FM De onde vem teu interesse pela
teledramaturgia?
DA Começou pelo princípio: o teatro. Nunca
me interessei muito por poesia e sempre tive dificuldade de escrever na forma
épica (contos, romances, etc). Mas quando tentei a forma dramática — contando
uma história essencialmente através de diálogos, algo bem coloquial — me senti
mais seguro e as ideias começaram a fluir. A partir daí, segui estudando e
experimentando outras áreas da dramaturgia, como cinema e televisão. Entrei
definitivamente na tele-dramaturgia ao passar em um concurso da TV Globo, em
2000. O que há de sedutor na TV é a objetividade, o profissionalismo das
pessoas envolvidas e a velocidade com que seu texto toma, efetivamente, a forma
final. Ou seja, você escreve algo que já estará no ar dali a quinze dias,
enquanto que no teatro e no cinema isso pode levar anos. E a TV ainda tem outra
enorme vantagem: você é pago mensalmente, tem um salário, como qualquer outro
profissional.
FM Tocas em um ponto crucial, porque o
estado de espírito do criador sofre interferência direta de sua condição
doméstica. No entanto, há biografias inúmeras que mostram uma resistência a
toda prova a essas intempéries da realidade. Evidente que reclamas para o
artista uma condição raramente alcançada, em especial quando há relação direta,
de empatia produtiva, entre o ambiente estético e sua produção. É impossível
uma oferta estética consistente, renovadora, sem salário, Daniel?
DA A teledramaturgia é um caso muito
particular de criação estética. Quase tudo nesse universo é exceção, a começar
pela apreciação — ou seria melhor dizermos consumo — da obra por parte do
público. Todos sabem que um programa de TV tem sua audiência medida pelo IBOPE.
E essa medição ocorre até em tempo real. Estamos falando, portanto, de um
produto altamente comercial, feito para vender, e vender instantaneamente. Isso
inviabiliza a existência de uma pretensão estética ou a liberdade de criação?
Não necessariamente. Há momentos em que você tem total liberdade para propor
coisas novas, para ousar, para subverter, e há momentos em que você tem que
manter o bonde nos trilhos. Cria-se muito na TV, mas cria-se dentro de
determinados limites. Televisão, assim como o cinema, também é uma indústria. E
numa indústria é preciso compreender que você está dentro de uma engrenagem
maior, que você pertence a uma coletividade. É preciso que o autor aceite estar
em ambas as classificações: a de artista e de funcionário. Mas compreendo que
alguns artistas não se sintam confortáveis diante dessas condições. Por outro
lado, não podemos esquecer que atualmente a TV passa por um dos seus momentos
mais prolíferos no mundo inteiro. Algumas séries americanas estão inovando mais
do que a média da produção cinematográfica. Grandes nomes do cinema —
diretores, atores, roteiristas — têm migrado para a TV a cabo. E o Brasil — bem
como outros países latino-americanos — já começa a produzir séries de altíssima
qualidade para a TV paga.
FM As minisséries sempre tiveram textos — a
produção em geral — de alta qualidade, quase sempre adaptações de romances
brasileiros ou roteiros biográficos. E sempre superou o cinema, o que não
requer tanto esforço. Mas retomemos o teu ambiente de criação, em que se
destaca um particular interesse pela comédia. O riso aproxima mais o homem do
limite de suas experiências do que a dor? Neste sentido, a comédia ajuda o
homem a compreender a si mesmo melhor do que a tragédia?
DA O riso e a dor se completam, mas não se
misturam. Henri Bergson fala que o cômico se dirige à inteligência pura, e que
o maior inimigo do riso é a emoção. A tragédia nos permite experimentar um
processo catártico onde são reveladas nossas emoções, nossos medos, nossas
dores. A comédia, por sua vez, revela as dores do homem no contexto social. Ela
cumpre, historicamente, a função de criticar nosso comportamento em sociedade,
apontando nossas fraquezas, hipocrisias e covardias. Rindo de determinado
personagem — numa peça, filme ou novela — estamos admitindo uma identificação e
reconhecendo o que temos de grotesco.
FM Como lidas com a construção de uma
identidade em teus personagens? Entendo que não se pode erguer um personagem
sem dar-lhe uma personalidade legítima. Marcel Schwob recorda que “mesmo os
loucos têm uma alta ideia da personalidade”. O que pensas a este respeito?
DA Alguns roteiristas defendem a ideia de
que todos os personagens “vivem” dentro do próprio autor, de alguma forma são
baseados nele próprio. É uma discussão sem fim, mas gosto desse conceito.
Escrevemos sobre o que conhecemos e quanto mais nos conhecemos, mais rica
poderá ser essa criação. E mais temerosa também. Além disso, cada personagem
possui uma backstory, sua história
pregressa. O personagem, certamente, conhece sua própria backstory. O público, geralmente não. E seria inviável ter que apresentar
toda essa quantidade de informação em uma peça ou um filme. Mas o autor precisa
conhecer a backstory do seu
personagem. Só assim ele poderá definir, com segurança, sua identidade. Afinal,
personagens distintos podem ter perfis coincidentes, mas a backstory de cada um é única.
FM Da identidade ao tema. Ionesco
surpreende ao dizer que “toda composição é consciente”, justamente um criador
que avança em território avivado pelo Surrealismo e nos apresenta seu teatro do
Absurdo. Mas o que nos diz em seguida a esta frase é valioso: “É próprio da
obra de arte tornar consciente o inconsciente. Quero dizer, traduzir a linguagem
do consciente profundo em linguagem diurna.” Compreendida assim a criação, como
os personagens coincidem em torno de um tema que defina a obra?
DA Todo bom personagem nasce a partir de
uma necessidade da história. Dessa forma, eles nascem com sua função dramática
já bem definida. Mas também há histórias que nascem a partir de um personagem.
De um jeito ou de outro, os personagens já estão intrinsecamente vinculados ao
tema. Qualquer coisa fora disso seria supérfluo, ou seja, seria um personagem
desnecessário à obra. Na dramaturgia em especial, o personagem nunca “nasce”
exclusivamente pela cabeça do autor, mas numa criação conjunta com seu
intérprete e diretor. Essas contribuições são inevitáveis. O próprio processo
de leitura e ensaios faz com que o personagem — bem como a obra como um todo —
seja reavaliado, aprofundado. Ao fim desse processo, o personagem deixa de ser
do autor e passa a pertencer à obra. E então tudo faz sentido.
FM Logo no início te referiste ao
imediatismo da entrega do objeto criado ao publico e em seguida tocas na
capacidade de reconhecimento do público em relação ao mesmo objeto que lhe é
entregue — não importa que estejamos tratando de uma imagem pictórica, um
personagem ou uma canção. Tens alguma idealização de público, ao ponto de
interferir no que crias?
DA Acho que faz parte do amadurecimento do
artista aprender a reconhecer seu público. David Bowie diz que fãs sempre esperam
que o artista siga uma determinada linha evolutiva, que seja coerente com sua
obra, que seja fiel à sua própria estética. E logo em seguida dispara: “pois
bem, eu não faço nada disso”. E mesmo assim é um artista que tem uma legião de
admiradores, um público fiel. Mas a própria negação dessa coerência gera uma
meta-coerência, não? E seu esforço para não atender a essa expectativa provoca,
claro, uma interferência em sua criação. É inevitável. No caso da
teledramaturgia, essa expectativa é diária. E, na TV aberta, praticamente não
há segmentação. O público que assiste a novela também assiste o humorístico ou
a série que virá a seguir. Você não encontra um público específico, é o público
que te encontra. Na TV a cabo a história é diferente, você tem que mirar num
determinado tipo de expectador. Aí você pode ser tão ousado quanto quiser. Cabe
aos produtores correrem o risco de colocar ou não o programa no ar. Programas
como Lost, Mad Men, In Treatment ou The Office foram consideravelmente
ousados e conseguiram angariar um público fidelíssimo, são considerados de
grande sucesso.
FM Eu destacaria aqui
outras séries para TV cujos roteiros me parecem admiráveis, tais como CSI (a versão original e não seus
desdobramentos), Person of Interest, Alcatraz e Fringe — e que, no entanto, talvez exceto pela primeira, não são
propriamente “grandes sucessos”. O acerto, no tocante à identificação do
público, seria então da ordem do acidente?
DA Os americanos possuem uma excelência em roteiro. Todas
essas séries são primorosamente escritas. CSI segue uma linha onde eles são
mestres — o roteiro policial. Não podemos esquecer de NYPD Blue — Nova York Contra o Crime, uma série que acrescentou
muito ao gênero ao romper o paradigma do policial herói e bom moço. Mas citei
as séries acima pela questão da originalidade e ousadia. The Office subverte a linguagem tradicional quando permite que os
personagens falem diretamente para a câmera, simulando um documentário (era
esse o conceito inicial). Mad Men e In Treatment optam por um ritmo hiper
realista, lento, indo na contramão das frenéticas histórias de ficção atuais. Seinfeld foi outra aposta alta, quando o
autor insistiu que o programa seria uma série sobre o nada. Uma curiosidade:
nos Estados Unidos, os roteiristas geralmente são os produtores — ou seja, os
donos — de suas séries. Isso faz bastante diferença.
FM Teus estudos sobre Silveira Sampaio e Nelson Rodrigues
encontram tais autores quais detalhes que possa ser referidos como afins e
influentes em tua criação?
DA Meu interesse em Silveira Sampaio
surgiu quando procurava um objeto de estudo para minha monografia de mestrado.
Deparei então com uma crítica de Décio de Almeida Prado em que dizia que
Silveira Sampaio estava para a comédia brasileira assim como Nelson Rodrigues
estava para o drama. Achei muito instigante a comparação, uma vez que Silveira
Sampaio, infelizmente, é muito pouco conhecido. Os dois foram contemporâneos e
tinham vários temas em comum, como distúrbios familiares, hipocrisias sociais,
desejos reprimidos, etc. Só que enquanto Nelson seguia numa abordagem
dramática, Silveira Sampaio optava pelo cômico. Mas ambos contribuindo
decisivamente para o surgimento do moderno teatro brasileiro. Minha
identificação com o autor de Da
necessidade de ser polígamo foi imediata, uma vez que seu texto era uma
feliz exceção no meio das ingênuas e exauridas comédias da época. Finalmente o
cômico era tratado de forma séria.
FM Destacarias aqui outros autores na
dramaturgia brasileira que foram deixados para trás?
DA Acho que Jorge Andrade é um exemplo —
também contemporâneo de Nelson e Silveira Sampaio. Mas não acho que tenha sido
uma época de inúmeros autores injustiçados. Os inovadores foram realmente
poucos. No mais, era o feijão com arroz. Talvez por isso não tenha se
constituído no Brasil uma representativa geração de dramaturgos modernos. E não
podemos esquecer que o nosso teatro não esteve presente na semana de 1922.
FM Um grande visionário que sei admiramos
os dois, Federico Fellini, certa vez observou que a censura por vezes não priva
exatamente o público de contato com uma obra, mas sim com a forma como a noção
que temos de dignidade nos permitiria um encontro livre entre ambos. Ele se
referia à ação da censura em um âmbito mais “confessional, eclesiástico,
obscurantista”. Atualizando o assunto, o mercado desempenharia hoje a função de
censor mais do que a mecânica gasta dos valores ideológicos. Queres comentar
isto?
DA Todos nós sabemos que o mundo entrou na
era do politicamente correto. E se alguém começa a impor o que é correto ou o
que é errado, isso se torna uma censura. Mesmo que esse “alguém” seja o
público. Não sei explicar, mas é fato que inúmeros programas de TV feitos nas
décadas de setenta e oitenta, jamais poderiam ser veiculados hoje em dia. Haveria uma
forte rejeição. Talvez as pessoas simplesmente queiram parecer melhores do que
realmente são. Há muita hipocrisia em torno desses conceitos. Na televisão
acabamos por nos policiar bastante. Não há muito o que fazer, creio. Talvez só
nos reste sentar e aguardar que essa fase passe. O humor tem sofrido um baque
maior. Ainda podemos fazer piadas com portugueses e cornos. Mas o papagaio está
com seus dias contados.
FM Eu queria aqui recordar o Chico Anysio,
seja pela expressão inconfundível de sua obra, seja pelo fato de que nos
últimos anos foste um dos redatores de seus programas. Certa vez eu observei
que Chico City era o equivalente brasileiro da Macondo colombiana do Gabriel
García Márquez em seu Cem anos de solidão.
Seus personagens não são marcados pelos bordões e sim pelos nomes. Não é o vapt-vupt que nos leva ao Professor
Raimundo e sim o contrário. Chico deu consistência tal a eles que são recordados
com identificações próprias, como se fossem frutos de uma árvore mitológica.
Chico tratou de morrer a poucos dias do Millor Fernandes. Extraído o lado
trágico da perda coincidente dos dois maiores humoristas do país, em estéticas
que poderíamos dizer complementares e anos-luz à frente de seus pares, como uma
tradição pode se alimentar de recusas a visitar a obra de seus nomes mais
expressivos?
DA Chico foi, sem dúvida, um gênio. Mas
dada a velocidade com que tudo acontece na TV, é muito difícil falar no
estabelecimento de uma tradição. Não é como no cinema em que filmes se tornam
clássicos, ou no teatro onde é possível fazer remontagens de textos. Na TV os
programas se tornam simplesmente velhos. Não há passado e nem futuro, há apenas
o presente. Uma das grandes sacadas do Chico Anysio foi manter-se sempre
criando. Ele vivia no gerúndio. Por isso que chegou a mais de duzentos
personagens. Alguns deles viraram sucesso, outros morreram, porém o mais
importante é que sempre estavam nascendo novos. Era sua fonte da juventude. Sua
tradição era recomeçar sempre.
FM Na televisão assinaste roteiros de
séries como Casos e acasos (2008) e SOS Emergência (2010), ambos em parceria
com Marcius Melhem. Como são os bastidores desse trabalho?
DA O processo é exaustivo e precisa ser
rápido. Não existe tempo para esperar “a ideia vir”. É fundamental ter uma boa
equipe de colaboradores. Ideias para oito ou nove episódios você até consegue
ter sozinho, mas para vinte, trinta, quarenta… aí precisa de um parceiro e um
time trabalhando muito bem afinado. Para as ideias surgirem é preciso trocar
muita bola. Não dá pra se isolar do mundo para criar, pelo contrário, você
precisa do mundo, precisa das pessoas, das brigas familiares, das dores de
cotovelo, das frustrações, dos sucessos e fracassos pessoais. É desse caos que
nascem as histórias. O Casos e Acasos
era o mais difícil de escrever, porque necessitava de três histórias distintas —
a serem contadas em meia hora — e que deveriam se cruzar em algum momento.
Tenho muito orgulho de ambos os trabalhos.
FM Das séries que são peças de humor partes
para o drama, no caso da mais recente colaboração como roteirista, desta vez de
A vida da gente (2011), de Lícia
Manzo, novela que ganhou o Prêmio Contigo! como melhor roteiro do ano. À
primeira vista imagino que aumente consideravelmente a jornada de trabalho, mas
quais outros aspectos são relevantes e de que modo te adaptas a essa nova
experiência?
DA Escrever uma novela é um trabalho
sobre-humano. No caso da novela das seis, são seis capítulos de 22 páginas por
semana. Claro que, uma vez que se começa a escrever com alguma antecedência, é
possível distribuir melhor esse trabalho. Mas considerando que são
aproximadamente 140 capítulo, uma hora você se esgota — fisicamente e
mentalmente. Não é uma corrida de cem metros, é uma maratona. Mas foi um
trabalho em que aprendi muito e que tive a sorte de trabalhar com uma autora
que primava pelo texto. Apesar do volume da obra como um todo, cada capítulo
era trabalhado minuciosamente. Sempre. E mesmo sendo uma novela mais
introspectiva — sem mistérios, assassinatos ou grandes reviravoltas — foi muito
bem aceita pelo público em geral.
FM Dentro do que fazes, Daniel, do que vens
realizando como criador, te sentes tocado por alguma responsabilidade?
DA Nas novelas, por mais que queiramos
negar, existe sim certa responsabilidade social. É algo muito particular deste
produto, mas é um fato. A relação do público com esse tipo de dramaturgia é
muito estranha. As pessoas vivem experiências catárticas ao mesmo tempo em que
se deparam com lições de moral, dicas culturais, auto-ajuda e até propagandas
de xampu. Muitas vezes a novela será o primeiro e único contato que aquelas
pessoas terão com uma obra de ficção em suas vidas. Como um autor poderia não
sentir uma grande responsabilidade por isso? Agora, existe a responsabilidade
do autor consigo mesmo, com sua própria ambição artística. Nesse caso, as
séries, minisséries e telefilmes são mais apropriados para suprirem essa
necessidade pessoal. Já no âmbito da comédia, a minha responsabilidade é,
basicamente, fazer o público rir, se divertir — mas tentando elevar ao máximo,
dentro daqueles limites de que já falei, o nível das piadas. E isso é
dificílimo.
FM Esquecemos algo?
DA Já que falamos aqui do autor não apenas
como um artista independente mas também como um empregado de uma empresa, acho
importante destacar o papel dos cursos de formação artística. Temos o péssimo
hábito de achar que o artista sempre nasce pronto, que o talento é binário: ou
é zero ou é um. Existe, claro, esse tipo de artista — o que nasceu com o dom, o
talento nato — assim como existe a pessoa absolutamente desprovida de talento
para aquela atividade. Mas entre esses dois extremos existem as pessoas que têm
uma considerável inclinação artística e que poderiam se desenvolver através de
escolas de formação. No Brasil isso é altamente precário. Temos pouquíssimas
escolas com alguma tradição e não parece haver nenhum interesse do governo em
investir em
cultura. Os Estados Unidos não são a potência que são em
cinema simplesmente porque roteiristas e diretores já nasceram talentosos. Eles
possuem centenas que cursos de alto nível nessa área. Assim como em artes
plásticas, música, literatura, etc. Talvez ainda sejamos influenciados por
crenças do tipo “uma ideia na cabeça e uma câmera na mão”. Isso até pode ter
tido algum sentido quando inserido em um movimento estético, numa determinada
época. Mas não pode ser um dogma eterno. Já deveríamos ter superado esse tipo
de pensamento tacanha. Caso contrário, só conseguiremos desenvolver a nossa
própria prepotência.
[2012]
[Entrevista com Daniel Adjafre (Brasil, 1970), publicada em Invenção do Brasil. São Paulo: Editora
Descaminhos, 2013. http://www.amazon.com/Inven%C3%A7%C3%A3o-Brasil-entrevistas-Portuguese-Edition-ebook/dp/B00FTBMR24]
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