quarta-feira, 13 de agosto de 2014

CARLOS M. LUIS | Sobre surrealismo



FM | Diz Lorenzo García Vega que “um autor de memórias ou um homem que está remexendo em seu passado mais do que oferecer um mundo resoluto o que faz é oferecer seu caos e deixá-lo por resolver”. Quaisquer que sejam os recursos utilizados na criação, de poemas, pinturas ou colagens, como te relacionas com a memória, qualquer interferência creditas a ela em tua obra: acaso buscas resolver alguma coisa com a tua poesia?

CML | Começarei pelo final da pergunta. Resolver algo com a minha poesia me levaria a continuar a tradição romântica que os surrealistas e José Lezama Lima fizeram suas: fazer da poesia uma espécie de sacerdócio. O poeta então se ergue como um demiurgo, um ser à parte, que pratica, de acordo com Lezama, “uma moral das exceções”. Heidegger também quis outorgar à poesia essa missão que a sobrecarregou com um peso que, em minha opinião, não lhe corresponde nesses tempos que correm. Eu simplesmente faço poesia para jogar. É um jogo: nem mais nem menos. Porém isto sim: um jogo que deve ser levado a sério.
Quanto à memória, tenho desgraçadamente uma memória fotográfica de meu passado o mais remoto. Suponho então que partículas dessas memorizações venham a formar parte da matéria das coisas que escrevo. Por outro lado, estão os sonhos, não esqueçamos que os sonhos são cenários onde a memória monta seus melhores collages.
Eu sonho muito e, além do mais, sou um “collagista” empedernido.

FM | Desde cedo conheceste Jorge Camacho. A seu respeito, observa Jean Schuster – referindo-se ao que chama de “suas preocupações rousselinianas” – que “sua ideia preconcebida lhe conduz a uma técnica mental (como em Dali e em Magritte) por oposição às técnicas físicas, por outro lado tão dignas de atenção, de Max Ernst, [Oscar] Domínguez e [Wolfgang] Paalen”. Gostaria de saber a tua opinião acerca dessa oposição situada por Schuster, de uma técnica mental contraposta a uma física, tomando por base tanto a obra de Camacho quanto a tua própria experiência estética.

CML | Conheci Jorge Camacho[1] quando ele tinha uns oito anos e eu aproximadamente 10, em Guanabo, uma praia próxima de Havana, onde nossas famílias possuíam residência de verão. Repassávamos então uns livros de imagens geográficas e de história natural que um espanhol amigo de nossas famílias possuía em sua biblioteca. Talvez nessas primeiras experiências visuais se encontrem as raízes de sua pintura e as de minha poesia.
Passando o tempo eu descobri a poesia surrealista e a apresentei a Camacho. O resto é história. Schuster fala das técnicas mentais de Camacho e há algo de certo nisto. Sua personalidade se inclina mais para uma exploração apriorística do espaço que vai cobrir com suas figuras do que para o uso de meios que as descubram a posteriori, como ocorrem com as decalcomanias de Max Ernst, por exemplo. Camacho, portanto, não joga com o acaso como gosto de fazer. Eu parto de um princípio onde minha exploração vai descobrindo, sobre o terreno, efeitos que me abrem uma nova percepção. Meu uso do computador não obedece a um programa determinado. Abro o programa (“paint”, por exemplo), porém de imediato o desconstruo, e começo a experimentar ou, se crês melhor, a jogar com ele a ver o que acontece. Por outro lado, Camacho não gosta de fazer collages. Esses esbarrões entre várias realidades opostas não penetram seu campo visual.

FM | Já me disseste que teu “primeiro grande descobrimento da poesia em geral foram os collages de Max Ernst”. René Crevel dizia que o que mais lhe espantava em Ernst era a simplicidade de sua criação, um despojamento, de algum modo contraposto aos falsos artifícios de complexidade defendidos por uma arte contemporânea que, longe do alcance ontológico que encontramos em Ernst, não passa de uma fugacidade torpe com ares de grande obra. Esse deslocamento conceitual, de causa a efeito, me parece definir muito bem a falsidade ideológica da arte que se produz hoje, em sua quase totalidade arregimentada pelas leis de mercado.

CML | Descobri o collage ainda bem jovem, ao mesmo tempo em que o Surrealismo (devido à compra que fiz do livro de Cirici Pellicer sobre esse tema em uma feira do livro de Havana, quando tinha apenas 16 anos) e o Socialismo (nesse mesmo dia adquiri também o panfleto de Engels, Do socialismo utópico ao socialismo científico). Para mim foi “le coup de foudre”. Sigo acreditando que os collages de Max Ernst foram a descoberta poética mais importante de seu momento. O que vejo hoje neles?
Vejo, antes de tudo, uma disponibilidade, ou seja, uma abertura constante para ir acrescentando novos espaços imaginários habitáveis. Vejo também neles a essência do jogo, desde o ato inicial de buscar e encontrar lâminas com reproduções que saltem ao nosso olhar como possíveis collages, até o manual de como utilizar as tesouras e a cola. O collage descobre um mundo dado e o transforma a seu prazer, convertendo-o então na melhor tradução de nossos sonhos. E até de nossa loucura, já que neles mesmos existe um elemento esquizoide do qual, em definitivo, todos participamos.

FM | Ainda residindo em Cuba, em 1951, participas da formação do grupo Orígenes. Lorenzo García Vega disse que “Orígenes foi o grupo mais contra-revolucionário que existiu, do começo ao fim”. Necessito entender a aplicação desse conceito, porque o que se sabe a respeito de Lezama Lima é que foi exilado no próprio país, e também se poderia pensar em Lorenzo, que exilou-se na Espanha, e tu mesmo saíste de Cuba para Nova York por razões políticas, contraposições ao governo revolucionário de Fidel Castro.

CML | Antes de tudo um esclarecimento: eu não fiz parte da criação do grupo Orígenes. Este foi fundado em 1946, quando eu tinha 14 anos. Conheci Lezama e Lorenzo García Vega na casa daquele, creio que ao final de 1951. Depois travei amizade com os dois e mais tarde com os demais membros do grupo.
Agora vamos à tua pergunta que exige uma elaboração cuidadosa.
Para entender a frase de Lorenzo teríamos que nos situar no contexto histórico em que Orígenes se desenvolveu. Lorenzo e eu (a quem vejo praticamente todos os dias) falamos até a saciedade de tudo isto. Para ser justo, então, a frase teria que ser composta da seguinte maneira: “Orígenes foi um grupo revolucionário que utilizou os meios mais contra-revolucionários existentes”. Como isto é possível?
Em primeiro lugar entendendo que, quando surge Orígenes, Cuba era um país desintegrado em seu aspecto político e medíocre no plano cultural. Diante de um panorama desolado, de indiferença total a toda manifestação cultural séria, com uma “vanguarda” maltrapilha entregue a uma política rasteira, Orígenes se ergueu como o defensor da criatividade e do não-conformismo frente aos poderes políticos estabelecidos. Simplesmente deu as costas às tentações de uma sociedade corrompida até os ossos e de uma superficialidade a toda prova. Os origenistas desprezaram a política e apostaram na poesia. Neste sentido, e dentro do contexto cubano, foram revolucionários.
Vamos agora ao revés do assunto. A poesia e a arte em geral que os origenistas escolheram como via de expressão (salvo Lorenzo García Vega e Lezama, que é um mundo à parte) foi essencialmente conservadora e até reacionária. Rejeitaram a vanguarda e todo o pensamento moderno de sua época em favor de um catolicismo de câmara-ardente. Por exemplo, Fina García Marruz recentemente afirmou que “Freud lhes entediava”, enquanto que Cintio Vitier sempre se referiu acerca do existencialismo com displicência. Do marxismo, nem falar, Lezama me disse um dia que todo o marxismo cabia na parte interna de uma tampinha de Coca-cola. Tampouco o Surrealismo teve acolhida favorável. Claudel e Chesterton foram, entre outros, seus guias espirituais. É certo que as esquerdas estavam representadas naquele momento, em Cuba, por um partido comunista vulgar e estalinista, porém os origenistas jamais fizeram o menor esforço para somar-se ou interessar-se por outro tipo de alternativa. Quanto às experimentações que vinham sendo feitas nas artes em todas as grandes capitais do mundo, os origenistas as menosprezavam. O culto a uma tradição espanhola com reflexos de grandeza formava parte da poética do grupo como se pode escutar nas composições de Julian Orbón, que nunca acolheu com beneplácito uma linguagem musical de vanguarda. Com respeito a Lorenzo García Vega, sua poesia anunciou desde seu primeiro livro, Suite para la espera, um idioma que nada tinha que ver com a linha oficial do origenismo. Isto o viu com clareza Lezama. Porém, por seu lado, Lezama se deixou envolver por uma capela que lhe pôs um colete de ferro, que o impediu de abrir-se totalmente em seus aspectos mais criativos: o lúdico e o erótico. Neste sentido os origenistas foram reacionários, embora o caso de Lezama, por sua complexidade, deva ser tratado à parte.
Você me diz que Lezama era um exilado na Cuba republicana e teríamos que acrescentar que até certo ponto na revolucionária. Na realidade, éramos todos. Lezama, no entanto, era o mais desdenhado de todos. Um intelectual oficial e débil como Jorge Mañach (agora reinvindicado pelos oficialistas da revolução) nunca o aceitou. Lezama sempre viveu na pobreza, enquanto que os outros origenistas (incluindo sua irmã Eloisa, que estava casada com um homem rico) viviam com maior ou menor abundância econômica.
Mas veja, o exílio, tanto o de Lorenzo quanto o meu, é de outra natureza. Simplesmente tudo aquilo nos saturou e saímos do país. Como em dado momento, em suas respectivas etapas contra-revolucionárias, Cintio Vitier e Eliseo Diego também trataram de fazê-lo e, ao fracassar o segundo e não decidir-se, na última hora, o primeiro, optaram, passando o tempo, por converterem-se à fé marxista-leninista interpretada por seu novo São Paulo: Fidel Castro. Tenho em meu poder cartas reveladoras de todos eles – no número 1-2 da revista Újule (verão-outono 1994) que dirigia Lorenzo García Vega foi publicada uma série de cartas de Eliseo Diego dirigidas a mim que revelam o que alguns origenistas pensavam antes de sua conversão – acerca do que pensavam durante esse tempo.

FM | Tua experiência junto ao Museu Cubano, me parece, permitia esse diálogo essencial entre uma confirmação estética e sua renovação, a julgar pelas exposições ali realizadas durante a época em que estavas como seu diretor executivo. De que maneira se deu a interferência política que provocou a tua saída?

CML | O Museu Cubano de Miami foi um reflexo da mentalidade que prevalecia durante a Cuba republicana. Fundado por uma série de pessoas com mais nostalgia de seu passado do que com rigor investigativo acerca do mesmo, o museu languidesceu em meio a uma cidade como Miami, pouco dada às manifestações culturais sérias, sobretudo entre os cubanos. Como diretor do museu tentei fazer uma série de exibições que dessem relevo, por exemplo, às obras de muitos dos grandes mestres da pintura cubana, alguns dos quais haviam permanecido em Cuba. Não vou relatar aqui todos os detalhes do que ocorreu. Em suma, parte da junta diretora do museu se opôs a que pintores ou outro tipo de criadores que vivessem em Cuba fossem representados no museu, o que equivalia a uma censura inaceitável. A crise rompeu durante um leilão onde havia quadros desses pintores. Os diretores que apoiávamos o leilão fomos acusados de agentes de Castro, ao ponto da polícia da Receita Federal dos Estados Unidos nos investigar e mesmo confiscar coleções de arte privadas. Eu tive que aparecer diante de um grande júri depois que a polícia veio à minha casa acusando-me de todo tipo de macomunação com o inimigo. Tudo isto coincidiu com o momento em que Gustavo Arcos Bergnes lançou de Cuba uma convocatória ao diálogo que era – e em grande medida continua sendo – um tabu para as classes dominantes cubanas do exílio. O resultado foi que às acusações se somaram ameaças de morte e duas bombas explodiram danificando consideravelmente uma das salas do museu.
O assunto se dirimiu nas cortes e quase dois anos depois um juiz determinou que as obras de arte estavam protegidas pela 1ª Emenda da Constituição dos Estados Unidos e que, portanto, trazê-las de Cuba não violava a lei do embargo, lei que, diga-se de passagem, é uma das tantas infâmias que o exílio elaborou conjuntamente com os governos deste país. Foi assim então que após mais de dois anos de controvérsias terminei adoecendo e decidi renunciar à diretoria do museu, e começar minha carreira de professor em um seminário para onde certamente foram feitas chamadas telefônicas para impedir que me aceitassem por minha condição de comunista.
Coisas de Miami ou da Praia Albina, como a chama Lorenzo García Vega.

FM | A mudança para Nova York te levou ao contato com uma perspectiva democrática que não encontravas em Cuba. Um grande momento explosivo onde os Estados Unidos provocam uma comoção mundial por uma liberdade extrema, uma conjugação irrepetível de fatores expansivos, algo bem distinto da ideia que se tem hoje da realidade estadunidense. Mas ali estavas, nos anos 1950, com o pessoal do New Politics. De que maneira participaste de uma crítica ao processo revolucionário cubano?

CML | Cheguei a Nova York com minha esposa e filhos em princípios de 1962. Tinha início então a famosa década dos ’60 que tantas mudanças sociais e de sensibilidade traria ao mundo. Enquanto que uma esquerda de corte libertário ia se formando, existia outra de raiz mais tradicional alimentada pelo maltrapilho discurso do socialismo soviético. Ali estavam também os heterodoxos: trotskistas, anarquistas etc., que continuavam uma linha de pensamento ancorada nas décadas de ’30 e ’40. Em meio a tudo isso observei que a nova esquerda, ou parte da mesma, tinha como ídolo Che Guevara, e Fidel Castro em segundo plano. Era, até certo ponto, compreensível, porém difícil de engolir por alguém que havia saído de Cuba cheirando já a emanação totalitária que largamente haveria de emporcalhar a ilha. Foi assim então que para minha surpresa encontrei uma revista, New Politics, que analizava criticamente a revolução cubana desde um ângulo socialista. De imediato me pus em contato com eles. Seus diretores me abriram as portas e até nos ajudaram economicamente, dentro do que podiam. Tive então oportunidade de debater o tema cubano com organizações de esquerda, algumas delas bastante dogmáticas, claro. Com o passar do tempo me dei conta que os temas que se discutiam no seio da revista tinham mais a ver com a pureza do dogma socialista do que com as novas ideias que vinham sendo expostas pelos jovens rebeldes tanto nos Estados Unidos como em outras partes do mundo. Na França, por exemplo, muitos dos princípios que promoveram os surrealistas foram adotados pelos situacionistas. De maneira que eu fui me afastando do grupo, embora conservasse um grande apreço pela generosidade com que me trataram. Hoje, com a perspectiva dos anos, me dou conta que todos os sonhos daquelas gerações foram simplesmente manipulados pelo poder. As agências publicitárias de Madison Avenue uniformizaram os rebeldes (ainda lembro o dia em que vi entrar na livraria onde eu trabalhava a filha dos Kennedy disfarçada de hippie), enquanto que a droga foi repartida livremente pelas classes despossuídas. Os afro-americanos, por exemplo, foram neutralizados (quando não assassinados), assim como também o foi a esquerda em geral, até chegar ao panorama cinzento de hoje. Quanto a Cuba, o que eu poderia dizer… Tudo foi um desastre. Hoje em Cuba, desabado o dogma marxista, querem preencher o vazio com um origenismo passado por Cintio Vitier que se vestiu como seu máximo sacerdote. Este, por sua vez, revive o século XIX cubano, criando um culto pseudo-religioso em torno de José Mártí e mesmo de Lezama Lima. Questionar em Cuba o que diz Cintio Vitier ou fazer uma crítica a fundo de Orígenes é correr o risco de ser acusado de praticar um delito de lesa pátria com as desagradáveis consequências que isso poderia provocar.

FM | Essa passagem tua de um convívio com o Barroco e o Surrealismo para o Abstracionismo, me deixa bastante curioso. Te referes ao alemão Wols, por exemplo, que esteve ligado brevemente ao brasileiro Antonio Bandeira, quando este residia em Paris – Bandeira menciona que sua aproximação do existencialismo sartriano foi propiciada justamente por Wols. Houve uma encruzilhada envolvendo Abstracionismo e Surrealismo, e aqui poderíamos pensar em Jackson Pollock ou Jean Paul Riopelle. Recordando outros nomes que sempre mencionas com destaque – Satie, Michay, Klee –, cresce minha curiosidade: o que a arte contemporânea teria acrescentado – não me refiro a confirmação – a esses excessos propiciados pelo Surrealismo?

CML | Houve um momento, já há alguns anos, em que me senti sobrecarregado de imagens que provinham do Surrealismo ou do barroquismo lezamiano. Necessitava tirar de cima de mim esse peso e um bom dia em Aix-em-Provence comecei a escrever uns textos que me aproximavam do que eu via naquele momento. Um autor que resultou ser providencial para mim foi Beckett, e outro, em certa medida, foi George Perec. Porém foi sobretudo a música que veio ao meu auxílio: Bach, sempre. Depois Anton von Webern, Morton Feldman, Harry Partch, John Cage, Giacinto Scelsi, Erik Satie e também o jazz: Thelonius Monk, Keith Jarrett, Charles Mingus, Uri Cain, entre outros. A música foi para mim um elemento catalizador que se introduziu nas obras visuais de artistas como Wols, Tobey, Michaux, Deggotex, Baruj Salinas (com quem mantenho uma amizade próxima), o grafismo Zen etc. Atualmente em minhas obra gráficas que realizo em computador, a música é como uma mão invisível que vai me guiando.

FM | Ao escrever a teu respeito, Aldo Menéndez observa que a tua “poesia visual é meditada, de ideias bem trabalhadas, negação do poema de Arp, que surge do acaso”. Há quem defensa que na criação artística o que importa não é o que se busca, mas sim o que se alcança. Nos textos de Si/no/si/da/rio e Contraloquios y peritextos, ambos de 2002, algo a todo tempo me recorda o encontro de Arp com o chileno Vicente Huidobro, que resultou no livro Tres novelas ejemplares (1955), uma raridade editorial que tive a oportunidade de apresentar a leitores brasileiros nos anos 1980. [2] Pois bem, em que consiste essa tua relação com uma construção/destruição da linguagem?

CML | Chega um momento em que, como um autista, te encontras trancado na linguagem. Para mim o exemplo de Harry Partch ou John Cage muito me serviram. Ambos compositores, sobretudo o primeiro, em dado momento se encontraram diante de um beco sem saída. Partch o que fez foi inventar novos instrumentos, enquanto que Cage, diante do dilema de escrever para um balé sem a possibilidade de uma orquestra, introduz entre as cordas do piano distintos objetos e com os mesmos alcançou extraordinárias sonoridades. Eu creio que este é o exemplo que devemos seguir. Inventar, explorar novas possibilidades e, sobretudo, nunca perder o sentido lúdico como substrato da criação. Romper o cânone. Para mim, então, que não me proponho descobrir o Mediterrâneo, o que faço é entrar e debruçar-me nesse outro lado do espelho. Um artista de origem brasileira, Oyvind Fahlstrom, criou uma série de obras onde a participação do outro consistia em deslocar as distintas figuras que o pintor havia colocado sobre uma superfície magnética. Dessa forma sua obra poderia ser feita e refeita continuamente sem perder, por isto, sua identidade. Esse tipo de jogo me interessa, como também os Chance operations de Cage.

FM | E aqui estamos a falar em poesia visual, pensando no letrismo de Twombly ou nas experiências do uruguaio Clemente Padín. O termo poesia visual me parece inapropriado, pois toda poesia é essencialmente visual. Recordo aqui aquele preconceito de Breton em relação à música. Imaginemos o equívoco de uma poesia musical. A ser piorado: uma poesia textual. Nisto se perde toda a essência da criação: o sentido humanístico, a relação intrínseca com o homem, dentro e fora de seu tempo. Nisto se esquece que não é o homem que está a serviço da técnica, mas sim o contrário.

CML | O tema exige uma reflexão de caráter filosófico que eu não possuo. Posso dizer o seguinte: no que diz respeito à poesia visual esta, na minha opinião, libertou a linguagem de suas ataduras significantes. Muito além da palavra escrita o signo aparece como uma saída visual que se traduz em palavras conceitualmente, mas que continua sendo uma adivinhação. Ou seja, a ambivalência de um signo como substituto da palavra cria novas possibilidades interpretativas e, portanto, abre outros espaços por onde andar. No fundo, tudo é questão de: como abrir novos espaços. Breton não quis ver na música uma abertura e, nisto, se limitou. Tampouco os surrealistas se lançaram de cheio a desconstruir a linguagem, pois no fundo eram demasiado clássicos, salvo talvez Benjamin Péret, que foi uma espécie de selvagem da poesia. A prosa de Breton, por sua vez, é uma boa prova do que acabo de afirmar.

FM | Tratando especificamente de tua criação, certa vez me disseste que “hoje em dia tento fazer uma síntese entre certo tipo de automatismo e os produtos da poesia visual”, logo concluindo que teu interesse maior era então transcender esses cânones. De que maneira acreditas havê-lo conseguido?

CML | Sim, quero transcender todo cânone e deixá-lo aos professores em busca de poder como Harold Bloom, que pontifica sobre o Cânone Ocidental. A palavra cânone me soa como canhão: convencer alguém a tiro de canhonaço. Há que dizer que neste sentido Lezama era muito mais maestro do que Bloom: jamais impôs um cânone. Pelo contrário, o transgredia quando se tratava de recomendar leitura importante. Por exemplo, a Lorenzo García Vega lhe aconselhou como primeira leitura Os cantos de Maldoror. Não há professor nem crítico no mundo a quem tivesse ocorrido semelhante eleição. Isto é o que tornou Lezama grande e os demais pequenos. André Breton – que conserva, apesar de tudo, certas afinidades com Lezama e vice-versa – tinha também seu anti-cânone. De minha parte não sei se pude transcender de todo o cânone, porém trato de fazê-lo na medida em que os meios que tenho à minha disposição assim o favoreçam. O computador tem sido para mim um objeto libertador que me permitiu utilizar a técnica a serviço de minha imaginação. Para muitos é um instrumento de dominação, porém eu sigo acreditando, como os surrealistas, que há que mudar o destino dos objetos. Recordas a tábua de engomar dentada de Man Ray? Pois bem, há que buscar a maneira de que do computador saiam cravos ou algo no mesmo estilo.

[2002]

NOTA
Carlos M. Luis (Cuba, 1932-2013). Poeta e artista plástico. Dirigiu em seu país o Museo Cubano. Como ensaísta, publicou Tránsito de la mirada (1991) e El oficio de la mirada (1998), além dos seguintes livros de poesia: Simulacro de lo Absoluto (1954), Entrada en la Semejanza (1965) e Nomadic and Archeological Texts (2009). Entrevista originalmente publicada na Agulha Revista de Cultura # 27 - Agosto de 2002.



[1] Jorge Camacho (Cuba, 1934-2011), além de sua obra plástica escreveu e publicou um livro de poemas, L’arbre acide (1968). Em 2011, através de Carlos M. Luis, mantive breve correspondência com sua viúva, Margarita Camacho, que generosamente me enviou a 2ª edição deste livro (2002).
[2] Uma dessas novelas foi publicada, nos anos 1980, no SLMG – Suplemento Literário Minas Gerais. Posteriormente preparei o volume III novelas exemplares & 20 poemas intransigentes, de Vicente Huidobro e Hans Arp (Natal: Sol Negro Edições, 2012).

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