FM – Como situar, sob o prisma das
gerações, o artista José Guedes? Não penso aqui apenas em termos de
referências, mas antes de tudo de reflexão sobre possíveis identificações.
JG – Embora iniciando a carreira nos anos setenta
como pintor, e tendo, nos anos 80, participado de exposições como “BR 80”,
“PINTURA BRASIL DÉCADA 80” – organizada pelo Itaú Cultural –, creio que foi nos
anos 90, com a absorção de novas tecnologias que me permitiram expandir as
possibilidades da pintura, em que meu trabalho achou melhor guarida.
FM – E quais os ecos do passado, no sentido de
contribuição para a tua formação, para a definição de uma voz própria?
JG – Rothko foi a grande referência nos anos 80,
pela busca obsessiva de novas possibilidades cromáticas. Assim como Robert
Ryman para quem a essência da pintura estava no branco. Gerard Richter, Bill
Biola, Gary Hill, Andreas Gursky, Hiroshi Sugimoto, Brice Marden, Christian
Boltanski, Felix Gonzalez-Torres, Cildo Meireles, Antonio Dias, entre muitos
outros, certamente deixaram marcas significativas.
FM – É deliciosa essa tua afinidade com o Sugimoto,
pelo fato dele lidar essencialmente com o preto e branco, enquanto que partes
para uma múltipla investigação cromática. Gostaria que recordasses, nesses
primeiros momentos, como se dava o convívio físico com outros artistas,
conversas, contatos, discussões, eventuais realizações em grupo etc.
JG – Os primeiros artistas com quem tive contato,
por serem ligados à minha família, foram José Eduardo Pamplona, responsável por
vários painéis hiper-realistas de pastilha espalhados pela cidade (nas Docas
tem um belíssimo) e Aldemir Martins. Eles foram os principais incentivadores no
primeiro momento, quando eu ainda nem era adolescente. Depois vieram Roberto
Galvão, José Pinheiro, Marcus Jussier, com quem aprendi muito da técnica da
pintura. Com Galvão, Siegbert Franklin, João Jorge e Tarcísio Felix, eu dividi
um atelier no começo dos anos 80. Nessa época, muito produtiva, eu tive contato
com alguns críticos que foram fundamentais no meu processo criativo: Olívio
Tavares de Araújo, Jacob Klintowitz, Walmir Ayala, Vicente de Pércia, Alberto
Beuttemüller, Cassiano Xavier de Mendonça, Paulo Herkenhoff, Frederico Morais,
Roberto Pontual, Flávio de Aquino (que foi o primeiro a escrever sobre meu
trabalho, para a revista Manchete) entre outros. Eu sempre abri muito o meu
trabalho para a discussão, sempre fui aberto às críticas. Continuo sendo.
FM – Observa o Agnaldo Farias que, em um
determinado momento, passas da pintura para uma “abstração radical, devotada
exclusivamente a pensar alguns dos predicados da cor: sua espacialidade, as
relações que elas estabelecem entre si etc.”. Aproveitando alguns nomes
evocados por Farias, caberia provocar o que um Brice Marden acrescenta a
Jackson Pollock ou o um Eduardo Sued imagina estar acrescentando a Piet
Mondrian. Não te parece que tais experiências, da mesma forma que o
abstracionismo geométrico, tenham rapidamente atingido uma exaustão, passando a
reproduzir-se de maneira diluente?
JG – O Brice Marden até meados dos anos 80, fazia
uma pintura minimalista, com largas faixas de cor. Nos anos oitenta houve uma
mudança aparentemente radical, quando ele passou a desenhar
"arabescos" com o pincel. Mas na realidade as mesmas questões
continuam presentes: o rigor cromático e a construção racional do espaço. O seu
traçado é meticuloso, controlado. Aí está a grande diferença com Pollock para
quem a pintura de ação, de gestos livres ultrapassava os limites da tela. No
Sued o espaço geometrizado existe para criar relações cromáticas (assim como
Marden, Aurelie Nemours etc.). Mondrian é um construtor de relações
geométricas. Com relação ao desgaste dessas experiências, é um fato, mas de vez
em quando nos deparamos com algumas exceções com o Peter Halley, Sarah Morris
entre outros que, sem dúvida, deram sobrevida à geometria.
FM – Um outro crítico, Carlos Perktold, defende
que, se pensarmos nos desdobramentos das artes plásticas em nosso tempo, “o
novo caminho é privilégio de quem sabe desenhar e pintar”. Perktold menciona
artistas como Santiago Carbonell, Guillermo Muñoz Vera e Cláudio Bravo, como
nomes que já perceberam “o caminho da pintura para o século XXI”. Contudo, o
hiper-realismo que praticam também me parece redundante, sobretudo quando o
crítico a eles se refere na condição de um “novo ponto zero”. O que pensas a
este respeito?
JG – Santiago Carbonell, e Muñoz Vera são a prova
de que saber pintar e desenhar não faz um artista. Só podem ser analisados como
um fenômenos de mercado. Claudio Bravo tem uma trajetória mais consistente,
assimilou as questões do Hiper-Realismo entre os anos 60 e 70, mas dessa época
só mantém o virtuosismo técnico. Se esses artistas absolutamente anacrônicos
representarem um novo ponto zero a arte está completamente sem rumo.
FM – Ao escrever sobre uma exposição tua, Vitória
Daniela Bousso destaca o ponto em que reside a densidade de tua poética: “no
livre arbítrio conferido ao domínio do olhar, dualidade, ambigüidade e
simulação nesse caso, recriam o real, interagem com a própria vida e geram
múltiplos significados”. Considerando a existência de um livre arbítrio, o que
é bastante improvável em um mundo marcado pelos excessos de indução em todas as
atividades sociais, ele seria determinado pela obra ou pelo olhar de quem a
contempla?
JG – Ambos? Creio que o olhar pode ser induzido ou
educado.
FM – Pensemos em termos de tua poética, ou seja,
nessa mescla de justaposições e sobreposições em que envolves a pintura e a
fotografia, o que buscas?
JG – Talvez a transcendência das técnicas,
propiciando novas tensões.
FM – Tadeu Chiarelli faz menção a uma crítica que
move tua poética e que atinge duas tradições, da pintura pura e da fotografia
como objeto de denúncia social. Ele está correto ao apontar tal crítica?
Evidente que há certo maniqueísmo em polarizar ambas tradições, uma
vez que a arte trafega por outra via. Mas como reagias a essas duas correntes?
JG – Esse trabalho surgiu, creio, num momento de
crise pessoal com a pintura e a fotografia.
FM – Para alguns artistas que buscam na natureza um
processo de materialização de suas idéias estéticas é comum recorrer-se à
recriação de processos naturais, onde a erosão é um cúmplice valioso. Há casos
em que a indignação do artista está tão voltada para a natureza e seus recursos
naturais que se esquece que o caos urbano, a desertificação mental, o controle
exercido sobre o desejo, são elementos constitutivos de uma erosão urbana, em
muitos casos mais denunciativos de um paraíso perdido do que a evocação a rios
poluídos ou desmatamentos. O que uma árvore carcomida por cupins entalhada em
grandes blocos de granito tem em comum com uma blitz em um laboratório de
preparo de ecstasy exposta em imensas fotografias exceto a beleza?
Eu penso nisto como uma provocação à maneira, por vezes inconseqüente, com que
o artista evoca a realidade.
JG – Os holofotes estão em questões gerais, como
ecologia.
FM – Vens fazendo circular pela Internet uma breve
publicação intitulada Intruso, que funciona como uma agenda
comentada. Há ali alguns pontos interessantes a serem desdobrados e
naturalmente é o que esperas, que te escrevam indagando a respeito do que
anuncias ou comentas. Há uma receptividade nessa aventura? Como artistas,
críticos e público em geral utilizam a Internet?
JG – No caso da coluna Intruso, foi
surpreendente a reação do público em geral, tanto que, embora traindo um pouco
o conceito original de chegar às pessoas sem ser convidada, em breve ela terá
um sítio próprio. Assim, os números anteriores poderão ser acessados e ela
poderá ser visitada mesmo por quem não está na minha lista de endereços.
FM – Eu gosto da resultante deste material que vens
divulgando virtualmente. E gosto da maneira como te referes a este conceito de traição [risos].
A todo instante somos atropelados pelo anúncio de algo. No espaço visual à
nossa frente – incluindo a dimensão onírica – não há mais um centímetro
quadrado que não seja preenchido por uma logo. O ser humano foi convertido em
objeto de consumo e disto ninguém escapa. Separar o joio do trigo em meio a
essa tática infernal equivale a distinguir entre vítima e cúmplice. Neste jogo
de gato e rato, não te parece uma contradição alguém conectar-se à internet e
refugar os anúncios que lhe enviam, até mesmo denunciá-los junto a provedores,
através de e-mail, quando não se posicionam em momento algum sobre as inúmeras
e já tradicionais formas de invasão de privacidade que tanto caracterizam as
sociedades humanas?
JG – Creio que é uma questão de comodidade. De
facilidade. Voltando ao Intruso, que é enviado para cerca de 11.000
pessoas e chega sem ser convidado, a quantidade de pessoas que pedem para ser
retiradas da lista é até bastante pequena, uma média de 2 a 3 por edição. É um
dado curioso por se tratar de um produto cultural. Porém, impressiona a fúria
com que parte dessas pessoas pede para ser excluída.
FM – Como está o processo de instalação/inauguração
de um museu Madi em Sobral? Carmelo Arden Quin é uma figura intrigante, rara,
que soube reunir artistas das mais variadas tendências – recebeu em seu atelier
tanto concretistas quanto surrealistas –, de maneira que me parece que esta
expressiva doação feita para a criação do museu de Sobral, que vem acrescida de
pertinentes informações acerca do movimento, é fundamental. O surgimento do
movimento Madi, na Argentina, coincide com a atuação de um grupo intitulado
Poesía-Buenos Aires, capitaneado por Raúl Gustavo Aguirre, ao mesmo tempo em
que se desdobravam as atividades surrealistas, e era comum a aproximação dessas
vanguardas todas que então explodiam. No Brasil, contudo, tudo se verificou
sempre como um contingente de indisposição, em muitos casos de desavença mesmo.
Essa má vontade em aceitar o outro, até que ponto se mantém e tem sido
prejudicial em termos de uma consistência estética da arte que se produz no
Brasil e sua relação com o exterior? Bem entendido que não me refiro aqui
unicamente em termos de mercado.
JG – O Museu Madi em Sobral inaugurou dia 5 de
Julho com cerca de 100 doações. E vem mais por aí. É curioso como esse
movimento tão fecundo, que influenciou inclusive o neo-concretismo brasileiro
(Lygia Clark visitou o atelier de Arden Quin) seja tão pouco conhecido no
Brasil. Creio que o museu vá atenuar essa situação. Com relação à ”má vontade
em aceitar o outro”, ela continua, emperra projetos, desestimula trajetórias,
mas mesmo assim a arte brasileira acontece com muita força no cenário
internacional. A arte que se faz hoje no Brasil é de ponta, deixou de ser
diluição de tendências internacionais. Há artistas brasileiros em todas as
principais mostras do planeta, como a Documenta de Kassel, a Bienal de Veneza,
etc, e em museus e coleções privadas importantes.
FM – Eu queria tocar aqui em dois aspectos. Um diz
respeito a insistência tua – já anotada em outra entrevista – em recordar que a
Lygia Clark freqüentou o ateliê de Arden Quin; outro é uma observação minha de
que na Argentina construtivistas e surrealistas descobriram algum ponto em
comum, uma lida sem preconceitos que agiu favorecendo o enriquecimento estético
das duas correntes. Com isto, te faço duas perguntas: tua referência à Lygia
Clark é um alerta ao fato – bastante comum em nossa cultura – de que entre nós
muito pioneirismo é fruto tão-somente da ignorância local, de um alheamento
cronológico ao que se passa no resto do mundo? De que maneira o surrealismo te
despertou algum interesse?
JG – Primeiro, a questão do pioneirismo é
secundária, mas algumas coisas devem ser pelo menos discutidas. É curioso que
um livro comoNeoconcretismo - Vértice e ruptura do projeto construtivo
brasileiro, de Ronaldo Brito, editado pela Cosac & Naify nem cite o
Movimento Madi. E, no entanto, para ficarmos num único exemplo, as esculturas
articuladas de Gyula Kosice, dos anos 40 são a espinha dorsal dos festejados
Bichos de Lygia Clark, dos anos 60.
Com relação ao surrealismo, a empolgação foi muito
curta. Gosto de Magritte.
FM – A propósito da morte recente de Harald
Szeeman, inevitável tocar em algo que nos preocupa a todos no mundo da arte, o
desgaste ou completa exaustão do formato Bienal. O que pensas a respeito?
JG – Se você tomar como exemplo a Documenta de
Kassel – eu tive a oportunidade de visitar as três últimas – chegará à
conclusão de que é uma retro-alimentação necessária.
FM – Mas em que sentido? A idéia de feedback ou
caixa de retorno é fraudada a partir do momento em que se restringe a área de
atuação do objeto em discussão. Área de atuação significa todo um conjunto de
ofertas segundo as leis de mercado, que se expande por restrições. Há uma
oferta viciada e uma procura subserviente. Qual retro-alimentação há nisto?
JG – Estamos falando de arte contemporânea e de
exposições que tem um sentido prospectivo, onde é até saudável que se erre
arriscando, propondo novos modos de ver. Lembro-me da Documenta 9, de 1992, que
teve olhos para o terceiro mundo, para a América Latina, (quatro brasileiros
expuseram lá) e que foi duramente criticada. Mas quase nada de significativo
que veio depois havia escapado aos olhos atentos de seu curador, o belga Jan
Hoet, que por sinal, foi um dos curadores da Bienal Ceará América. Pessoas como
Hoet, Szeeman, Jean Clair, Catherine David, Germano Celant, Ekwui Enwezor,
Octávio Zaya, certamente contribuem (ou contribuíram) para que esse formato continue
eficaz.
FM – Reproduzo aqui uma anotação do diário do poeta
Carlos Drummond de Andrade, datada de junho de 1976: “Visita à Exposição de
Arte Francesa, no Museu de Arte Moderna. Não houve decepção. Há muito eu sentia
o vazio, a impotência, a incapacidade de recriar a vida em termos estéticos, da
maioria dos artistas contemporâneos mais badalados. E também o ímpeto com que
se impõem, graças a intensa publicidade. Salvam-se na mostra os velhos
impressionistas, mesmo não representados por obras de primeira grandeza.” É
possível atualizar as observações de Drummond, trazendo-as para o âmbito de uma
arte contemporânea brasileira?
JG – Há uma imensa má vontade dos modernos, muitos
deles geniais, como é o caso de Drummond, com a arte contemporânea.
FM – Sim, sim, esta é uma leitura corrente, ao
mesmo tempo algo inconsistente porque os poetas sempre tiveram – e esta
situação se mantém – uma relação muito estreita com as artes plásticas – muito
mais do que com a música, por exemplo, embora esta hoje seja tão evocada –,
inclusive participando conjuntamente de todos os movimentos de vanguarda do
século passado e inclusive em muitos casos artistas que lidam com as duas
formas de expressão. A má vontade no tocante a certo abismo estético, que dista
uma geração de outra, isto sim, afinal algo substancial separa Guignard de
Lygia Clark, por exemplo. Mas há esta má vontade hoje?
JG – Nem me refiro só aos poetas, mas aos artistas
de um modo geral. É comum, ainda hoje, você ouvir de artistas situados cronologicamente
na modernidade, críticas a certas modalidades de arte surgidas mais
recentemente. As instalações são o alvo mais comum. E nem são
tão atuais assim.
FM – A cor, acima de tudo a cor, como a crítica
costuma observar acerca de uma estética que te particulariza? Quais objetivos
contundentes persegues hoje em nome da beleza?
JG – Não tenho medo da beleza. Até a persigo, em
muitos casos, mas como parte de um processo, de um recado visceralmente
elaborado. A cor é essencial, às vezes, até pela ênfase dada a sua ausência.
[2005]
[Entrevista
publicada na
Agulha Revista de Cultura # 47 - Setembro
de 2005]
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