FM – Há um verso teu em que dizes que as palavras
te chamam para dentro do poema, o que acaba sugerindo certo sentido de entrega.
De que maneira se constrói teu mundo poético?
RAB – Eu sinto sempre esse apelo, mas sem imaginar
sequer como responder-lhe. Acho que existe, no que à Poesia respeita, uma
incomensurabilidade fundante entre escrever e saber. O que significa que se eu
soubesse responder-te não estarias a entrevistar-me, simplesmente porque não
poderia escrever.
Um dos aspectos em que concordo absolutamente com
Lacan é quando ele afirma “ça écrit”. Eu nunca senti que escrevo, mas que sou
escrita, embora esta frase não revele qualquer passividade. Limito-me a deixar
que o meu corpo se inscreva no papel que me vai tatuando poro a poro. E
entrego-me voluntariamente a este vício feliz.
O que te posso dizer do meu universo poético é que
ele advém, como arquétipo, e não como construção, de uma inversão da relação
metonímica: cada minúsculo pormenor do quotidiano mais quotidiano pode tocar-me
como totalidade infragmentável e completa. E depois a sua música encontra as
linhas da pauta para o que der e vier. Por isso a minha escrita é feliz: tenho
sempre o cesto de papeis à mão.
FM – António Ramos Rosa refere-se à correspondência
intertextual ao ressaltar a presença de um livro teu, A mão feliz,
dentro de um livro dele, A imobilidade fulminante, este escrito
após aquele. Embora seja incontestável essa realização intertextual, o fato é
que raros poetas admitem publicamente um diálogo tão intenso como o faz Ramos
Rosa. Poderias dizer o mesmo em relação às tuas identificações?
RAB – Ramos Rosa não é só um escritor maior, mas
também um leitor generoso. Há desde logo entre os dois a mesma paixão pelas
coisas do mundo e pela Filosofia que aparece implícita, mas nunca como
imposição poemática.
A tua questão coloca-me numa posição difícil porque
sou feita da matéria de tudo o que li, mas nunca ninguém fez da minha escrita o
eco de qualquer outra voz. Talvez porque cada livro meu seja um exorcismo de
uma questão obsessiva que vou trabalhando em mim sem procurar propriamente uma
resposta. E cada obsessão requer uma linguagem diversa e em tudo semelhante
para a tratar.
Quanto a uma identificação, no sentido dos meus
poetas imprescindíveis, ou essenciais (portugueses, para que a lista não seja
infinita) posso citar: Carlos Oliveira, Ruy Belo, Alexandre O’Neill, Ramos
Rosa, Herberto Helder, Egito Gonçalves, Pedro Tamen, Fiama Hasse Pais Brandão,
Nuno Júdice, Manuel António Pina, Manuel Gusmão e Daniel Faria.
FM – Dentro desse roteiro de obsessões, como lidas
com a distinção entre o que é invisível e o que está oculto? Indago isto
pensando em tua defesa de que a construção do mundo reside no olhar humano, e
pensando na perspectiva já referida por René Magritte de que “um ser
desconhecido no fundo do mar, não é o invisível, é o visível oculto”. Qual a
relevância dessa perspectiva em tua poética?
RAB – A desocultação é da ordem do táctil e, como
tal, requer um gesto que retire o véu. Mas nunca sabemos se deste gesto advirá
uma revelação, já que, freqüentemente, o véu integra tudo aquilo que é, apenas,
suposto ocultar. Da mesma forma, nunca saberemos se a desocultação é, de facto,
uma nova ocultação, a mais perversa, aquela a que se refere Roland Barthes
quando observa que a denotação é a mais perigosa das conotações. E ainda, somos
obrigados a aceitar que, por vezes, nada existe sob o véu, mas véu apenas. É o
nosso gesto que tem por vocação preencher os vazios, dar sentido, atribuir
significados sem deixar espaço para o significante flutuante, para utilizar o
termo de Lévi-Straus. Assim, a desocultação é uma operação que se reveste da
mesma ambigüidade da interpretação do secreto, do mito, da lenda.
Na minha poética (e na poética do meu habitar o
mundo) a invisibilidade resulta, acima de tudo, da nossa condição humana
(também respondo com Magritte) no sentido de Leibniz que afirma que o homem é
um ser ontologicamente distraído. Esta distração surge, igualmente, em relação
a nós mesmos, já que segundo Edward T. Hall deixámos de saber decifrar as
mensagens silenciosas do nosso organismo.
A vocação da minha escrita é a de tornar o
invisível visível (o que não vai contra o conceito de “visível oculto” na
acepção de Magritte). Esta orientação já é notória no meu primeiro livro que
tem como epígrafe de Bataille: “o animal está no mundo como a água no interior
da água”.
O meu trabalho vai no sentido de um descentramento
progressivo para atingir essa participação (no sentido totémico) em que posso
ser toda mundo sem deixar de ser mão. O meu universo é o das compossibilidades,
das coexistências em que tudo conspira. E meu corpo vai-se tornando atento,
inocente, amoroso: tocado. Assim vai retirando da in(-) significância (do
invisível) o que, de direito, aspira a despertar.
Resta apenas saber se me cumpro.
FM – Mencionas o Barthes e penso aqui na distinção
que ele estabelecia entre dois tipos de leitores, o que pratica o que ele chama
de “responsabilidade crítica” (entre os quais se insere) e aquele que apenas
consome passivamente textos (e em tal categoria incluía o Bachelard,
considerando tal relação “muito limitada”). Qual tipo de leitora te consideras?
RAB – Em primeiro lugar não posso considerar, de
forma alguma, que Bachelard consuma passivamente os textos. É que eu li, tanto
o Bachelard epistemólogo, como o Bachelard das Poéticas. De facto, acho que li
tudo de Bachelard e de Barthes, inclusivamente o seu último artigo que saiu emPlayboy sobre
a fruição de queijos e vinhos. É que Bachelard, nem a ele próprio se consome
passivamente como leitor. Basta só pensar na sua Filosofia do Não (é
pelo facto de saber dizer não que o seu sim não pode deixar de ser crítico e
activo) e na Poética do Espaço. O modo como sente os lugares dos
textos fundamentais e os reescreve doando de sentido os lugares da nossa
vivência não tematizada, mas sem nada retirar ao seu vivido, demonstra uma
atenção sensível e uma capacidade de analisar e transfigurar a espacialidade,
inclusive da própria língua. Por outro lado, há que saber o que é a
responsabilidade crítica e os aspectos que ela pode vestir, sem se cingir ao
traje estruturalista (independentemente da importância desta visão do mundo).
Toda a questão se pode reduzir a um olhar míope, a partir de um ponto de vista
centrado, ou a um olhar que oscila entre a miopia e a panorâmica. Mas a minha
leitura de alguns dos textos de Barthes e Bachelard fizeram-me sentir que nunca
mais seria a mesma depois de os ler. E esses textos não cabem nos limites das
correntes com que nos armadilhamos para lhes colocar etiquetas.
Também não considero pertinente a oposição entre
responsabilidade crítica e o consumir passivamente textos. O próprio Barthes
falou muito de fruição na sua obra e eu não sei se a fruição se pode enquadrar
dentro da proposta estabelecida.
Dir-te-ei que nunca consumo nada passivamente, nem
mesmo chocolate (é um tema de Álvaro de Campos, na “Tabacaria”), e que a
responsabilidade crítica é apenas uma das minhas muitas orientações de leitura.
Às vezes concedo-me o luxo de não ter qualquer responsabilidade crítica, pelo
menos numa primeira leitura. Dou-me inteiramente ao gozo da leitura. Outras
vezes acontece que retomo o texto para assumir uma responsabilidade que neguei
criticamente à primeira leitura. Sou uma leitora apaixonada de tudo o que me
apaixona. E quando me deixo, simplesmente, ler é quando a responsabilidade
assume o seu des-limite vertiginoso, como crítica a uma crítica deslocada. A
leitura faz-se em mim atirando-me para fora de mim. E constitui-se em camadas
arquitectónicas, relativamente às quais essa oposição deixa de fazer qualquer
sentido. Toda a leitura é excessiva e construi-se, linha a linha, como uma
figura do excesso.
FM – Observa Gastão Cruz, no posfácio da Poesia
Completa de Luís Miguel Nava, que “todos os grandes poetas fazem
sínteses das várias linguagens em circulação no seu tempo e no tempo que os
precede”. Se pensarmos em predominâncias estéticas, o que haveria de mais
consistente e renovador na poesia portuguesa contemporânea?
RAB – O despojamento e a celebração do quotidiano.
A Poesia, sobretudo a partir dos anos 90, despe-se das metáforas, embora os
críticos continuem a reduzir, por hábito ou preguiça, os objectos de sentido à
metáfora. Bastava não consumirem passivamente (risos) Paul Ricoeur. Mas se o
fizerem podem sempre dizer que se trata de uma metáfora viva. De tantos tropos disponíveis,
ou a (re)-inventar, os textos críticos centram-se sobretudo na metáfora, o que
retira a particularidade da poesia que se faz neste momento em Portugal e a
infecta com etiquetas perfeitamente inapropriadas. Esta operação de limpeza da
linguagem poética prende-se com aquilo a que eu chamo celebração do quotidiano,
ou elogio do quotidiano, no sentido de Todorov referindo-se a Vermeer, entre outros
pintores. Dei este exemplo para observar que uma poesia do quotidiano não
significa linearidade ou lugar comum. É um olhar atento às coisas que nos tocam
no seu ínfimo acontecer e que tecem as nossas vidas. Trata-se de todo um
trabalho de interiorização e transfiguração. É notável que muitos dos poetas de
“gerações” anteriores se tenham aproximado desta poesia e que alguns se tenham
sentido renascer nela. Eu sinto sempre na palavra poética da poesia
contemporânea a carne do verbo, uma transparência que deixa entrever as
entranhas. Mas não nos deixemos enganar, pois que cada objecto: a pele, a
chávena, o pão, são sempre objectos de sentido, tal como bem o notou Magritte
com “ceci n’est pas une pipe”, ou “ceci n’est pas une pomme”. Não podemos beber
pela chávena escrita, comer o pão poético e tocar na pele do poema. Deveremos
antes degustar, saborear e acariciar cada poro da palavra.
FM – E de que maneira estes aspectos resistem a uma
comparação com outras tradições líricas, numa margem e outra do Atlântico, por
exemplo?
RAB - Na questão anterior falavas em renovação e
aqui em tradições líricas. Eu nunca tinha descoberto que o Atlântico tem
margens, mas franjas de vagas que se aproximam e se afastam da costa. De resto,
é bom que se saiba que a Poesia recente do Brasil, por via impressa, chega
muito pouco a Portugal, que não temos um intercâmbio cultural e que quase só a
NET desempenha um papel de troca, se exceptuarmos um número da Revista
Relâmpago dedicada à Poesia brasileira contemporânea e as edições Quasi.
O mesmo é dizer-te que não posso falar com fundamento do que se faz hoje no
Brasil, pois o meu corpus de conhecimentos teria de ser bem
mais amplo. Acho que aqui há todo um trabalho a fazer.
FM – Por um lado, o que me dizes me faz pensar em
John Cage: “A arte está em processo de retornar ao que lhe é próprio: a vida”,
pois é naturalmente isto o que mencionas como “celebração do cotidiano”, esta
celebração que uma tradição oficial da lírica brasileira rejeita, movida pela
infiltração excessiva do positivismo em nossa cultura.
RAB – A Arte e as Artes são simultaneamente um
despoletar e um reflexo de que a vida retoma à própria vida. Genericamente (já
que há sempre as grandes excepções), nas gerações anteriores encontramos, tanto
uma vertente lírica ornamentada, como uma Poesia muito conceptual. A Poesia
como celebração do quotidiano é um bom sintoma de outra postura de vida. As
palavras despem-se do medo de serem apenas palavras, mas passamos de uma
dimensão representativa a uma dimensão mais apresentativa. Há toda uma
intimidade, uma aproximação furtiva ao quotidiano que lhe retira a banalização
do olhar. É como Cézanne pintava as maçãs, como reflectia sobre um simples
açucareiro ao comentar que é preciso amar essas pequenas coisas, quando falava
da tristeza da pele do pêssego, ou das rugas da maçã. Subitamente, somos
confrontados com esses minúsculos seres mágicos que nunca tinham convocado a
nossa atenção e que ganham a dignidade de objectos amados. O demasiado
positivismo incorre no problema de todos os demasiados ismos. Só
desfigurando os sufixos se reinventa a tradição, actualizando-a sem lhe retirar
a carga histórica.
FM - Por outro lado, essa não-relação entre as duas
margens do Atlântico, margens de uma mesma língua, é talvez um ardil no qual
caímos ambos os lados, o da presunção, o de sentir-se cada um superior ao
outro. E o abandono mútuo desse lugar (sagrado) de encontro entre duas ricas
tradições literárias começa a ser povoado por um certo oportunismo acadêmico, o
que resultará em novos prejuízos, sobretudo se considerarmos a visão distorcida
que chega a Portugal – talvez eu esteja dando um valor excessivo ao tema – a
partir de um grupo de poetas em torno da revista brasileira Inimigo
Rumor. Refiro-me a distorção no sentido de se evitar a multiplicidade de
experiências que verdadeiramente define nossa tradição. Mas o que sugeres
diante dessa conclusão de que há todo um trabalho a fazer?
RAB - Não creio que exista esse ardil, não de uma
forma sistematizada. Eu só o encontro em pequenos grupos e a cada grupo seu
ardil. A deficiência real na relação entre as duas margens passa por factos
insuperáveis e prosaicos como o preço dos portes de correio. Às vezes a água
que une pode ser um mar que separa. Essa questão da superioridade tinha-me
passado despercebida, talvez porque não cabe no meu olhar, ou talvez porque
seja apenas exacerbada por gente que tem pouco em que pensar. O que acontece é
que há sempre mais preocupações económicas por quem de direito, nas relações
entre países, do que preocupações em estreitar as relações culturais. O ponto
crucial desta questão prende-se com o facto de que, para o poder, a cultura não
está na ordem do dia, não constitui nunca uma prioridade. No nosso caso é ainda
mais lamentável porque nem temos que ultrapassar o “exílio linguístico”.
É um facto que lemos alguns dos grandes nomes da
Poesia brasileira, mas lemo-nos sempre no passado. Quer dizer que seria deveras
importante saber o que se está a fazer no momento, até mesmo quais os nomes que
são apenas promissores. Poder fazer parte das escolhas e não receber apenas já
nomes “consumados” e consumidos.
Por isso as Revistas na NET me parecem, para já, a
única possibilidade não utópica de uma troca em tempo real. Mas há que repensar
o modo de tornar eficaz esta troca, de lhe retirar o carácter pontual e
arbitrário, de encontrar autênticas relações biunívocas, de explorar e
reflectir sobre os legados e as identidades que se vão gerando pelas vivências
múltiplas e diversificadas. Quanto a mim, o acordo ortográfico só serve para tapar
o sol com a peneira. uma mesma língua não pode significar, de modo algum, uma
mesma linguagem, pois esta não é um arquivo originário, mas um modo actual de
um povo estar no mundo que não deve sujeitar-se ao ismo da
redução. Toda a redução é simplista e empobrecedora.
FM – A propósito, estás agora justamente preparando
a edição de uma revista virtual, de maneira que gostaria que comentasses um
pouco sobre teus planos editoriais e um pouco também a respeito de como, em
Portugal, essa mídia tem funcionado em termos de circulação de cultura.
RAB – O meu interesse pela enorme potencialidade da
NET (nem me refiro à pesquisa) veio, em primeiro lugar, dos Manifestos que
circulam desde há anos e que desencadearam uma consciência colectiva de que já
não podemos ignorar o poder. Por outro lado, estou a par da maior parte dos
eventos culturais, mesmo no estrangeiro, através do ecrã. É aqui que Hermes se
cumpre de uma forma ampla e selectiva sem custos relevantes.
Relativamente à Revista, eu estive na co-direcção
de Figuras e de Limiar e pertenço à Hablar/Falar
de Poesia. Neste momento, e porque o pressuposto é ter um projecto, estou,
realmente interessada numa Revista que circule pela Net que possa ser feita em
qualquer lado e chegar a qualquer lado, instantaneamente. Esta inclinação
deve-se ao facto das próprias características da Net, mas também a outros
factores. Em primeiro lugar, trabalho com interação (no que se refere aos novos
objectos interactivos), uma vez que ensino Design. Nos meus últimos papers para
conferências internacionais tentei escrever as bases para uma Filosofia da
interação e foi, para mim própria, uma surpresa encontrar na realidade virtual
e na realidade aumentada os conceitos dominantes das sociedades estudadas por
Marcel Mauss, Lévi-Strauss ou Lévy-Bruhl, tais como: dádiva, a troca simbólica
e a participação.
Assim, uma revista de Poesia (no sentido amplo) na
Net reencontra-me com o meu modo nómada de estar no mundo e com o meu mundo
arcaico de troca simbólica, em que a participação, no sentido de Lévi-Bruhl, se
tece também em mim, neste caso como, simultaneamente, primitiva e interactiva.
FM – De volta à tua poesia, percebe-se ali uma
intensa carga erótica, onde se aplica a leitura perfeita do que observa Xosé
Maria Alvarez Cáccamo, ou seja, de que nela "o corpo vive em tensão
inquiridora do infinito", sendo essa tensão marcada por uma sugestiva
fusão das perspectivas do dentro & fora, conteúdo & continente. Como
vês esse radical erótico, esse Eros cuja intensidade é a um só tempo dolorosa e
libertadora?
RAB – Esta questão é muito delicada porque, a um
tempo, me obriga a pensar, do ponto de vista de uma estética da recepção, qual
o sentido que transparece nos meus poemas para que a estes se possam colar os
atributos de "imensa carga erótica" e "radical erótico", ao
mesmo tempo que me determina a desempenhar o papel de leitora descentrada
relativamente à minha escrita.
Para começar considero que não existe um erotismo
explícito na minha poesia. Creio mesmo que essa carga erótica na recepção é um
efeito da sensualidade dos poemas, entendida aqui como uma poética dos sentidos
e dos sentires.
Em todo o processo perceptivo existe uma
ego-recepção, já que os sentidos estão, simultaneamente vocacionados para o
interior de nós e para o exterior mundano. Da visão podemos dizer que vemos
vendo-nos. Existe sempre um sentir de nós, do nosso corpo, em tudo o que
percepcionamos e fazemos.
A minha poética pode ser entendida enquanto
apologia do corpo no mundo, em que o corpo funciona como um sistema aberto em
constante importação e conseqüente transformação. O maravilhoso operador destas
passagens é sobretudo a pele, suficientemente consistente para se constituir
enquanto "superfície" delimitadora e suficientemente porosa para
deixar entrar o mundo de um modo táctil e eis porque tudo o que nos chega
através de qualquer sentido como os olhos, o nariz, a boca etc., nos acaricia.
O meu poema "Obra-Prima", em Da Alma e dos Espíritos Animais,
tenta tematizar em verso aquilo que acabo de dizer. Assim, paradoxalmente
(porque tematiza) e conseqüentemente (porque o objecto tematizado é a carícia)
é um poema de resolução inteiramente sensual.
A minha escrita é cada vez mais uma escrita de
pele, uma escrita tocada pelas coisas; mas não creio que exista mais carga
sensual quando escrevo "perna" do que quando escrevo
"pedra", porque a carícia tem a mesma intensidade e a mesma verdade.
Aceito sem restrição a idéia de uma tensão
inquiridora do infinito, mas obrigo-me também a algumas elucidações. Tensão,
neste caso, tem o sentido de diferença de potencial que constitui a própria
possibilidade da vida e o infinito é buscado, ou mesmo encontrado, a partir do
finito (o que não significa limitado ou em oposição binária com o infinito).
O que de facto me interessa é mergulhar nos
aspectos que desdobram o finito em infinito, pois cada minúscula partícula está
prenhe de infinito e de devir. Creio que a minha poética se constitui enquanto
convocação das coisas, no sentido de trazer para a luz aquilo que parecia
condenado à sombra. Esta convocação é feita através da carícia, pois quanto a
mim, só ela tem o poder de despertar as coisas e as arrancar ao abismo da
invisibilidade ou esquecimento.
Mas a libertação não é, necessariamente dolorosa,
seja qual for o grau de intensidade. Depende da receptividade à dádiva, da
apetência em tocar e ser tocado. A carga sensual da minha poesia, que advém
sempre do pacto entre o corpo e o mundo, em que o corpo se faz corpo com o
mundo, poderia quase exprimir-se numa frase, que apesar das aparências, nada
tem de cartesiana): toco e sou tocada, logo existimos.
[2003]
NOTA
Há
na poesia portuguesa alguns nomes que, a despeito da imensa qualidade de suas
obras, seguem desconhecidos no Brasil até mesmo da parte de nossos escritores.
Decerto que a busca de um diálogo com eles contribuiria para driblar a
enfadonha previsibilidade que se prolonga em nosso cenário contemporâneo.
Dentre aqueles nascidos nos anos 50, três deles considero urgente a entrada no
Brasil: Rosa Alice Branco (1950), Manuel Gusmão (1954) e Luís Miguel Nava
(1957-1995). Os leitores daAgulha já tiveram a oportunidade de
conhecer Miguel Nava. Agora temos no Rascunho uma entrevista com Rosa Alice
Branco. Poeta, ensaísta e intelectual ativa em seu país, preside a Limiar,
antes selo editorial e revista de cultura e hoje uma cooperativa que vem
produzindo inúmeros eventos literários, dentre eles os Encontros Internacionais
de Poesia de Aveiro. Membro da direção do Pen Club português, é co-responsável
pela criação da revista de poesia Hablar/Falar de Poesia. Traduzida
para o árabe, o francês e o espanhol, publicou livros como O único
traço do pincel (1997), Da alma e dos espíritos animais (2001)
e Soletrar o dia (2002). Ao escrever sobre ela, Ramos Rosa lhe
destacou a intensidade de uma realização intertextual, mas cabe também perceber
a forte expressão erótica dessa poesia. Vamos então ao diálogo com Rosa Alice
Branco. Abraxas
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