FM | Teu livro Terceira
sede (2001), bem saudado pela crítica, encontra em tarso
de melo uma de suas melhores leituras, ao mencionar que essa antecipação de uma
consciência da velhice, em tua poética, não é senão uma afirmação da juventude
da poesia. Por aqui começamos nosso diálogo: com três livros publicados, sendo
cada um deles, em teu dizer, "capítulo de um grande romance
versificado", o que tens buscado essencialmente através da poesia?
FC | O poeta Tarso de Melo percebeu que terceira
sede, mesmo estando em 2045, falava de
nossa própria época. Do futuro, o personagem percebe seu passado que é o nosso
presente. Há um ilusionismo cronológico, uma bússola contorcida, um falso
distanciamento que reforça a autenticidade das situações. Avanço para recuar.
Com a poesia, busco nomear novamente a vida. Zerar as dívidas. A poesia
brasileira mergulhou num egocentrismo atroz. Ao invés de transfigurar o mundo,
passou a poetizar o poema. A poesia tornou-se um fim, não um instrumento, o que
dificultou a vida dos leitores, que não estavam a fim de ficar papeando signos.
Pretendo ser - um dia - um autor anônimo, ser invisível cada vez mais, a ponto
de o interlocutor não notar que os poemas foram escritos, e ter a sensação de
que eles são falados. Os poemas são conversas derramadas fora do corpo.
FM | O livro anterior, apesar do título, Um
terno de pássaros ao sul (1999), teve sua estrutura confundida com a do
hai-cai por vários críticos e um deles, ricardo corona, chegou a mencionar uma
"tradição brasileira", a de haicais "infiéis". Talvez se
considere no Brasil que a santíssima trindade não passa de um hai-cai infiel. O
hai-cai não pode ser visto como uma ode ou um terno. É outra sua natureza, e a
cultura brasileira lhe é completamente alheia. O que pensas a respeito?
FC | Convenhamos: há realmente uma visada confusa sobre
os hai-cais. Poemas recebem essa denominação em função da concisão e resolução
imagética. Houve um relaxamento muscular dessa forma de poesia, o que permite a
localização de hai-cais infiéis na produção brasileira, justa observação de Ricardo
Corona. Mas os meus poemas estão mais perto dos epigramas gregos, da sentenças
inconclusas, do abandono da imagem antes de sua explosão. O que verifico é que
o humor brasileiro é diferente do temperamento oriental. Ocorreu uma mutação
genética. A tradição japonesa - Bashô, as tankas de Takuboku Ishikawa, entre
outros autores - provoca uma leve graça, um contentamento silencioso e
inteligente, um leve balbuciar. Já a brasileira desanca para a risada, ao
desbragamento de contrastes, seguindo influência de Oswald de Andrade e dos
poemas-piadas dos modernistas. O risco é a poesia perder o poético e deslizar
para a publicidade, ceder ao pitoresco. Misturam extravagância com poesia. O
poema passa perigosamente a vender ideias.
FM | Sigo anotando aspectos que me chamam a atenção nas
resenhas de teus livros. O mais prosaico é o declarado espanto ao comparar
consistência dos versos com a tua pouca idade, como se a afirmação de uma
poética fosse um tento da maturidade. A poesia encontra-se ligada à ruptura, à
ousadia, a um profundo questionamento de si. Afirma-se, portanto, no auge da
juventude, alheia a todos os riscos. Talvez o que espante mesmo em teus livros
é que, ao contrário do muito que se tem publicado neste país, tens algo a
dizer. Indago então sobre as origens desse discurso.
FC | Sou várias idades simultaneamente. Costumo ser a
idade do interlocutor. Falo com uma criança e estou no mesmo nível de seu
imaginário. Logo em seguida, converso com meus pais e novamente me adapto.
Acredito que a faixa etária não servirá para qualificar ou desqualificar o
juízo da obra. Se eu tivesse 72 anos, como o protagonista de terceira
sede, seria mais respeitado? Talvez sim,
porque não se confia mais nos jovens . Como diz Althusser, o "futuro dura
muito tempo". Se apreciam minha obra pela promessa, há um equívoco. Ela
deve ser, independente do seu autor e de sua origem. Posso parar hoje e já
estarei saciado. O tempo não é uma invenção humana. O homem é uma invenção do
tempo.
Alimento uma crença absurda na palavra, desejando o
próprio desejo. Tenho fé para escavar. Todos os meus livros já estavam em
"as solas do sol". Como um palimpsesto, vou raspando as camadas e
abrindo as metáforas. O poeta se enterra no primeiro livro - cabe ressuscitar
depois. Minha vida é reerguer os destroços do naufrágio fundador. Encontrar as
ossadas do oceano. Não sei se conseguirei ser mais rápido que o mar, mas não
guardo fôlego para o regresso. Todo livro representa um capítulo de um romance
versificado. Como um narrador oculto, teço um manto infindável de histórias,
contrabandeadas de ouvido. Pretendo repassar uma visão de mundo, alcançar uma
unidade perdida.
FM | Ainda sobre as formas, tens uma adorável defesa da
elegia, ao dizer dela que se trata do "jazz da poesia", por permitir
"improvisações e solos mais fecundos". No entanto, te pergunto uma
coisa: não é possível aprofundar-se e improvisar na ode, no salmo? Este sentido
de liberdade que caracteriza o jazz não estaria além da forma, em seu espírito?
E não vem justamente daí este "grande prazer e alegria em escrever"
com que declaras tua aversão a uma "imagem masoquista do escritor"?
FC | Sim, está além da forma, mas não vejo a forma como
algo apartado do conteúdo. As improvisações das elegias não são as mesmas nas
odes e nos salmos, que exigem uma maior regularidade do ritmo e menos rumor
secreto. Elegias, assim como ficaram conhecidas com Rilke e Goethe, oferecem um
andar mais arrastado, um fraseado solto, tenso, um lamento de metais, que
provoca cisões com freqüência no discurso. As odes têm um alto grau de
memorização, já as elegias valorizam a mensagem e a culminância da linguagem.
Assim privilegio uma unidade fragmentada, feita de rompantes, lacerações e de
uma conscientização gradual. O autor vai tomando consciência no decorrer do
livro, amadurecendo a perspectiva durante o percurso. Não escrevo para dar uma
lição. No máximo, para oferecer minhas perplexidades. Quando absorvemos os
movimentos do outro, em total sincronia, não é submissão, mas liberdade. Todo
domínio é liberdade. Quero que minha respiração seja sopro. Disciplino meu
ritmo para ser espontâneo. A invenção precisa passar o mesmo grau de surpresa
da descoberta. Ser espontâneo custa muito ensaio.
FM | Em uma entrevista observas que "há uma ligação
grande e fecunda entre diversos autores no Brasil e que isso dará corpo a um
movimento mais tarde". Me parece que saltamos do desgaste das vanguardas
para o vazio dos modismos, e hoje nos encontramos inteiramente sem
referenciais. Embora eu vislumbre essa ligação que mencionas não vejo como ela
possa vir a tornar-se em movimento. Daí que te peço que esclareças um pouco
mais o assunto.
FC | Não creio que será um movimento orquestrado, mas o
pulsar de fortes individualidades. Muitas das novas vozes surgirão fora do eixo
Rio de Janeiro/São Paulo, resgatando a travessia lírica de grandes metragens. A
poesia brasileira ressentiu-se, nos últimos anos, com uma metalinguagem
excessiva. Entende-se perfeitamente: uma forma de absorver fortes influências
como Drummond, Bandeira e João cabral. O poema foi questionado em
interrogatório implacável e assustador e perdeu credibilidade de leitura. Os
poetas realizaram uma espécie de suicídio coletivo, pensando que o poema era
mais importante do que a vida. Poetizaram o poema até a exaustão. Retoma-se
agora uma preocupação social. O ímpeto utilizado para a destruição será
transferido para a criação. A poesia é uma língua não viciada, um dialeto e
poderá prosperar como o idioma do bem comum. Na fala poética, não há filtros de
mercado. Fala-se diretamente com a sociedade.
FM | Nossa relação com a poesia hispano-americana é
bastante precária, e seguimos todos lamentando e raramente fazendo algo a
respeito. Embora seja maior a lista de autores brasileiros publicados em
espanhol do que o contrário, a verdade é que também a América Hispânica
desconhece nossa poesia. Há pouco li em uma revista argentina, Los
rollos del mal muerto, uma excessiva consideração à
importância de um poeta como Alvaro de Sá, brasileiro ligado ao poema processo.
Por outro lado, a entrada de poetas hispano-americanos no brasil vem estando
mais vinculada a modismos editoriais do que propriamente a um entendimento da
importância de uma obra. O que te parece que estamos perdendo com essa absoluta
falta de diálogo?
FC | Nossa mudez é autismo antigo. Um dos maiores males
da poética brasileira é que ela julga seu ciclo histórico diferente dos países
vizinhos, quando há mais semelhanças do que impasses. O surrealismo é um
exemplo. O Brasil é conhecido ainda pelos seus resíduos, não pelas fontes
primárias. Uma teoria neo-realista tentou soterrar as vigas e forças-mestras de
nossa poesia. Trocaram os antepassados, podaram os ramos da árvore genealógica.
É preciso rever o cânone, a tradição. Onde estão na história da literatura
brasileira os aspectos visionários, subterrâneos, barrocos e místicos?
Apressaram o velório de Jorge de Lima, Cecília Meireles e Murilo Mendes. Por
exemplo, Murilo Mendes de Siciliana e Tempo
espanhol não é abordado, prevalecendo o mais experimental e
concretista de seus livros: convergência.
Nos últimos cinqüenta anos, procuramos nos esconder as próprias verdades, como
queremos um reconhecimento internacional? Debaixo das aparências, estamos
próximos de uma dicção ibérica. O que acaba sendo conhecido é um produto
distorcido, de natureza extraliterária. O que agrava a situação é também uma ideia
monárquica do gênero, o estabelecimento pela crítica de uma cota de autores. João
Cabral morreu, procura-se de imediato um sucessor. Como se isso fosse possível?
Nesta dança das cadeiras, poucos sentam.
FM | Lembro aqui uma afirmação tua de que "a
pluralidade no Brasil é esquecida em torno do monopólio de uns poucos", ou
seja, ao invés de somarmos estamos sempre a diminuir, e já nos reduziremos a
nada. O que me parece mais curioso observar é um princípio de conivência
baseado na expectativa que todos parecem possuir de interesse em participar
desse clube fechado. Daí o efeito de uma dinâmica estática, onde nada se
questiona porque tudo pode ser usado contra essa velada afirmação de uma
mesquinharia. Como tem sido teu convívio com teus pares?
FC | Sou aberto às dissidências, diferenças e sei ler o
outro sem uma finalidade autoral. Não me procuro no outro, procuro o outro em
mim. Não faço parte de nenhum clube, nem estou escondido sob a efígie de
tribos. Há escritores com medo de falar dos contemporâneos, pensando em apenas
proteger a filatelia de versos e seus fornecedores. O que devemos entender é
que fortalecendo a poesia, comentando e divulgando com franqueza vizinhos de
vozes, estamos fortalecendo o gênero. Se entrarmos em brigas menores, de
vaidades e egos, a poesia que já tem um espaço reduzido, perderá ainda mais seu
terreno. A poesia é o despoder e não adianta que não nos dará serventia e
status. Se prosseguirmos com cartas abertas e facções, mergulharemos no colunismo
social.
FM | Em uma leitura panorâmica da poesia brasileira,
recorrendo a uma metáfora futebolística, fizeste menção aos "grandes e
raros, que são os técnicos/jogadores, conseguindo ter simultaneamente a visão
do gramado e de fora dele". Na hora de citar nomes é que essa metáfora me
pareceu intrigante: não temos ninguém assim na poesia brasileira?
FC | Não temos mesmo. Prosseguimos com a visão de campo
de excelentes jogadores, mas nenhum conseguiu como técnico criar uma teoria a
partir de sua obra. No México, Octavio Paz e Carlos Fuentes seriam esses
talentos simultâneos, inventores-críticos, capazes de pensar a cultura no todo
e fomentar o diálogo com ancestralidades. Acredito que Mario Faustino teria
sido esse craque, mas morreu cedo demais e levou a promessa junto.
FM | Embora concordando contigo em termos de que
"nosso lado místico, barroco, intuitivo e visionário acabou sendo posto de
lado para prevalecer a razão e a técnica concretista", te pergunto o
seguinte: particularidades como o concretismo e sucedâneos não seriam apenas a
constatação de um cartesianismo imperativo em nossa cultura, um retrato dessa
dissidência entre coroas portuguesa e espanhola? Como considerar ruptura o que
não passa de uma confirmação da tradição?
FC | A pergunta já é uma resposta. Por sinal,
extremamente lúcida. Um dos problemas enfrentados é que movimentos provisórios
no país se transformaram em governos permanentes. O que é visto como ruptura,
na verdade é tentativa de consolidar um espírito autoral em função mais de uma
teoria do que de uma criação. As bulas são vendidas sem o remédio.
FM | O poeta argentino Juan José Ceselli, no livro Selva
4040 (1977), recorre a um tipo de anarquia temporal,
saltando de uma época a outra, entrelaçando passado, presente e futuro. Em teu Biografia
de uma árvore (2002), o que se faz é avançar no tempo, sem que
isto se constitua em um desfiar de pressentimentos. Ceselli declarou que sua
intenção era "desarticular o temporal". Qual seria então a tua
intenção?
FC | Minha intenção é a imanência, ser o próprio tempo
concentrado, diferentes épocas coexistindo. Não anseio pela transcendência,
sair para voltar, mas ficar até que tudo seja uma incômoda ausência. Biografia
de uma árvore transcorre em um único dia, de 23 a 24
de outubro de 2045. O personagem Avalor está prestes a completar 73 anos,
extremamente desiludido com seu caminho. Acabou de perder a esposa, amigos,
desligado de sua época. Decide brigar com deus, até demiti-lo por justa causa,
criando o novíssimo testamento. Longe de ser um volume pessimista, representa
uma narrativa lírica afirmativa, com muita irreverência, autocrítica e ironia.
Avalor não fica enrolando, diz a verdade de cara. Não medita duas vezes, porque
o cotidiano pensou por ele. Sofre pelo excesso de sinceridade consigo e com o
mundo.
FM | Percebo que a epígrafe deste livro pertence ao
anterior Terceira sede (2001),
sugerindo laços estéticos entre ambos. De que maneira um livro confirma o
alcance poético do outro, como se completam e avançam em busca de uma expressão
cada vez mais genuína?
FC | Um livro nasce do outro. Há uma paternidade
adotiva. Biografia de uma árvore estava
soterrado na paisagem de terceira sede. Foi aparecendo na medida em que cavava
o verbo e procurava sobreviventes. Minha poesia funciona como
"conficções", termo que criei para sintetizar algo como confissões
inventadas. Se eu quisesse escrever sobre o que faço, nem publicava. O espelho
já me diz o suficiente toda a manhã. Se optasse pela catarse, passaria a compor
um diário poema é o desejo insano de criar intimidade da estranheza. Daí
procuro o conflito, a inquietação, caminhar no fogo, acentuar o contraste. É
natural uma pessoa madura recordar da juventude e relatar esse período. Já um
jovem se projetar velho é uma situação nova. Sou o sujeito do contrário, busco
o avesso, desvirtuar o senso e o lugar-comum. Não vendo pílulas para dormir,
quero acordar o leitor a tal ponto que ele vire um sonâmbulo. Nenhum livro que
publiquei traz bula – é bom ter cuidado. Os efeitos colaterais mudam de acordo
com a vontade e a fé de quem está lendo. Terceira
sede e biografia de uma árvore oferecem
um lado extremamente social, criticando a caricatura que aceitamos da velhice.
Todas as propagandas mostram velhos andando de jet-ski, de balanço, em cenas
exageradas. Parece dizer o seguinte: o velho só presta se imitar o jovem. Isso
é ridículo, uma tremenda exclusão. Parece que esquecemos o essencial: o idoso é
vida em aberto, em expansão. Não podemos olhá-lo como tempo perdido, cumprido,
mas como tempo a ser ganho. Há o estigma equivocado de que com aposentadoria
morremos socialmente. Não penso assim. Ninguém morre por antecipação.
Precisamos jogar até o último minuto. É possível mudar o placar de qualquer
partida em um simples lance.
FM | Tens uma prática admirável em busca de um diálogo
com o que está à tua volta: resenhas, artigos, entrevistas. Este sentido de uma
entrega, uma doação, contradiz uma época que se aperfeiçoa na eliminação da
livre emoção. Por que entrevistas? O que elas revelam, a ti e à tua poesia?
FC | Concordo: é doação. A intimidade descende do
alheamento. Insisto no áspero diálogo, no escambo de experiências. Não sou um
crítico, mas um poeta atuante, que não se finda na própria obra, que se
dispersa e se recolhe nos demais autores. Ninguém é pai de um poema sem ter
sido filho dele antes. Estou sempre nos dois lados, escrevendo e espiando,
lendo e multiplicando a fome. Posso errar, porém não será um erro póstumo. É um
erro vivo, assumindo a responsabilidade com o destino de meu imaginário.
Abomino a omissão, espécie de covardia da verdade.
Espero desaparecer. Da vida, a mais difícil
alfabetização é lentamente des-escrever. Renunciar o conhecimento como uma
posse, uma herdade, perder a memória, ser unicamente o necessário, a roupa do
corpo, poesia quase prosa, a pupila parada da música. Recuso a vaidade da
autoria, faço o possível para não deixar rastros, marcas. Desconfio do meu
talento. A terra se abre como um livro.
[2002]
Nenhum comentário:
Postar um comentário