sexta-feira, 8 de agosto de 2014

CARLOS FELIPE MOISÉS | Subsolos da poesia



FM Inicio este nosso diálogo lembrando uma lúcida afirmação do peruano César Moro: “O essencial é a beleza da linguagem sobre a profundidade da experiência”. Somente a poesia logra a fusão das contradições que regem a condição humana. Verdadeiro lugar de uma revolução permanente — a revolução do ser sobre os escombros do tempo —, como chega a você a poesia?

CFM A poesia tem sido para mim, desde sempre, um alimento indispensável, tanto quanto as proteínas e carboidratos das refeições diárias. Recorro a ela normalmente e sobretudo quando percebo estar sendo minado pelo desgaste do cotidiano, pela rotina que leva a achar tudo igual. A poesia me ajuda a sacudir os nervos e a reavivar a paixão da descoberta; me ensina e permanentemente reensina aquele modo de olhar para as coisas que transforma a falsa e perigosa familiaridade em estranheza geradora de energia.

FM “Todo poema é um exercício de exercícios” — assim você defende a criação poética, defesa esta concentrada em três palavras essenciais: “deliberação, impulso, desafio”. Quanto à emoção, que lugar cabe a ela? Compartilha a opinião daqueles poetas que acham que escrever emocionado dá péssimos resultados?

CFM Penso que as emoções e sentimentos fortes são inimigos da poesia, embora os moderados não tenham nada a ver com ela. A intensidade das emoções é o estopim que deflagra a poesia, mas tentar passá-la diretamente para o papel é condidatar-se ao malogro. A poesia nasce das emoções, sem dúvida, mas pede a intermediação da memória para que estas se façam mais densas, menos precárias.
Por isso, a ênfase no Exercício, não por amor ao trabalho artesanal em si, nem para privilegiar o cerebralismo, mas para que o poema se realize objetivamente ali, no papel, arquitetura transparente de palavras, e não seja apenas uma vaga lembrança infiel da emoção malbaratada e esquecida nas malhas do cotidiano. Meus poemas mais sinceramente comovidos, aqueles com endereço, estão entre os piores que já escrevi; os menos maus são os engendrados pela memória, quando a emoção já não chegava mais à extremidade do gesto.

FM Estamos de acordo que o poeta é fruto de suas leituras. Também poderíamos acrescentar que é ele, por extensão, quem manipula seu próprio caldeirão de influências. É possível detectar o veio de onde brotou sua poesia?

CFM Mal-entrado na adolescência, recebi de Mário de Andrade e Vinicius de Morais, simultaneamente, o meu primeiro grande impulso poético. Logo depois, Bandeira, o Camões lírico, Fernando Pessoa (Caeiro e Campos) e o Drummond de Fazendeiro do ar e Poesia até agora. Na mesma altura, Rilke, incursão obrigatória para os de minha geração (refiro-me ao fim dos anos 50, início dos 60), embora me entusiasmasse menos. Mais tarde, já ultrapassada a adolescência, poetas de língua inglesa e francesa: Blake, Whitman, T. S. Eliot e Baudelaire, Rimbaud, Saint-John Perse. Depois os surrealistas mitigados ou dissidentes, como René Char e Henri Michaux. Drummond ocupou sempre um lugar privilegiado, aquele pólo de medida e contenção que me alertava para o perigo da eloquência e do derramamento. Ao me dar conta disso, lá por meados dos anos 60, cresceu o interesse por João Cabral, a cuja sedução geométrica e construtivista eu resistira por algum tempo. Esse o veio básico, múltiplo e vário. Tenho procurado o meio termo entre as tendências conflitantes que aí se abrigam.

FM Em sua poesia podemos encontrar referências a músicos e pintores. Diria que música e pintura são fundamentais em seu processo de criação poética?

CFM O que me atrai na música, sobretudo a instrumental, é a sugestão do continuum, do tempo ilimitado, e a promessa de libertação do jugo da palavra. Já a pintura me seduz na direção oposta: a volúpia da instantaneidade, o tempo retido na visualidade da espacialização circunscrita. Ao juntar palavras sobre o papel, ao longo das linhas seccionadas do poema, minha aspiração é somar um pouco de cada: cosa mentale, para os olhos e para os ouvidos.

FM Nesta sua recente participação em um encontro de poetas realizado no MASP (15 a 19 de maio de 1990) você fez uma rápida referência a Umberto Eco, ao afirmar que “o artista moderno não tem mais para onde avançar, deve voltar atrás, revisitar a tradição, mas com ironia”. Isto me conduz a uma antiga declaração de Octavio Paz: “Forma é vida. A falta de forma do mundo moderno é ausência de verdadeira vida.” Diante disto, qual acredita que seja, em nossos dias, a missão do poeta?

CFM Tenho certa dificuldade com a palavra missão, que para mim se associa a uma ideia ultra-romântica de poesia, com forte acento religioso. Não vejo o poeta como um condutor de multidões, um missionário. Mas deve ser mera implicância minha, pois sua pergunta pode ser lida: qual a função da poesia, hoje? Eu diria que essencialmente a mesma de sempre: inquietar, subverter, manter vivo o germe de insatisfação radical que o cotidiano tende a sufocar em cada um de nós.

FM Você já se referiu por três vezes às misérias do cotidiano; no entanto, sua poesia tem fortes compromissos com ele. Não há aí um paradoxo?

CFM O cotidiano é fatal para a vida e vital para a poesia. Penso que é exatamente aí, na banalidade do dia-a-dia, que devemos reencontrar a energia desperdiçada na rotina diária. Buscá-la mais além, por via mística, metafísica ou outra, seria uma forma de escapismo, seria acomodar-se à existência de um universo paralelo, destinado a compensar a mediocridade do cotidiano. Compensações dessa ordem são ainda piores que a derrota. Por isso minha poesia enfrenta o cotidiano, para buscar ali o tudo ou nada. Dia-a-dia rotinizado e dia-a-dia subvertido se opõem, para mim, em termos de real repudiado x ideal almejado. A subversão deve realizar-se aí mesmo, nas ciladas do cotidiano, e não no reino do faz-de-conta. Mas pense que quanto mais ostensivamente o poeta busque esse desiderato, mais reacionário será o resultado. A verdadeira subversão é a que se infiltra, silenciosa e insidiosa, nos desvãos da nossa sensibilidade diária e não aquela que sai por aí gritando lugares-comuns e indignação de palanque — inúteis, porque há muito assimiladas pelo establishment.

FM Em artigo publicado no Jornal da Tarde (março de 1990), relativo a este seu mais recente livro, o crítico Wilson Martins refere-se a um certo prejuízo que o concretismo teria trazido aos bons nomes de tua geração. Diz o seguinte: “São poetas que, surgindo no outono glorioso do Concretismo, e dele independentes, viram-se rejeitados para as trevas exteriores porque todos os holofotes da publicidade se concentravam então nos ruidosos manifestos e manifestações verbivocovisuais, tanto mais estridentes mais percebiam a própria desintegração”. Essa rejeição, alguma vez você a sentiu? Acaso o concretismo teria acrescentado algo à sua poesia?

CFM O tópico alude não só ao esforço concretista, mas a todo o fogo cruzado que, nos anos 60 e 70, pôs em confronto Geração de 45, Concretismo, Práxis, Tendência, Neoconcretismo, Processo, Tropicália, etc. O ardor polêmico do combate tomou conta de toda a cena e pôs ênfase na luta pelo poder literário, relegando a segundo plano a própria literatura, a boa literatura produzida não só por esses grupos e correntes, mas por outros, menos combatidos e até mesmo alheios a essa luta. A falácia filogenética, que insiste em entender o panorama literário como uma sucessão linear de ismos, fez o resto: para muitos, não há como encaixar aí individualidades independentes como Renata Pallottini ou Hilda Hilst, que são um pouco anteriores à minha geração; Lindolf Bell, Roberto Piva ou Rubens Rodrigues Torres Filho, meus contemporâneos, surgidos no início dos anos 60; ou Antônio Fernando de Franceschi, Orides Fontella e outros bons poetas que estrearam em seguida. Creio que Wilson Martins se refere a essa visão esquemática e distorcida da história literária, que rejeita por algum tempo certos poetas, relegando-os a uma espécie de limbo provisório. No meu caso, nunca me senti rejeitado (toda rejeição é proporcional ao incômodo e à importância implícita do que se rejeita) e o sectarismo com que os concretos defenderam, naquela altura, a engenhosidade novidadeira como um valor em si, nunca me atraiu. De resto, sempre foi possível chegar a resultados semelhantes por outros caminhos. Pretender o monopólio de qualquer um deles é render-se à sedução da futilidade ou da paranoia.

FM Se nos detivermos em um estudo acerca da obra poética produzida por esta geração “extremamente plural e diversificada” — no dizer de uma de suas vozes: Claudio Willer —, o que você apontaria como suas contribuições fundamentais ao desenvolvimento da poesia brasileira?

CFM A ideia de uma geração “plural e diversificada”, apontada por Claudio Willer em relação a esse grupo de poetas surgidos em São Paulo, em 1960, na coleção dos Novíssimos lançada por Massao Ohno, creio que se filia ao espírito anárquico (anarquista, mesmo, em alguns casos), não corporativista, que paradoxalmente nos une e de algum modo se prolonga até hoje. Jamais vingou entre nós a hipótese de cerrar fileiras em torno de qualquer doutrina ou plataforma com a qual inscrever nosso nome na história. (O Neo-Surrealismo, de Sérgio Lima, a Catequese, de Lindolf Bell, o Sermão do Viaduto, do Álvaro A. de Faria, a Poesia na Praça, de Neide Archanjo, foram ensaios momentâneos logo abandonados, enquanto ação coletiva, embora não enquanto válida proposta individual.) Tendo estreado em plena adolescência, certo inconformismo tão generoso quanto ingênuo selaram entre nós, desde o início, a certeza de que a poesia passa ao largo desse comércio mesquinho. Creio que a contribuição fundamental desse grupo reside justamente na diversidade e pluralidade de um contingente de poetas que, ao longo de trinta anos, já, vem persistindo na criação incessante e na fidelidade àquele espírito de origem, na medida do possível atualizado e sintonizado com as mudanças.

FM Embora não sendo um poeta surrealista, você tem dedicado grande parte de sua vida ao Surrealismo, notadamente aquele localizado em Portugal. Em recente entrevista ao Jornal de Letras (Lisboa. Fevereiro de 1990), Mário Cesariny cita seu nome como autor das primeiras páginas críticas importantes sobre a poesia de Antonio Maria Lisboa, este notável surrealista português. Tomaria para si a afirmação de Cesariny de que “o Surrealismo continua a ser o último enunciado verdadeiro dos problemas centrais de nosso tempo”?

CFM Meu primeiro enfrentamento com o Surrealismo, no final da adolescência, foi medíocre: resisti, recuei e atirei tudo, equivocadamente, para a vala comum do charlatanismo e da gratuidade. Mas algo de muito insólito e radical, ali entrevisto, me captou como um desafio, que eu acabei de enfrentar. A reconciliação se deu aos poucos, através da pintura de De Chirico e Delvaux (não de Dalí ou de Magritte) e do ensaísmo filosófico de Ferdinand Alquié (a filosofância dos manifestos de Breton sempre me soou como demagogia de um cartesiano incorrigível, embora arrependido). No fim dos anos 60, mergulhei de cabeça na aventura surrealista, a pretexto de uma dissertação de Mestrado sobre os surrealistas portugueses, que eu literalmente acabara de descobrir: pouca gente, em Portugal, e ninguém, aqui ou na Europa, tinha ouvido falar de Mário Cesariny ou Antonio Maria Lisboa. Julgo ter aprendido, então, graças à ajuda atrás citada, o que seria a ideia-motriz, o pensamento, a intenção fundamental do Surrealismo: a busca da “verdadeira vida”, sonhada por Rimbaud. De lá para cá, tem sido um namoro constante. E pude compreender também o que me desagradara no primeiro contato: muito cedo, o movimento surrealista derivou para uma espécie de maneirismo piegas e previsível, em que só a letra fala, estereotipadamente, daquela verdadeira vida; a substância, não. Por isso, concordo, sim, com Cesariny: o Surrealismo é a mais generosa e radical Utopia deste século, algo por que vale a pena empenhar uma existência inteira. Mas em minha própria poesia nunca fui capaz de aderir aos seus maneirismos ortodoxos.

FM De uma maneira geral (as exceções se reduzem ao extremo) o objeto da crítica literária que se pratica hoje, entre nós, quase nunca é a obra em si e sim o autor, ou um feixe de determinadas circunstâncias que o envolvem, o que traz como resultante um progressivo desfoque na formação do possível leitor. Críticos, editores, autores envolvidos, costumam todos desempenhar o lamentável papel de cúmplices em um quadro patético de glorificação de futilidades. O que você acredita seja determinante de todo esse quadro e quais as saídas para um escritor coerente com as delimitações de sua obra atualmente neste país?

CFM A crítica literária, em qualquer tempo, é sempre tendenciosa, unilateral, não tem como evitar os equívocos. Sabemos bem dos equívocos que foram cometidos no passado, mas temos enorme dificuldade em reconhecer os que provavelmente estamos cometendo no presente. E não pode ser de outro modo. A nenhum de nós é facultada aquela consciência crítica ideal, fundada em isenção e neutralidade, equanimidade e tolerância. Nosso olhar crítico é fruto de nosso Zeitgeist, com suas idiossincrasias, e por isso não somos capazes de detectar o que é bom ou mau senão para nós, aqui e agora. (O Shakespeare que apreciamos é o mesmo dos românticos?) Só estaríamos a salvo desses equívocos, involuntários e inevitáveis, se abdicássemos da nossa condição de homens do nosso tempo, assumindo o ponto de vista de algum crítico de outro planeta, por acaso interessado na Literatura que se produz neste canto escuro da galáxia.
Não sonho com isso — nem tu, estou certo. Agora, ao lado dos equívocos involuntários existem também os premeditados, os mal-intencionados, resultantes do tráfico de influências, do corporativismo, de uma forma aviltada de crítica praticada como forma de agradar ou agredir, de obter ou conceder favores.
Mas o tempo também se encarrega, e mais depressa ainda, de ir corrigindo tais distorções. Penso que o escritor, por sua vez, não deve cometer o equívoco de ignorar esse quadro, não deve menosprezar (nem supervalorizar) a real importância da crítica, sabendo distinguir a verdadeira da aviltada. Em caso de dúvida, deve estar pronto a guiar-se pela própria consciência.

FM Pelas respostas anteriores, e pelos caminhos percorridos em sua obra poética e ensaística, parece que seu interesse extra-fronteiras restringe-se às culturas de língua inglesa e francesa. E a língua espanhola? E a literatura hispano-americana? Como você se situa nesse contexto?

CFM Minha geração, formada antes de 1964, é ou foi decididamente francófila. E americanófoba. Na universidade, pude adquirir uma visão mais ou menos sistemática da cultura e da literatura francesas; mais tarde, tendo-me acontecido de viver alguns anos nos EUA, pus de lado o preconceito ideológico e procurei realizar o mesmo, por conta própria, em relação à rica literatura de língua inglesa. Quanto ao espanhol, apesar da facilidade representada pelo idioma, mais próximo do nosso (e pelas afinidades sociais e históricas, no caso da América Latina), nunca tive a oportunidade de me dedicar com igual empenho às literaturas dessa língua. Isto é apenas uma das muitas deficiências da minha formação. Ter um bom amigo no México, outro na Argentina; um no Peru, outro no Chile; um na Colômbia, outro no Panamá ou na Espanha (todos escritores, com quem me correspondo e/ou me avisto de vez em quando), não tem sido suficiente para suprir a falha. Meu conhecimento nessa área — a despeito de eu ser, há anos, um leitor assíduo de Octavio Paz ou Borges, Lorca ou Salinas, Vallejo ou Carpentier, e tantos outros — é lamentavelmente granular, dispersivo, assistemático. Mas não é preciso mais do que isto para saber que um dos nossos caminhos aponta nessa direção: um intercâmbio mais intenso com a literatura e a crítica literária latino-americana. Esse esforço conjunto talvez nos leve a superar o antigo e comum complexo de inferioridade, que historicamente nos tem induzido a buscar uma improvável parceria com o Primeiro Mundo, para esquecer a indesejável, mas verdadeira e natural, parceria com os vizinhos.

FM A consciência do já escrito é algo manifesto em todo poeta. Romper a circularidade, uma utopia cara à poesia de todos os tempos. Busca de uma síntese das contradições que regem nossas vidas, a poesia transfigura tudo em que toca. O poema, sempre incompleto, é pura transmutação. Insisto: tudo já foi escrito?

CFM No que me diz respeito, enquanto consumidor voraz de poesia (e isso me traz de volta à tua primeira pergunta: como a poesia me toca?), poderia responder afirmativamente. Se nada mais for escrito, passarei o resto da vida, ainda que dure bem mais do que o esperado, alimentando-me da grande poesia do nosso tempo. Mas desconfio que não poderá ser assim para sempre: nada é permanente, não obstante alguma transitoriedade permaneça, provisória, mesmo que o provisório às vezes dure séculos. Por isso, respondo também pela negativa: não, nem tudo foi escrito, e é preciso insistir em continuar escrevendo, para que a nossa sensibilidade esteja atenta às mudanças e para que daí brote, quem sabe, se não o alimento, pelo menos a fome ignorada.

[1991]

[Entrevista com Carlos Felipe Moisés (Brasil, 1942), publicada em Invenção do Brasil. São Paulo: Editora Descaminhos, 2013. http://www.amazon.com/Inven%C3%A7%C3%A3o-Brasil-entrevistas-Portuguese-Edition-ebook/dp/B00FTBMR24]

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