Meu encontro com Maria
Estela Guedes se deu em função das revistas que dirigimos, TriploV e Agulha Revista de Cultura,
revelando a partir de então um entranhável leque de afinidades que nos
permitiu, dentre outras atividades comuns, criar um dossiê dedicado ao
Surrealismo, instalado dentro do TriploV.
Meg, como desde então a chamo, pela simpática e sugestiva reunião das
iniciais de seu nome, é também uma consistente investigadora científica, área
em que se destacam seus estudos sobre Naturalismo, desenvolvidos a partir de
seu vínculo com o Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade
da Universidade de Lisboa. Uma parcela desses estudos se encontra reunida em
um volume intitulado Lápis
de carvão, publicado em 2005.
E não devemos esquecer
também seus ensaios sobre António Ramos Rosa, Ernesto de Sousa e Herberto
Helder, que podem ser encontrados na Agulha
Revista de Cultura. Contudo, a oportunidade aqui nos leva ao conhecimento
da poeta, através do encontro de três livros que somam recursos de linguagem
distintos, como o teatro e o relato de viagem.
Tríptico a solo aproxima esses ambientes distantes
apenas aparentemente, permitindo ao leitor observar como a autora os costura
de forma substanciosa, agregando-lhes uma acentuada visão crítica. E já o
veremos a partir deste prólogo (também ele pautado por esta nossa paixão pela
mistura, pelo amálgama), primeiramente através de depoimentos da própria
autora, seguidos de uma entrevista em que complementamos abordagens, não sem
deixar em aberto o tema para que o próprio leitor se enverede por suas
raízes, matrizes, abismos.
1. Ofício de trevas | No Oficio das trevas começa logo por me atrair a
designação dessa cerimónia católica: missa solene, nocturna. Há várias obras
com esse título, musicais e literárias. Julgo que é de Camilo José Cela um Ofício de trevas. Essa peça
relaciona-se com uma época da minha vida, de crise total, devido sobretudo a
um conflito muito sério com o discurso da ciência. Uma ciência que mente,
arrogante, que se julga detentora da Verdade, e que por isso se
auto-sacraliza. Eu parodio essa sacralização na cena da ladainha constituída
por alguns dos muitos nomes científicos que teve, desde finais do século
XVIII, a tartaruga-lira, uma espécie descrita por um famoso lente da
Universidade de Coimbra, Domingos Vandelli. Mas a peça não reflecte só esse
conflito com a ciência; reflecte também o que me levou à mesquita, onde
aprendi os rudimentos do islamismo. Se eu não vivesse num país europeu, seria
muçulmana. As religiões actuam como a ciência, dominando e cegando com os
seus paradigmas. Mesmo sabendo disso, sabendo que as religiões têm a mesma
Verdade da ciência, nós não conseguimos viver sem religião, porque é no seu
seio que encontramos um alimento indispensável à vida mental: o ofício da luz
ou das trevas, a alta cerimónia, o rito, o sacral. Eu seria muçulmana porque
o islamismo é nu, directo, simples como um raio de luz. O catolicismo tem
excessiva carga idolátrica e icónica para o meu ascetismo. Mas como vivo num
país católico, não tenho outra fonte de cerimonial. Na peça, a personagem
feminina, Lucy – Lucy in the
sky with diamonds – Lucy de
Lúcifer, o anjo da rebelião, essa Lucy assume o seu próprio sacerdócio porque
não acredita no alheio: nem no sacerdócio científico nem no religioso. O rito
que ela lidera é poético: ela acredita na Poesia como interlocução divina,
acredita na Palavra como portadora de Verdade.
2. Lilith | Lilith é outra Lucy, o meu demónio, a
querer tirar uma dor do peito que durava havia dois anos. Aqui para nós,
Lucy, Lilith e outros diabos eram o meu hipertireoidismo, antes de
controlado. Aquilo altera o comportamento e dá crises de cólera, um horror.
Eu não fazia ideia de que era tão diabólica assim, apenas a minha tireóide
estava a descarregar tóxicos para o sangue. Bom, certa vez comecei a rabiscar
quando iniciei uma das minhas habituais viagens de Lisboa para Britiande. Ia-me
surgindo uma ideia, uma história, um comentário, a propósito das terras por
onde passava. Daí que quase todos os textos tenham um topónimo por título.
Fui de Lisboa ao Porto de autocarro. No Porto, em Campanhã, numa grande e
antiga estação ferroviária, apanhei o comboio da linha do Douro, mas resolvi
ficar na Régua dois ou três dias, porque sou desta zona mas nunca tinha
dormido com o Douro, e eu queria dormir com o Douro, assim como quem quer
dormir com um homem muito desejado. Ali apanhei uma tempestade de verão, na
varanda do hotel, uma chuvada, raios e trovões, parecia que estava nos
trópicos. Foi muito inspirador. Não me sentia melhor: a cólera não se ia
embora, a dor no peito continuava, se calhar era coração, porque o
hipertireoidismo provoca arritmia e outros problemas cardíacos. Mas eu estava
convencida de que o mundo todo se tinha virado contra mim, por isso estava a
sofrer fisicamente, pensando que o sofrimento era apenas afectivo. Mas a
escrita aliviava-me ou dava-me essa ilusão. A partir da Régua escrevi A tempestade, um pouco a duas
mãos com o Oscar Portela, o poeta argentino, que anda e andava com uma
depressão terrível. Dizia ele que a tempestade nem era a de Shakespeare nem
outra: a verdadeira tempestade, a dele, e a minha, pensava eu, era interior.
E realmente... Como só mais tarde comecei o tratamento, nessa altura A tempestade saiu sem nenhuma referência
glandular. A propósito de referências, as referências preocuparam-me durante
a escrita de Lilith até A tempestade. A partir daí,
esqueci-me do problema, que é o de termos pontos de contacto que nos permitam
a conversação. Eu escrevi para pessoas como a minha mãe, que não tem estudos
quase nenhuns; por isso não há interlocução entre nós, as referências são
distintas: eu tenho poucas referências no quotidiano e muitas na arte, tenho
poucas referências musicais, por exemplo; então é difícil encontrarmos
interlocutor intelectual quando os modos de vida e os pontos de vista são
muito diversos. Escrevi para gente como a minha mãe, pensando: as pessoas que
conhecem a Régua, Pala, Campanhã, que cultivam vinhas, têm adegas etc., vão
aderir. Dou-lhes referências do quotidiano, elas aderem porque conhecem
aquilo de que estou a falar. O esforço de falar para esse público hipotético
fez com que o poema deslizasse muitas vezes para a prosa. Florzinha, tudo
isto depende da região, não é? Tu se calhar não tens essas referências no teu
quotidiano, por isso o meu discurso, se é acessível a um lamecense, já deve
ser muito abstracto para um cearense. O que nos salva é outro tipo de
referências: os afectos que andam pelo meio das linhas, coisas pouco claras a
que chamamos “poesia”. A poesia é para nós uma rede de referências universal,
uma linguagem acima do léxico e acima das línguas.
3. A Boba | Um dos nossos grandes mitos é o dos
amores entre Inês de Castro e o rei D. Pedro I, o Cru, ou Justiceiro. A Boba não desmitifica, como aliás
refere Eugénia Vasques no prefácio da peça. A ideia não é desmistificar, e
sim pôr o mito a nu, deixar claro que aquela história de amor só pode ser
mito e mais coisa nenhuma. Então, A
Boba desmistifica, tira a
máscara radiosa às figuras, mostra a História. E a História, seja a de Fernão
Lopes seja a de uma ficcionista como Agustina Bessa-Luís, diz que a História
é uma ficção. A Boba é o terceiro demónio, um joker em baralho de cartas. Ela
declara-se o Mal em persona: foi ela, Miguéis, quem tramou toda a tragédia...
Mas realmente ela não é culpada da morte de Inês de Castro, sim de se atrever
a dizer o que terá sido coroado, meia dúzia de anos após o enterro da Reine morte. Aliás, todos os
detalhes históricos que ela refere são endiabrados.
AO DIÁLOGO
FM Comecemos tratando
diretamente do encontro dos três livros aqui reunidos, no que diz respeito à
presença coincidente de seus protagonistas femininos: Lucy, Lilith e a Boba.
De que maneira estas mulheres se entrelaçam, pensando nas conexões [tuas]
possíveis entre vida e obra?
MEG Tu é que escolheste os
livros. Como já me vais conhecendo, escolheste segundo uma unidade mental, a
de o solo ser eu em três versões não muito diferentes. A Boba parece uma
figura medieval, porque conta a história dos seus amores com Inês de Castro.
Mas, pondo de lado a História, é claro que boba sou eu: faço disparates,
momices, digo coisas que dão vontade de rir, além de desempenhar o habitual
papel crítico concedido a essas personagens. As três são figuras fosfóricas,
buscadoras de luz mais do que transportadoras dela, e isso é visível
sobretudo no Ofício das
trevas, por contraste. Em suma, as três têm a paixão de um conhecimento a
que a verdade não seja alheia.
FM Em termos de
linguagem, temos um livro central na forma de poemas – que a rigor são
relatos de viagem – e duas peças de teatro, sendo a última um monólogo. Esta
relação entre poesia, teatro e relato é algo que buscas como definição de uma
poética ou o caminho a ser trilhado opta por uma linguagem a sobrepor-se as
demais?
MEG Se tivesses escolhido
ensaios e excluído o teatro, as linguagens seriam diferentes. Em todo o caso,
não vejo grande diferença entre as formas de expressão. O livro mais lírico
dos três, o mais profundamente poético, é a primeira peça de teatro, Ofício das trevas. A Boba é
muito directa, não se perde pelo caminho com lirismo nem retórica, ela tem um
discurso sintético, realmente próprio de teatro. E o livro a que chamas de
relatos, Diário, mais
próximo estaria de um Horário ou Minutário... Bem, os poemas deslizam muitas
vezes para a prosa ou inversamente: existe o relato, uma vontade de contar
que ora usa a prosa ora o verso, porque o importante para Lilith é ser ouvida
por pessoas de instrução inferior a dela. Então busca referências no
quotidiano para eu mais facilmente me encontrar com o leitor, já que os
interlocutores são as próprias personagens: no interior de cada texto não
faltam ouvintes, e mesmo a Miguéis tem muita gente à volta, que ela
interpela; o seu discurso é um falso monólogo: a Boba dirige-se sempre a
alguém: ao público, a Inês de Castro, a D. Pedro, a D. Afonso IV. As
personagens, as pessoas internas, ouvem e entendem.
O problema é chegarmos
ao coração dos leitores. Como dizer, em que registo, para sermos
compreendidos?
FM Este é um velho dilema
da criação artística. Inclusive muita arte de pouca expressão se guia por
esta deliberada preocupação com a maneira eficaz de ser compreendida. Nisto
quase sempre há, inclusive, uma subestimação do outro, do espectador; do
leitor, no caso da literatura. A arte deveria ser mais um estímulo à certa
avidez por novas experiências, novas formas de conhecimento. Não te parece?
MEG Sim, esse é um falso
problema, intelectual e artisticamente falando. A arte é um estímulo à avidez
por novas experiências, novas formas de conhecimento, sim; mas só entre nós
dois, só entre parceiros. Não existe tal relacionamento entre um poeta e o
engenheiro que vive na vivenda ao lado. Salvo alguma exceção bem-aventurada,
esse estímulo não funciona com os professores dos nossos filhos e ainda menos
com o homem do talho. Isso incomoda, parece que as classes sociais passaram a
classes intelectuais e que vivemos segundo a nossa em prateleiras diferentes.
Onde está o tempo em que o povão apupava e aplaudia o próprio Shakespeare,
representando as suas peças? Comendo, bebendo e gritando, em pleno
espetáculo? Incomoda, não é falso problema do ponto de vista emocional.
Interessa à nossa vontade de ser felizes que o outro nos acompanhe, nos
reconheça. Vejamos, Floriano, esse é um problema imenso e verdadeiro, tanto
mais doloroso quanto insuperável. Imagina uma sala de espetáculo em que um
poeta diz versos para uma platéia vazia... Imagina os nossos livros, em
Portugal, a não serem vendidos, o comércio livreiro a ruir, as bancas dos shoppings a serem inundadas por essa
literatura descartável vinda sobretudo dos EUA... Tudo isto é uma punhalada
no coração de Lilith, a pobre diaba, que sofre verdadeiramente, e sobretudo
por não ter remédio para a situação.
FM Porém, há que estimar
quais os obstáculos decorrentes de certa debilidade estética daqueles que são
impostos por uma visão deformadora do próprio mercado de livros. Claro que ao
autor interessa que o leitor se reconheça nele e que o acompanhe. Contudo,
quem em Portugal mais contribui para o afastamento do leitor em relação ao
livro: autores, críticos, imprensa, editores... Quem?
MEG Todos nós contribuímos
para o descalabro, mas poria em primeiro lugar a instrução pública. De raiz,
algo corre mal nas escolas, as pessoas crescem sem interesse pelos livros,
dirigidas apenas para a futura carreira e tendem a confundir com cultura os
passatempos de televisão. Ignoram que a cultura está na base da civilização;
da arte esperam a representação própria do classicismo, esgotada no século
XIX; pensam que “cultura não enche barriga” e decretam que “a cultura não dá
votos”. Ora, sem Camões, sem Fernando Pessoa, sem Amália Rodrigues, sem Chico
Buarque, sem Clarice Lispector etc., os professores não teriam nada que
ensinar, por isso não haveria professores, a imensa indústria musical não
daria emprego a tanta gente e, por aí adiante, teríamos um mundo mil vezes
mais esfaimado do que já é. Nessa situação, o problema eleitoral ficava
resolvido, por falta de entidade a quem dar votos...
FM Há um nítido cenário
paródico em Ofício de trevas que põe em conflito as relações
entre ciência e religião. Dizes que “não conseguimos viver sem religião,
porque é no seu seio que encontramos um alimento indispensável à vida mental:
o ofício da luz ou das trevas, a alta cerimônia, o rito, o sacral”. Contudo,
também o homem consegue viver sem ciência e hoje como que se encontra mais
refém desta do que da outra, e sob certo aspecto por um mesmo efeito
religioso – no caso o da sacralização da tecnologia, por exemplo. Como a
Poesia opera entre esses dois mundos, no sentido de recuperar a essência
humana?
MEG O cenário em que se
parodia a ciência é o da ladainha dos nomes científicos da tartaruga-lira, Dermochelys coriacea (Vandelli, 1761). Era fatal: de
um lado os textos científicos estão escritos em latim, de outro o catolicismo
permite a paródia, as missas do burro. Nota, entretanto, que da minha paródia
está ausente o zurrar do burro! A ladainha é declamada, cantada em gregoriano
e em canto corânico, com uns pormenores militares pelo meio, mas nada de
deselegante. O cerimonial é tão solene como o da missa normal, e isso é
possível por causa do latim. O grande cerimonial deriva do mistério, do
terror ligado ao sagrado que vem do desconhecido. Esse clima existia na missa
antiga, dita em latim, porque as pessoas falavam essa língua alienígena, sem
a entenderem. Do mesmo modo, quem entende o que seja uma sinonímia de
espécie? Uma lista de nomes de plantas em latim é um texto misterioso para os
leigos, algo de ar terrífico. O comum dos mortais imagina que os cientistas
já classificaram todas as espécies da Terra, e que essa classificação é
imutável. Não faz ideia de que existem centenas de diferentes espécies só
entre os coleópteros. Ri-se quando verifica que os coleópteros (escaravelhos)
são objeto de estudo científico, como se a ciência só se ocupasse de cavalos
de corrida e de cães de caça, por serem animais grandes e belos. O comum dos
mortais não faz idéia de que a Zoologia se ocupa de mosquitos, formigas
e toupeiras, e não estuda galgos nem cavalos, porque esses animais não são
fruto de seleção natural! Quem estuda galgos e cavalos são os veterinários,
as ciências aplicadas, aquelas que justamente criam novas variedades de
tartarugas, de cães e de ovelhas.
O comum dos mortais
não sabe que dada espécie, no caso a tartaruga-lira, tem uma sinonímia, isto
é, um cartão de identidade em que a ciência registou não um nome, sim os
muitos nomes científicos que já teve, até certa data. A sinonímia da Dermochelys coriacea, uma
espécie gigante, conhecida da ciência desde pelo menos 1761, é tão extensa, e
são tão irônicos certos nomes, como o de porcata,
que só entendo o incidente como autoparódico.
É a própria ciência
que ri de si mesma, e então eu apenas torno evidente esse riso. Em rigor, a
paródia não é minha. Mas não é por a ciência estar sempre a mudar os nomes
das espécies que eu me incomodo! Essa mudança de nomes é espelho do que para
mim é mudança da espécie, mutação! Ora as espécies só mutam de forma tão
óbvia que seja preciso mudar-lhes a identificação se existir seleção humana,
se estivermos a lidar com os resultados da intervenção da técnica de pecuária
ou de piscicultura e não com a ciência fundamental. Nesse caso, não podemos
falar de espécies, sim de híbridos, variedades, criaturas como os caniches,
que já só falta nascerem de laçarotes na cabeça!
Para te responder mais
diretamente: no Ofício das
trevas, a ciência diz a sua missinha como qualquer padre, donde não
aparece grande diferença nos métodos nem nos objetivos de ciência e religião.
O que pode a Poesia fazer, perguntas tu? Pois, a Poesia mente menos, para já.
A Poesia é mais autêntica, porque esses discursos auto-sacralizadores usados
por religiões e ciência mais não são afinal do que a Poesia. O cerimonial e a
sacralidade vêm da Poesia e não de Deus, certo? A Poesia é a mãe destas
modalidades bastardas de ser e estar na Palavra. Por fim, a poesia mostra,
ela tem Luz própria, é ela a Estrela. Tudo o mais são planetóides...
FM Retornemos às origens,
aos primeiros impulsos que te conduziram à Poesia, identificações, buscas,
enfim, por onde e em quais circunstâncias começas a escrever.
MEG Rasguei há pouco uma
série de textos da minha adolescência. A Lilith fala disso, espantada, porque
num deles referia a Nadja...
Desde o Liceu que escrevo versos, a poesia coincidia em mim com os grandes
conflitos amorosos. Como se a paixão tivesse uma língua natural, o poema.
Usei por isso os poemas como instrumentos de sedução. Sim, é possível
que haja inéditos meus na gaveta ou na mente de alguns dos meus amados... Só
comecei a olhar para o que escrevia com interesse editorial depois de os
jornais terem começado a publicar crônicas e ensaios. E depois de grandes
revelações poéticas, que podem não estar expressas em verso, como Octavio
Paz, Herberto Helder, Umberto Eco, Rabelais... O excesso, os excessivos, os
que transgridem as normas, como Luiz Pacheco, esses sempre me deslumbraram,
porque, além de outro valor, têm o da coragem. São os meus heróis, os meus
Batman... Mas olha, eu não cultivo muito a poesia, ela está em mim demasiado
ligada à depressão. É preciso estar na fossa, de coração partido por algum
amor impossível, para ela aparecer cá por casa, toda pintada, de saltos altos
e vestido berrante, a exigir o meu lugar diante do computador para se entregar
aos seus versos. Ou então de comportamento alterado com as substâncias
tóxicas lançadas no sangue pela tireóide, que foi o que aconteceu no Diário de Lilith, mas eu não
sabia. Deixa-te estar sentado, não há problema... Já fui ao médico, os
demônios estão a ser controlados...
FM E a paixão pelo
teatro, resulta de quais conflitos? Tens encenado os textos escritos ou
pretende fazê-lo? Esta seria tua linguagem preferida ou acaso radica no
ensaio uma maior afinidade expressiva?
MEG Em princípio, eu
escrevo em qualquer género, mas sou mais solicitada para o serviço público, o
ensaio. De qualquer modo, as duas peças do livro também resultam da vontade
de satisfazer pedidos. O Ofício
das trevas fez parte dos
projectos de investigação do CICTSUL, Centro Interdisciplinar da Universidade
de Lisboa, de que sou membro. A
Boba resulta de um desafio
da Eugénia Vasques, crítica e instigadora de teatro.
Investigadora, devia
ter escrito... O teatro dá-me imenso prazer, tenciono prosseguir a linhagem
da Boba com mais uns mitos, em especial o de D. Sebastião. Dá-me prazer
porque é um género altamente controlável, em que consigo ter todos os
pormenores na cabeça. Não gosto de livros grandes, que não possa abarcar em
menos de umas três horas de leitura. Livros grandes, se têm uma arquitectura,
são difíceis de construir. Uma criadora perde-se neles, mata uma personagem,
esquece-se de que a matou, e depois lá aparece ela a atravessar a rua toda
vivaça... A mim nunca tal aconteceu, mas acontece a outros. Uma vez ouvi
Agustina Bessa-Luís a desculpar-se desses lapsos, dizendo que um romance é
como a vida, na vida também nos esquecemos. Pois esquecemos, concordo com
ela, mas na vida os mortos não andam a fazer compras na Baixa... Gostava
muito que as minhas peças fossem à cena, mas por enquanto só foi montado um
espectáculo, O Lagarto do
Âmbar, na Fundação Calouste Gulbenkian. Pode ser que os brasileiros leiam
o livro, se entusiasmem e encenem as peças. Nós, por cá, estamos de
algibeiras vazias, numa crise sem paralelo! Afinal, em muito do que eu
escrevo há marcas do Brasil. Tenho estudado os Naturalistas, por isso, em
ensaio, há bastante matéria publicada, nas circunvizinhanças das
Inconfidências: Mineira e Baiana. Ensaios sobre João da Silva Feijó e Álvares
Maciel.
Este foi o ideólogo e
iniciador maçónico do Tiradentes, era o naturalista que devia proceder ao
armamento da revolução. No Ofício
das trevas notam-se uns
vestígios brasileiros dessa investigação sobre a História Natural.
FM Em um ensaio teu,
lemos a seguinte passagem: “Pôr portas no campo é o mérito maior dos
movimentos da modernidade, e não só dos surrealistas: não se trata tanto de
subjugar à sua liderança teórica e modelos poéticos a capacidade de criação
alheia, mas de fornecer o campo e o húmus necessário ao florescimento do que
nunca poderia ser -ista em sentido estrito, dada também a rebeldia inerente a
cada artista, a sua necessidade de seguir caminho pessoal. O Surrealismo é
ainda hoje uma porta de entrada e de saída, uma casa de família a qual o
filho pródigo ainda pode retornar”. Como situar em Portugal, nominalmente,
esta porta de dupla função, naturalmente considerando suas variações e
atualidade?
MEG Eu nunca poderia ser
como sou se autores como Octavio Paz me não tivessem posto portas no campo.
Portas manuelinas na selva amazônica, entenda-se. E dito: salta, não tenhas
medo da extravagância, é assim que te libertas e exprimes a tua própria
singularidade. O Surrealismo tornou essas portas um movimento, instituiu a liberdade
de expressão poética. Aquilo que em Rabelais é excepcional, individual, com o
Surrealismo tornou-se coletivo. Nesse momento eu não consigo situar nada em
Portugal, não creio que exista nenhum chapéu que recubra várias cabeças ao
qual se possa dar um nome terminado em -ista. Para já, os intelectuais
portugueses são snobs,
odeiam pertencer a grupos em que estejam A, X, e Z, odeiam Z porque se sentem
plagiados por ele, não se apercebem de que já Carlos de Oliveira, no seu
tempo, fez o que eles agora nem sabem que repetem etc., por isso mais
facilmente se organizam em capelinhas do que em movimentos estéticos. Eu
sinto alguma necessidade de pertença, por isso pertenço, sou membro de
centros e de instituições.
Agrada-me estar no
meio de vós, não me incomoda a pertença surrealista, pelo contrário. Mas
aqui, em Portugal, para a maior parte dos intelectuais, o Surrealismo é algo
que pertence ao passado. Nesta casa ou em qualquer outra, eu não suporto
coleiras de idéias pré-fabricadas, por muito que pertença. Mas penso que um
dos equívocos sobre o Surrealismo é esse, e é dele que falo na frase que
citaste: o Surrealismo não exige seguidismo, submissão. Seria inconcebível
esperar que um Buñuel seguisse caninamente as pisadas de um Salvador Dali,
por muito que ambos tenham criado Un
chien andalou. Não existem dogmas em arte. O Surrealismo não pode
confundir-se com uma ideologia. Basta o seu estímulo à liberdade para
garantir que não ata, não agrilhoa escolasticamente, e que a qualquer momento
pode incitar à mudança. Por esse fluxo, podem filhos pródigos voltar a casa,
podem aí berçários mostrar ao mundo que do movimento surgem revolutivos
nascituros...
FM Estou de acordo e ao
mesmo tempo lamento que o Surrealismo se mostre hoje em diversos países mais
com um perfil deste “seguidismo” que apontas do que propriamente com um
sentido de liberdade que sempre o caracterizou. Dentro e fora de Portugal, é
possível identificar obra surrealista com a qual dialogas mais intensamente,
que possa ser referência na definição de uma poética tua?
MEG Talvez tu possas
dizer, eu não. Os autores surrealistas que mais me marcaram não se
considerariam surrealistas. Um deles é o rival de Cesariny, editor de
Cesariny, o surrealista-abjeccionista Luiz Pacheco. É claro que tenho pontos
em comum com Herberto Helder, que a semelhança afectiva me aproximou da obra
dele, que pode até dar-se o caso de saber de cor frases dele sem saber que as
sei de cor, e por isso reproduzi-las em textos meus. Noutros tempos isso
ter-me-ia incomodado, mas acima desses nomes situa-se um outro, com o qual
não devo ter grandes afinidades estéticas, mas que considero um Mestre:
Ernesto de Sousa. O Ernesto citava como se os textos fossem dele – “Quando eu
nasci, todas as frases que haviam de salvar a Humanidade já estavam escritas,
só faltava uma coisa: salvar a Humanidade!” –, o Ernesto dizia coisas
inacreditáveis como esta, que justificam a apropriação do alheio como nosso:
“O teu corpo é o meu corpo é o teu corpo”. Não me perguntes a quem pertence a
tirada, se a Joseph Beuys se a Filliou: para mim, ela é puro Zé Ernesto.
Depois de ter tido aulas com um espírito verdadeiramente iluminado e de
vanguarda como o Ernesto de Sousa, podem todos os vira-latas latir-me às
canelas, que eu seguirei impávida o meu caminho. Tenho textos maus, às vezes
ouve-se neles o canto das aves, estranho era que assim não fosse.
FM Peço que comentes
sobre a trajetória do TriploV,
desde seu surgimento, não esquecendo de mencionar sua recepção, em Portugal,
junto à mídia impressa.
MEG A mídia brasileira,
como bem sabes, logo que o TriploV apareceu, fez-nos uma entrevista
no jornal O Escritor, da
UBE. Aqui, não. O que não quer dizer que o TriploV seja desconhecido. Não é, e
também fui entrevistada, mas pela imprensa regional, um jornal de Viseu. Todos
conhecem o TriploV, há
muitos sítios, alguns bem valiosos, como o Instituto Camões, com links para nós. Muitos artigos do
TriploV vão para outros espaços editoriais, virtuais e em suporte de papel,
caso dos meus, publicados num jornal da região do Porto, O Progresso de Gondomar. Eu
penso que as pessoas ainda não sabem o que significa figurarem no TriploV. A avaliar pelo pudor
em referirem sítios em bibliografias, em publicarem no ciberespaço e tal, eu
diria que muita gente pensa que “virtual” significa “inexistente”. Não contes
a ninguém, mas às vezes dá-me vontade de chutar aqueles que se aproveitam, e
depois não mencionam o que têm publicado no TriploV.
Bom, estamos ambos no TriploV,
ambos estamos na Agulha.
O TriploV tem seis anos. Passou de zero a
alguma audiência, e neste momento, deixa ver, vou consultar o último
relatório do Magno Urbano, que data de abril de 2007, portanto do mês
passado. Posição do TriploV no ranking mundial: 142.760º lugar. Isto em
trinta e tal bilhões de sites.
Entre os 7 milhões que existem em Portugal, vamos no 6.053o. Quanto ao
Brasil, figuramos entre os 7.000 mais visitados, num total de 143 milhões.
Acho fantástico este recorde, esta posição vanguardista no Brasil.
Porém há números mais
importantes. Mais importante é a carga transportada nos porões da cibernave:
vinte mil páginas, cinquenta mil imagens, um milhar de autores representados
com obra, desde a Idade Média até ao momento, várias nacionalidades num grupo
que se constituiu de forma mais ou menos espontânea, com duas colunas fortes
a segurá-lo: Portugal e Brasil. Na maior parte, são os autores que se
aproximam do TriploV, eu
já não preciso de pedir colaboração. Chegam sobretudo do exterior: são
estrangeiros e emigrantes portugueses. As pessoas não reparam na bandeira da
fachada e no que está escrito debaixo dela: pensam que o TriploV é um sítio brasileiro.
E pronto, isto também
é obra tua, a equipa inicial mantém-se: cooperação com a Agulha, onde estás tu e o
Cláudio Willer, e coordenação minha, do José Augusto Mourão (Lisboa) e Maria
Alzira Brum Lemos (São Paulo). Investi muito, agora colho os frutos. São
saborosos: no verão vou conhecer mais colaboradores do TriploV, no Peru e no Brasil.
Participarei em cursos e colóquios com eles. Tudo o que acontecer terá
registo no TriploV, para
as pessoas em todo o mundo irem lá dar quando fazem pesquisa no Google. E
finalmente: sem TriploV,
não te teria conhecido a ti e por isso este livro não teria nascido.
Agora já chega, recebe
um ciberbeijo e vai dormir, são horas de recolhermos a penates.
|
[2007]
[Prefácio do livro Tríptico a solo, de Maria
Estela Guedes (1947). Organização de Floriano Martins para a Coleção Ponte
Velha da Escrituras Editora. São Paulo, 2007.]
|
quinta-feira, 21 de agosto de 2014
MARIA ESTELA GUEDES | Nos regaços comovidos da linguagem
Marcadores:
Abraxas,
Entrevista,
Floriano Martins,
Maria Estela Guedes,
Poesia,
Portugal,
Surrealismo
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário