quinta-feira, 14 de agosto de 2014

ROSA ALICE BRANCO | Esboços de sombras



FM – Há um verso teu em que dizes que as palavras te chamam para dentro do poema, o que acaba sugerindo certo sentido de entrega. De que maneira se constrói teu mundo poético?

RAB – Eu sinto sempre esse apelo, mas sem imaginar sequer como responder-lhe. Acho que existe, no que à Poesia respeita, uma incomensurabilidade fundante entre escrever e saber. O que significa que se eu soubesse responder-te não estarias a entrevistar-me, simplesmente porque não poderia escrever.
Um dos aspectos em que concordo absolutamente com Lacan é quando ele afirma “ça écrit”. Eu nunca senti que escrevo, mas que sou escrita, embora esta frase não revele qualquer passividade. Limito-me a deixar que o meu corpo se inscreva no papel que me vai tatuando poro a poro. E entrego-me voluntariamente a este vício feliz.
O que te posso dizer do meu universo poético é que ele advém, como arquétipo, e não como construção, de uma inversão da relação metonímica: cada minúsculo pormenor do quotidiano mais quotidiano pode tocar-me como totalidade infragmentável e completa. E depois a sua música encontra as linhas da pauta para o que der e vier. Por isso a minha escrita é feliz: tenho sempre o cesto de papeis à mão.

FM – António Ramos Rosa refere-se à correspondência intertextual ao ressaltar a presença de um livro teu, A mão feliz, dentro de um livro dele, A imobilidade fulminante, este escrito após aquele. Embora seja incontestável essa realização intertextual, o fato é que raros poetas admitem publicamente um diálogo tão intenso como o faz Ramos Rosa. Poderias dizer o mesmo em relação às tuas identificações?

RAB – Ramos Rosa não é só um escritor maior, mas também um leitor generoso. Há desde logo entre os dois a mesma paixão pelas coisas do mundo e pela Filosofia que aparece implícita, mas nunca como imposição poemática.
A tua questão coloca-me numa posição difícil porque sou feita da matéria de tudo o que li, mas nunca ninguém fez da minha escrita o eco de qualquer outra voz. Talvez porque cada livro meu seja um exorcismo de uma questão obsessiva que vou trabalhando em mim sem procurar propriamente uma resposta. E cada obsessão requer uma linguagem diversa e em tudo semelhante para a tratar.
Quanto a uma identificação, no sentido dos meus poetas imprescindíveis, ou essenciais (portugueses, para que a lista não seja infinita) posso citar: Carlos Oliveira, Ruy Belo, Alexandre O’Neill, Ramos Rosa, Herberto Helder, Egito Gonçalves, Pedro Tamen, Fiama Hasse Pais Brandão, Nuno Júdice, Manuel António Pina, Manuel Gusmão e Daniel Faria.

FM – Dentro desse roteiro de obsessões, como lidas com a distinção entre o que é invisível e o que está oculto? Indago isto pensando em tua defesa de que a construção do mundo reside no olhar humano, e pensando na perspectiva já referida por René Magritte de que “um ser desconhecido no fundo do mar, não é o invisível, é o visível oculto”. Qual a relevância dessa perspectiva em tua poética?

RAB – A desocultação é da ordem do táctil e, como tal, requer um gesto que retire o véu. Mas nunca sabemos se deste gesto advirá uma revelação, já que, freqüentemente, o véu integra tudo aquilo que é, apenas, suposto ocultar. Da mesma forma, nunca saberemos se a desocultação é, de facto, uma nova ocultação, a mais perversa, aquela a que se refere Roland Barthes quando observa que a denotação é a mais perigosa das conotações. E ainda, somos obrigados a aceitar que, por vezes, nada existe sob o véu, mas véu apenas. É o nosso gesto que tem por vocação preencher os vazios, dar sentido, atribuir significados sem deixar espaço para o significante flutuante, para utilizar o termo de Lévi-Straus. Assim, a desocultação é uma operação que se reveste da mesma ambigüidade da interpretação do secreto, do mito, da lenda.
Na minha poética (e na poética do meu habitar o mundo) a invisibilidade resulta, acima de tudo, da nossa condição humana (também respondo com Magritte) no sentido de Leibniz que afirma que o homem é um ser ontologicamente distraído. Esta distração surge, igualmente, em relação a nós mesmos, já que segundo Edward T. Hall deixámos de saber decifrar as mensagens silenciosas do nosso organismo.
A vocação da minha escrita é a de tornar o invisível visível (o que não vai contra o conceito de “visível oculto” na acepção de Magritte). Esta orientação já é notória no meu primeiro livro que tem como epígrafe de Bataille: “o animal está no mundo como a água no interior da água”.
O meu trabalho vai no sentido de um descentramento progressivo para atingir essa participação (no sentido totémico) em que posso ser toda mundo sem deixar de ser mão. O meu universo é o das compossibilidades, das coexistências em que tudo conspira. E meu corpo vai-se tornando atento, inocente, amoroso: tocado. Assim vai retirando da in(-) significância (do invisível) o que, de direito, aspira a despertar.
Resta apenas saber se me cumpro.

FM – Mencionas o Barthes e penso aqui na distinção que ele estabelecia entre dois tipos de leitores, o que pratica o que ele chama de “responsabilidade crítica” (entre os quais se insere) e aquele que apenas consome passivamente textos (e em tal categoria incluía o Bachelard, considerando tal relação “muito limitada”). Qual tipo de leitora te consideras?

RAB – Em primeiro lugar não posso considerar, de forma alguma, que Bachelard consuma passivamente os textos. É que eu li, tanto o Bachelard epistemólogo, como o Bachelard das Poéticas. De facto, acho que li tudo de Bachelard e de Barthes, inclusivamente o seu último artigo que saiu emPlayboy sobre a fruição de queijos e vinhos. É que Bachelard, nem a ele próprio se consome passivamente como leitor. Basta só pensar na sua Filosofia do Não (é pelo facto de saber dizer não que o seu sim não pode deixar de ser crítico e activo) e na Poética do Espaço. O modo como sente os lugares dos textos fundamentais e os reescreve doando de sentido os lugares da nossa vivência não tematizada, mas sem nada retirar ao seu vivido, demonstra uma atenção sensível e uma capacidade de analisar e transfigurar a espacialidade, inclusive da própria língua. Por outro lado, há que saber o que é a responsabilidade crítica e os aspectos que ela pode vestir, sem se cingir ao traje estruturalista (independentemente da importância desta visão do mundo). Toda a questão se pode reduzir a um olhar míope, a partir de um ponto de vista centrado, ou a um olhar que oscila entre a miopia e a panorâmica. Mas a minha leitura de alguns dos textos de Barthes e Bachelard fizeram-me sentir que nunca mais seria a mesma depois de os ler. E esses textos não cabem nos limites das correntes com que nos armadilhamos para lhes colocar etiquetas.
Também não considero pertinente a oposição entre responsabilidade crítica e o consumir passivamente textos. O próprio Barthes falou muito de fruição na sua obra e eu não sei se a fruição se pode enquadrar dentro da proposta estabelecida.
Dir-te-ei que nunca consumo nada passivamente, nem mesmo chocolate (é um tema de Álvaro de Campos, na “Tabacaria”), e que a responsabilidade crítica é apenas uma das minhas muitas orientações de leitura. Às vezes concedo-me o luxo de não ter qualquer responsabilidade crítica, pelo menos numa primeira leitura. Dou-me inteiramente ao gozo da leitura. Outras vezes acontece que retomo o texto para assumir uma responsabilidade que neguei criticamente à primeira leitura. Sou uma leitora apaixonada de tudo o que me apaixona. E quando me deixo, simplesmente, ler é quando a responsabilidade assume o seu des-limite vertiginoso, como crítica a uma crítica deslocada. A leitura faz-se em mim atirando-me para fora de mim. E constitui-se em camadas arquitectónicas, relativamente às quais essa oposição deixa de fazer qualquer sentido. Toda a leitura é excessiva e construi-se, linha a linha, como uma figura do excesso.

FM – Observa Gastão Cruz, no posfácio da Poesia Completa de Luís Miguel Nava, que “todos os grandes poetas fazem sínteses das várias linguagens em circulação no seu tempo e no tempo que os precede”. Se pensarmos em predominâncias estéticas, o que haveria de mais consistente e renovador na poesia portuguesa contemporânea?

RAB – O despojamento e a celebração do quotidiano. A Poesia, sobretudo a partir dos anos 90, despe-se das metáforas, embora os críticos continuem a reduzir, por hábito ou preguiça, os objectos de sentido à metáfora. Bastava não consumirem passivamente (risos) Paul Ricoeur. Mas se o fizerem podem sempre dizer que se trata de uma metáfora viva. De tantos tropos disponíveis, ou a (re)-inventar, os textos críticos centram-se sobretudo na metáfora, o que retira a particularidade da poesia que se faz neste momento em Portugal e a infecta com etiquetas perfeitamente inapropriadas. Esta operação de limpeza da linguagem poética prende-se com aquilo a que eu chamo celebração do quotidiano, ou elogio do quotidiano, no sentido de Todorov referindo-se a Vermeer, entre outros pintores. Dei este exemplo para observar que uma poesia do quotidiano não significa linearidade ou lugar comum. É um olhar atento às coisas que nos tocam no seu ínfimo acontecer e que tecem as nossas vidas. Trata-se de todo um trabalho de interiorização e transfiguração. É notável que muitos dos poetas de “gerações” anteriores se tenham aproximado desta poesia e que alguns se tenham sentido renascer nela. Eu sinto sempre na palavra poética da poesia contemporânea a carne do verbo, uma transparência que deixa entrever as entranhas. Mas não nos deixemos enganar, pois que cada objecto: a pele, a chávena, o pão, são sempre objectos de sentido, tal como bem o notou Magritte com “ceci n’est pas une pipe”, ou “ceci n’est pas une pomme”. Não podemos beber pela chávena escrita, comer o pão poético e tocar na pele do poema. Deveremos antes degustar, saborear e acariciar cada poro da palavra.

FM – E de que maneira estes aspectos resistem a uma comparação com outras tradições líricas, numa margem e outra do Atlântico, por exemplo?

RAB - Na questão anterior falavas em renovação e aqui em tradições líricas. Eu nunca tinha descoberto que o Atlântico tem margens, mas franjas de vagas que se aproximam e se afastam da costa. De resto, é bom que se saiba que a Poesia recente do Brasil, por via impressa, chega muito pouco a Portugal, que não temos um intercâmbio cultural e que quase só a NET desempenha um papel de troca, se exceptuarmos um número da Revista Relâmpago dedicada à Poesia brasileira contemporânea e as edições Quasi. O mesmo é dizer-te que não posso falar com fundamento do que se faz hoje no Brasil, pois o meu corpus de conhecimentos teria de ser bem mais amplo. Acho que aqui há todo um trabalho a fazer.

FM – Por um lado, o que me dizes me faz pensar em John Cage: “A arte está em processo de retornar ao que lhe é próprio: a vida”, pois é naturalmente isto o que mencionas como “celebração do cotidiano”, esta celebração que uma tradição oficial da lírica brasileira rejeita, movida pela infiltração excessiva do positivismo em nossa cultura.

RAB – A Arte e as Artes são simultaneamente um despoletar e um reflexo de que a vida retoma à própria vida. Genericamente (já que há sempre as grandes excepções), nas gerações anteriores encontramos, tanto uma vertente lírica ornamentada, como uma Poesia muito conceptual. A Poesia como celebração do quotidiano é um bom sintoma de outra postura de vida. As palavras despem-se do medo de serem apenas palavras, mas passamos de uma dimensão representativa a uma dimensão mais apresentativa. Há toda uma intimidade, uma aproximação furtiva ao quotidiano que lhe retira a banalização do olhar. É como Cézanne pintava as maçãs, como reflectia sobre um simples açucareiro ao comentar que é preciso amar essas pequenas coisas, quando falava da tristeza da pele do pêssego, ou das rugas da maçã. Subitamente, somos confrontados com esses minúsculos seres mágicos que nunca tinham convocado a nossa atenção e que ganham a dignidade de objectos amados. O demasiado positivismo incorre no problema de todos os demasiados ismos. Só desfigurando os sufixos se reinventa a tradição, actualizando-a sem lhe retirar a carga histórica.

FM - Por outro lado, essa não-relação entre as duas margens do Atlântico, margens de uma mesma língua, é talvez um ardil no qual caímos ambos os lados, o da presunção, o de sentir-se cada um superior ao outro. E o abandono mútuo desse lugar (sagrado) de encontro entre duas ricas tradições literárias começa a ser povoado por um certo oportunismo acadêmico, o que resultará em novos prejuízos, sobretudo se considerarmos a visão distorcida que chega a Portugal – talvez eu esteja dando um valor excessivo ao tema – a partir de um grupo de poetas em torno da revista brasileira Inimigo Rumor. Refiro-me a distorção no sentido de se evitar a multiplicidade de experiências que verdadeiramente define nossa tradição. Mas o que sugeres diante dessa conclusão de que há todo um trabalho a fazer?

RAB - Não creio que exista esse ardil, não de uma forma sistematizada. Eu só o encontro em pequenos grupos e a cada grupo seu ardil. A deficiência real na relação entre as duas margens passa por factos insuperáveis e prosaicos como o preço dos portes de correio. Às vezes a água que une pode ser um mar que separa. Essa questão da superioridade tinha-me passado despercebida, talvez porque não cabe no meu olhar, ou talvez porque seja apenas exacerbada por gente que tem pouco em que pensar. O que acontece é que há sempre mais preocupações económicas por quem de direito, nas relações entre países, do que preocupações em estreitar as relações culturais. O ponto crucial desta questão prende-se com o facto de que, para o poder, a cultura não está na ordem do dia, não constitui nunca uma prioridade. No nosso caso é ainda mais lamentável porque nem temos que ultrapassar o “exílio linguístico”.
É um facto que lemos alguns dos grandes nomes da Poesia brasileira, mas lemo-nos sempre no passado. Quer dizer que seria deveras importante saber o que se está a fazer no momento, até mesmo quais os nomes que são apenas promissores. Poder fazer parte das escolhas e não receber apenas já nomes “consumados” e consumidos.
Por isso as Revistas na NET me parecem, para já, a única possibilidade não utópica de uma troca em tempo real. Mas há que repensar o modo de tornar eficaz esta troca, de lhe retirar o carácter pontual e arbitrário, de encontrar autênticas relações biunívocas, de explorar e reflectir sobre os legados e as identidades que se vão gerando pelas vivências múltiplas e diversificadas. Quanto a mim, o acordo ortográfico só serve para tapar o sol com a peneira. uma mesma língua não pode significar, de modo algum, uma mesma linguagem, pois esta não é um arquivo originário, mas um modo actual de um povo estar no mundo que não deve sujeitar-se ao ismo da redução. Toda a redução é simplista e empobrecedora.

FM – A propósito, estás agora justamente preparando a edição de uma revista virtual, de maneira que gostaria que comentasses um pouco sobre teus planos editoriais e um pouco também a respeito de como, em Portugal, essa mídia tem funcionado em termos de circulação de cultura.

RAB – O meu interesse pela enorme potencialidade da NET (nem me refiro à pesquisa) veio, em primeiro lugar, dos Manifestos que circulam desde há anos e que desencadearam uma consciência colectiva de que já não podemos ignorar o poder. Por outro lado, estou a par da maior parte dos eventos culturais, mesmo no estrangeiro, através do ecrã. É aqui que Hermes se cumpre de uma forma ampla e selectiva sem custos relevantes.
Relativamente à Revista, eu estive na co-direcção de Figuras e de Limiar e pertenço à Hablar/Falar de Poesia. Neste momento, e porque o pressuposto é ter um projecto, estou, realmente interessada numa Revista que circule pela Net que possa ser feita em qualquer lado e chegar a qualquer lado, instantaneamente. Esta inclinação deve-se ao facto das próprias características da Net, mas também a outros factores. Em primeiro lugar, trabalho com interação (no que se refere aos novos objectos interactivos), uma vez que ensino Design. Nos meus últimos papers para conferências internacionais tentei escrever as bases para uma Filosofia da interação e foi, para mim própria, uma surpresa encontrar na realidade virtual e na realidade aumentada os conceitos dominantes das sociedades estudadas por Marcel Mauss, Lévi-Strauss ou Lévy-Bruhl, tais como: dádiva, a troca simbólica e a participação.
Assim, uma revista de Poesia (no sentido amplo) na Net reencontra-me com o meu modo nómada de estar no mundo e com o meu mundo arcaico de troca simbólica, em que a participação, no sentido de Lévi-Bruhl, se tece também em mim, neste caso como, simultaneamente, primitiva e interactiva.

FM – De volta à tua poesia, percebe-se ali uma intensa carga erótica, onde se aplica a leitura perfeita do que observa Xosé Maria Alvarez Cáccamo, ou seja, de que nela "o corpo vive em tensão inquiridora do infinito", sendo essa tensão marcada por uma sugestiva fusão das perspectivas do dentro & fora, conteúdo & continente. Como vês esse radical erótico, esse Eros cuja intensidade é a um só tempo dolorosa e libertadora?

RAB – Esta questão é muito delicada porque, a um tempo, me obriga a pensar, do ponto de vista de uma estética da recepção, qual o sentido que transparece nos meus poemas para que a estes se possam colar os atributos de "imensa carga erótica" e "radical erótico", ao mesmo tempo que me determina a desempenhar o papel de leitora descentrada relativamente à minha escrita.
Para começar considero que não existe um erotismo explícito na minha poesia. Creio mesmo que essa carga erótica na recepção é um efeito da sensualidade dos poemas, entendida aqui como uma poética dos sentidos e dos sentires.
Em todo o processo perceptivo existe uma ego-recepção, já que os sentidos estão, simultaneamente vocacionados para o interior de nós e para o exterior mundano. Da visão podemos dizer que vemos vendo-nos. Existe sempre um sentir de nós, do nosso corpo, em tudo o que percepcionamos e fazemos.
A minha poética pode ser entendida enquanto apologia do corpo no mundo, em que o corpo funciona como um sistema aberto em constante importação e conseqüente transformação. O maravilhoso operador destas passagens é sobretudo a pele, suficientemente consistente para se constituir enquanto "superfície" delimitadora e suficientemente porosa para deixar entrar o mundo de um modo táctil e eis porque tudo o que nos chega através de qualquer sentido como os olhos, o nariz, a boca etc., nos acaricia. O meu poema "Obra-Prima", em Da Alma e dos Espíritos Animais, tenta tematizar em verso aquilo que acabo de dizer. Assim, paradoxalmente (porque tematiza) e conseqüentemente (porque o objecto tematizado é a carícia) é um poema de resolução inteiramente sensual.
A minha escrita é cada vez mais uma escrita de pele, uma escrita tocada pelas coisas; mas não creio que exista mais carga sensual quando escrevo "perna" do que quando escrevo "pedra", porque a carícia tem a mesma intensidade e a mesma verdade.
Aceito sem restrição a idéia de uma tensão inquiridora do infinito, mas obrigo-me também a algumas elucidações. Tensão, neste caso, tem o sentido de diferença de potencial que constitui a própria possibilidade da vida e o infinito é buscado, ou mesmo encontrado, a partir do finito (o que não significa limitado ou em oposição binária com o infinito).
O que de facto me interessa é mergulhar nos aspectos que desdobram o finito em infinito, pois cada minúscula partícula está prenhe de infinito e de devir. Creio que a minha poética se constitui enquanto convocação das coisas, no sentido de trazer para a luz aquilo que parecia condenado à sombra. Esta convocação é feita através da carícia, pois quanto a mim, só ela tem o poder de despertar as coisas e as arrancar ao abismo da invisibilidade ou esquecimento.
Mas a libertação não é, necessariamente dolorosa, seja qual for o grau de intensidade. Depende da receptividade à dádiva, da apetência em tocar e ser tocado. A carga sensual da minha poesia, que advém sempre do pacto entre o corpo e o mundo, em que o corpo se faz corpo com o mundo, poderia quase exprimir-se numa frase, que apesar das aparências, nada tem de cartesiana): toco e sou tocada, logo existimos.

[2003]

NOTA
Há na poesia portuguesa alguns nomes que, a despeito da imensa qualidade de suas obras, seguem desconhecidos no Brasil até mesmo da parte de nossos escritores. Decerto que a busca de um diálogo com eles contribuiria para driblar a enfadonha previsibilidade que se prolonga em nosso cenário contemporâneo. Dentre aqueles nascidos nos anos 50, três deles considero urgente a entrada no Brasil: Rosa Alice Branco (1950), Manuel Gusmão (1954) e Luís Miguel Nava (1957-1995). Os leitores daAgulha já tiveram a oportunidade de conhecer Miguel Nava. Agora temos no Rascunho uma entrevista com Rosa Alice Branco. Poeta, ensaísta e intelectual ativa em seu país, preside a Limiar, antes selo editorial e revista de cultura e hoje uma cooperativa que vem produzindo inúmeros eventos literários, dentre eles os Encontros Internacionais de Poesia de Aveiro. Membro da direção do Pen Club português, é co-responsável pela criação da revista de poesia Hablar/Falar de Poesia. Traduzida para o árabe, o francês e o espanhol, publicou livros como O único traço do pincel (1997), Da alma e dos espíritos animais (2001) e Soletrar o dia (2002). Ao escrever sobre ela, Ramos Rosa lhe destacou a intensidade de uma realização intertextual, mas cabe também perceber a forte expressão erótica dessa poesia. Vamos então ao diálogo com Rosa Alice Branco. Abraxas

Nenhum comentário:

Postar um comentário