergunta-e-resposta, sessões coletivas de automatismo etc.),
manifestos e panfletos, e se publicaram os primeiros livros de poesias de Piva,
meu e de Willer. Os próprios questionamentos e debates sobre o Surrealismo, bem
como a leitura dos Manifestos, provocaram uma cisão ao fim de algumas crises.
As diferenças ficaram afloradas e sensíveis com a questão capital do feminino,
ressaltada perante a misoginia flagrante da turma (em sua maioria identificada
com a beat generation), mais a
chegada de novos participantes em 1964 e novas prioridades. Começava a surgir
um grupo, com característica distinta dos empenhos anteriores.
Em 1965, organiza-se um
primeiro grupo, abrangendo participantes de São Paulo e Rio de Janeiro, formado
pela minha pessoa, Paulo Antonio de Paranaguá, Raul Fiker, Leila Ferraz, Carlos
Felipe Saldanha e Paulo Martins (os dois últimos saíram do núcleo ainda em fins
de 1965). É esse segundo núcleo que forma o primeiro Grupo Surrealista de São
Paulo, e que vai propor e realizar a XIII
Exposição Internacional do Movimento
Surrealista, organizando-a em estreita colaboração com André Breton
(1965-1966), Vincent Bounoure, Robert Benayoun, Gérard Legrand, e os demais
amigos de Paris. Realização que contou com as ajudas decisivas de Maria Martins
e Flávio de Carvalho, mais Osório César e Cássio M’Boy. Em razão do falecimento
de Breton em meio ao projeto que iniciara, Elisa Breton assume a continuidade
da realização da mostra em comum com todo o grupo atuante então em Paris.
A mostra, inicialmente
programada para maio no Museu de Arte de São Paulo, passa para setembro/outubro
de 1967, na Fundação Armando Alvarez Penteado, por gestão de Flávio de Carvalho.
Em agosto é lançada a revista A Phala
# 1 (Edição F.A.A.P/S. Lima, São Paulo), apresentada como catálogo da XIII Exposição Internacional do Movimento
Surrealista (e 1ª exposição surrealista no Brasil).
Esta publicação do Grupo
Surrealista de São Paulo, contou com colaborações coordenadas por Vincent
Bounoure (Paris), Aldo Pellegrini (Argentina) e Mario Cesariny
(Lisboa), de artistas e poetas do Brasil, Argentina, México, Portugal, Peru,
Uruguai, Espanha, França, Bélgica, Suécia, Inglaterra, Egito, Iugoslávia,
Alemanha, Canadá, Chile, Haiti, Holanda, Martinica; com textos inéditos de
Charles Fourier (apresentados por sua historiógrafa, Simone Debout) ao lado de
outras colaborações também inéditas em francês, português e espanhol, bem como
a primeira reedição, na íntegra, do poema de Benjamim Péret dedicado a Breton, Toute une vie, e da primeira monografia
sobre Benjamin Péret publicada nas Américas, Je ne mange pàs de ce pain-là, onde se assinala as suas duas
estadas no Brasil (1929-1931 e 1955-1956) e sua contribuição ao sentido do
moderno e da presença do Surrealismo no Brasil – fatos até então silenciados
pelos historiadores locais, além de inúmeras ilustrações e da listagem dos
artistas com obras plásticas expostas, na contracapa. Note-se que a exposição
comportava também várias exibições de filmes sobre as obras de Leonora
Carrington (com depoimentos de Octavio Paz), Pierre Molinier (com depoimentos de Breton e Joyce Mansour), Gustave Moreau, Max
Ernst, Magritte, Pollock, De Chirico, Miró, Calder etc., e a montagem de um
programa radiofônico em homenagem a André Breton, com sua voz e depoimentos do
grupo de Paris, bem como a amostragem das vertentes de “arte de alienados”, “arte
infantil” e “arte indígena” no Brasil, e mais de trezentos títulos de
publicações ligadas ao Surrealismo, a preço-de-capa, fornecidas pelas editoras
Le Terrain Vague e J. J. Pauvert, de Paris, coeditores do catálogo-revista A Phala. O pôster da mostra consta de
vários catálogos internacionais, bem como os dados sobre a revista em questão, A Phala.
Houve, portanto, todo um
conjunto de atuações voltadas à questão do Surrealismo e de sua colocação, que
culminaram em nosso meio e naquele momento com a realização dessa primeira
mostra.
Convém dizer ou lembrar que
todos esses fatos têm sido religiosamente omitidos pelos nossos historiadores,
ou seja, pelos historiadores brasileiros e cronistas que se ocupam do período
contemporâneo posterior aos anos 1950 (as exceções até agora são quatro: Walter
Zanini, Antônio R. Medina, e dois críticos do Jornal da Tarde, J. Klintowitz e C. Giobbi). Como se pode prever,
tais referências são documentadas e comentadas em publicações do exterior mas
não aqui, talvez porque não era nem uma atitude e nem uma mostra nacionalista
ou colonialista, além de não estar vinculada ao mercado-de-arte.
Existem também as omissões
por erro histórico ou por falta de atualização de dados e fontes,
circunstâncias essas mais agudas porém não exclusivas do meio brasileiro, para
não falar daquelas que se inscrevem declaradamente no rol dos sectarismos e da
má vontade a priori quanto aos fatos.
A falácia da inexistência do Movimento Surrealista no Brasil é via de regra
promovida, com base em testemunhos discutíveis e dados errados, como, por
exemplo, no caso notório de Stefan Baciu. Ou mesmo toda uma linha de
historiadores contrários ao Movimento, onde desponta Antônio Cândido (para não
nos determos em anteriores omissões e encobrimentos gerados por nomes de grande
vulto, a começar por Mário de Andrade, Tristão de Athayde e Otto Maria Carpeaux,
dentre outros). Igualmente adversos ao Movimento, precedidos que foram pelos
literários, os historiadores das artes plásticas também aderiram ao silêncio
sistemático destes… Todavia, para nos atermos ao “grupo de São Paulo/Rio de
Janeiro” ou ao segundo grupo surrealista, na década de 1990, haveria que
constar dos recenseamentos da produção de obras significativas de diversos
nomes, entre poetas e artistas, a realização de uma revista histórica e uma
segunda, também específica do grupo intitulada Escrituras Surrealistas, assim como uma mostra de âmbito internacional
com a participação do Movimento, mormente com obras de Paris, Lisboa, Buenos
Aires, Madri, Rio e São Paulo. Além de várias atividades coletivas, desde a
publicação de manifestos, panfletos, jogos e atividades em grupo, particularmente
no período de 1965 a 1969, ou, depois, de 1992 a 1998. Sendo que de 1989/90
para cá, você, Floriano, pôde não só as acompanhar de perto como se destacou na
qualidade de um dos participantes do Movimento. E um participante especial,
pois eminentemente questionador e polêmico, nos termos mesmos de uma
contraparte masculina à figura seminal de Max Ernst, “Perturbation ma Soeur”.
FM
| São conhecidas as tuas relações com os surrealistas franceses (Breton, Péret)
e o português Mario Cesariny. Em relação aos hispano-americanos (Moro, Pellegrini, Arenas), chegaste a conhecê-los? Há um fator específico responsável
pela total ausência desses poetas no cenário da cultura brasileira?
SL
| Justamente. Sem querer me estender muito numa possível análise, creio poder
indicar como um dos fatores da ausência dos poetas hispano-americanos no
cenário da cultura brasileira o fato de que, sobretudo, as gestações do moderno sempre estiveram vinculadas,
aqui no Brasil, a um culto local, a um culto do nacionalismo e do
verde-amarelismo, para não dizer do ufanismo anedótico. Não nos esqueçamos que
o modelo na América Latina é insular
e não continental, pois se trata de “ilhas culturais”; a experiência
pan-americana é quase inexistente, pelo menos em termos de cultura brasileira
(vide os infortúnios de Manoel Bomfim e Graça Aranha). Digamos que os artistas
e poetas brasileiros, em sua maioria, ocuparam-se de x aspectos, tudo bem, mas sempre voltados ou reduzidos à ordem e progresso local – isto é a
famosa inércia da física ou, se
quiserem, o lema do positivismo.
Outro fator, esse a meu ver fundamental e base de
qualquer questionamento mais rigoroso da cultura brasileira (essa cultura em
formação, não nos esqueçamos!), é a mestiçagem, a qual assume entre nós
características particulares e distintas dos outros meios latino-americanos.
Acho que não é necessário dizer que se trata de uma mestiçagem ainda não
assumida e cujos primeiros estudos são muito recentes. Embora um nome abalizado
como Wilson Martins possa afirmar que “intelectualmente e até psicologicamente,
o problema negro deixou de existir para nós depois de Casa Grande & Senzala e da biblioteca de estudos negros que se
lhe seguiu na década de 1930” (Jornal da
Tarde, 16/01/88) – isto não implicou, contudo, na compreensão e no
entendimento de nossa sociedade e nossa cultura como frutos de mestiçagem, de
uma formação plural. Veja-se a figura do mulato que, por exemplo, inexiste e
cuja diferença é sumariamente desqualificada nessa mesma Casa Grande & Senzala, elogio da dominação estabelecido por
Gilberto Freyre.
E outras dificuldades.
Dificuldades essas impostas como destino e que visam o isolacionismo e a falta
de educação, alimentadas e institucionalizadas pela retórica da demagogia, pela
indústria da mentira e pelo tráfico de interesses que visam a anulação do ser
individual em uma massa sem identidades (é claro que a única identidade da
massa tem a ver com o nacionalismo, já que os outros itens lhe são negados ou
manipulados em uma espécie de cleptocracia
desenfreada). Diante da falência das políticas partidárias, o que continua a
imperar é o regime do poder econômico, do mercado e dos interesses, com seus
correspondentes consumismo e alienação, alimentados pela mass-media. E mais: hoje já se fala abertamente o quanto a dita
globalização (roupa modernosa da bem conhecida uniformização) promoveu a
fragmentação, a pulverização de todos os valores que pode atingir – atrelada às
manobras autoritárias, que passam ao largo de qualquer desejável democratização
(e que penalizam fortemente as diferenças, sejam elas artísticas ou não!).
Padronização é o próprio modelo e objetivo da globalização. Ser igual em todas
as partes do mundo é não ser ou ser nada. Se de um lado é notória a série
regular de mal-entendidos, desde confundir alfabetização com educação, o
Moderno com modernismo, chegando a confusões mais sutis e até intencionais,
como a do Surrealismo com o fantástico ou da Poesia com o verso, por exemplo,
temos, por outro lado, o bloqueio regular de verdadeiras buscas – imediatamente
substituíveis pelas diversas modas emergentes.
Prevalecendo sempre a
institucinalização de uma “identidade nacional”, chave-mestra do Modernismo
brasileiro e de todo um processo de domínio, de centralização, pode-se avançar
que o modelo dominante, a centralização do poder, impõe seu discurso e impede
as relações e as trocas. O Brasil era sabidamente muito mais relacionado com os
países vizinhos, com a América Latina, do início do Século à II Guerra, do que
nas décadas seguintes… onde se desenvolvem tanto o mercado quanto as comunciações,
mas não as relações e diálogos. Nossa situação é quase uma decorrência direta
da ausência de trocas, de mescla e amálgama das inter-ações e inter-relações
(de identidades) entre culturas comuns – tendo como resultado o isolamento.
Distância promovida por
esses mesmos meios de poder centralizador ou nacionalista, quaisquer que sejam
seus princípios: econômico, político ou religioso –, ou seja, a autossuficiência
e o elogio da mediocridade vão gerar o isolacionismo, a falta de relação,
sobremaneira a nível humano, e, por extensão, a miséria cultural. Curiosamente,
no Brasil ainda não se fez nenhuma campanha contra a imbecilidade, contra o
festivo, contra o exotismo da “cor local”, contra o mau caráter, contra a
pessoa que só vê televisão, contra o consumismo, contra a vulgarização.
Passemos.
Conheci Aldo Pellegrini, mas não Moro e também não Arenas. Embora não
tenha conhecido pessoalmente outros hispano-americanos que muito admiro,
todavia conheci Lam, Cardenas, Elisa Breton, Camacho, Julio del Mar, Silvia
(Grenier) Guiard, Ricardo Robotnik, Juan Calzadilla, Arias, Madariaga, Andralis
e mais alguns, cujos nomes me escapam no momento, além dos brasileiros, é
claro, ainda atuantes nos anos 1960, como Maria Martins, Clarice Lispector,
Teresa D’Amico. Meu relacionamento com Pagu foi muito breve e episódico,
enquanto não tive a honra de conhecer Aníbal Machado e tampouco Murilo Mendes.
Aldo Pellegrini esteve em São Paulo, como
convidado nosso, participando da XIII
Exposição Internacional do Movimento Surrealista (acabara de realizar uma
mostra plástica voltada ao Surrealismo em Buenos Aires, e estava lançando o
primeiro número da revista Rueda, ele
que fora o diretor e editor da primeira revista surrealista na América Latina, Qué, isto em 1926). Assim, mantivemos
correspondência com ele, Latorre, mais Enrique Molina, Juan Antonio Vasco, Francisco Madariaga e outros poetas
hispano-americanos, entre 1963 e 1968, tais como o pessoal do Techo de la ballena (que também
estiveram em São Paulo, Edmundo Aray e Juan Calzadilla), do Corno emplumado do México, Raquel
Jorodovsky de Lima, Magloire Sainte-Aude de Port-au-Prince, André Coyné (então
em Buenos Aires), Ludwig Zeller (ainda em Santiago, antes de se fixar em Toronto),
Leonora Carrington (México), com o pessoal também da revista Eco contemporáneo, e da City Lights (San Francisco). Essas duas
últimas, via Willer, que lá estivera. Porém todos esses contatos esbarraram no
fato de não pertencermos ao circuito do
mercado cultural (atrelado ao meio oficial e/ou universitário, portanto
acadêmico), e por estarmos também desvinculados dos circuitos de (manipulação de) informações. Pois bem, esses vínculos
que nos faltavam, essas áreas de poder que declaradamente não ocupamos,
explicam um pouco a falta de um desdobramento desses relacionamentos numa
atuação possível em comum. Quero frisar que digo atuação e não produção
cultural, quesito do mercado… Na mesma ordem de ideias – a do autoritarismo de
um epicentro nacional/nacionalista e seu poder centralizador, no qual me detive
linhas acima – cito agora uma das muitas ponderações incisivas de Milton
Santos, geógrafo e pensador do Brasil atual, pois tem-se mostrado muito atento
às nossas mazelas e às decorrências de um processo centralizador como o nosso,
que vigora desde a nossa República: “Na verdade, sempre houve dois brasis. O
que a globalização fez foi dar a esse fenômeno uma dimensão maior porque ela
conduz à exclusão. […] A política deixou de ser feita por institutos, instituições,
governos e passou a ser feita por grandes empresas… Mas o poder sobre a
produção, sobre o trabalho e a vida das pessoas é potencializado nas mãos de um
número de empresas cada vez menor. E aí essa globalização que deveria ser democrática
entre aspas, com uma produção da humanidade igualitária, acaba sendo exatamente
o contrário.” (cf. “Grandes empresas dominam política, diz Milton Santos”. Folha de S. Paulo 8/01/2001). Não custa
acrescentar que Milton Santos, na citada entrevista, denuncia igualmente o
consumismo e o culto desenfreado ao tecnicismo, ou seja, como diz, “há um
entendimento da coisa técnica que me parece equivocado no trabalho do
Ministério da Educação. É a valorização da técnica em si e não do fenômeno
técnico. Isso conduz a dar ênfase no treinamento, que não é educação.” Desnecessário
observar que as leis do mercado de arte ou dos livros (de poesia incluso),
seguem a mesma ótica centralizadora da exclusão, do nacionalismo e da propaganda,
do consumismo, da ênfase no imediatismo e na “valorização da técnica”.
Seria curioso também, caso
não fosse previsível, estabelecer-se um levantamento de todos os poetas e
artistas modernos brasileiros ligados a vínculos institucionais e oficiais com
o Estado, com a Igreja e com os poderes públicos da oligarquia econômica, e
fazer um paralelo com o âmbito de suas áreas de atuação e presença no cenário
cultural local. Sabe-se muito bem que vínculo
é uma coisa e relação é outra. Continuemos.
O segundo número da revista
A Phala foi pautado, mas não publicado;
porque logo depois houve a Primavera de Praga e o Maio de 68. Acontecimentos
marcantes que culminaram com vários rompimentos e mesmo a desarticulação do
grupo de Paris (em 1969, e rearticulado em dois segmentos a partir de 1970 e
1973), acontecendo o mesmo com o grupo de São Paulo, quase na mesma
circunstância, muito embora a desarticulação aqui tenha se processado por
outros motivos.
Assim, desde 1970/71
retomamos a aventura do Surrealismo em sua radicalização mesma, ou seja,
gerando novos núcleos e novas atividades, ora individualmente, ora ligados a
outros artistas e poetas. Posso citar os seminários sobre “A Imagem como
conhecimento sensível”, que tenho organizado como atividade de questionamento
em grupos, ou estabelecimento de oficinas de texto e de imagens (collage etc.). Há também um certo número
de atividades de caráter grupal, como o relacionamento mais recente com o grupo
surrealista de Buenos Aires, Signo
ascendente (a partir de 1983) etc., bem como as publicações centradas na
esfera do Surrealismo e por nós escritas, como O corpo significa e A festa
(deitada) – ambas de 1976 –, Collage
(1984) e A alta licenciosidade
(1985); além de exposições plásticas, as quais sempre estiveram ligadas a um
questionamento público, através de manifestos e panfletos que as acompanham. Ao
que se somam retomadas de vários contatos, via correspondência com outros polos,
inclusive hispano-americanos: Franklin Rosemont e o grupo de Chicago, mais J.
L. Matthews nos Estados Unidos, Mario Cesariny (Lisboa), Vancrevel (Amsterdã),
Miguel Pérez Corrales (Tenerife), Eduard Jaguer e José Pierre (Paris), Arturo
Schwarz (Milão), Ludwig Zeller e poucos mais. Entretanto, talvez fruto desta
margem onde navegamos, os nossos contatos em âmbito brasileiro tornaram-se
limitados e poucos.
Penso oportuno deixar claro
que a nossa posição, como poeta e artista, é à margem da sociedade como sistema opressor e não de marginal, de
marginalizado por essa mesma sociedade – não compactuamos, pois, com o aval das
instituições e nem com o marketing cultural que as sustentam. Como rebelde,
confesso romântico e surrealista, contrapomos ao marketing cultural e a
qualquer discurso do poder que vigora, nada mais que as rosas da intuição.
Enfim, creio que a ausência
dos outros poetas em nosso meio fale também de nossa ausência e, sobretudo, da
ausência no Brasil de um espaço de reflexão, que chamo de espaço plástico, bem entendido fora daquele proposto e viciado pelo
campus universitário e pelas engrenagens do marketing cultural. Um bom exemplo
dessa ausência e de sua imediata malversação, foi a recente Semana Surrealista
realizada em novembro de 1985 pela Aliança Francesa em São Paulo: apesar de
significativas presenças e atuações, ao ter que decidir entre a simples
comunicação acadêmica e a instauração de um questionamento vertical e
deflagrador, a sua organização preferiu não ser nada. Ou seja, lutamos pela
instauração de um espaço de reflexão e de seu questionamento incessante a
partir do Surrealismo e, nessa luta, a relação com os outros poetas é
fundamental. A Poesia é um indicador dessa possibilidade e não os versos do
nacionalismo, tropical ou não, em língua portuguesa ou não.
FM
| Fale-nos deste teu levantamento das relações entre o Surrealismo e a América
Latina.
SL
| No momento presente, estou completando o levantamento que me propus em
1985/6. Sua última parte, que agora ultimo é justamente uma Antologia do
Surrealismo no Brasil, onde apresento perto de 60 nomes, entre poetas e
artistas, dos anos 1920 aos 1990, à atualidade. As relações entre Surrealismo e
América Latina – incluso o Brasil e mais as vertentes colonizadoras de Espanha,
Portugal e Estados Unidos – são o foco principal deste trabalho de pesquisa,
cobrindo principalmente de 1912 a 1988 (o termo surréalisme surge inicialmente em 1912, empregado por Apollinaire
em sua primeira visita ao atelier do jovem russo Marc Chagall).
Existem publicações sobre o
Surrealismo e a América Espanhola, no âmbito dos -ismos e dos aspectos formais. Existem estudos sobre os autores
latino-americanos-espanhóis (sempre excluindo o Brasil) do Surrealismo, tanto
poetas como artistas plásticos. Mas não existem trabalhos sobre as ideias e as
proposições desses autores, e nem sob o ângulo de suas contribuições ao Surrealismo
como um todo. E tampouco sobre as relações que entretecem as raízes de suas
obras com as matrizes e vertentes da arte mágica, privilegiada no Surrealismo.
Como também não existe
corpo crítico consistente sobre o Surrealismo no Brasil. Os poucos artigos
publicados pecam pela intenção declarada de uma visão genérica, panorâmica e
jornalística, além de não se aprofundarem quanto às relações com o Movimento, o
que logo sublinham. Quase todos os comentários omitem tanto seus formadores
como também todos os fatos e eventos que marcaram os anos 1960 e o grupo
surrealista de São Paulo, além de desconhecerem a XIII Exposição Internacional do Movimento Surrealista que aqui se
realizou e mesmo as implicações das duas estadas de Benjamin Péret em nosso
meio e de suas publicações em português! A própria restrição aos âmbitos de
gênero, do plástico ou do poético dentro dos cânones das escolas
vigentes ou dos -ismos formais, revela
os limites de tais abordagens, via de regra a partir de princípios diversos
daqueles propostos pelo próprio Surrealismo.
Ou seja, nesta pesquisa que
chamei de A Aventura Surrealista,
procuro estabelecer as fontes de uma relação, entre a América Latina como um
todo (incluso o Brasil) e o aporte de suas raízes de Poesia, tanto na área
plástica como naquela da poética, ao Surrealismo como um movimento específico,
de postura distinta daquelas que se possam reduzir ao formalismo das vanguardas
(do datado e do circunscrito ao modismo histórico), com o qual o Surrealismo
não tem nada a ver, aliás.
As poucas exceções, do
vulto dos estudos de um Octavio Paz (O arco e a lira, traduzido entre nós em 1982, mas já mencionado com
destaque em A Phala), ou de J. H.
Matthews (The imagery of the surrealism, e mais seus estudos sobre o
cinema, o conto e o automatismo, a linguagem do Surrealismo etc.), ou ainda C.
B. Morris (Surrealism and Spain), por
exemplo, também indicam a necessidade de uma leitura comum dessas raízes e de
sua pertinência na configuração dessa contribuição e qualificação
latino-americana, a nível de fundamentos de uma relação vertical e não do
episódico, quer dizer, do anedótico. Igualmente poderíamos indicar a tese de
Carlos Martin (sobre o Surrealismo e o mito latino-americano) ou abordagens
mais recentes que incluem o Brasil, como as de Michael Richardson, Penélope
Rosemont, de Perfecto E. Quadrado ou de J. M. Pérez Corrales.
O estabelecimento dessas
relações, via de regra, portanto, vem sendo obra de arqueologia, quem sabe se
circunscrevendo parcial e limitadamente a um modelo europeu, ou seja, do
Surrealismo entendido como epicentro, vale dizer: grupo de Paris e/ou André Breton.
Ora, tal enfoque que circula em geral, não coincide com a realidade histórica
do Movimento, que se propôs e se fez internacional (e policêntrico) desde seu
início nos anos 1920, passando a se organizar com polo diretor no exterior a
partir de 1934. E também não corresponde ao sentido que tiveram para o
Surrealismo (e para o próprio Breton, é bom que se sublinhe) as contribuições
dos poetas e artistas originários do Chile, México, Argentina, Haiti, Brasil,
Peru, Equador, Canadá etc. (para não falarmos das contribuições decisivas da
Espanha, Inglaterra, Estados Unidos, Bélgica, Itália, Suécia, Dinamarca,
Iugoslávia, Checoslováquia, Egito, Ilhas Maurício etc. – aliás, Lautréamont é
natural do Uruguai). Ora, tais contribuições não são redutíveis a uma mera
conceituação de periferia, mesmo porque poder-se-ia lembrar que em todo
movimento é a periferia que o transforma. Breton ou Péret, quando se reportaram
a Svanberg (Suécia), Lam (Cuba) ou Chazal (Ilhas Maurício), ou ainda a Aimé
Cesaire (e suas raízes africanas), nunca falaram de algo periférico ao Movimento,
mas sim de identidades as mais altas e reveladoras, mas sim dessas vozes (das
raízes) que “nos chegam das florestas” (Breton, em sua apresentação de Maria
Martins).
Pois bem, esse meu
levantamento é uma tentativa de mapeamento (incluindo uma cronologia comentada
do período pesquisado) e do rastreamento dessas raízes, a partir dessa linhagem
fundante, seminal do Surrealismo que Breton chama la ligne du coeur, onde o feminino surge como a pedra-de-toque,
dessa linhagem da fascinação e do erótico e do simbólico, enfim, que desemboca
na Aventura Surrealista.
[1988]
NOTA
Sérgio
Lima (Brasil, 1939). Entrevista originalmente publicada no jornal Resto do Mundo # 3 (Fortaleza, janeiro
de 1989). Foi parcialmente incluída em El
corazón del infinito (Tres poetas brasileños) (Toledo: Cuadernos de
Calandrajas, 1992), de Floriano Martins, e no Diario de Poesía # 57 (Buenos Aires, outono de 2001).
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