domingo, 10 de agosto de 2014

DANIEL ADJAFRE | Os dias contados do papagaio



FM De onde vem teu interesse pela teledramaturgia?

DA Começou pelo princípio: o teatro. Nunca me interessei muito por poesia e sempre tive dificuldade de escrever na forma épica (contos, romances, etc). Mas quando tentei a forma dramática — contando uma história essencialmente através de diálogos, algo bem coloquial — me senti mais seguro e as ideias começaram a fluir. A partir daí, segui estudando e experimentando outras áreas da dramaturgia, como cinema e televisão. Entrei definitivamente na tele-dramaturgia ao passar em um concurso da TV Globo, em 2000. O que há de sedutor na TV é a objetividade, o profissionalismo das pessoas envolvidas e a velocidade com que seu texto toma, efetivamente, a forma final. Ou seja, você escreve algo que já estará no ar dali a quinze dias, enquanto que no teatro e no cinema isso pode levar anos. E a TV ainda tem outra enorme vantagem: você é pago mensalmente, tem um salário, como qualquer outro profissional.

FM Tocas em um ponto crucial, porque o estado de espírito do criador sofre interferência direta de sua condição doméstica. No entanto, há biografias inúmeras que mostram uma resistência a toda prova a essas intempéries da realidade. Evidente que reclamas para o artista uma condição raramente alcançada, em especial quando há relação direta, de empatia produtiva, entre o ambiente estético e sua produção. É impossível uma oferta estética consistente, renovadora, sem salário, Daniel?

DA A teledramaturgia é um caso muito particular de criação estética. Quase tudo nesse universo é exceção, a começar pela apreciação — ou seria melhor dizermos consumo — da obra por parte do público. Todos sabem que um programa de TV tem sua audiência medida pelo IBOPE. E essa medição ocorre até em tempo real. Estamos falando, portanto, de um produto altamente comercial, feito para vender, e vender instantaneamente. Isso inviabiliza a existência de uma pretensão estética ou a liberdade de criação? Não necessariamente. Há momentos em que você tem total liberdade para propor coisas novas, para ousar, para subverter, e há momentos em que você tem que manter o bonde nos trilhos. Cria-se muito na TV, mas cria-se dentro de determinados limites. Televisão, assim como o cinema, também é uma indústria. E numa indústria é preciso compreender que você está dentro de uma engrenagem maior, que você pertence a uma coletividade. É preciso que o autor aceite estar em ambas as classificações: a de artista e de funcionário. Mas compreendo que alguns artistas não se sintam confortáveis diante dessas condições. Por outro lado, não podemos esquecer que atualmente a TV passa por um dos seus momentos mais prolíferos no mundo inteiro. Algumas séries americanas estão inovando mais do que a média da produção cinematográfica. Grandes nomes do cinema — diretores, atores, roteiristas — têm migrado para a TV a cabo. E o Brasil — bem como outros países latino-americanos — já começa a produzir séries de altíssima qualidade para a TV paga.

FM As minisséries sempre tiveram textos — a produção em geral — de alta qualidade, quase sempre adaptações de romances brasileiros ou roteiros biográficos. E sempre superou o cinema, o que não requer tanto esforço. Mas retomemos o teu ambiente de criação, em que se destaca um particular interesse pela comédia. O riso aproxima mais o homem do limite de suas experiências do que a dor? Neste sentido, a comédia ajuda o homem a compreender a si mesmo melhor do que a tragédia?

DA O riso e a dor se completam, mas não se misturam. Henri Bergson fala que o cômico se dirige à inteligência pura, e que o maior inimigo do riso é a emoção. A tragédia nos permite experimentar um processo catártico onde são reveladas nossas emoções, nossos medos, nossas dores. A comédia, por sua vez, revela as dores do homem no contexto social. Ela cumpre, historicamente, a função de criticar nosso comportamento em sociedade, apontando nossas fraquezas, hipocrisias e covardias. Rindo de determinado personagem — numa peça, filme ou novela — estamos admitindo uma identificação e reconhecendo o que temos de grotesco.

FM Como lidas com a construção de uma identidade em teus personagens? Entendo que não se pode erguer um personagem sem dar-lhe uma personalidade legítima. Marcel Schwob recorda que “mesmo os loucos têm uma alta ideia da personalidade”. O que pensas a este respeito?

DA Alguns roteiristas defendem a ideia de que todos os personagens “vivem” dentro do próprio autor, de alguma forma são baseados nele próprio. É uma discussão sem fim, mas gosto desse conceito. Escrevemos sobre o que conhecemos e quanto mais nos conhecemos, mais rica poderá ser essa criação. E mais temerosa também. Além disso, cada personagem possui uma backstory, sua história pregressa. O personagem, certamente, conhece sua própria backstory. O público, geralmente não. E seria inviável ter que apresentar toda essa quantidade de informação em uma peça ou um filme. Mas o autor precisa conhecer a backstory do seu personagem. Só assim ele poderá definir, com segurança, sua identidade. Afinal, personagens distintos podem ter perfis coincidentes, mas a backstory de cada um é única.

FM Da identidade ao tema. Ionesco surpreende ao dizer que “toda composição é consciente”, justamente um criador que avança em território avivado pelo Surrealismo e nos apresenta seu teatro do Absurdo. Mas o que nos diz em seguida a esta frase é valioso: “É próprio da obra de arte tornar consciente o inconsciente. Quero dizer, traduzir a linguagem do consciente profundo em linguagem diurna.” Compreendida assim a criação, como os personagens coincidem em torno de um tema que defina a obra?

DA Todo bom personagem nasce a partir de uma necessidade da história. Dessa forma, eles nascem com sua função dramática já bem definida. Mas também há histórias que nascem a partir de um personagem. De um jeito ou de outro, os personagens já estão intrinsecamente vinculados ao tema. Qualquer coisa fora disso seria supérfluo, ou seja, seria um personagem desnecessário à obra. Na dramaturgia em especial, o personagem nunca “nasce” exclusivamente pela cabeça do autor, mas numa criação conjunta com seu intérprete e diretor. Essas contribuições são inevitáveis. O próprio processo de leitura e ensaios faz com que o personagem — bem como a obra como um todo — seja reavaliado, aprofundado. Ao fim desse processo, o personagem deixa de ser do autor e passa a pertencer à obra. E então tudo faz sentido.

FM Logo no início te referiste ao imediatismo da entrega do objeto criado ao publico e em seguida tocas na capacidade de reconhecimento do público em relação ao mesmo objeto que lhe é entregue — não importa que estejamos tratando de uma imagem pictórica, um personagem ou uma canção. Tens alguma idealização de público, ao ponto de interferir no que crias?

DA Acho que faz parte do amadurecimento do artista aprender a reconhecer seu público. David Bowie diz que fãs sempre esperam que o artista siga uma determinada linha evolutiva, que seja coerente com sua obra, que seja fiel à sua própria estética. E logo em seguida dispara: “pois bem, eu não faço nada disso”. E mesmo assim é um artista que tem uma legião de admiradores, um público fiel. Mas a própria negação dessa coerência gera uma meta-coerência, não? E seu esforço para não atender a essa expectativa provoca, claro, uma interferência em sua criação. É inevitável. No caso da teledramaturgia, essa expectativa é diária. E, na TV aberta, praticamente não há segmentação. O público que assiste a novela também assiste o humorístico ou a série que virá a seguir. Você não encontra um público específico, é o público que te encontra. Na TV a cabo a história é diferente, você tem que mirar num determinado tipo de expectador. Aí você pode ser tão ousado quanto quiser. Cabe aos produtores correrem o risco de colocar ou não o programa no ar. Programas como Lost, Mad Men, In Treatment ou The Office foram consideravelmente ousados e conseguiram angariar um público fidelíssimo, são considerados de grande sucesso.

FM Eu destacaria aqui outras séries para TV cujos roteiros me parecem admiráveis, tais como CSI (a versão original e não seus desdobramentos), Person of Interest, Alcatraz e Fringe — e que, no entanto, talvez exceto pela primeira, não são propriamente “grandes sucessos”. O acerto, no tocante à identificação do público, seria então da ordem do acidente?

DA Os americanos possuem uma excelência em roteiro. Todas essas séries são primorosamente escritas. CSI segue uma linha onde eles são mestres — o roteiro policial. Não podemos esquecer de NYPD Blue — Nova York Contra o Crime, uma série que acrescentou muito ao gênero ao romper o paradigma do policial herói e bom moço. Mas citei as séries acima pela questão da originalidade e ousadia. The Office subverte a linguagem tradicional quando permite que os personagens falem diretamente para a câmera, simulando um documentário (era esse o conceito inicial). Mad Men e In Treatment optam por um ritmo hiper realista, lento, indo na contramão das frenéticas histórias de ficção atuais. Seinfeld foi outra aposta alta, quando o autor insistiu que o programa seria uma série sobre o nada. Uma curiosidade: nos Estados Unidos, os roteiristas geralmente são os produtores — ou seja, os donos — de suas séries. Isso faz bastante diferença.

FM Teus estudos sobre Silveira Sampaio e Nelson Rodrigues encontram tais autores quais detalhes que possa ser referidos como afins e influentes em tua criação?

DA Meu interesse em Silveira Sampaio surgiu quando procurava um objeto de estudo para minha monografia de mestrado. Deparei então com uma crítica de Décio de Almeida Prado em que dizia que Silveira Sampaio estava para a comédia brasileira assim como Nelson Rodrigues estava para o drama. Achei muito instigante a comparação, uma vez que Silveira Sampaio, infelizmente, é muito pouco conhecido. Os dois foram contemporâneos e tinham vários temas em comum, como distúrbios familiares, hipocrisias sociais, desejos reprimidos, etc. Só que enquanto Nelson seguia numa abordagem dramática, Silveira Sampaio optava pelo cômico. Mas ambos contribuindo decisivamente para o surgimento do moderno teatro brasileiro. Minha identificação com o autor de Da necessidade de ser polígamo foi imediata, uma vez que seu texto era uma feliz exceção no meio das ingênuas e exauridas comédias da época. Finalmente o cômico era tratado de forma séria.

FM Destacarias aqui outros autores na dramaturgia brasileira que foram deixados para trás?

DA Acho que Jorge Andrade é um exemplo — também contemporâneo de Nelson e Silveira Sampaio. Mas não acho que tenha sido uma época de inúmeros autores injustiçados. Os inovadores foram realmente poucos. No mais, era o feijão com arroz. Talvez por isso não tenha se constituído no Brasil uma representativa geração de dramaturgos modernos. E não podemos esquecer que o nosso teatro não esteve presente na semana de 1922.

FM Um grande visionário que sei admiramos os dois, Federico Fellini, certa vez observou que a censura por vezes não priva exatamente o público de contato com uma obra, mas sim com a forma como a noção que temos de dignidade nos permitiria um encontro livre entre ambos. Ele se referia à ação da censura em um âmbito mais “confessional, eclesiástico, obscurantista”. Atualizando o assunto, o mercado desempenharia hoje a função de censor mais do que a mecânica gasta dos valores ideológicos. Queres comentar isto?

DA Todos nós sabemos que o mundo entrou na era do politicamente correto. E se alguém começa a impor o que é correto ou o que é errado, isso se torna uma censura. Mesmo que esse “alguém” seja o público. Não sei explicar, mas é fato que inúmeros programas de TV feitos nas décadas de setenta e oitenta, jamais poderiam ser veiculados hoje em dia. Haveria uma forte rejeição. Talvez as pessoas simplesmente queiram parecer melhores do que realmente são. Há muita hipocrisia em torno desses conceitos. Na televisão acabamos por nos policiar bastante. Não há muito o que fazer, creio. Talvez só nos reste sentar e aguardar que essa fase passe. O humor tem sofrido um baque maior. Ainda podemos fazer piadas com portugueses e cornos. Mas o papagaio está com seus dias contados.

FM Eu queria aqui recordar o Chico Anysio, seja pela expressão inconfundível de sua obra, seja pelo fato de que nos últimos anos foste um dos redatores de seus programas. Certa vez eu observei que Chico City era o equivalente brasileiro da Macondo colombiana do Gabriel García Márquez em seu Cem anos de solidão. Seus personagens não são marcados pelos bordões e sim pelos nomes. Não é o vapt-vupt que nos leva ao Professor Raimundo e sim o contrário. Chico deu consistência tal a eles que são recordados com identificações próprias, como se fossem frutos de uma árvore mitológica. Chico tratou de morrer a poucos dias do Millor Fernandes. Extraído o lado trágico da perda coincidente dos dois maiores humoristas do país, em estéticas que poderíamos dizer complementares e anos-luz à frente de seus pares, como uma tradição pode se alimentar de recusas a visitar a obra de seus nomes mais expressivos?

DA Chico foi, sem dúvida, um gênio. Mas dada a velocidade com que tudo acontece na TV, é muito difícil falar no estabelecimento de uma tradição. Não é como no cinema em que filmes se tornam clássicos, ou no teatro onde é possível fazer remontagens de textos. Na TV os programas se tornam simplesmente velhos. Não há passado e nem futuro, há apenas o presente. Uma das grandes sacadas do Chico Anysio foi manter-se sempre criando. Ele vivia no gerúndio. Por isso que chegou a mais de duzentos personagens. Alguns deles viraram sucesso, outros morreram, porém o mais importante é que sempre estavam nascendo novos. Era sua fonte da juventude. Sua tradição era recomeçar sempre.

FM Na televisão assinaste roteiros de séries como Casos e acasos (2008) e SOS Emergência (2010), ambos em parceria com Marcius Melhem. Como são os bastidores desse trabalho?

DA O processo é exaustivo e precisa ser rápido. Não existe tempo para esperar “a ideia vir”. É fundamental ter uma boa equipe de colaboradores. Ideias para oito ou nove episódios você até consegue ter sozinho, mas para vinte, trinta, quarenta… aí precisa de um parceiro e um time trabalhando muito bem afinado. Para as ideias surgirem é preciso trocar muita bola. Não dá pra se isolar do mundo para criar, pelo contrário, você precisa do mundo, precisa das pessoas, das brigas familiares, das dores de cotovelo, das frustrações, dos sucessos e fracassos pessoais. É desse caos que nascem as histórias. O Casos e Acasos era o mais difícil de escrever, porque necessitava de três histórias distintas — a serem contadas em meia hora — e que deveriam se cruzar em algum momento. Tenho muito orgulho de ambos os trabalhos.

FM Das séries que são peças de humor partes para o drama, no caso da mais recente colaboração como roteirista, desta vez de A vida da gente (2011), de Lícia Manzo, novela que ganhou o Prêmio Contigo! como melhor roteiro do ano. À primeira vista imagino que aumente consideravelmente a jornada de trabalho, mas quais outros aspectos são relevantes e de que modo te adaptas a essa nova experiência?

DA Escrever uma novela é um trabalho sobre-humano. No caso da novela das seis, são seis capítulos de 22 páginas por semana. Claro que, uma vez que se começa a escrever com alguma antecedência, é possível distribuir melhor esse trabalho. Mas considerando que são aproximadamente 140 capítulo, uma hora você se esgota — fisicamente e mentalmente. Não é uma corrida de cem metros, é uma maratona. Mas foi um trabalho em que aprendi muito e que tive a sorte de trabalhar com uma autora que primava pelo texto. Apesar do volume da obra como um todo, cada capítulo era trabalhado minuciosamente. Sempre. E mesmo sendo uma novela mais introspectiva — sem mistérios, assassinatos ou grandes reviravoltas — foi muito bem aceita pelo público em geral.

FM Dentro do que fazes, Daniel, do que vens realizando como criador, te sentes tocado por alguma responsabilidade?

DA Nas novelas, por mais que queiramos negar, existe sim certa responsabilidade social. É algo muito particular deste produto, mas é um fato. A relação do público com esse tipo de dramaturgia é muito estranha. As pessoas vivem experiências catárticas ao mesmo tempo em que se deparam com lições de moral, dicas culturais, auto-ajuda e até propagandas de xampu. Muitas vezes a novela será o primeiro e único contato que aquelas pessoas terão com uma obra de ficção em suas vidas. Como um autor poderia não sentir uma grande responsabilidade por isso? Agora, existe a responsabilidade do autor consigo mesmo, com sua própria ambição artística. Nesse caso, as séries, minisséries e telefilmes são mais apropriados para suprirem essa necessidade pessoal. Já no âmbito da comédia, a minha responsabilidade é, basicamente, fazer o público rir, se divertir — mas tentando elevar ao máximo, dentro daqueles limites de que já falei, o nível das piadas. E isso é dificílimo.

FM Esquecemos algo?

DA Já que falamos aqui do autor não apenas como um artista independente mas também como um empregado de uma empresa, acho importante destacar o papel dos cursos de formação artística. Temos o péssimo hábito de achar que o artista sempre nasce pronto, que o talento é binário: ou é zero ou é um. Existe, claro, esse tipo de artista — o que nasceu com o dom, o talento nato — assim como existe a pessoa absolutamente desprovida de talento para aquela atividade. Mas entre esses dois extremos existem as pessoas que têm uma considerável inclinação artística e que poderiam se desenvolver através de escolas de formação. No Brasil isso é altamente precário. Temos pouquíssimas escolas com alguma tradição e não parece haver nenhum interesse do governo em investir em cultura. Os Estados Unidos não são a potência que são em cinema simplesmente porque roteiristas e diretores já nasceram talentosos. Eles possuem centenas que cursos de alto nível nessa área. Assim como em artes plásticas, música, literatura, etc. Talvez ainda sejamos influenciados por crenças do tipo “uma ideia na cabeça e uma câmera na mão”. Isso até pode ter tido algum sentido quando inserido em um movimento estético, numa determinada época. Mas não pode ser um dogma eterno. Já deveríamos ter superado esse tipo de pensamento tacanha. Caso contrário, só conseguiremos desenvolver a nossa própria prepotência.

[2012]

[Entrevista com Daniel Adjafre (Brasil, 1970), publicada em Invenção do Brasil. São Paulo: Editora Descaminhos, 2013. http://www.amazon.com/Inven%C3%A7%C3%A3o-Brasil-entrevistas-Portuguese-Edition-ebook/dp/B00FTBMR24]

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