FM | Diz Lorenzo García Vega que “um autor de memórias
ou um homem que está remexendo em seu passado mais do que oferecer um mundo
resoluto o que faz é oferecer seu caos e deixá-lo por resolver”. Quaisquer que
sejam os recursos utilizados na criação, de poemas, pinturas ou colagens, como
te relacionas com a memória, qualquer interferência creditas a ela em tua obra:
acaso buscas resolver alguma coisa com a tua poesia?
CML | Começarei pelo final da pergunta. Resolver algo com
a minha poesia me levaria a continuar a tradição romântica que os surrealistas
e José Lezama Lima fizeram suas: fazer da poesia uma espécie de sacerdócio. O
poeta então se ergue como um demiurgo, um ser à parte, que pratica, de acordo
com Lezama, “uma moral das exceções”. Heidegger também quis outorgar à poesia
essa missão que a sobrecarregou com um peso que, em minha opinião, não lhe corresponde
nesses tempos que correm. Eu simplesmente faço poesia para jogar. É um jogo:
nem mais nem menos. Porém isto sim: um jogo que deve ser levado a sério.
Quanto à memória, tenho desgraçadamente uma memória
fotográfica de meu passado o mais remoto. Suponho então que partículas dessas
memorizações venham a formar parte da matéria das coisas que escrevo. Por outro
lado, estão os sonhos, não esqueçamos que os sonhos são cenários onde a memória
monta seus melhores collages.
Eu sonho muito e, além do mais, sou um “collagista”
empedernido.
FM | Desde cedo conheceste Jorge Camacho. A seu
respeito, observa Jean Schuster – referindo-se ao que chama de “suas preocupações
rousselinianas” – que “sua ideia preconcebida lhe conduz a uma técnica mental
(como em Dali e em Magritte) por oposição às técnicas físicas, por outro lado
tão dignas de atenção, de Max Ernst, [Oscar] Domínguez e [Wolfgang] Paalen”.
Gostaria de saber a tua opinião acerca dessa oposição situada por Schuster, de
uma técnica mental contraposta a uma física, tomando por base tanto a obra de Camacho
quanto a tua própria experiência estética.
CML | Conheci Jorge Camacho[1]
quando ele tinha uns oito anos e eu aproximadamente 10, em Guanabo, uma praia
próxima de Havana, onde nossas famílias possuíam residência de verão. Repassávamos
então uns livros de imagens geográficas e de história natural que um espanhol
amigo de nossas famílias possuía em sua biblioteca. Talvez nessas primeiras
experiências visuais se encontrem as raízes de sua pintura e as de minha
poesia.
Passando o tempo eu descobri a poesia surrealista e a
apresentei a Camacho. O resto é história. Schuster fala das técnicas mentais de
Camacho e há algo de certo nisto. Sua personalidade se inclina mais para uma
exploração apriorística do espaço que vai cobrir com suas figuras do que para o
uso de meios que as descubram a
posteriori, como ocorrem com as decalcomanias de Max Ernst, por exemplo.
Camacho, portanto, não joga com o acaso como gosto de fazer. Eu parto de um
princípio onde minha exploração vai descobrindo, sobre o terreno, efeitos que
me abrem uma nova percepção. Meu uso do computador não obedece a um programa
determinado. Abro o programa (“paint”, por exemplo), porém de imediato o
desconstruo, e começo a experimentar ou, se crês melhor, a jogar com ele a ver
o que acontece. Por outro lado, Camacho não gosta de fazer collages. Esses esbarrões entre várias realidades opostas não
penetram seu campo visual.
FM | Já me disseste que teu “primeiro grande
descobrimento da poesia em geral foram os collages
de Max Ernst”. René Crevel dizia que o que mais lhe espantava em Ernst era a
simplicidade de sua criação, um despojamento, de algum modo contraposto aos
falsos artifícios de complexidade defendidos por uma arte contemporânea que,
longe do alcance ontológico que encontramos em Ernst, não passa de uma
fugacidade torpe com ares de grande obra. Esse deslocamento conceitual, de
causa a efeito, me parece definir muito bem a falsidade ideológica da arte que
se produz hoje, em sua quase totalidade arregimentada pelas leis de mercado.
CML | Descobri o collage
ainda bem jovem, ao mesmo tempo em que o Surrealismo (devido à compra que fiz
do livro de Cirici Pellicer sobre esse tema em uma feira do livro de Havana,
quando tinha apenas 16 anos) e o Socialismo (nesse mesmo dia adquiri também o
panfleto de Engels, Do socialismo utópico
ao socialismo científico). Para mim foi “le coup de foudre”. Sigo
acreditando que os collages de Max
Ernst foram a descoberta poética mais importante de seu momento. O que vejo
hoje neles?
Vejo, antes de tudo, uma disponibilidade, ou seja, uma
abertura constante para ir acrescentando novos espaços imaginários habitáveis.
Vejo também neles a essência do jogo, desde o ato inicial de buscar e encontrar
lâminas com reproduções que saltem ao nosso olhar como possíveis collages, até o manual de como utilizar
as tesouras e a cola. O collage
descobre um mundo dado e o transforma a seu prazer, convertendo-o então na
melhor tradução de nossos sonhos. E até de nossa loucura, já que neles mesmos existe
um elemento esquizoide do qual, em definitivo, todos participamos.
FM | Ainda residindo em Cuba, em 1951, participas da
formação do grupo Orígenes. Lorenzo García Vega disse que “Orígenes foi o grupo
mais contra-revolucionário que existiu, do começo ao fim”. Necessito entender a
aplicação desse conceito, porque o que se sabe a respeito de Lezama Lima é que
foi exilado no próprio país, e também se poderia pensar em Lorenzo, que
exilou-se na Espanha, e tu mesmo saíste de Cuba para Nova York por razões políticas,
contraposições ao governo revolucionário de Fidel Castro.
CML | Antes de tudo um esclarecimento: eu não fiz parte
da criação do grupo Orígenes. Este foi fundado em 1946, quando eu tinha 14
anos. Conheci Lezama e Lorenzo García Vega na casa daquele, creio que ao final
de 1951. Depois travei amizade com os dois e mais tarde com os demais membros
do grupo.
Agora vamos à tua pergunta que exige uma elaboração
cuidadosa.
Para entender a frase de Lorenzo teríamos que nos
situar no contexto histórico em que Orígenes se desenvolveu. Lorenzo e eu (a
quem vejo praticamente todos os dias) falamos até a saciedade de tudo isto.
Para ser justo, então, a frase teria que ser composta da seguinte maneira: “Orígenes
foi um grupo revolucionário que utilizou os meios mais contra-revolucionários
existentes”. Como isto é possível?
Em primeiro lugar entendendo que, quando surge
Orígenes, Cuba era um país desintegrado em seu aspecto político e medíocre no
plano cultural. Diante de um panorama desolado, de indiferença total a toda
manifestação cultural séria, com uma “vanguarda” maltrapilha entregue a uma
política rasteira, Orígenes se ergueu como o defensor da criatividade e do não-conformismo
frente aos poderes políticos estabelecidos. Simplesmente deu as costas às
tentações de uma sociedade corrompida até os ossos e de uma superficialidade a
toda prova. Os origenistas
desprezaram a política e apostaram na poesia. Neste sentido, e dentro do
contexto cubano, foram revolucionários.
Vamos agora ao revés do assunto. A poesia e a arte em
geral que os origenistas escolheram
como via de expressão (salvo Lorenzo García Vega e Lezama, que é um mundo à
parte) foi essencialmente conservadora e até reacionária. Rejeitaram a
vanguarda e todo o pensamento moderno de sua época em favor de um catolicismo
de câmara-ardente. Por exemplo, Fina García Marruz recentemente afirmou que “Freud
lhes entediava”, enquanto que Cintio Vitier sempre se referiu acerca do
existencialismo com displicência. Do marxismo, nem falar, Lezama me disse um
dia que todo o marxismo cabia na parte interna de uma tampinha de Coca-cola.
Tampouco o Surrealismo teve acolhida favorável. Claudel e Chesterton foram,
entre outros, seus guias espirituais. É certo que as esquerdas estavam
representadas naquele momento, em Cuba, por um partido comunista vulgar e
estalinista, porém os origenistas
jamais fizeram o menor esforço para somar-se ou interessar-se por outro tipo de
alternativa. Quanto às experimentações que vinham sendo feitas nas artes em
todas as grandes capitais do mundo, os origenistas
as menosprezavam. O culto a uma tradição espanhola com reflexos de grandeza
formava parte da poética do grupo como se pode escutar nas composições de
Julian Orbón, que nunca acolheu com beneplácito uma linguagem musical de
vanguarda. Com respeito a Lorenzo García Vega, sua poesia anunciou desde seu
primeiro livro, Suite para la espera,
um idioma que nada tinha que ver com a linha oficial do origenismo. Isto o viu com clareza Lezama. Porém, por seu lado,
Lezama se deixou envolver por uma capela que lhe pôs um colete de ferro, que o
impediu de abrir-se totalmente em seus aspectos mais criativos: o lúdico e o
erótico. Neste sentido os origenistas
foram reacionários, embora o caso de Lezama, por sua complexidade, deva ser
tratado à parte.
Você me diz que Lezama era um exilado na Cuba
republicana e teríamos que acrescentar que até certo ponto na revolucionária.
Na realidade, éramos todos. Lezama, no entanto, era o mais desdenhado de todos.
Um intelectual oficial e débil como Jorge Mañach (agora reinvindicado pelos
oficialistas da revolução) nunca o aceitou. Lezama sempre viveu na pobreza,
enquanto que os outros origenistas
(incluindo sua irmã Eloisa, que estava casada com um homem rico) viviam com
maior ou menor abundância econômica.
Mas veja, o exílio, tanto o de Lorenzo quanto o meu, é
de outra natureza. Simplesmente tudo aquilo nos saturou e saímos do país. Como
em dado momento, em suas respectivas etapas contra-revolucionárias, Cintio
Vitier e Eliseo Diego também trataram de fazê-lo e, ao fracassar o segundo e
não decidir-se, na última hora, o primeiro, optaram, passando o tempo, por converterem-se à fé marxista-leninista
interpretada por seu novo São Paulo: Fidel Castro. Tenho em meu poder cartas
reveladoras de todos eles – no número 1-2 da revista Újule (verão-outono 1994) que dirigia Lorenzo García Vega foi
publicada uma série de cartas de Eliseo Diego dirigidas a mim que revelam o que
alguns origenistas pensavam antes de sua conversão
– acerca do que pensavam durante esse tempo.
FM | Tua experiência junto ao Museu Cubano, me parece,
permitia esse diálogo essencial entre uma confirmação estética e sua renovação,
a julgar pelas exposições ali realizadas durante a época em que estavas como
seu diretor executivo. De que maneira se deu a interferência política que provocou
a tua saída?
CML | O Museu Cubano de Miami foi um reflexo da
mentalidade que prevalecia durante a Cuba republicana. Fundado por uma série de
pessoas com mais nostalgia de seu passado do que com rigor investigativo acerca
do mesmo, o museu languidesceu em meio a uma cidade como Miami, pouco dada às
manifestações culturais sérias, sobretudo entre os cubanos. Como diretor do museu
tentei fazer uma série de exibições que dessem relevo, por exemplo, às obras de
muitos dos grandes mestres da pintura cubana, alguns dos quais haviam
permanecido em Cuba. Não vou relatar aqui todos os detalhes do que ocorreu. Em
suma, parte da junta diretora do museu se opôs a que pintores ou outro tipo de
criadores que vivessem em Cuba fossem representados no museu, o que equivalia a
uma censura inaceitável. A crise rompeu durante um leilão onde havia quadros
desses pintores. Os diretores que apoiávamos o leilão fomos acusados de agentes
de Castro, ao ponto da polícia da Receita Federal dos Estados Unidos nos
investigar e mesmo confiscar coleções de arte privadas. Eu tive que aparecer
diante de um grande júri depois que a polícia veio à minha casa acusando-me de
todo tipo de macomunação com o inimigo.
Tudo isto coincidiu com o momento em que Gustavo Arcos Bergnes lançou de Cuba
uma convocatória ao diálogo que era – e em grande medida continua sendo – um
tabu para as classes dominantes cubanas do exílio. O resultado foi que às acusações
se somaram ameaças de morte e duas bombas explodiram danificando consideravelmente
uma das salas do museu.
O assunto se dirimiu nas cortes e quase dois anos
depois um juiz determinou que as obras de arte estavam protegidas pela 1ª
Emenda da Constituição dos Estados Unidos e que, portanto, trazê-las de Cuba
não violava a lei do embargo, lei que, diga-se de passagem, é uma das tantas
infâmias que o exílio elaborou conjuntamente com os governos deste país. Foi
assim então que após mais de dois anos de controvérsias terminei adoecendo e
decidi renunciar à diretoria do museu, e começar minha carreira de professor em
um seminário para onde certamente foram feitas chamadas telefônicas para impedir
que me aceitassem por minha condição de comunista.
Coisas de Miami ou da Praia Albina, como a chama
Lorenzo García Vega.
FM | A mudança para Nova York te levou ao contato com
uma perspectiva democrática que não encontravas em Cuba. Um grande momento
explosivo onde os Estados Unidos provocam uma comoção mundial por uma liberdade
extrema, uma conjugação irrepetível de fatores expansivos, algo bem distinto da
ideia que se tem hoje da realidade estadunidense. Mas ali estavas, nos anos
1950, com o pessoal do New Politics.
De que maneira participaste de uma crítica ao processo revolucionário cubano?
CML | Cheguei a Nova York com minha esposa e filhos em
princípios de 1962. Tinha início então a famosa década dos ’60 que tantas
mudanças sociais e de sensibilidade traria ao mundo. Enquanto que uma esquerda
de corte libertário ia se formando, existia outra de raiz mais tradicional
alimentada pelo maltrapilho discurso do socialismo soviético. Ali estavam
também os heterodoxos: trotskistas, anarquistas etc., que continuavam uma linha
de pensamento ancorada nas décadas de ’30 e ’40. Em meio a tudo isso observei
que a nova esquerda, ou parte da mesma, tinha como ídolo Che Guevara, e Fidel
Castro em segundo plano. Era, até certo ponto, compreensível, porém difícil de
engolir por alguém que havia saído de Cuba cheirando já a emanação totalitária
que largamente haveria de emporcalhar a ilha. Foi assim então que para minha
surpresa encontrei uma revista, New
Politics, que analizava criticamente a revolução cubana desde um ângulo
socialista. De imediato me pus em contato com eles. Seus diretores me abriram
as portas e até nos ajudaram economicamente, dentro do que podiam. Tive então
oportunidade de debater o tema cubano com organizações de esquerda, algumas
delas bastante dogmáticas, claro. Com o passar do tempo me dei conta que os
temas que se discutiam no seio da revista tinham mais a ver com a pureza do dogma socialista do que com as
novas ideias que vinham sendo expostas pelos jovens rebeldes tanto nos Estados
Unidos como em outras partes do mundo. Na França, por exemplo, muitos dos princípios
que promoveram os surrealistas foram adotados pelos situacionistas. De maneira
que eu fui me afastando do grupo, embora conservasse um grande apreço pela
generosidade com que me trataram. Hoje, com a perspectiva dos anos, me dou
conta que todos os sonhos daquelas gerações foram simplesmente manipulados pelo
poder. As agências publicitárias de Madison Avenue uniformizaram os rebeldes
(ainda lembro o dia em que vi entrar na livraria onde eu trabalhava a filha dos
Kennedy disfarçada de hippie), enquanto que a droga foi repartida livremente
pelas classes despossuídas. Os afro-americanos, por exemplo, foram
neutralizados (quando não assassinados), assim como também o foi a esquerda em
geral, até chegar ao panorama cinzento de hoje. Quanto a Cuba, o que eu poderia
dizer… Tudo foi um desastre. Hoje em Cuba, desabado o dogma marxista, querem
preencher o vazio com um origenismo passado por Cintio Vitier que se vestiu
como seu máximo sacerdote. Este, por sua vez, revive o século XIX cubano,
criando um culto pseudo-religioso em torno de José Mártí e mesmo de Lezama
Lima. Questionar em Cuba o que diz Cintio Vitier ou fazer uma crítica a fundo
de Orígenes é correr o risco de ser acusado de praticar um delito de lesa
pátria com as desagradáveis consequências que isso poderia provocar.
FM | Essa passagem tua de um convívio com o Barroco e o
Surrealismo para o Abstracionismo, me deixa bastante curioso. Te referes ao
alemão Wols, por exemplo, que esteve ligado brevemente ao brasileiro Antonio
Bandeira, quando este residia em Paris – Bandeira menciona que sua aproximação
do existencialismo sartriano foi propiciada justamente por Wols. Houve uma
encruzilhada envolvendo Abstracionismo e Surrealismo, e aqui poderíamos pensar
em Jackson Pollock ou Jean Paul Riopelle. Recordando outros nomes que sempre
mencionas com destaque – Satie, Michay, Klee –, cresce minha curiosidade: o que
a arte contemporânea teria acrescentado – não me refiro a confirmação – a esses
excessos propiciados pelo Surrealismo?
CML | Houve um momento, já há alguns anos, em que me
senti sobrecarregado de imagens que provinham do Surrealismo ou do barroquismo
lezamiano. Necessitava tirar de cima de mim esse peso e um bom dia em
Aix-em-Provence comecei a escrever uns textos que me aproximavam do que eu via naquele momento. Um autor que
resultou ser providencial para mim foi Beckett, e outro, em certa medida, foi
George Perec. Porém foi sobretudo a música que veio ao meu auxílio: Bach,
sempre. Depois Anton von Webern, Morton Feldman, Harry Partch, John Cage,
Giacinto Scelsi, Erik Satie e também o jazz: Thelonius Monk, Keith Jarrett,
Charles Mingus, Uri Cain, entre outros. A música foi para mim um elemento catalizador
que se introduziu nas obras visuais de artistas como Wols, Tobey, Michaux,
Deggotex, Baruj Salinas (com quem mantenho uma amizade próxima), o grafismo Zen
etc. Atualmente em minhas obra gráficas que realizo em computador, a música é
como uma mão invisível que vai me guiando.
FM | Ao escrever a teu respeito, Aldo Menéndez observa
que a tua “poesia visual é meditada, de ideias bem trabalhadas, negação do
poema de Arp, que surge do acaso”. Há quem defensa que na criação artística o
que importa não é o que se busca, mas sim o que se alcança. Nos textos de Si/no/si/da/rio e Contraloquios y peritextos, ambos de 2002, algo a todo tempo me
recorda o encontro de Arp com o chileno Vicente Huidobro, que resultou no livro
Tres novelas ejemplares (1955), uma
raridade editorial que tive a oportunidade de apresentar a leitores brasileiros
nos anos 1980. [2]
Pois bem, em que consiste essa tua relação com uma construção/destruição da
linguagem?
CML | Chega um momento em que, como um autista, te encontras
trancado na linguagem. Para mim o exemplo de Harry Partch ou John Cage muito me
serviram. Ambos compositores, sobretudo o primeiro, em dado momento se
encontraram diante de um beco sem saída. Partch o que fez foi inventar novos
instrumentos, enquanto que Cage, diante do dilema de escrever para um balé sem
a possibilidade de uma orquestra, introduz entre as cordas do piano distintos
objetos e com os mesmos alcançou extraordinárias sonoridades. Eu creio que este
é o exemplo que devemos seguir. Inventar, explorar novas possibilidades e,
sobretudo, nunca perder o sentido lúdico como substrato da criação. Romper o
cânone. Para mim, então, que não me proponho descobrir o Mediterrâneo, o que
faço é entrar e debruçar-me nesse outro lado do espelho. Um artista de origem
brasileira, Oyvind Fahlstrom, criou uma série de obras onde a participação do
outro consistia em deslocar as distintas figuras que o pintor havia colocado
sobre uma superfície magnética. Dessa forma sua obra poderia ser feita e
refeita continuamente sem perder, por isto, sua identidade. Esse tipo de jogo
me interessa, como também os Chance operations
de Cage.
FM | E aqui estamos a falar em poesia visual, pensando
no letrismo de Twombly ou nas experiências do uruguaio Clemente Padín. O termo poesia visual me parece inapropriado,
pois toda poesia é essencialmente visual. Recordo aqui aquele preconceito de
Breton em relação à música. Imaginemos o equívoco de uma poesia musical. A ser
piorado: uma poesia textual. Nisto se perde toda a essência da criação: o
sentido humanístico, a relação intrínseca com o homem, dentro e fora de seu
tempo. Nisto se esquece que não é o homem que está a serviço da técnica, mas
sim o contrário.
CML | O tema exige uma reflexão de caráter filosófico que
eu não possuo. Posso dizer o seguinte: no que diz respeito à poesia visual
esta, na minha opinião, libertou a linguagem de suas ataduras significantes.
Muito além da palavra escrita o signo aparece como uma saída visual que se
traduz em palavras conceitualmente, mas que continua sendo uma adivinhação. Ou
seja, a ambivalência de um signo como substituto da palavra cria novas
possibilidades interpretativas e, portanto, abre outros espaços por onde andar.
No fundo, tudo é questão de: como abrir novos espaços. Breton não quis ver na
música uma abertura e, nisto, se limitou. Tampouco os surrealistas se lançaram
de cheio a desconstruir a linguagem, pois no fundo eram demasiado clássicos,
salvo talvez Benjamin Péret, que foi uma espécie de selvagem da poesia. A prosa
de Breton, por sua vez, é uma boa prova do que acabo de afirmar.
FM | Tratando especificamente de tua criação, certa vez
me disseste que “hoje em dia tento fazer uma síntese entre certo tipo de automatismo
e os produtos da poesia visual”, logo concluindo que teu interesse maior era
então transcender esses cânones. De que maneira acreditas havê-lo conseguido?
CML | Sim, quero transcender todo cânone e deixá-lo aos
professores em busca de poder como Harold Bloom, que pontifica sobre o Cânone Ocidental. A palavra cânone me soa como canhão: convencer alguém a tiro de canhonaço. Há que dizer que
neste sentido Lezama era muito mais maestro do que Bloom: jamais impôs um cânone.
Pelo contrário, o transgredia quando se tratava de recomendar leitura
importante. Por exemplo, a Lorenzo García Vega lhe aconselhou como primeira
leitura Os cantos de Maldoror. Não há
professor nem crítico no mundo a quem tivesse ocorrido semelhante eleição. Isto
é o que tornou Lezama grande e os demais pequenos. André Breton – que conserva,
apesar de tudo, certas afinidades com Lezama e vice-versa – tinha também seu
anti-cânone. De minha parte não sei se pude transcender de todo o cânone, porém
trato de fazê-lo na medida em que os meios que tenho à minha disposição assim o
favoreçam. O computador tem sido para mim um objeto libertador que me permitiu
utilizar a técnica a serviço de minha imaginação. Para muitos é um instrumento
de dominação, porém eu sigo acreditando, como os surrealistas, que há que mudar
o destino dos objetos. Recordas a tábua de engomar dentada de Man Ray? Pois
bem, há que buscar a maneira de que do computador saiam cravos ou algo no mesmo
estilo.
[2002]
NOTA
Carlos M. Luis (Cuba, 1932-2013). Poeta e artista plástico. Dirigiu em seu país o Museo
Cubano. Como ensaísta, publicou Tránsito de la mirada (1991) e El
oficio de la mirada (1998), além dos seguintes livros de poesia: Simulacro de lo Absoluto (1954), Entrada
en la Semejanza (1965) e Nomadic and
Archeological Texts (2009). Entrevista
originalmente publicada na Agulha Revista
de Cultura # 27 - Agosto de 2002.
[1] Jorge Camacho (Cuba, 1934-2011),
além de sua obra plástica escreveu e publicou um livro de poemas, L’arbre acide (1968). Em 2011, através
de Carlos M. Luis, mantive breve correspondência com sua viúva, Margarita
Camacho, que generosamente me enviou a 2ª edição deste livro (2002).
[2] Uma dessas novelas foi publicada,
nos anos 1980, no SLMG – Suplemento Literário
Minas Gerais. Posteriormente preparei o volume III novelas exemplares & 20 poemas intransigentes, de Vicente
Huidobro e Hans Arp (Natal: Sol Negro Edições, 2012).
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