quinta-feira, 21 de agosto de 2014

JOSÉ GUEDES | O mistério dos elementos



FM – Como situar, sob o prisma das gerações, o artista José Guedes? Não penso aqui apenas em termos de referências, mas antes de tudo de reflexão sobre possíveis identificações.

JG – Embora iniciando a carreira nos anos setenta como pintor, e tendo, nos anos 80, participado de exposições como “BR 80”, “PINTURA BRASIL DÉCADA 80” – organizada pelo Itaú Cultural –, creio que foi nos anos 90, com a absorção de novas tecnologias que me permitiram expandir as possibilidades da pintura, em que meu trabalho achou melhor guarida.

FM – E quais os ecos do passado, no sentido de contribuição para a tua formação, para a definição de uma voz própria?

JG – Rothko foi a grande referência nos anos 80, pela busca obsessiva de novas possibilidades cromáticas. Assim como Robert Ryman para quem a essência da pintura estava no branco. Gerard Richter, Bill Biola, Gary Hill, Andreas Gursky, Hiroshi Sugimoto, Brice Marden, Christian Boltanski, Felix Gonzalez-Torres, Cildo Meireles, Antonio Dias, entre muitos outros, certamente deixaram marcas significativas.

FM – É deliciosa essa tua afinidade com o Sugimoto, pelo fato dele lidar essencialmente com o preto e branco, enquanto que partes para uma múltipla investigação cromática. Gostaria que recordasses, nesses primeiros momentos, como se dava o convívio físico com outros artistas, conversas, contatos, discussões, eventuais realizações em grupo etc.

JG – Os primeiros artistas com quem tive contato, por serem ligados à minha família, foram José Eduardo Pamplona, responsável por vários painéis hiper-realistas de pastilha espalhados pela cidade (nas Docas tem um belíssimo) e Aldemir Martins. Eles foram os principais incentivadores no primeiro momento, quando eu ainda nem era adolescente. Depois vieram Roberto Galvão, José Pinheiro, Marcus Jussier, com quem aprendi muito da técnica da pintura. Com Galvão, Siegbert Franklin, João Jorge e Tarcísio Felix, eu dividi um atelier no começo dos anos 80. Nessa época, muito produtiva, eu tive contato com alguns críticos que foram fundamentais no meu processo criativo: Olívio Tavares de Araújo, Jacob Klintowitz, Walmir Ayala, Vicente de Pércia, Alberto Beuttemüller, Cassiano Xavier de Mendonça, Paulo Herkenhoff, Frederico Morais, Roberto Pontual, Flávio de Aquino (que foi o primeiro a escrever sobre meu trabalho, para a revista Manchete) entre outros. Eu sempre abri muito o meu trabalho para a discussão, sempre fui aberto às críticas. Continuo sendo.

FM – Observa o Agnaldo Farias que, em um determinado momento, passas da pintura para uma “abstração radical, devotada exclusivamente a pensar alguns dos predicados da cor: sua espacialidade, as relações que elas estabelecem entre si etc.”. Aproveitando alguns nomes evocados por Farias, caberia provocar o que um Brice Marden acrescenta a Jackson Pollock ou o um Eduardo Sued imagina estar acrescentando a Piet Mondrian. Não te parece que tais experiências, da mesma forma que o abstracionismo geométrico, tenham rapidamente atingido uma exaustão, passando a reproduzir-se de maneira diluente?
JG – O Brice Marden até meados dos anos 80, fazia uma pintura minimalista, com largas faixas de cor. Nos anos oitenta houve uma mudança aparentemente radical, quando ele passou a desenhar "arabescos" com o pincel. Mas na realidade as mesmas questões continuam presentes: o rigor cromático e a construção racional do espaço. O seu traçado é meticuloso, controlado. Aí está a grande diferença com Pollock para quem a pintura de ação, de gestos livres ultrapassava os limites da tela. No Sued o espaço geometrizado existe para criar relações cromáticas (assim como Marden, Aurelie Nemours etc.). Mondrian é um construtor de relações geométricas. Com relação ao desgaste dessas experiências, é um fato, mas de vez em quando nos deparamos com algumas exceções com o Peter Halley, Sarah Morris entre outros que, sem dúvida, deram sobrevida à geometria.

FM – Um outro crítico, Carlos Perktold, defende que, se pensarmos nos desdobramentos das artes plásticas em nosso tempo, “o novo caminho é privilégio de quem sabe desenhar e pintar”. Perktold menciona artistas como Santiago Carbonell, Guillermo Muñoz Vera e Cláudio Bravo, como nomes que já perceberam “o caminho da pintura para o século XXI”. Contudo, o hiper-realismo que praticam também me parece redundante, sobretudo quando o crítico a eles se refere na condição de um “novo ponto zero”. O que pensas a este respeito?

JG – Santiago Carbonell, e Muñoz Vera são a prova de que saber pintar e desenhar não faz um artista. Só podem ser analisados como um fenômenos de mercado. Claudio Bravo tem uma trajetória mais consistente, assimilou as questões do Hiper-Realismo entre os anos 60 e 70, mas dessa época só mantém o virtuosismo técnico. Se esses artistas absolutamente anacrônicos representarem um novo ponto zero a arte está completamente sem rumo.

FM – Ao escrever sobre uma exposição tua, Vitória Daniela Bousso destaca o ponto em que reside a densidade de tua poética: “no livre arbítrio conferido ao domínio do olhar, dualidade, ambigüidade e simulação nesse caso, recriam o real, interagem com a própria vida e geram múltiplos significados”. Considerando a existência de um livre arbítrio, o que é bastante improvável em um mundo marcado pelos excessos de indução em todas as atividades sociais, ele seria determinado pela obra ou pelo olhar de quem a contempla?

JG – Ambos? Creio que o olhar pode ser induzido ou educado.

FM – Pensemos em termos de tua poética, ou seja, nessa mescla de justaposições e sobreposições em que envolves a pintura e a fotografia, o que buscas?

JG – Talvez a transcendência das técnicas, propiciando novas tensões.

FM – Tadeu Chiarelli faz menção a uma crítica que move tua poética e que atinge duas tradições, da pintura pura e da fotografia como objeto de denúncia social. Ele está correto ao apontar tal crítica? Evidente que há certo maniqueísmo em polarizar ambas tradições, uma vez que a arte trafega por outra via. Mas como reagias a essas duas correntes?

JG – Esse trabalho surgiu, creio, num momento de crise pessoal com a pintura e a fotografia.

FM – Para alguns artistas que buscam na natureza um processo de materialização de suas idéias estéticas é comum recorrer-se à recriação de processos naturais, onde a erosão é um cúmplice valioso. Há casos em que a indignação do artista está tão voltada para a natureza e seus recursos naturais que se esquece que o caos urbano, a desertificação mental, o controle exercido sobre o desejo, são elementos constitutivos de uma erosão urbana, em muitos casos mais denunciativos de um paraíso perdido do que a evocação a rios poluídos ou desmatamentos. O que uma árvore carcomida por cupins entalhada em grandes blocos de granito tem em comum com uma blitz em um laboratório de preparo de ecstasy exposta em imensas fotografias exceto a beleza? Eu penso nisto como uma provocação à maneira, por vezes inconseqüente, com que o artista evoca a realidade.

JG – Os holofotes estão em questões gerais, como ecologia.

FM – Vens fazendo circular pela Internet uma breve publicação intitulada Intruso, que funciona como uma agenda comentada. Há ali alguns pontos interessantes a serem desdobrados e naturalmente é o que esperas, que te escrevam indagando a respeito do que anuncias ou comentas. Há uma receptividade nessa aventura? Como artistas, críticos e público em geral utilizam a Internet?

JG – No caso da coluna Intruso, foi surpreendente a reação do público em geral, tanto que, embora traindo um pouco o conceito original de chegar às pessoas sem ser convidada, em breve ela terá um sítio próprio. Assim, os números anteriores poderão ser acessados e ela poderá ser visitada mesmo por quem não está na minha lista de endereços.

FM – Eu gosto da resultante deste material que vens divulgando virtualmente. E gosto da maneira como te referes a este conceito de traição [risos]. A todo instante somos atropelados pelo anúncio de algo. No espaço visual à nossa frente – incluindo a dimensão onírica – não há mais um centímetro quadrado que não seja preenchido por uma logo. O ser humano foi convertido em objeto de consumo e disto ninguém escapa. Separar o joio do trigo em meio a essa tática infernal equivale a distinguir entre vítima e cúmplice. Neste jogo de gato e rato, não te parece uma contradição alguém conectar-se à internet e refugar os anúncios que lhe enviam, até mesmo denunciá-los junto a provedores, através de e-mail, quando não se posicionam em momento algum sobre as inúmeras e já tradicionais formas de invasão de privacidade que tanto caracterizam as sociedades humanas?

JG – Creio que é uma questão de comodidade. De facilidade. Voltando ao Intruso, que é enviado para cerca de 11.000 pessoas e chega sem ser convidado, a quantidade de pessoas que pedem para ser retiradas da lista é até bastante pequena, uma média de 2 a 3 por edição. É um dado curioso por se tratar de um produto cultural. Porém, impressiona a fúria com que parte dessas pessoas pede para ser excluída.

FM – Como está o processo de instalação/inauguração de um museu Madi em Sobral? Carmelo Arden Quin é uma figura intrigante, rara, que soube reunir artistas das mais variadas tendências – recebeu em seu atelier tanto concretistas quanto surrealistas –, de maneira que me parece que esta expressiva doação feita para a criação do museu de Sobral, que vem acrescida de pertinentes informações acerca do movimento, é fundamental. O surgimento do movimento Madi, na Argentina, coincide com a atuação de um grupo intitulado Poesía-Buenos Aires, capitaneado por Raúl Gustavo Aguirre, ao mesmo tempo em que se desdobravam as atividades surrealistas, e era comum a aproximação dessas vanguardas todas que então explodiam. No Brasil, contudo, tudo se verificou sempre como um contingente de indisposição, em muitos casos de desavença mesmo. Essa má vontade em aceitar o outro, até que ponto se mantém e tem sido prejudicial em termos de uma consistência estética da arte que se produz no Brasil e sua relação com o exterior? Bem entendido que não me refiro aqui unicamente em termos de mercado.

JG – O Museu Madi em Sobral inaugurou dia 5 de Julho com cerca de 100 doações. E vem mais por aí. É curioso como esse movimento tão fecundo, que influenciou inclusive o neo-concretismo brasileiro (Lygia Clark visitou o atelier de Arden Quin) seja tão pouco conhecido no Brasil. Creio que o museu vá atenuar essa situação. Com relação à ”má vontade em aceitar o outro”, ela continua, emperra projetos, desestimula trajetórias, mas mesmo assim a arte brasileira acontece com muita força no cenário internacional. A arte que se faz hoje no Brasil é de ponta, deixou de ser diluição de tendências internacionais. Há artistas brasileiros em todas as principais mostras do planeta, como a Documenta de Kassel, a Bienal de Veneza, etc, e em museus e coleções privadas importantes.

FM – Eu queria tocar aqui em dois aspectos. Um diz respeito a insistência tua – já anotada em outra entrevista – em recordar que a Lygia Clark freqüentou o ateliê de Arden Quin; outro é uma observação minha de que na Argentina construtivistas e surrealistas descobriram algum ponto em comum, uma lida sem preconceitos que agiu favorecendo o enriquecimento estético das duas correntes. Com isto, te faço duas perguntas: tua referência à Lygia Clark é um alerta ao fato – bastante comum em nossa cultura – de que entre nós muito pioneirismo é fruto tão-somente da ignorância local, de um alheamento cronológico ao que se passa no resto do mundo? De que maneira o surrealismo te despertou algum interesse?

JG – Primeiro, a questão do pioneirismo é secundária, mas algumas coisas devem ser pelo menos discutidas. É curioso que um livro comoNeoconcretismo - Vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro, de Ronaldo Brito, editado pela Cosac & Naify nem cite o Movimento Madi. E, no entanto, para ficarmos num único exemplo, as esculturas articuladas de Gyula Kosice, dos anos 40 são a espinha dorsal dos festejados Bichos de Lygia Clark, dos anos 60.
Com relação ao surrealismo, a empolgação foi muito curta. Gosto de Magritte.

FM – A propósito da morte recente de Harald Szeeman, inevitável tocar em algo que nos preocupa a todos no mundo da arte, o desgaste ou completa exaustão do formato Bienal. O que pensas a respeito?

JG – Se você tomar como exemplo a Documenta de Kassel – eu tive a oportunidade de visitar as três últimas – chegará à conclusão de que é uma retro-alimentação necessária.

FM – Mas em que sentido? A idéia de feedback ou caixa de retorno é fraudada a partir do momento em que se restringe a área de atuação do objeto em discussão. Área de atuação significa todo um conjunto de ofertas segundo as leis de mercado, que se expande por restrições. Há uma oferta viciada e uma procura subserviente. Qual retro-alimentação há nisto?

JG – Estamos falando de arte contemporânea e de exposições que tem um sentido prospectivo, onde é até saudável que se erre arriscando, propondo novos modos de ver. Lembro-me da Documenta 9, de 1992, que teve olhos para o terceiro mundo, para a América Latina, (quatro brasileiros expuseram lá) e que foi duramente criticada. Mas quase nada de significativo que veio depois havia escapado aos olhos atentos de seu curador, o belga Jan Hoet, que por sinal, foi um dos curadores da Bienal Ceará América. Pessoas como Hoet, Szeeman, Jean Clair, Catherine David, Germano Celant, Ekwui Enwezor, Octávio Zaya, certamente contribuem (ou contribuíram) para que esse formato continue eficaz.

FM – Reproduzo aqui uma anotação do diário do poeta Carlos Drummond de Andrade, datada de junho de 1976: “Visita à Exposição de Arte Francesa, no Museu de Arte Moderna. Não houve decepção. Há muito eu sentia o vazio, a impotência, a incapacidade de recriar a vida em termos estéticos, da maioria dos artistas contemporâneos mais badalados. E também o ímpeto com que se impõem, graças a intensa publicidade. Salvam-se na mostra os velhos impressionistas, mesmo não representados por obras de primeira grandeza.” É possível atualizar as observações de Drummond, trazendo-as para o âmbito de uma arte contemporânea brasileira?

JG – Há uma imensa má vontade dos modernos, muitos deles geniais, como é o caso de Drummond, com a arte contemporânea.

FM – Sim, sim, esta é uma leitura corrente, ao mesmo tempo algo inconsistente porque os poetas sempre tiveram – e esta situação se mantém – uma relação muito estreita com as artes plásticas – muito mais do que com a música, por exemplo, embora esta hoje seja tão evocada –, inclusive participando conjuntamente de todos os movimentos de vanguarda do século passado e inclusive em muitos casos artistas que lidam com as duas formas de expressão. A má vontade no tocante a certo abismo estético, que dista uma geração de outra, isto sim, afinal algo substancial separa Guignard de Lygia Clark, por exemplo. Mas há esta má vontade hoje?

JG – Nem me refiro só aos poetas, mas aos artistas de um modo geral. É comum, ainda hoje, você ouvir de artistas situados cronologicamente na modernidade, críticas a certas modalidades de arte surgidas mais recentemente. As instalações são o alvo mais comum. E nem são tão atuais assim.

FM – A cor, acima de tudo a cor, como a crítica costuma observar acerca de uma estética que te particulariza? Quais objetivos contundentes persegues hoje em nome da beleza?

JG – Não tenho medo da beleza. Até a persigo, em muitos casos, mas como parte de um processo, de um recado visceralmente elaborado. A cor é essencial, às vezes, até pela ênfase dada a sua ausência. 

[2005]

[Entrevista publicada na Agulha Revista de Cultura # 47 - Setembro de 2005]

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