quinta-feira, 14 de agosto de 2014

FABRÍCIO CARPINEJAR | Contra a monarquia da poesia brasileira



FM | Teu livro Terceira sede (2001), bem saudado pela crítica, encontra em tarso de melo uma de suas melhores leituras, ao mencionar que essa antecipação de uma consciência da velhice, em tua poética, não é senão uma afirmação da juventude da poesia. Por aqui começamos nosso diálogo: com três livros publicados, sendo cada um deles, em teu dizer, "capítulo de um grande romance versificado", o que tens buscado essencialmente através da poesia?

FC | O poeta Tarso de Melo percebeu que terceira sede, mesmo estando em 2045, falava de nossa própria época. Do futuro, o personagem percebe seu passado que é o nosso presente. Há um ilusionismo cronológico, uma bússola contorcida, um falso distanciamento que reforça a autenticidade das situações. Avanço para recuar. Com a poesia, busco nomear novamente a vida. Zerar as dívidas. A poesia brasileira mergulhou num egocentrismo atroz. Ao invés de transfigurar o mundo, passou a poetizar o poema. A poesia tornou-se um fim, não um instrumento, o que dificultou a vida dos leitores, que não estavam a fim de ficar papeando signos. Pretendo ser - um dia - um autor anônimo, ser invisível cada vez mais, a ponto de o interlocutor não notar que os poemas foram escritos, e ter a sensação de que eles são falados. Os poemas são conversas derramadas fora do corpo.

FM | O livro anterior, apesar do título, Um terno de pássaros ao sul (1999), teve sua estrutura confundida com a do hai-cai por vários críticos e um deles, ricardo corona, chegou a mencionar uma "tradição brasileira", a de haicais "infiéis". Talvez se considere no Brasil que a santíssima trindade não passa de um hai-cai infiel. O hai-cai não pode ser visto como uma ode ou um terno. É outra sua natureza, e a cultura brasileira lhe é completamente alheia. O que pensas a respeito?

FC | Convenhamos: há realmente uma visada confusa sobre os hai-cais. Poemas recebem essa denominação em função da concisão e resolução imagética. Houve um relaxamento muscular dessa forma de poesia, o que permite a localização de hai-cais infiéis na produção brasileira, justa observação de Ricardo Corona. Mas os meus poemas estão mais perto dos epigramas gregos, da sentenças inconclusas, do abandono da imagem antes de sua explosão. O que verifico é que o humor brasileiro é diferente do temperamento oriental. Ocorreu uma mutação genética. A tradição japonesa - Bashô, as tankas de Takuboku Ishikawa, entre outros autores - provoca uma leve graça, um contentamento silencioso e inteligente, um leve balbuciar. Já a brasileira desanca para a risada, ao desbragamento de contrastes, seguindo influência de Oswald de Andrade e dos poemas-piadas dos modernistas. O risco é a poesia perder o poético e deslizar para a publicidade, ceder ao pitoresco. Misturam extravagância com poesia. O poema passa perigosamente a vender ideias.

FM | Sigo anotando aspectos que me chamam a atenção nas resenhas de teus livros. O mais prosaico é o declarado espanto ao comparar consistência dos versos com a tua pouca idade, como se a afirmação de uma poética fosse um tento da maturidade. A poesia encontra-se ligada à ruptura, à ousadia, a um profundo questionamento de si. Afirma-se, portanto, no auge da juventude, alheia a todos os riscos. Talvez o que espante mesmo em teus livros é que, ao contrário do muito que se tem publicado neste país, tens algo a dizer. Indago então sobre as origens desse discurso.

FC | Sou várias idades simultaneamente. Costumo ser a idade do interlocutor. Falo com uma criança e estou no mesmo nível de seu imaginário. Logo em seguida, converso com meus pais e novamente me adapto. Acredito que a faixa etária não servirá para qualificar ou desqualificar o juízo da obra. Se eu tivesse 72 anos, como o protagonista de terceira sede, seria mais respeitado? Talvez sim, porque não se confia mais nos jovens . Como diz Althusser, o "futuro dura muito tempo". Se apreciam minha obra pela promessa, há um equívoco. Ela deve ser, independente do seu autor e de sua origem. Posso parar hoje e já estarei saciado. O tempo não é uma invenção humana. O homem é uma invenção do tempo.
Alimento uma crença absurda na palavra, desejando o próprio desejo. Tenho fé para escavar. Todos os meus livros já estavam em "as solas do sol". Como um palimpsesto, vou raspando as camadas e abrindo as metáforas. O poeta se enterra no primeiro livro - cabe ressuscitar depois. Minha vida é reerguer os destroços do naufrágio fundador. Encontrar as ossadas do oceano. Não sei se conseguirei ser mais rápido que o mar, mas não guardo fôlego para o regresso. Todo livro representa um capítulo de um romance versificado. Como um narrador oculto, teço um manto infindável de histórias, contrabandeadas de ouvido. Pretendo repassar uma visão de mundo, alcançar uma unidade perdida.

FM | Ainda sobre as formas, tens uma adorável defesa da elegia, ao dizer dela que se trata do "jazz da poesia", por permitir "improvisações e solos mais fecundos". No entanto, te pergunto uma coisa: não é possível aprofundar-se e improvisar na ode, no salmo? Este sentido de liberdade que caracteriza o jazz não estaria além da forma, em seu espírito? E não vem justamente daí este "grande prazer e alegria em escrever" com que declaras tua aversão a uma "imagem masoquista do escritor"?

FC | Sim, está além da forma, mas não vejo a forma como algo apartado do conteúdo. As improvisações das elegias não são as mesmas nas odes e nos salmos, que exigem uma maior regularidade do ritmo e menos rumor secreto. Elegias, assim como ficaram conhecidas com Rilke e Goethe, oferecem um andar mais arrastado, um fraseado solto, tenso, um lamento de metais, que provoca cisões com freqüência no discurso. As odes têm um alto grau de memorização, já as elegias valorizam a mensagem e a culminância da linguagem. Assim privilegio uma unidade fragmentada, feita de rompantes, lacerações e de uma conscientização gradual. O autor vai tomando consciência no decorrer do livro, amadurecendo a perspectiva durante o percurso. Não escrevo para dar uma lição. No máximo, para oferecer minhas perplexidades. Quando absorvemos os movimentos do outro, em total sincronia, não é submissão, mas liberdade. Todo domínio é liberdade. Quero que minha respiração seja sopro. Disciplino meu ritmo para ser espontâneo. A invenção precisa passar o mesmo grau de surpresa da descoberta. Ser espontâneo custa muito ensaio.

FM | Em uma entrevista observas que "há uma ligação grande e fecunda entre diversos autores no Brasil e que isso dará corpo a um movimento mais tarde". Me parece que saltamos do desgaste das vanguardas para o vazio dos modismos, e hoje nos encontramos inteiramente sem referenciais. Embora eu vislumbre essa ligação que mencionas não vejo como ela possa vir a tornar-se em movimento. Daí que te peço que esclareças um pouco mais o assunto.

FC | Não creio que será um movimento orquestrado, mas o pulsar de fortes individualidades. Muitas das novas vozes surgirão fora do eixo Rio de Janeiro/São Paulo, resgatando a travessia lírica de grandes metragens. A poesia brasileira ressentiu-se, nos últimos anos, com uma metalinguagem excessiva. Entende-se perfeitamente: uma forma de absorver fortes influências como Drummond, Bandeira e João cabral. O poema foi questionado em interrogatório implacável e assustador e perdeu credibilidade de leitura. Os poetas realizaram uma espécie de suicídio coletivo, pensando que o poema era mais importante do que a vida. Poetizaram o poema até a exaustão. Retoma-se agora uma preocupação social. O ímpeto utilizado para a destruição será transferido para a criação. A poesia é uma língua não viciada, um dialeto e poderá prosperar como o idioma do bem comum. Na fala poética, não há filtros de mercado. Fala-se diretamente com a sociedade.

FM | Nossa relação com a poesia hispano-americana é bastante precária, e seguimos todos lamentando e raramente fazendo algo a respeito. Embora seja maior a lista de autores brasileiros publicados em espanhol do que o contrário, a verdade é que também a América Hispânica desconhece nossa poesia. Há pouco li em uma revista argentina, Los rollos del mal muerto, uma excessiva consideração à importância de um poeta como Alvaro de Sá, brasileiro ligado ao poema processo. Por outro lado, a entrada de poetas hispano-americanos no brasil vem estando mais vinculada a modismos editoriais do que propriamente a um entendimento da importância de uma obra. O que te parece que estamos perdendo com essa absoluta falta de diálogo?

FC | Nossa mudez é autismo antigo. Um dos maiores males da poética brasileira é que ela julga seu ciclo histórico diferente dos países vizinhos, quando há mais semelhanças do que impasses. O surrealismo é um exemplo. O Brasil é conhecido ainda pelos seus resíduos, não pelas fontes primárias. Uma teoria neo-realista tentou soterrar as vigas e forças-mestras de nossa poesia. Trocaram os antepassados, podaram os ramos da árvore genealógica. É preciso rever o cânone, a tradição. Onde estão na história da literatura brasileira os aspectos visionários, subterrâneos, barrocos e místicos? Apressaram o velório de Jorge de Lima, Cecília Meireles e Murilo Mendes. Por exemplo, Murilo Mendes de Siciliana e Tempo espanhol não é abordado, prevalecendo o mais experimental e concretista de seus livros: convergência. Nos últimos cinqüenta anos, procuramos nos esconder as próprias verdades, como queremos um reconhecimento internacional? Debaixo das aparências, estamos próximos de uma dicção ibérica. O que acaba sendo conhecido é um produto distorcido, de natureza extraliterária. O que agrava a situação é também uma ideia monárquica do gênero, o estabelecimento pela crítica de uma cota de autores. João Cabral morreu, procura-se de imediato um sucessor. Como se isso fosse possível? Nesta dança das cadeiras, poucos sentam.

FM | Lembro aqui uma afirmação tua de que "a pluralidade no Brasil é esquecida em torno do monopólio de uns poucos", ou seja, ao invés de somarmos estamos sempre a diminuir, e já nos reduziremos a nada. O que me parece mais curioso observar é um princípio de conivência baseado na expectativa que todos parecem possuir de interesse em participar desse clube fechado. Daí o efeito de uma dinâmica estática, onde nada se questiona porque tudo pode ser usado contra essa velada afirmação de uma mesquinharia. Como tem sido teu convívio com teus pares?

FC | Sou aberto às dissidências, diferenças e sei ler o outro sem uma finalidade autoral. Não me procuro no outro, procuro o outro em mim. Não faço parte de nenhum clube, nem estou escondido sob a efígie de tribos. Há escritores com medo de falar dos contemporâneos, pensando em apenas proteger a filatelia de versos e seus fornecedores. O que devemos entender é que fortalecendo a poesia, comentando e divulgando com franqueza vizinhos de vozes, estamos fortalecendo o gênero. Se entrarmos em brigas menores, de vaidades e egos, a poesia que já tem um espaço reduzido, perderá ainda mais seu terreno. A poesia é o despoder e não adianta que não nos dará serventia e status. Se prosseguirmos com cartas abertas e facções, mergulharemos no colunismo social.

FM | Em uma leitura panorâmica da poesia brasileira, recorrendo a uma metáfora futebolística, fizeste menção aos "grandes e raros, que são os técnicos/jogadores, conseguindo ter simultaneamente a visão do gramado e de fora dele". Na hora de citar nomes é que essa metáfora me pareceu intrigante: não temos ninguém assim na poesia brasileira?

FC | Não temos mesmo. Prosseguimos com a visão de campo de excelentes jogadores, mas nenhum conseguiu como técnico criar uma teoria a partir de sua obra. No México, Octavio Paz e Carlos Fuentes seriam esses talentos simultâneos, inventores-críticos, capazes de pensar a cultura no todo e fomentar o diálogo com ancestralidades. Acredito que Mario Faustino teria sido esse craque, mas morreu cedo demais e levou a promessa junto.

FM | Embora concordando contigo em termos de que "nosso lado místico, barroco, intuitivo e visionário acabou sendo posto de lado para prevalecer a razão e a técnica concretista", te pergunto o seguinte: particularidades como o concretismo e sucedâneos não seriam apenas a constatação de um cartesianismo imperativo em nossa cultura, um retrato dessa dissidência entre coroas portuguesa e espanhola? Como considerar ruptura o que não passa de uma confirmação da tradição?

FC | A pergunta já é uma resposta. Por sinal, extremamente lúcida. Um dos problemas enfrentados é que movimentos provisórios no país se transformaram em governos permanentes. O que é visto como ruptura, na verdade é tentativa de consolidar um espírito autoral em função mais de uma teoria do que de uma criação. As bulas são vendidas sem o remédio.

FM | O poeta argentino Juan José Ceselli, no livro Selva 4040 (1977), recorre a um tipo de anarquia temporal, saltando de uma época a outra, entrelaçando passado, presente e futuro. Em teu Biografia de uma árvore (2002), o que se faz é avançar no tempo, sem que isto se constitua em um desfiar de pressentimentos. Ceselli declarou que sua intenção era "desarticular o temporal". Qual seria então a tua intenção?

FC | Minha intenção é a imanência, ser o próprio tempo concentrado, diferentes épocas coexistindo. Não anseio pela transcendência, sair para voltar, mas ficar até que tudo seja uma incômoda ausência. Biografia de uma árvore transcorre em um único dia, de 23 a 24 de outubro de 2045. O personagem Avalor está prestes a completar 73 anos, extremamente desiludido com seu caminho. Acabou de perder a esposa, amigos, desligado de sua época. Decide brigar com deus, até demiti-lo por justa causa, criando o novíssimo testamento. Longe de ser um volume pessimista, representa uma narrativa lírica afirmativa, com muita irreverência, autocrítica e ironia. Avalor não fica enrolando, diz a verdade de cara. Não medita duas vezes, porque o cotidiano pensou por ele. Sofre pelo excesso de sinceridade consigo e com o mundo.

FM | Percebo que a epígrafe deste livro pertence ao anterior Terceira sede (2001), sugerindo laços estéticos entre ambos. De que maneira um livro confirma o alcance poético do outro, como se completam e avançam em busca de uma expressão cada vez mais genuína?

FC | Um livro nasce do outro. Há uma paternidade adotiva. Biografia de uma árvore estava soterrado na paisagem de terceira sede. Foi aparecendo na medida em que cavava o verbo e procurava sobreviventes. Minha poesia funciona como "conficções", termo que criei para sintetizar algo como confissões inventadas. Se eu quisesse escrever sobre o que faço, nem publicava. O espelho já me diz o suficiente toda a manhã. Se optasse pela catarse, passaria a compor um diário poema é o desejo insano de criar intimidade da estranheza. Daí procuro o conflito, a inquietação, caminhar no fogo, acentuar o contraste. É natural uma pessoa madura recordar da juventude e relatar esse período. Já um jovem se projetar velho é uma situação nova. Sou o sujeito do contrário, busco o avesso, desvirtuar o senso e o lugar-comum. Não vendo pílulas para dormir, quero acordar o leitor a tal ponto que ele vire um sonâmbulo. Nenhum livro que publiquei traz bula – é bom ter cuidado. Os efeitos colaterais mudam de acordo com a vontade e a fé de quem está lendo. Terceira sede e biografia de uma árvore oferecem um lado extremamente social, criticando a caricatura que aceitamos da velhice. Todas as propagandas mostram velhos andando de jet-ski, de balanço, em cenas exageradas. Parece dizer o seguinte: o velho só presta se imitar o jovem. Isso é ridículo, uma tremenda exclusão. Parece que esquecemos o essencial: o idoso é vida em aberto, em expansão. Não podemos olhá-lo como tempo perdido, cumprido, mas como tempo a ser ganho. Há o estigma equivocado de que com aposentadoria morremos socialmente. Não penso assim. Ninguém morre por antecipação. Precisamos jogar até o último minuto. É possível mudar o placar de qualquer partida em um simples lance.

FM | Tens uma prática admirável em busca de um diálogo com o que está à tua volta: resenhas, artigos, entrevistas. Este sentido de uma entrega, uma doação, contradiz uma época que se aperfeiçoa na eliminação da livre emoção. Por que entrevistas? O que elas revelam, a ti e à tua poesia?

FC | Concordo: é doação. A intimidade descende do alheamento. Insisto no áspero diálogo, no escambo de experiências. Não sou um crítico, mas um poeta atuante, que não se finda na própria obra, que se dispersa e se recolhe nos demais autores. Ninguém é pai de um poema sem ter sido filho dele antes. Estou sempre nos dois lados, escrevendo e espiando, lendo e multiplicando a fome. Posso errar, porém não será um erro póstumo. É um erro vivo, assumindo a responsabilidade com o destino de meu imaginário. Abomino a omissão, espécie de covardia da verdade.
Espero desaparecer. Da vida, a mais difícil alfabetização é lentamente des-escrever. Renunciar o conhecimento como uma posse, uma herdade, perder a memória, ser unicamente o necessário, a roupa do corpo, poesia quase prosa, a pupila parada da música. Recuso a vaidade da autoria, faço o possível para não deixar rastros, marcas. Desconfio do meu talento. A terra se abre como um livro.

[2002]

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