quinta-feira, 21 de agosto de 2014

MARIA TERESA HORTA | O corpo aceso da poesia



FM Se voltarmos no tempo, a teus primeiros escritos, como esboças inicialmente esta evidente cartografia erótica que se destaca em tua poética?

MTH Penso que os meus primeiros poemas estão longe de ser eróticos, embora neles as raízes do erotismo fossem já evidentes. No entanto, prefiro dizer que as minhas primeiras poesias eram de uma intensa sensualidade recôndita, presente em mim desde muito pequena: na busca obsessiva da beleza, num trato intenso com o corpo, num desassossego diurno repleto de claridades intensas, de odores, de sabores, de vertigem. O erotismo chegará mais tarde, em Verão coincidente. Intensa e incontrolável onda, rolando para sempre na minha escrita, no meu imaginário; quotidianamente, em toda a minha vida.

FM Que interlocutor buscavas ao eleger o corpo como palco e bastidor de uma viagem pelo interior do que talvez se possa aqui chamar a essência feminina?

MTH Quando escrevo nunca busco um interlocutor, a poesia pura e simplesmente brota como o cristal de rocha na parede de uma gruta. Algo que eu não controlo nem pretendo controlar nessa viagem, como dizes, pelo interior de mim mesma. E nessa medida, sem dúvida, pelo interior da essência feminina, porque sou uma mulher e portanto tenho uma escrita feminina. Há anos que venho defendendo que a escrita, tal como os anjos, tem sexo.

FM O escândalo decorrente da leitura de alguns livros teus naturalmente não se limita a si mesmo, ou seja, não se regozija com os seus efeitos, revelando outra inquietude…

MTH O escândalo de que falas só surge em 1971, quando da publicação de Minha senhora de mim. E é sobretudo um escândalo que parte do puritanismo, do machismo, do marialvismo, que então minava e destruía a sociedade portuguesa. Produto de uma mentalidade formada, moldada pelo Fascismo e pela igreja católica, portanto pela falta de liberdade, pelo moralismo, pela hipocrisia; uma sociedade onde as mulheres não tinham sequer direito a possuir uma sexualidade própria. Então, um livro como Minha senhora de mim, onde não só canto o corpo do homem amado e desejado, como claramente falo do meu próprio corpo e menciono o meu próprio desejo e prazer, só poderia escandalizar e ser proibido, como aliás aconteceu.

FM Como percebes esse jogo de falsos pudores, que inclusive segue definindo a moral em nosso tempo, como elemento inseparável da ordem cristã à qual o homem parece reduzido? Ou há algo mais atrás do tema? O que provoca escândalo actualmente?

MTH Há sempre algo mais atrás de qualquer tema, assim como há sempre uma nova inquietude e, no caso do erotismo, particularmente, essa inquietude está sempre lá, embora a maior parte das vezes oculta. Quanto aos falsos pudores, esses continuam, infelizmente, quase tão fortes hoje como antes. Não deixa de ser curioso verificar que no Portugal pós 25 de Abril, onde a pornografia é já aceita e até mesmo procurada sem qualquer escândalo, a minha poesia continua a incomodar!

FM Ou seja, tudo reside no modo de ver o tema?

MTH Creio que a minha poesia continua a incomodar, não por ser poesia erótica, mas por ser poesia erótica de uma mulher, que continua a fazer uma abordagem da sexualidade que perturba; e que perturba sobretudo os homens, porque não diz aquilo que se convencionou a mulher dizer e até mesmo sentir. Pior do que isso, porque aborda sem o tradicional comedimento ou “recato feminino” o corpo da mulher e a sua ardência, o seu fogo, o seu desejo. Desejo esse de fruição absoluta.

FM Queres dizer que isto não converte a alusão a um componente da ilusão. Recordo um verso teu: “Disponho e ponho ilusão / na perfeição da beleza”.

MTH Mas eu persigo a beleza durante todo o tempo, precisamente porque a idealizo… Portanto, como dizes muito bem, converto a alusão a um componente da ilusão. Na minha poesia a alusão também pode fazer parte da pulsão, uma pulsão por onde perpassa, a maior parte das vezes, a beleza sofrida e sempre ambígua. Desejando ir mais longe, mais fundo, na sua ânsia de tocar, de convocar, e de nisso me perder.

FM A escrita como um jogo de sedução onde a beleza é o aguilhão, a matriz geradora de todo o sentido. É isto?

MTH A escrita é sedução. Sempre. E para mim seduzir só faz sentido se for um acto de radiosa beleza. Uma rosa do corpo ou o corpo como rosa, onde o espinho representa a sua própria beleza; o  agulhão, a matriz geradora do não sentido, ou como dizes, de todo o sentido da escrita, enquanto sedução absoluta.

FM Recordo aqui um fragmento de Novalis: “Assim como a mulher é o mais elevado alimento visível que faz a transição do corpo à alma – assim também os órgãos sexuais são os órgãos externos mais elevados, que fazem a transição dos órgãos visíveis aos invisíveis”…

MTH Habituei-me desde cedo a desconfiar dessas frases lindíssimas usadas pelos homens cultos acerca da mulher, que parecendo colocá-la num plano superior, afinal, a marginaliza; mesmo os delicados e românticos como o Novalis. Quanto aos órgãos sexuais serem de entre os órgãos externos os mais elevados… Bem, quanto a mim, aquilo que os distingue de todos os outros, é o facto determinante de serem os órgãos do prazer do corpo, do gozo sexual, de onde se parte para a fruição, para o erotismo, numa ardente e tumultuada viagem.

FM O erótico reconcilia-se com o sagrado em tua poesia ou reflecte fundamentalmente a sua condição imanente?

MTH Na minha poesia o erótico reflecte, fundamentalmente, a perenidade do corpo, enquanto lugar da natureza, da beleza, do contínuo florescimento do prazer; logo, reflectindo a sua condição imanente. Mas, o facto dos meus poemas pouco ou nada terem a ver com o sagrado, não quer dizer que não se alimentem do mistério, não mergulhem na ambiguidade, não se entreguem ao fascínio da ambivalência, não sejam atraídos por aquilo que os transcende. Mas, sempre para tornarem a si próprios enquanto corpo terreno: o frágil e o fogo, o tudo e o nada, o voo e as raízes, num entrançamento enredado e infindável.

FM Recordo o espanhol Juan Eduardo Cirlot dizendo que em arte “tudo se corresponde, enlaça e comunica”, ao mencionar as correspondências existentes entre seu ciclo Bronwyn e personagens como Hamlet (Shakespeare) ou Aurélia (Nerval).

MTH O rio que desemboca no mar e o mar que se enlaça-desenlaça e matiza ao misturar-se com a água do rio? Claro que isso acontece… No entanto, há também a hipótese precisamente contrária: a recusa da arte a toda e qualquer correspondência, mesmo entre si própria. Creio que é quando a arte se torna verdadeiramente inovadora.

FM Mas, não poderíamos identificar algumas correspondências, pensando no erotismo da tua poesia?

MTH Sem dúvida. Podemos encontrar correspondências na minha escrita, com outras escritas e não só necessariamente no que diz respeito ao erotismo. Mas, sempre pelo avesso dessa mesma correspondência. Como acontece, por exemplo, com o meu livro de poesia Educação sentimental e com o romance do mesmo nome de Gustave Flaubert. Ou seja, entre o seu entendimento daquilo que é uma educação sentimental no masculino, e o meu entendimento do que pode ser uma educação sentimental no feminino. Essa correspondência, aliás, pode existir também entre alguns textos meus e certos quadros da Paula Rego ou da Frida Kahlo, e entre poemas meus e passagens do diário da Sylvia Plath.

FM Observa a Ana Marques Gastão, acerca da tua poesia, que “é seu um corpo erotizado, pele sobre a pele, onde a própria nudez se diz tecido, cintilância, seda-sede, dobra irreverente, que não aceita a passividade das lisuras no uso de uma voz feminina”. Se pensarmos em um tipo de jogo entre o erotismo carnal e sua idealização, até que ponto estas duas esferas seriam mutuamente excludentes?

MTH Em qualquer jogo feito entre o erotismo carnal e a sua idealização, penso que quem sai sempre perdendo é a idealização. O desejo-prazer, o gosto-gozo rejeitam, recusam qualquer espécie de idealização, até porque isso seria a recusa da excelência do erotismo carnal. Como nos mostra, exemplarmente, a obra poética de Hilda Hilst; embora na sua escrita essa idealização acabe por se encontrar subjacente, só que por meio da sua recusa. O mesmo acontecendo com a minha poesia e a minha ficção eróticas.

FM Como se articulam ou convivem real e imaginário no plano da criação poética?

MTH Creio que usando-se mutuamente, misturando-se e rejeitando-se, um voando e o outro pesando, um espelho e o outro imagem. Completando-se na contradição, amando-se no desentendimento e assassinando-se também. Pelo menos no caso da minha escrita.

FM Eu gostaria que recordasses um pouco a tua participação no grupo Poesia 61, inclusive mencionando que tipo de relação o grupo mantinha, por exemplo, com o Surrealismo.

MTH Primeiro de tudo, a Poesia 61 nunca pretendeu ser um grupo literário, pelo menos no sentido habitual do termo, mas acabou, curiosamente, por aparecer como tal para os outros. Assim sendo, o Surrealismo teve, penso, uma importância diferente para cada um de nós cinco – eu, Casimiro de Brito, Fiama Hasse Pais Brandão, Luiza Neto Jorge e Gastão Cruz. Pessoalmente, ao mesmo tempo que a leitura da poesia surrealista ia sendo impulsionadora de um acto de libertação em relação a própria escrita, fui fazendo amigos ligados ao Surrealismo, como o poeta Alexandre O’Neill e o pintor Vespeira, com quem aprendi a cortar amarras na criatividade e a voar em direcção ao futuro.

FM E essa experiência nada teve a ver com a Poesia 61?

MTH Pela minha parte teve a ver comigo mesma e com aquilo que então escrevia, mas já depois da Poesia 61. Poesia 61 que recordo com uma saudade feita ainda de grande entusiasmo. Lembro-me como se fosse hoje dos nossos encontros, das nossas conversas, da alegria e do entusiasmo que nos levaram a partilhar, a juntar os nossos poemas.

FM Retomo uma crítica da Ana Marques Gastão, quando ela se refere às Novas cartas portuguesas (1971), como sendo um livro “claramente feminista”, ao mesmo tempo em que distinto do restante de tua obra. Estás de acordo?

MTH Vamos por partes: concordo que Novas cartas portuguesas, depois de publicado, tornou-se (porque foi lido e entendido como tal, quer pelos leitores, quer até pela crítica internacional) uma obra claramente feminista, embora não fosse o feminismo que nos levou a escrevê-lo. Para ser totalmente honesta, em nenhum momento da escrita deNovas cartas portuguesas, o feminismo foi explicitado por nós, suas três autoras: a Maria Isabel Barreno, a Maria Velho da Costa e eu. Mas, já não concordo totalmente quando a Ana Marques Gastão afirma ser este meu livro distinto do resto da minha obra. Se um dia viéssemos a dizer que textos, cartas ou poemas deste livro, cada uma de nós escreveu (nunca o dizermos, foi uma das regras-pacto que presidiu à sua ideia), ver-se-ia, no que me diz respeito por exemplo, como eles são imprescindíveis, diria até, para a escrita do que vim a editar em seguida; posso citar Educação sentimental (poesia), e mesmo o romance A paixão sobre Constança H.

FM E como surge a escritura desta obra?

MTH Surge em reacção ao grande escândalo provocado pela publicação do meu livro de poesia Minha senhora de mim, apreendido pela PIDE (Polícia Internacional e Defesa do Estado) e indignando os inefáveis defensores da moral e dos bons costumes da época. E como o desejo de escrevermos um livro juntas já estava nos nossos planos, foi só acordarmos no que seria o centro catalisador dos escritos de cada uma, e que acabou por ser sóror Mariana Alcoforado, que por seu lado escreveu as tão célebres e belíssimasCartas portuguesas.

FM Mas, a qual necessidade atendeu então?

MTH A de trabalhar a escrita (literatura-beleza), enquanto forma de resistência (também no plano estético e da descoberta formal literária). Dando a ver o que de monstruoso se encontrava escondido sob a ideia de propaganda fascista, da sociedade portuguesa pobrezinha-mas-honesta (tipo uma casa portuguesa fica bem, pão e vinho sobre a mesa…). E, sobretudo, conseguir dar a ver aquilo que o “destino” sombrio das mulheres portuguesas ocultava de discriminação, violência e crueldade.

FM São incomunicáveis, em teu caso, os ambientes traçados pela poesia e a narrativa?

MTH Pelo contrário, na minha escrita a poesia e a ficção entrelaçam-se, entrançam-se, inter-agem; ou seja, cada uma delas vai colher a experiência da outra. Não faço o género do poeta que quando escreve prosa, esconde, rejeita mesmo, o seu lado poético.

FM Há algum outro ponto em comum, de afinidade, que estabeleças com a brasileira Clarice Lispector, além da coincidência parcial de títulos de um romance de ambas?

MTH Não há nenhuma coincidência no facto do título do meu romance A paixão segundo Constança H. ser praticamente igual ao da Clarice Lispector, A paixão segundo G. H. Para mim isso representou uma espécie de desafio, numa intenção clara de, ostensivamente, mostrar as diferenças e as semelhanças da angústia, da solidão das mulheres, embora oriundas de sociedades diferentes, que as repele, isola e as maltrata. Pretendi jogar com as semelhanças diversas da ficção de duas escritoras de língua portuguesa, diante da loucura feminina.

FM Agora que vamos terminar Teresa, achas que nos esquecemos de alguma coisa?

MTH Esquecemo-nos, certamente, de montes de coisas, Floriano, ou se preferires, muito ficou por dizer, apesar da nossa conversa ter sido longa. Prefiro perguntar a mim mesma se o essencial teria sido dito, e parece-me que sim. Mas, quem sabe…
[2007]

[Prefácio do livro Palavras secretas, de Maria Teresa Horta (1937). Organização de Floriano Martins para a Coleção Ponte Velha da Escrituras Editora. São Paulo, 2007.]

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