quarta-feira, 13 de agosto de 2014

LUDWIG ZELLER & SUSANA WALD | Sobre surrealismo



 PRIMEIRO ENCONTRO – 1992

FM | Alvaro Mutis nos fala acertadamente de tua “paciente exploração do abismo”, situando a tua poesia “sob o signo da aceitação”. A que se destina a poesia?

LZ | Eu tenho vivido segundo o acaso de meu destino; a “paciente exploração do abismo” é tão somente constatar que está ali, quando ao despertar de um sonho vemos que, no fio de cada instante vertiginoso, surge dentro de nós o interrogante chagado de espinhos. Eu, como poeta, sou um médium, um transmissor para o ouvido que talvez não exista.

FM | Que relação há entre a infância vivida no deserto de Atacama e tua poesia?

LZ | Em declaração feita há 20 anos, em meu livro Cuando el animal de fondo sube la cabeza estalla, há uma nota explicando que minha poesia e meus collages seriam outros caso houvessem sido originados em um âmbito distinto. Nasci e passei meus primeiros anos no deserto de Atacama, que é a parte mais seca do globo. Ali vi, dia após dia, produzir-se miragens, imagens que pareciam estar ao alcance da mão e que em seguida desapareciam como varridas pelo vento. Que depois se trate de mudar a realidade, de adaptá-la aos próprios desejos, de ser um surrealista “apesar de tudo”, não é senão consequência dessa infância vivida, se por um lado no mais áspero, também na essência do mágico. Para mim a poesia não é literatura, a poesia é um conjuro.

FM | No ato de tua criação poética, como se relacionam canto e conteúdo? Defende, acaso, que em poesia o que se transmite são linguagens e não ideias?

LZ | Forma e conteúdo são uma só coisa, quando o poema chega a essa “altura do grito”, segundo expressão de Benjamin Péret. Se alguns querem ver ideias, mensagens sociais em minha poesia, creio que estão em um erro. As imagens possuem uma dinâmica própria, são uma visão paralela da realidade, uma forma do invisível.

FM | Segundo Marcusse, a cabeça da Medusa seria “o símbolo eterno e mais adequado da arte: o terror como beleza; o terror recolhido na forma gratificante do objeto magnífico”. Aceitas essa noção de que o terror fundamenta a beleza?

LZ | Eu creio que Marcusse tem razão em parte, só em parte; sua verdade não pode ser última para os seres humanos. Tive ocasião de ver arte asteca pré-colombiana em figuras como a Cuatlicue: produz horror, perturba-nos e talvez fosse isto o que queria transmitir o artista. Hoje há iguais motivações para sentir esse horror, porém os artistas alertas não podem cair na mesma armadilha. A arte e a poesia estão formadas de contrastes, como os próprios homens. Creio que artistas, críticos e museus têm insistido em promover uma fealdade oca e fácil. Não são os mercadores os chamados a apontar rotas na arte. Há que cuidar para que esta sociedade tecnológica não nos afogue, ver além de sua parafernália técnica, o que é uma verdade eterna para o homem. O que viveu há 4.000 anos ou o contemporâneo.

FM | Diz Octavio Paz: “A atividade poética nasce da desesperação ante a impotência da palavra e culmina no reconhecimento da onipotência do silêncio”. Estarias de acordo com o poeta mexicano quando afirma que “toda leitura de um poema tende a provocar o silêncio”?

LZ | O pensamento de Octavio Paz aproxima-se, neste aspecto, do sentir religioso oriental que tanto há influído, nas últimas décadas, em sua visão do mundo. E ainda que muitos de meus poemas apontem para essa direção, creio que se algum sentido tem a palavra poética, a imagem criadora, é esta do Verbo, do Ser, da Vida e não o mutismo do silêncio.

FM | Encerrar um poema parece algo como interromper uma cadeia infinita de diálogos com o desconhecido? Quando um poema tem fim?

LZ | O poema se me propõe em muitas oportunidades como uma visão onírica, ou um tema a desenvolver, no qual me sinto envolvido por completo. Através de suas imagens, de suas cadências, tenho visto passar muitos fantasmas, já que muito se sonha e se vive com o próprio desconhecido que habita em nós. Quando está terminado o poema? Quando sinto, pese a todas as precariedades da vida, que expressei o que queria, sem que perdesse sua qualidade de alta voltagem a emoção. Isto é o importante. Depois, ao ver traduções dos mesmos textos, vejo até que ponto outros podem continuar o trabalho de afundar neste fio, de ampliar a ressonância de um dado texto. Creio, com Novalis, que um poema tem que nos dar, em distintas épocas e a distintas pessoas, uma resposta; sem esse eco, o poema não existe.

FM | Compartilhas a opinião daqueles que defendem que a perda da dimensão épica tenha ocasionado uma redução no mundo do poeta moderno?

LZ | Nossa época está em um balanço de meios expressivos, que incluem possibilidades que até então não existiam. Kazantzakis ou Neruda, por exemplo, foram tentados a expressar em verso momentos históricos ou narrações mitológicas. Igualmente muitos experimentam com imagens de vídeo que são simultâneas à palavra ou a substituem por som. Nosso mundo é cada vez mais global, e as diferenças entre culturas e línguas muito distintas condicionam o fato de quais serão as ferramentas mais apropriadas, tanto para o criador como para sua possível audiência.

FM | Jean Wahl, em seu estudo “A poesia como união de contrários”, refere-se à “exaltação consciente da consciência” de poetas como Valéry e Eliot, e à “perda quase total da consciência nos surrealistas”, como dois movimentos destinados um dia a coincidir, baseado em que a poesia é coincidentia oppositorum. Quais as ligações possíveis entre ambas as correntes?

LZ | Creio que Jean Wahl, em sua análise, põe muito em branco e preto esta oposição de exemplos como Valéry e Eliot, por um lado, e, por outro, os surrealistas. Eu estimo que os poetas temos um fundo comum em que a maior parte das vezes coincidimos: nem é tão consciente Valéry, nem são tão instintivos os surrealistas. Há um meio termo que permite valorizar melhor ambas as tendências. Além do mais, é sempre mais válido o resultado do afazer poético que qualquer teoria que posteriormente se torne rígida.

FM | A originalidade de um poeta consiste, em parte, em sua transgressão contínua a toda ortodoxia. O que significa para você exatamente o Surrealismo?

LZ | Não creio ser original nisto, porém me desgosta toda ortodoxia. Eu creio que o Surrealismo abriu portas, possibilitou o emprego de ferramentas que contemporaneamente têm grande importância para a arte e a poesia: a escritura automática, a exploração dos sonhos, o emprego da psicanálise, o re-traçar da realidade, constituem uma possibilidade de libertação do indivíduo. No momento em que qualquer dessas formas de expressão converte-se em dogma, cristaliza-se e morre. Eu creio, por exemplo, que o Surrealismo é mais latente hoje em dia nas novas gerações de artistas e poetas latino-americanos do que nos jovens franceses, para quem o estudo do Surrealismo é um tema obrigatório, um estilo literário ou artístico.

FM | Ao referir-se às relações entre o Surrealismo e tua poesia, Albert Moritz a situa como “um desenvolvimento e uma conclusão da autotranscendência do Surrealismo que Breton mesmo declarou era sua verdadeira natureza”. O mesmo crítico também aponta em tua obra certas características ligadas ao barroco. Em que estas definições esclarecem os objetivos de tua poesia?

LZ | A. F. Moritz é um poeta e um amigo que conhece bem minha poesia em conjunto. A posição do Surrealismo, em um enfoque mais amplo, sem capuzes, sempre terá que incorporar outras formas e disciplinas à sua bagagem. Seria distinto se dele houvessem participado os poetas do Le grand jeu ou se tivesse sido possível debater livremente com Carrouges alguns problemas. André Breton tinha uma amplitude de espírito, a maior parte das vezes, sem negar nele as debilidades de todo ser humano. Em todo caso é muito mais amplo que seus comentaristas ou os acadêmicos da literatura. Que o barroco seja uma característica de minha poética está muito além de mim, é parte da educação e de meu caráter. Não creio, por outro lado, em soluções prontas, em receitas coletivas. As contribuições do Surrealismo têm que dar a possibilidade de um maior horizonte intelectual que permita transcender, ou simplesmente não existirá mais.

FM | Como se deu a tua aproximação ao grupo Mandrágora? Segundo Gonzalo Rojas tal grupo não passou de um blefe, um pseudo-mito; enquanto que Stefan Baciu o situa como um dos pontos fundamentais do Surrealismo em toda a América Latina.

LZ | Enquanto foi um grupo eu o critiquei em mais de uma ocasião, porém Santiago de Chile é uma pequena cidade e, ao passar do tempo, vi que muitos de seus postulados coincidiam com os meus; o importante era batalhar contra a mediocridade e a politicagem. Ilustrei e publiquei livros de Braulio Arenas, Jorge Cáceres e Enrique Gómez-Correa. Além do mais, deste último sou amigo e sinto grande respeito tanto por sua obra como por sua condição humana. Quando se cumpriam 30 anos da morte de Jorge Cáceres, quem podia reparar em mesquinharias? Foi então que eu fiz a edição de seus poemas inéditos. Quanto à opinião de Gonzalo Rojas, creio que está muito tingida de ódios pessoais e é, em certo sentido, política.

FM | Não tens sido incluído em algumas antologias da poesia hispano-americana, tais como as de Aldo Pellegrini, Juan Gustavo Cobo Borda e Julio Ortega. Acaso este fato estaria relacionado a certo desvio da crítica, considerando-o mais ligado às artes plásticas do que à poesia?

LZ | Aldo Pellegrini me pediu, em sua oportunidade, material para sua antologia; não estava de acordo com a seleção dos textos e dos participantes, sendo esta a razão pela qual não estou incluído. Cobo Borda tinha material meu disponível. Julio Ortega eu não conheço. Não pertenço a clube algum, a política literária me dá asco; como então poderiam me haver incluído? Haver mantido uma posição de absoluta independência me isolou e às vezes me pôs à margem. Durante os passados 30 anos ou se era um poeta católico ou um simpatizante incondicional do comunismo. Não havia meio termo. As exposições e os livros de poesia são de datas simultâneas, ambas as técnicas são paralelas e, no melhor dos sentidos, correspondem a uma mesma personalidade.

FM | O que representa em tua vida Oasis Publications? Que diferenças há entre ela e a anterior, Casa de la Luna?

LZ | Oasis leva seu nome pelo ápice de nostalgia que traz em si todo exílio; nasci em um deserto, vivo em uma sociedade culturalmente diferente e a vida me fez preferir o oásis, essa companhia dos poucos, nas estepes geladas e indiferentes. Casa de la Luna foi feita há 25 anos, quando ainda acreditava que se podia ter um diálogo aberto com os amigos de distintas tendências. Porém o café e as atividades que nele se desenvolviam, e que tanto atraíam as gerações jovens, resultaram incômodas para os grupos de esquerda e demasiado progressista para os de direita. O lugar foi invadido cinco vezes em nossa ausência, para ver os fichários, as pessoas que se relacionavam conosco, as presumíveis atividades clandestinas.

FM | Após esta longa residência no Canadá, o que te parece hoje o Chile?

LZ | Emigrei ao Canadá antes do governo de Allende, porque me era claro que chegariam logo em seguida os militares. Todos sabemos o desastre que isto significa, porém os causadores de um ou outro lado costumam lavar as mãos. Atualmente o Chile vive períodos de mudanças, o literário pode estar latente, porém existe um vazio de muitos, muitos anos, difícil de preencher. Como na Espanha depois de Franco, demora até que surjam as novas vozes líricas. Passou muito tempo e muitos seres e lugares se afastam de nosso foco de visão. Talvez tão somente nos acompanhem aquelas imagens que forjaram a infância, o que Rilke pensava que era o único verdadeiro país para os poetas.


SEGUNDO ENCONTRO – 2002

FM | Em algumas oportunidades eu tenho observado certo prejuízo à leitura do Surrealismo na América Latina estabelecido por Stefan Baciu. Na Antología de la poesía surrealista latinoamericana se verifica uma contradição no entendimento de quais poetas possuem ou não vínculos diretos com este movimento. Exemplo disto é a inclusão de Antonio Porchia ao mesmo tempo em que deixa de fora Juan Sánchez Peláez ou Ludwig Zeller. Igualmente equívoco é que remeta a Huidobro como um precursor, no caso chileno, ao mesmo tempo em que rejeita a presença do Surrealismo na obra de Rosamel del Valle, argumentando sua condição extraordinária dentro do ambiente surrealista (“nunca fez parte de um grupo, de uma corrente, de uma geração”). De que maneira vocês acompanharam o processo de preparação da antologia?

LZ | Antes de tudo, fomos nós que publicamos pela primeira vez em espanhol, na revista Casa de la Luna, de Santiago, em 1970, um artigo de Baciu sobre Surrealismo na América Latina, traduzido por Susana Wald.
O problema de Baciu é que era temperamental e lhe incomodava muito que alguém não lhe respondesse as cartas enquanto ele podia escrever uma ou duas por dia. Creio que é a única razão pela qual não me inclui na primeira antologia, porque ele conhecia perfeitamente as coisas que estávamos fazendo em Casa de la Luna, e conhecia a relação que tínhamos com os integrantes do grupo Mandrágora, e sabia que nós fizemos a grande exposição “Surrealismo no Chile”, em 1970. Eu mesmo lhe dei dados em várias fitas cassetes, enviadas ao Havaí, já que ele jamais esteve no Chile.
Creio além do mais que a própria gente da Mandrágora (v. o n° 7 feito por Enrique Gómez-Correa) dizia que o único que merecia estar incluído no Surrealismo dentro do Chile era Rosamel del Valle, de quem reproduz um curto fragmento poético.
Eu creio, no entanto, que Rosamel del Valle fez uma grande obra criativa muito próxima das propostas do Surrealismo. Além do mais, Rosamel del Valle e Braulio Arenas se recordavam de quando visitavam periodicamente material da Livraria Francesa, tratando de localizar textos dos surrealistas.
Quando vemos em conjunto a obra poética de Rosamel del Valle, que é enorme, apesar dos revezes da vida que lhe tocaram, é que podemos ter uma visão mais ampla. Sua obra tem a importância comparável à de Huidobro, ou outros poetas importantes, e está livre de toda bagagem de propaganda política ou fanatismo.
Somente há dois anos finalmente foi possível publicar, em dois volumes, seus poemas completos. Falta ainda fazer uma edição de sua narrativa, artigos e ensaios.

SW | Eu entrei no Surrealismo pela porta que Ludwig Zeller me abre para o movimento e suas ideias. Não conhecia o Surrealismo senão muito superficialmente em minha experiência anterior. Tinha visto imagens, em Buenos Aires tinha visto exposições que se relacionavam com o Surrealismo, porém não tinha conhecimento dos postulados do movimento. Ou seja, não conhecia a fonte, mas sim apenas seus efeitos. Entre os anos 1965 e 1970, entre os livros da magnífica biblioteca de Ludwig Zeller que se trasladou para minha própria casa, pude ler e gozar muita informação e muita literatura, a quase totalidade dela de impulso surrealista. Em minha própria obra eu diria que sou uma surrealista “natural”, porque nasce em mim, não da própria ideologia, mas sim de um fluxo livre e pessoal. A liberdade, o amor e a poesia, coube a mim vivê-los. Quando traduzi o texto de Baciu para nossa revista, seus postulados me pareciam corretos e óbvios. Considero também que Baciu tinha um interesse bem mais acadêmico no Surrealismo; nunca me pareceu que fosse surrealista ele mesmo, nunca me pareceu que ele se comprometesse com este tipo de causa. Isto sim, Baciu foi anticomunista, sem ser reacionário, e para ele o Surrealismo pode ter sido uma alternativa valiosa para contrapesar a pedra de moinho que representava no mundo intelectual o compromisso com o Partido.
Da mesma forma que Ludwig, eu penso que Baciu omitiu sua poesia da primeira versão da antologia por irritação, e porque não lhe chegavam as cartas ou as respostas que esperava. Baciu vivia em cômodas condições no Havaí; bem ao contrário de nós, no Chile. Em nosso caso a correspondência em muitas vezes era prorrogada porque havia outras urgências a serem satisfeitas, como buscar o que comer ou buscar teto, ou a própria e iniludível urgência de criar.

FM | O termo para-Surrealismo, empregado por Baciu, além de equivocado em sua raiz, me parece que serviu para que muitos simpatizantes se sentissem parte de algo que não tinham coragem de abraçar na totalidade. A partir daí, proliferaram para-surrealistas por vários pontos da América Hispânica. O que pensam a este respeito?

LZ | O termo para-Surrealismo me parece absurdo, já que se participa do Surrealismo ou não. O Surrealismo está vivo na América Latina, tanto na plástica quanto na literatura, tão vivo como há cinquenta anos.

SW | Isto de para-Surrealismo é parte de um afã cartesiano de classificação para poder examinar as coisas, que é próprio dos acadêmicos. Há que encontrar os compartimentos apropriados para situar as coisas, caso contrário não conseguem entendê-las. Isto é também muito próprio de um pensamento do século XIX que pouco a pouco, afortunadamente, está caindo em desuso. Com as teorias do caos, eu creio que será possível entender melhor o Surrealismo.
E é também provável e perfeitamente legítimo que Baciu tenha querido ampliar o espectro do que se pode chamar Surrealismo e que tenha querido sair dos parâmetros dogmáticos, ao mesmo tempo em que encontrou um termo infeliz para tanto.

FM | As relações entre Chile e Venezuela, no que diz respeito ao Surrealismo, possuem algumas curiosas particularidades. Embora participante de inúmeras reuniões em torno do Grupo Mandrágora, Juan Sánchez Peláez, que residiu em Santiago, e mesmo tendo em conta que seu retorno a Caracas o envolveu, juntamente com Vicente Gerbasi, em ações que se poderia considerar vinculadas ao Surrealismo (edição de revistas, traduções etc.), posteriormente criou uma barreira em torno dessa discussão. O mesmo se deu com Juan Liscano, que afasta a possibilidade de Cármenes, um de seus melhores livros, ter influência direta do Surrealismo. Aliás, vale aqui lembrar que um primeiro vínculo de Gonzalo Rojas com Mandrágora também foi dado como de pouca importância por ele próprio. E não nos esqueçamos das relações entre Gerbasi e Díaz-Casanueva no grupo Viernes. Tudo isto se trata de uma rejeição natural aos ismos ou teria uma particularidade distinta?

LZ | O que eu sei é que Juan Sánchez Peláez figura em uma das fotos de inaugurações de surrealistas, quando estudava em Santiago, e naturalmente tinha uma abertura até estas possibilidades.
Quanto a Gonzalo Rojas, ele esteve vinculado ao grupo Mandrágora no primeiro momento, porém ele próprio expressou que se desvinculou do movimento e teve uma atividade contrária à deles, seguindo uma posição política.
O Chile é um país pequeno. Quando ali esteve Gerbasi ele encontrou com toda a gente e era naturalmente muito próximo de Díaz-Casanueva e Rosamel del Valle.

SW | Há alguns assuntos aqui que têm a ver com a política literária, mesclada com a política como tal. Eu creio que neste sentido Gonzalo Rojas é político, e Díaz-Casanueva ou Gerbasi – tendo seus pontos de vista na política –, no plano literário se mantiveram mais próximo de uma motivação interior e não da busca de poder, coisa natural e finalidade principal da política.

FM | Já me disseste, Susana, que “durante muito tempo o Partido Comunista foi tão poderoso e tão intransigente que era heroico fazer o que fazíamos”. Em Boa # 2 (Buenos Aires, junho de 1958), Julio Llinás observa que “mudar a vida é uma fórmula, provavelmente, a mais válida que tenha anotado concretamente a poesia em seu trajeto até o presente, mas é também o perigoso jogo da arbitrariedade humana, em sua defesa inesgotável desse triste pão dormido que é sua própria miséria”. Como se mostrava esse “jogo da arbitrariedade humana”, quando da saída de vocês do Chile? E quais os prejuízos daí advindos?

LZ | Eu nunca pertenci ao Partido Comunista e, no entanto, na Casa de la Luna, o café que tínhamos, os arquivos foram violados pela polícia do Chile, pela gente da Embaixada dos Estados Unidos e por gente do próprio Partido Comunista, ao ponto que não queriam cruzar com ninguém nas ruas.
O espectro político mudou, aparentemente. Embora os comunistas digam agora que têm uma nova visão, seguem igualmente agarrados aos meios de comunicação no Chile, e favorecem apenas àqueles que lhe são incondicionais. Isto nós pudemos comprovar pessoalmente em nossa recente visita ao país.
Como prova disto: o Prêmio Nacional de Literatura deste ano foi dado a Volodia Teitelboim.

SW | Ludwig muitas vezes conta que em sua juventude no Chile era possível pertencer ao Partido Comunista e então participar nos encontros de Juventude e Paz em distintos pontos do planeta – envoltos na influência de Moscou ou Pequim –, ou se podia ser beato e então estar respaldado pela Igreja Católica e ser enviado à Espanha de Franco ou a Roma. Se não pertencias a um movimento ou outro e querias ter uma posição independente e além do mais de esquerda, recebias pancadas dos comunistas e também dos católicos. Podemos, se queres, chamar a essas pancadas de “jogos de arbitrariedade humana”. E talvez se possa alcunhar de igual maneira gestos como aquele em que, a dois anos de nossa estadia no Canadá, me mandaram – anonimamente, desde a Sociedade de Escritoras – um telegrama com pêsames pela morte de Ludwig. Eu creio que chamaria este tipo de gesto de canalhice.
Não resta dúvida que a atitude dos comunistas para conosco afirmou em mim um forte prejuízo. Não nos queriam ver vivos. Além de nos desprestigiar, nos tiraram todos os meios de sobrevivência que tínhamos. Creio que se tivessem podido nos matar além do metafórico teriam feito. E antes deles nos teriam assassinado os militares que mataram colaboradores nossos nos primeiros dias do golpe.

FM | A aberta dissensão entre Neruda, Pablo de Rokha e Huidobro, de que maneira influiu no comportamento das gerações posteriores? Um dos nomes centrais do modernismo brasileiro, Mário de Andrade, observou que “os modernos do Brasil, na infinita maioria fizemos o impossível pra não ter o espírito de grupo, o ideal comum”. Caberia observar até que ponto em Mandrágora e Angurrientos havia essa compreensão de um ideal comum.

LZ | Mandrágora conforma uma concepção mais universal, mais educada. Angurrientos tem um ânimo mais folclórico no Chile, como diz o próprio nome.
Outra coisa: estavam tão desgostados Neruda, de Rokha e Huidobro que se alguém se aproximava deles não tinha chance de estar com a outra gente sem ser fortemente criticado.
Esta disputa dividiu muita gente. Huidobro é de quem se faz primeiro uma fundação no Chile. Neruda está muito protegido pelo Partido Comunista, é candidato desse partido à Presidência da República. Teve cinco casas no Chile que agora são museus, e há também a Fundação Neruda: é imensa a influência que restou dele. Já no caso de De Rokha, não há sequer uma boa edição crítica de sua obra, mesmo que ele tenha se suicidado em 1968.

SW | Em minha experiência são poucos os que, no Chile, Venezuela ou México, formam grupos. São mais a exceção do que a regra. Que Mandrágora tenha conseguido funcionar foi uma conquista extraordinária. O mesmo se pode dizer de El Techo de la Ballena ou dos surrealistas argentinos entre os quais conheço alguns. Porém entre as próprias pessoas que formam grupos se produzem disputas. Há pouco visitei Julio Llinás, em Buenos Aires, e ele insistia em que não se considerava surrealista. Braulio Arenas dizia o mesmo.
Na Casa de la Luna, o café e a revista, se juntava gente ao redor de nós e agora também há jovens interessados em trabalhar com Ludwig e comigo, principalmente porque compartilham nossos ideais e o fato de que nunca os traímos.

FM | Em uma conferência, Gonzalo Rojas recorda os desentendimentos entre Pablo de Rokha e Pablo Neruda, não sem destacar que De Rokha, “desaforado em tudo, e desmedido, foi o primeiro demolidor do pós-modernismo entre nós e o progenitor dessa ruralidade e elementaridade transcendida, com certo enfoque primordial e cosmogônico, desde seus versos iconoclastas de 1915”. Como, diante da grandeza renovadora da obra de De Rokha, os méritos internacionais acabaram recaindo todos sobre Neruda?

LZ | De Rokha fez uma grande obra, muito vinculada ao espírito dos chilenos, ao mesmo tempo em que tinha um modo muito pouco diplomático e costumava brigar com a maior parte das pessoas.

SW | A frase de Rojas me faz pensar em quem põe a carroça à frente dos bois e não como corresponde. O pós-modernismo não pode ter preocupado a De Rokha, em seu tempo não havia surgido o conceito. E creio que De Rokha, sim, foi desaforado, porém não desmedido; foi desaforado como são todos os que se movem dentro do romantismo e suas consequências, entre as quais se encontra o próprio Surrealismo.
Existe uma triste tendência nos seres de buscar segurança. Quando alguém recebe um prêmio, com certeza receberá outros, porque os que darão os prêmios segundos, terceiros etc., apostarão na segurança, no fato de que existe já um precedente premiado. São poucas as exceções a isto. E ao tema se acrescenta que o Partido Comunista e todo seu mecanismo publicitário imenso favoreceram a Neruda, excluindo toda outra pessoa. E Neruda jamais se opôs a isto.

FM | Recordo palavras de Gómez-Correa: “As descrições que incorpora o realismo fantástico são totalmente surrealistas, porque aqui na América é questão de olhar a paisagem. Está repleta de coisas loucas, abunda o Surrealismo por todos os lados. Vulcões, nevadas, selva, deserto… Como imaginas que tenhamos a cordilheira e a cem quilômetros o mar?! O Chile é Surrealismo por todos os lados!” Jamais concordei com tal afirmação, considerando-a mais uma boutade, talvez algo pertencente ao folclore ou ao âmbito turístico. A França não é surrealista. Breton, sim. Ou seja, é uma condição que o indivíduo leva dentro de si, que não pode ser expressa senão como valor individual. Concordam comigo?

LZ | Eu creio que a obra de arte está feita por seres humanos e não por nevadas ou vulcões, mesmo que estes possam nos mover a todos. No entanto, é exatamente Gómez-Correa quem se manteve sempre fiel à ideia do Surrealismo.

SW | O próprio Breton, quando vem ao México, observa que este ambiente é, por natureza, surreal. Eu creio que isto tem a ver com “o desaforado” que comentamos acima, e creio que a isto também se refere Gómez-Correa.

FM | Hans Arp – que escreveu um livro com Huidobro – me parece ter sido a primeira voz a insurgir-se contra esse preconceito do Surrealismo em relação ao abstracionismo. A busca exacerbada de um conteúdo equivale à mesma preocupação isolada em relação à forma. Caberia rever a obra de artistas como Jackson Pollock, Antonio Bandeira ou Francis Bacon. Avaliar melhor as relações entre abstracionismo e figurativismo, por exemplo. Creio que Río Loa, estación de los sueños (1994) é uma bela síntese disto. Não há ali um “ato de evasão em proveito de valores imaginários”, como temia Magritte em relação ao abstracionismo na pintura.

LZ | São os seres humanos que fazem a arte. Alguém nasceu nesse deserto, porém o resto das pessoas que viveram ali mesmo é possível que façam uma coisa inteiramente contrária.

SW | Nós participamos, durante anos, do movimento Phases, cujo postulado é que o Surrealismo não é necessariamente figurativo, e que há abstracionismo surreal. Nisto o líder de Phases, Edouard Jaguer, difere de Breton, e eu estou com ele. Em todo caso, qualquer dogmatismo, venha de Breton ou de quem quer que seja, me parece aberrante.

FM | A residência em Oaxaca, após tantos anos de Toronto, quais novas possibilidades aporta? E como tem sido o trabalho editorial junto à revista Vaso Comunicante?

LZ | Eu sinto que há em Oaxaca uma presença enorme do pré-colombiano, muito importante, já que as pessoas que me toca tratar são mixtecos e zapotecos que há quatro mil anos ergueram as primeiras cidades meso-americanas. Neste aspecto, culturalmente, Oaxaca é riquíssima em comparação a Toronto, embora também seja certo que Toronto é o lugar onde te ajudam a realizar uma série de obras, edições etc.; em troca, em Oaxaca exista uma atmosfera intelectual muito provinciana. Vaso Comunicante influi na mudança dessa atmosfera.

SW | Eu creio que o Surrealismo é uma condição interior (nisto estou de acordo contigo), e aonde quer que vás o levarás como todo o resto de tua psique. O trabalho de Ludwig e o meu próprio têm sido como são não porque estivemos em uma cidade como Toronto, mas sim apesar disto. E o mesmo sucede em relação a Oaxaca. Em Toronto gozamos de apoio material e aqui gozamos do apoio social e humano e do fato de que o que fazemos parece aqui mais “natural”, menos agressivo. A novidade aqui em Oaxaca é precisamente que a resistência ao que fazemos é menor. Também vale a pena mencionar que Oaxaca é um entorno muito permeado do oral e do visual. As pessoas leem pouco, porém veem muito as imagens. Para quem faz colagens, como Ludwig, ou pinta, como eu, isto abre uma fresta pela qual, com alguma sorte, poderemos colar nossa obra artística.
Em Oaxaca Ludwig, sempre ansioso de fazer uma revista, encontrou o apoio que buscava, principalmente em uma pessoa cujo nome é César Mayoral Figueroa.

[1992, 2002]

NOTA
Em 1998 publiquei uma edição fora de mercado de Escritura Conquistada (Diálogos com poetas latino-americanos), onde consta esta minha primeira entrevista ao poeta e artista Ludwig Zeller (Chile, 1927). Desde então, em nossas conversas, demos pela falta de algumas observações complementares àquele texto, sobretudo no que diz respeito ao Surrealismo no Chile e à Antología de la Poesía Surrealista Latinoamericana (1981), organizada por Stefan Baciu. Posteriormente, quando da publicação de O Começo da Busca – O Surrealismo na Poesia da América Latina (2001), e a partir de comentários meus à imprensa, voltamos a considerar a necessidade de esclarecer alguns pontos, desta vez contando também com o valioso depoimento de Susana Wald (Hungria, 1937). O casal Ludwig e Susana há décadas desenvolve atividade cultural em defesa do Surrealismo, especialmente através da casa editorial Oasis Publications e da revista Vaso Comunicante. Uma segunda entrevista foi então originalmente publicada em Agulha Revista de Cultura # 29 - Outubro de 2002.

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