FM Inicio este nosso diálogo lembrando uma
lúcida afirmação do peruano César Moro: “O essencial
é a beleza da linguagem sobre a profundidade da experiência”. Somente a poesia
logra a fusão das contradições que regem a condição humana. Verdadeiro lugar de
uma revolução permanente — a revolução do ser sobre os escombros do tempo —,
como chega a você a poesia?
CFM A poesia tem sido para mim, desde sempre,
um alimento indispensável, tanto quanto as proteínas e carboidratos das
refeições diárias. Recorro a ela normalmente e sobretudo quando percebo estar
sendo minado pelo desgaste do cotidiano, pela rotina que leva a achar tudo
igual. A poesia me ajuda a sacudir os nervos e a reavivar a paixão da
descoberta; me ensina e permanentemente reensina aquele modo de olhar para as
coisas que transforma a falsa e perigosa familiaridade em estranheza geradora
de energia.
FM “Todo poema é um exercício de exercícios”
— assim você defende a criação poética, defesa esta concentrada em três
palavras essenciais: “deliberação, impulso, desafio”. Quanto à emoção, que
lugar cabe a ela? Compartilha a opinião daqueles poetas que acham que escrever
emocionado dá péssimos resultados?
CFM Penso que as emoções e sentimentos fortes
são inimigos da poesia, embora os moderados não tenham nada a ver com ela. A
intensidade das emoções é o estopim que deflagra a poesia, mas tentar passá-la
diretamente para o papel é condidatar-se ao malogro. A poesia nasce das
emoções, sem dúvida, mas pede a intermediação da memória para que estas se
façam mais densas, menos precárias.
Por isso, a ênfase no
Exercício, não por amor ao trabalho artesanal em si, nem para privilegiar o
cerebralismo, mas para que o poema se realize objetivamente ali, no papel,
arquitetura transparente de palavras, e não seja apenas uma vaga lembrança
infiel da emoção malbaratada e esquecida nas malhas do cotidiano. Meus poemas
mais sinceramente comovidos, aqueles com endereço, estão entre os piores que já
escrevi; os menos maus são os engendrados pela memória, quando a emoção já não
chegava mais à extremidade do gesto.
FM Estamos de acordo que o poeta é fruto de
suas leituras. Também poderíamos acrescentar que é ele, por extensão, quem
manipula seu próprio caldeirão de influências. É possível detectar o veio de
onde brotou sua poesia?
CFM Mal-entrado na adolescência, recebi de
Mário de Andrade e Vinicius de Morais, simultaneamente, o meu primeiro grande
impulso poético. Logo depois, Bandeira, o Camões lírico, Fernando Pessoa
(Caeiro e Campos) e o Drummond de Fazendeiro
do ar e Poesia até agora. Na
mesma altura, Rilke, incursão obrigatória para os de minha geração (refiro-me
ao fim dos anos 50, início dos 60), embora me entusiasmasse menos. Mais tarde,
já ultrapassada a adolescência, poetas de língua inglesa e francesa: Blake,
Whitman, T. S. Eliot e Baudelaire, Rimbaud, Saint-John Perse. Depois os
surrealistas mitigados ou dissidentes, como René Char e Henri Michaux. Drummond
ocupou sempre um lugar privilegiado, aquele pólo de medida e contenção que me
alertava para o perigo da eloquência e do derramamento. Ao me dar conta disso,
lá por meados dos anos 60, cresceu o interesse por João Cabral, a cuja sedução
geométrica e construtivista eu resistira por algum tempo. Esse o veio básico,
múltiplo e vário. Tenho procurado o meio termo entre as tendências conflitantes
que aí se abrigam.
FM Em sua poesia podemos encontrar
referências a músicos e pintores. Diria que música e pintura são fundamentais
em seu processo de criação poética?
CFM O que me atrai na música, sobretudo a
instrumental, é a sugestão do continuum,
do tempo ilimitado, e a promessa de libertação do jugo da palavra. Já a pintura
me seduz na direção oposta: a volúpia da instantaneidade, o tempo retido na
visualidade da espacialização circunscrita. Ao juntar palavras sobre o papel,
ao longo das linhas seccionadas do poema, minha aspiração é somar um pouco de
cada: cosa mentale, para os olhos e
para os ouvidos.
FM Nesta sua recente participação em um
encontro de poetas realizado no MASP (15 a 19 de maio de 1990) você fez uma rápida
referência a Umberto Eco, ao afirmar
que “o artista moderno não tem mais para onde avançar, deve voltar atrás,
revisitar a tradição, mas com ironia”. Isto me conduz a uma antiga declaração
de Octavio Paz: “Forma é
vida. A falta de forma do mundo moderno é ausência de verdadeira vida.” Diante
disto, qual acredita que seja, em nossos dias, a missão do poeta?
CFM Tenho certa dificuldade com a palavra missão, que para mim se associa a uma ideia
ultra-romântica de poesia, com forte acento religioso. Não vejo o poeta como um
condutor de multidões, um missionário. Mas deve ser mera implicância minha,
pois sua pergunta pode ser lida: qual a função da poesia, hoje? Eu diria que
essencialmente a mesma de sempre: inquietar, subverter, manter vivo o germe de
insatisfação radical que o cotidiano tende a sufocar em cada um de nós.
FM Você já se referiu por três vezes às
misérias do cotidiano; no entanto, sua poesia tem fortes compromissos com ele.
Não há aí um paradoxo?
CFM O cotidiano é fatal para a vida e vital
para a poesia. Penso que é exatamente aí, na banalidade do dia-a-dia, que
devemos reencontrar a energia desperdiçada na rotina diária. Buscá-la mais além,
por via mística, metafísica ou outra, seria uma forma de escapismo, seria
acomodar-se à existência de um universo paralelo, destinado a compensar a
mediocridade do cotidiano. Compensações dessa ordem são ainda piores que a
derrota. Por isso minha poesia enfrenta o cotidiano, para buscar ali o tudo ou
nada. Dia-a-dia rotinizado e dia-a-dia subvertido se opõem, para mim, em termos
de real repudiado x ideal almejado. A
subversão deve realizar-se aí mesmo, nas ciladas do cotidiano, e não no reino
do faz-de-conta. Mas pense que quanto mais ostensivamente o poeta busque esse
desiderato, mais reacionário será o resultado. A verdadeira subversão é a que
se infiltra, silenciosa e insidiosa, nos desvãos da nossa sensibilidade diária
e não aquela que sai por aí gritando lugares-comuns e indignação de palanque —
inúteis, porque há muito assimiladas pelo establishment.
FM Em artigo publicado no Jornal da Tarde (março de 1990),
relativo a este seu mais recente livro, o crítico Wilson Martins refere-se a um certo prejuízo que o
concretismo teria trazido aos bons nomes de tua geração. Diz o seguinte: “São
poetas que, surgindo no outono glorioso do Concretismo, e dele independentes,
viram-se rejeitados para as trevas exteriores porque todos os holofotes da
publicidade se concentravam então nos ruidosos manifestos e manifestações
verbivocovisuais, tanto mais estridentes mais percebiam a própria desintegração”.
Essa rejeição, alguma vez você a sentiu? Acaso o concretismo teria acrescentado
algo à sua poesia?
CFM O tópico alude não só ao esforço
concretista, mas a todo o fogo cruzado que, nos anos 60 e 70, pôs em confronto Geração
de 45, Concretismo, Práxis, Tendência, Neoconcretismo, Processo, Tropicália,
etc. O ardor polêmico do combate tomou conta de toda a cena e pôs ênfase na
luta pelo poder literário, relegando a segundo plano a própria literatura, a
boa literatura produzida não só por esses grupos e correntes, mas por outros,
menos combatidos e até mesmo alheios a essa luta. A falácia filogenética, que
insiste em entender o panorama literário como uma sucessão linear de ismos, fez o resto: para muitos, não há
como encaixar aí individualidades independentes como Renata Pallottini ou Hilda Hilst, que são um
pouco anteriores à minha geração; Lindolf Bell, Roberto Piva ou Rubens Rodrigues Torres Filho, meus
contemporâneos, surgidos no início dos anos 60; ou Antônio Fernando de
Franceschi, Orides
Fontella e outros bons poetas que estrearam em seguida. Creio que
Wilson Martins se refere a essa visão esquemática e
distorcida da história literária, que rejeita por algum tempo certos poetas,
relegando-os a uma espécie de limbo provisório. No meu caso, nunca me senti
rejeitado (toda rejeição é proporcional ao incômodo e à importância implícita
do que se rejeita) e o sectarismo com que os concretos defenderam, naquela
altura, a engenhosidade novidadeira como um valor em si, nunca me atraiu. De
resto, sempre foi possível chegar a resultados semelhantes por outros caminhos.
Pretender o monopólio de qualquer um deles é render-se à sedução da futilidade
ou da paranoia.
FM Se nos detivermos em um estudo acerca da
obra poética produzida por esta geração “extremamente plural e diversificada” —
no dizer de uma de suas vozes: Claudio Willer —, o que você apontaria como suas
contribuições fundamentais ao desenvolvimento da poesia brasileira?
CFM A ideia de uma geração “plural e
diversificada”, apontada por Claudio Willer em relação a esse grupo de poetas surgidos em São Paulo , em 1960, na
coleção dos Novíssimos lançada por Massao Ohno, creio que se
filia ao espírito anárquico (anarquista, mesmo, em alguns casos), não
corporativista, que paradoxalmente nos une e de algum modo se prolonga até
hoje. Jamais vingou entre nós a hipótese de cerrar fileiras em torno de
qualquer doutrina ou plataforma com a qual inscrever nosso nome na história. (O
Neo-Surrealismo, de Sérgio Lima, a Catequese,
de Lindolf Bell, o Sermão do
Viaduto, do Álvaro A. de Faria, a Poesia na
Praça, de Neide Archanjo, foram ensaios
momentâneos logo abandonados, enquanto ação coletiva, embora não enquanto
válida proposta individual.) Tendo estreado em plena adolescência, certo
inconformismo tão generoso quanto ingênuo selaram entre nós, desde o início, a
certeza de que a poesia passa ao largo desse comércio mesquinho. Creio que a
contribuição fundamental desse grupo reside justamente na diversidade e
pluralidade de um contingente de poetas que, ao longo de trinta anos, já, vem
persistindo na criação incessante e na fidelidade àquele espírito de origem, na
medida do possível atualizado e sintonizado com as mudanças.
FM Embora não sendo um poeta surrealista,
você tem dedicado grande parte de sua vida ao Surrealismo, notadamente aquele
localizado em Portugal.
Em recente entrevista ao Jornal
de Letras (Lisboa. Fevereiro de 1990), Mário Cesariny cita seu nome como autor das primeiras páginas
críticas importantes sobre a poesia de Antonio Maria Lisboa, este notável
surrealista português. Tomaria para si a afirmação de Cesariny de que “o
Surrealismo continua a ser o último enunciado verdadeiro dos problemas centrais
de nosso tempo”?
CFM Meu primeiro enfrentamento com o
Surrealismo, no final da adolescência, foi medíocre: resisti, recuei e atirei
tudo, equivocadamente, para a vala comum do charlatanismo e da gratuidade. Mas
algo de muito insólito e radical, ali entrevisto, me captou como um desafio,
que eu acabei de enfrentar. A reconciliação se deu aos poucos, através da
pintura de De Chirico e Delvaux (não de Dalí ou de Magritte) e do ensaísmo
filosófico de Ferdinand Alquié (a filosofância dos manifestos de Breton sempre me soou como demagogia de um cartesiano
incorrigível, embora arrependido). No fim dos anos 60, mergulhei de cabeça na
aventura surrealista, a pretexto de uma dissertação de Mestrado sobre os
surrealistas portugueses, que eu literalmente acabara de descobrir: pouca
gente, em Portugal, e ninguém, aqui ou na Europa, tinha ouvido falar de Mário
Cesariny ou Antonio Maria Lisboa. Julgo ter
aprendido, então, graças à ajuda atrás citada, o que seria a ideia-motriz, o
pensamento, a intenção fundamental do Surrealismo: a busca da “verdadeira vida”,
sonhada por Rimbaud. De lá para
cá, tem sido um namoro constante. E pude compreender também o que me
desagradara no primeiro contato: muito cedo, o movimento surrealista derivou para uma espécie de maneirismo piegas
e previsível, em que só a letra fala, estereotipadamente, daquela verdadeira vida; a substância, não. Por
isso, concordo, sim, com Cesariny: o Surrealismo é a mais generosa e radical
Utopia deste século, algo por que vale a pena empenhar uma existência inteira.
Mas em minha própria poesia nunca fui capaz de aderir aos seus maneirismos
ortodoxos.
FM De uma maneira geral (as exceções se
reduzem ao extremo) o objeto da crítica literária que se pratica hoje, entre
nós, quase nunca é a obra em si e sim o autor, ou um feixe de determinadas circunstâncias
que o envolvem, o que traz como resultante um progressivo desfoque na formação
do possível leitor. Críticos, editores, autores envolvidos, costumam todos
desempenhar o lamentável papel de cúmplices em um quadro patético de
glorificação de futilidades. O que você acredita seja determinante de todo esse
quadro e quais as saídas para um escritor coerente com as delimitações de sua
obra atualmente neste país?
CFM A crítica literária, em qualquer tempo, é
sempre tendenciosa, unilateral, não tem como evitar os equívocos. Sabemos bem
dos equívocos que foram cometidos no passado, mas temos enorme dificuldade em
reconhecer os que provavelmente estamos cometendo no presente. E não pode ser
de outro modo. A nenhum de nós é facultada aquela consciência crítica ideal,
fundada em isenção e neutralidade, equanimidade e tolerância. Nosso olhar
crítico é fruto de nosso Zeitgeist,
com suas idiossincrasias, e por isso não somos capazes de detectar o que é bom
ou mau senão para nós, aqui e agora. (O Shakespeare que apreciamos é o mesmo dos românticos?) Só
estaríamos a salvo desses equívocos, involuntários e inevitáveis, se
abdicássemos da nossa condição de homens do nosso tempo, assumindo o ponto de
vista de algum crítico de outro planeta, por acaso interessado na Literatura
que se produz neste canto escuro da galáxia.
Não sonho com isso —
nem tu, estou certo. Agora, ao lado dos equívocos involuntários existem também
os premeditados, os mal-intencionados, resultantes do tráfico de influências,
do corporativismo, de uma forma aviltada de crítica praticada como forma de
agradar ou agredir, de obter ou conceder favores.
Mas o tempo também se
encarrega, e mais depressa ainda, de ir corrigindo tais distorções. Penso que o
escritor, por sua vez, não deve cometer o equívoco de ignorar esse quadro, não
deve menosprezar (nem supervalorizar) a real importância da crítica, sabendo
distinguir a verdadeira da aviltada. Em caso de dúvida, deve estar pronto a
guiar-se pela própria consciência.
FM Pelas respostas anteriores, e pelos
caminhos percorridos em sua obra poética e ensaística, parece que seu interesse
extra-fronteiras restringe-se às culturas de língua inglesa e francesa. E a
língua espanhola? E a literatura hispano-americana? Como você se situa nesse
contexto?
CFM Minha geração, formada antes de 1964, é
ou foi decididamente francófila. E americanófoba. Na universidade, pude
adquirir uma visão mais ou menos sistemática da cultura e da literatura
francesas; mais tarde, tendo-me acontecido de viver alguns anos nos EUA, pus de
lado o preconceito ideológico e procurei realizar o mesmo, por conta própria,
em relação à rica literatura de língua inglesa. Quanto ao espanhol, apesar da
facilidade representada pelo idioma, mais próximo do nosso (e pelas afinidades
sociais e históricas, no caso da América Latina), nunca tive a oportunidade de
me dedicar com igual empenho às literaturas dessa língua. Isto é apenas uma das
muitas deficiências da minha formação. Ter um bom amigo no México, outro na Argentina;
um no Peru, outro no Chile; um na Colômbia, outro no Panamá ou na Espanha
(todos escritores, com quem me correspondo e/ou me avisto de vez em quando),
não tem sido suficiente para suprir a falha. Meu conhecimento nessa área — a
despeito de eu ser, há anos, um leitor assíduo de Octavio Paz ou Borges, Lorca ou Salinas, Vallejo ou Carpentier, e tantos
outros — é lamentavelmente granular, dispersivo, assistemático. Mas não é
preciso mais do que isto para saber que um dos nossos caminhos aponta nessa
direção: um intercâmbio mais intenso com a literatura e a crítica literária
latino-americana. Esse esforço conjunto talvez nos leve a superar o antigo e
comum complexo de inferioridade, que historicamente nos tem induzido a buscar
uma improvável parceria com o Primeiro Mundo, para esquecer a indesejável, mas
verdadeira e natural, parceria com os vizinhos.
FM A consciência do já escrito é algo
manifesto em todo poeta. Romper a circularidade, uma utopia cara à poesia de
todos os tempos. Busca de uma síntese das contradições que regem nossas vidas,
a poesia transfigura tudo em que toca. O poema, sempre incompleto, é pura
transmutação. Insisto: tudo já foi escrito?
CFM No que me diz respeito, enquanto
consumidor voraz de poesia (e isso me traz de volta à tua primeira pergunta:
como a poesia me toca?), poderia responder afirmativamente. Se nada mais for
escrito, passarei o resto da vida, ainda que dure bem mais do que o esperado,
alimentando-me da grande poesia do nosso tempo. Mas desconfio que não poderá
ser assim para sempre: nada é permanente, não obstante alguma transitoriedade
permaneça, provisória, mesmo que o provisório às vezes dure séculos. Por isso,
respondo também pela negativa: não, nem tudo foi escrito, e é preciso insistir
em continuar escrevendo, para que a nossa sensibilidade esteja atenta às
mudanças e para que daí brote, quem sabe, se não o alimento, pelo menos a fome
ignorada.
[1991]
[Entrevista com Carlos Felipe Moisés (Brasil, 1942), publicada em Invenção
do Brasil. São Paulo: Editora Descaminhos, 2013. http://www.amazon.com/Inven%C3%A7%C3%A3o-Brasil-entrevistas-Portuguese-Edition-ebook/dp/B00FTBMR24]
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