FM Bem, começaste pelo corpo, como bailarina.
Também esta nossa conversa se inicia pelo corpo, este grande símbolo em
movimento, poço mágico de significâncias. Considerando as experiências
seguintes, o corpo relacionado ao canto e à interpretação teatral, foi casual
ou houve algum interesse particular na dança como primeira revelação artística?
CA Meu querido o corpo foi meu primeiro
instrumento de trabalho. Diz minha mãe que aos 4 anos entrei numa sala de aula
de dança e desde então nunca mais saí. Não me lembro de ter feito outra coisa
na vida. Foi sem dúvida minha primeira e inspiradora revelação ao melhor dos
mundos… o ofício inigualável de ser outros.
Aprendi que ele, o corpo, não mente,
jamais.
FM Acaso te espelhavas em alguma bailarina em
especial, ou era a própria dança, o movimento, que guiava teus passos?
CA Não, na dança o instrumento é tão
particular que não há como se espelhar, mas há sim a busca pelo grande mestre,
aquela que satisfaz nosso empenho pelo aperfeiçoamento da técnica.
FM Conta-me um pouco da experiência como
coreógrafa, o princípio desse grande desbravamento da dança como espetáculo no
Brasil, do qual foste uma protagonista de destaque.
AC Na escola, na hora do recreio, ainda
menina, minha diversão era coreografar! Assim que comecei a dançar minha
curiosidade por juntar passos (como realmente foram minhas primeiras
tentativas) era grande, mas comecei mesmo coreografando para teatro. Durante 10
anos tive minha própria Cia. de dança e lá pude coreografar livremente chegando
a fazer coisas muito boas e erros quase imperdoáveis. Depois em espetáculos solo
ousei monólogos com coreografias realmente voltadas para o personagem em questão. Como se
mexe, como gira, como anda, como salta… Era a tal da Dança Teatro.
FM Desde então, como evoluiu a dança no
Brasil?
CA A dança tem fôlego de gato e resistiu a tempos
difíceis ocupando hoje um lugar de destaque conseguindo plateias lotadas e uma
geração de novos bailarinos já com assinatura. Com isso quero dizer que já não
há mais o clássico, o moderno, o jazz… Há a vocação, a vontade de colocar seus
desejos em cena, independendo de rótulos ou estilo ou técnica.
FM Um personagem de Eugène Ionesco,
precisamente o Berenguer da peça Le piéton de l’air (1963), punha em
dúvida que o teatro — e incluía a seu lado a literatura — pudesse “dar ideia da
enorme complexidade do real”. Em grande parte a relação com o real assume uma
conotação moralista, o que resulta em uma arte de denúncia. O próprio Ionesco
observa que não lhe parece ser esta a função da arte, e sim a “de tornar real o
irreal, de suscitar o imprevisto” (Entrevista a Claude Bonnefoy, 1970). Temos
aqui uma infinidade de temas, que iremos desfiando, porém primeiramente eu
queria entender a tua relação com a representação, com o dar vida, no palco e
não mais no roteiro escrito, a um personagem.
CA Representar é, sem dúvida, fruto de
pesquisa de entrega de humildade. A busca de conhecer, entender, compreender e
mais que tudo jamais criticar seu personagem.
Roubamos da vida pra devolver em forma de
arte, ou seja, emprestando nossa ousadia e outras tantas coisas que são nossas.
FM Assim como no canto as modulações na
interpretação de um texto, na vivência de um personagem, pode sofrer
significativa alteração de um ator para outro? Por trás do estilo do
dramaturgo, haveria então um estilo de atuação?
CA Infelizmente não canto. Protagonizei um
musical fazendo a vida de uma cantora por conta da audácia da juventude.
Digamos que hoje entendo mais de afinação e me reservo o papel de atriz
que eventualmente, se o personagem pedir, cantará… como atriz… Dá pra me
entender?
Ah o que não fazemos para viver um
personagem!!!
A mudança de um intérprete, sem sombra de
dúvida, provocará significativa alteração no modo de apresentar o personagem e
caberá ao diretor orientar este intérprete de acordo com a linha traçada pela
direção.
FM O diretor, então, é que é o criador maior?
CA O diretor é aquele que do lado de fora te
impulsiona, provoca o intérprete a descobrir nuanças, pertinências,
possibilidades que o personagem oferece, e quem define a linha do espetáculo.
Para mim a responsabilidade do diretor vai de como o espectador é recebido na
entrada do teatro até o momento mais íntimo da criação de um ator. Momentos
indescritíveis quando nos tornamos indefesos e expostos. Cabe a ele aceitar ou
não a luz, o cenário o figurino, a trilha.
FM Há algum tempo, quando escrevi sobre a
montagem de uma peça sob a direção de Celso Nunes, observei: “Está certo, como
queria Grotovski, que o teatro é essencialmente o encontro do ator com o
espectador. O mesmo se pode dizer de um livro ou de um disco. O que não se pode
é comprometer a essência estética de uma obra (teatro, poema, canção) com seus
acessórios. Nem se reveste uma peça teatral de arquitetura, indumentária e
iluminação na expectativa de ocultar a falta de texto, ou se anula todo este
aparato de forma preconceituosa, como sendo danoso ao justo encontro do ator
com os espectadores.” Como vês esta relação entre essencial e acessório na
construção de um espetáculo teatral?
CA Essencial é tudo aquilo que está em cena para
servir ao espetáculo, ao intérprete, e quando isso não acontece apenas serve
para desvirtuar a atenção e ocupar um espaço que não é de direito. O belo é
essa união de manifestações, a harmonia entre criadores voltados todos para o
mesmo fim: o espetáculo. Este sim, é o valor maior.
FM Como se inter-relacionam real e irreal em
tua concepção da criação artística? São tratados de maneira distinta no canto,
na dança, na representação teatral?
CA Em perfeita harmonia é uma loucura sã!
FM Volto ao Ionesco ao dizer que “a crise do
teatro é a crise da renovação da expressão”. De que maneira a renovação dessa
expressão, no teatro, depende do texto? A dança seria uma espécie de teatro
mudo?
CA A dança, o teatro, a pintura… O artista
retrata seu tempo, a linha que divide as formas das manifestações da criação
são tênues demais e nos une a todos, atores são pintores, pintores são músicos,
e por aí vai… Somos farinha do mesmo saco!
FM Na composição expressiva dos personagens
que representas, qual papel desempenha o ego? Sentes acaso algum conflito em
despir-se temporariamente de si para deixar fluir este outro que é o
personagem?
CA Pelo contrário, é um prazer sem igual esse
desnudar-se. Depois, Floriano, não há personagem que seja totalmente diferente
de nós, é só procurarmos com carinho e atenção que há em nós um pouco de
tudo/todos.
Depois de conhecermos o personagem ele
está sob nossas rédeas. Não há como ser outro, mas sim a técnica de ser outro.
Como no dia a dia, dure o tempo que for o
espetáculo continuamos a descobrir emoções e gestos que às vezes nos dão a
maior satisfação possível que é a de nos surpreendermos a nós mesmos. Reações
que chegam e nos pegam de surpresa. Estavam lá em algum lugar do nosso coração,
da nossa cabeça e que dão o ar da graça e consolidam o recomeçar que é o
que o bom intérprete faz todas as noites. Jamais é o mesmo espetáculo.
FM Francis Bacon, em uma entrevista, faz uma
abordagem interessante acerca da criação artística em nosso tempo. Diz ele: “Acho
que estamos numa posição muito curiosa hoje, porque não existe qualquer
tradição, o que existe são dois extremos opostos. Há o depoimento direto que é
muito parecido com um relatório de polícia. E há a tentativa de se buscar uma
arte maior. Mas a chamada arte, que realmente é de meio-termo, numa época como
a atual não existe.” (Entrevista a David Sylvester, 1966) Não sei se estás de
acordo com ele, porém como situarias esta observação dele em termos de teatro
brasileiro atualmente?
CA Eu não acredito em arte meio-termo. Há o
bom teatro e o mal teatro, ou qualquer outra manifestação artística. Aqui deixo
Bacon e digo que no Brasil estamos vivendo dias de belíssimas montagens e
outras pequenas e perdidas. Entre textos medíocres e grandes textos, e o que é
pior: o publico, com naturais exceções, sem saber qual é qual. Estamos
massacrados pela pior das censuras que é a censura econômica, prensados entre patrocinadores
e a impossibilidade (quase geral) de se produzir sem eles.
FM Nos espetáculos de leitura de textos, de
que maneira teces o roteiro?
CA Leitura de texto é mergulhar os olhos no
papel e entregar para o público da maneira mais clara, audível, compreensível,
o texto. Porém nunca deixaremos de fazer uma partitura do texto para
que torne a leitura agradável e provoque por mais delicadamente que seja a
intenção do autor.
FM Há naturalmente autores de tua
preferência. Quais e o que encontras neles?
CA Minha grande paixão é a palavra. Bons
textos. Por isso os clássicos me encantam sempre, por tratarem de assuntos
diversos com a melhor das palavras, com ritmo e poesia, assim como autores
novos e ousados que possam provocar. Não há como citar um preferido porque não
tenho um preferido.
Literature, sweet and never ending obsession!!!
FM Há algo que sempre tenhas querido incorporar,
porém jamais o tenha conseguido? Não me refiro exclusivamente a um personagem,
de maneira que penso também em algum sentimento, como um escárnio ou um riso.
CA Carmen, personagem na Ópera. No teatro,
como atriz, tive o inenarrável prazer de ser Carmem. Na vida, bem, não
acerto muito na vida, me falta certa competência para viver… Por conta disto,
para o dia-a-dia algumas coisas ficaram sem acontecer. Meu lugar de conforto,
fé e plenitude é o palco.
FM Falas em conforto, porém não em refúgio. A plenitude
que alcanças no palco supriria a realidade, de alguma maneira? Esta falta de
competência de viver abrange a administração da própria arte, amores, os gestos
simples do cotidiano, como a troca de uma lâmpada? Fala-me um pouco desse
personagem chamado Clarisse Abujamra.
CA A realidade é sempre seca e amarga e digo
realidade, não o que fazemos com o que nos oferece a vida. Sou um atropelo
constante de sensações e desejos, sempre em excesso e, como diria Pessoa, sinto
um cansaço antiquíssimo, mas a despeito de tudo adoro a risada franca, o bom
humor e não abro mão dos sonhos diferenciando-se de esperança. A
esperança por vezes me irrita… muito.
O palco me oferece um descanso mesmo sendo
ele o olho do furacão.
A ponta do meu nariz coça quando estou
carente, e tenho certeza de que, como diz Mia Couto, “Somos quando somos os
outros”, que a guerra, a ignorância e o preconceito são o mal da humanidade.
Não tenho ex-amores, continuo amando-os e sou louca por vinho tinto e por
queijos. Sei que não é fácil ser sobrinha do velho Abu (Antonio Abujamra), que
adoro os escritores russos, que sou leitora voraz, que nada é mais forte do que
amizade — amigos, eu os prezo mais que tudo. A velhice me assusta. Ensaio
escrever, apreender a escrever. Deve ser horrível perder a curiosidade e triste
quando já não nos surpreendemos com a vida, o viver. Tenho horror à injustiça.
Se não há paixão, invento, porque é um estado necessário de estar. A
inadmissível NÃO distribuição de renda me fere. A poesia faz parte da minha
vida. Em minha casa tenho livros espalhados por toda parte e sempre à mão um
poeta. Adoro dançar, mesmo aquele dois pra lá dois pra cá. Ter saúde é
tuuuuuuuuuuuudo! Meu desejo é estar no palco, sempre, e que a pior solidão é a
solidão intelectual. Acho o sorriso uma arma poderosa, e tenho pai e mãe
vivos e a eles peço que me abençoem. Tenho dois irmãos, uma irmã
caçula e 3 filhos invejáveis que amo e admiro cada dia mais… E por aí vai!
FM Como lidas no palco com o acaso, com o
improviso?
CA Estudo alucinadamente e apaixonadamente o
personagem. A despeito de muitos, gosto imensamente de ensaiar. Busco conhecer
todas as possibilidades explorar o desconhecido e domá-lo.
Sou péssima no improviso, me intimido, me
perco. Sei que resolvo, mas não com o talento, com a esperteza e a qualidade
que gostaria.
FM Ao lidar com televisão e cinema, o que
estes distintos palcos exigem do ator que já não tenha experimentado em sua
vivência no teatro?
CA Na TV a agilidade, no cinema o Tempo. Fora
essas duas observações não há nada que o trabalho de um intérprete para estar
no palco não tenha dado. Temos apenas que compreender o veículo e servir a ele.
Cada um requer uma faceta da interpretação. Trabalhar com e para a câmera é
dificílimo, pelo menos para mim. Porém não menos excitante. Creio que o que
queremos é atuar e o que sempre buscamos é o grande personagem e, por ele, eu
passo a vida a estudar, a me preparar, para estar pronta para servi-lo quando
chegar.
FM Personagens, espetáculos, filmes,
diretores etc. Ao somar toda essa bagagem de vivência como atriz, quais os
destaques, que situações em especial a memória retêm ou quais gostarias de
reviver?
CA Reviver, Carmem. E a memória recente e
inesquecível de As nove partes do desejo, meu último trabalho, pois
acredito que ainda demore para encontrar outro texto que ofereça ao intérprete
tantas possibilidades, que traz poesia e que fala de nosso dias, guerras,
amores estratégias de sobrevivência. O texto dói, clareia, impulsiona, elucida.
Foi escrito por Heather Raffo. Brilhante.
E a passagem em minha vida de diretores
como Antunes Filho, com quem adoraria trabalhar mais uma vez… Bobagem tentar
dar nomes porque foram muitos e tive o privilégio de ter trabalhado com os
nomes mais importantes do teatro, da dança, da música.
E esse amor imensurável que sinto por
minha profissão, pelos meus colegas de palco.
[2009]
[Entrevista com Clarisse Abujamra (Brasil, 1947), publicada em Invenção do Brasil. São Paulo: Editora
Descaminhos, 2013. http://www.amazon.com/Inven%C3%A7%C3%A3o-Brasil-entrevistas-Portuguese-Edition-ebook/dp/B00FTBMR24]
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