FM | Começo por uma observação que fez o chileno Enrique
Gómez-Correa em uma conversa nossa, de que “o grupo dominicano de La poesía sorprendida foi, de certo
modo, uma projeção da Mandrágora, graças ao escritor e poeta chileno Alberto
Baeza Flores”. Aqui há dois temas: o das origens de La poesía sorprendida e seus postulados, inclusive a relação com o
Surrealismo.
MMS | A primeira coisa em que devemos nos fixar, na
história da literatura, é no que eu chamaria de efeito estufa cultural. É constante que em certo tempo apareçam
juntos, como se houvessem se reunido para isto, grupos díspares de intelectuais
que renovam e modificam tudo em um país. Em seguida damos nomes a essas
coincidências, como ocorreu com o Romantismo europeu na música e na literatura,
que ocorreu ao mesmo tempo em que a sensação de grandeza e decadência na
política. Tiranias e impérios ou pseudodemocracias, como sucedeu em Roma na era
de Augusto ou na Grécia de Péricles. Às vezes duram um século inteiro, como
ocorreu na França e na Alemanha, porém essas coisas têm explicação pelo clima que existe e o fervor que desperta
na sociedade. Pelo efeito estufa cultural.
Em outra oportunidade, eu me referi a uma série de
circunstâncias que propiciaram o surgimento deste grupo dinâmico, que segundo é
comentário crítico quase unânime “pôs em hora certa os relógios atrasados de
nossa literatura”. Já em meu livro Postumismo
y Vedrinismo – Primeras vanguardias dominicanas (2011), eu me referia a
algo certo, e que regularmente se esquece, que nenhum movimento, nenhum grupo
literário ou artístico surge do ar ou é um fenômeno violento e isolado como um
raio em um céu sem nuvens, porque sempre é possível rastreá-lo na história, na
própria sociedade onde ocorre ou nas obras dos anteriores, seus antecedentes e
suas gestações; daí que é necessário rastrear o passado, sobretudo o imediato,
para encontrá-los; até agora não se sabe de alguém que tenha realizado esse
rastreamento para ir observando os sinais de fumaça desde as colinas do passado
na existência de La poesía sorprendida,
como fizemos com o Postumismo. Recentemente li em um opúsculo intitulado Los Granell de André Breton – Sueños de
amistad, a propósito da exposição de suas obras na galeria Guillermo de
Osma em Madri, de 8 de abril ao 28 de maio de 2010, no qual se diz que este
havia fundado a revista La poesía sorprendida.
Isto não é certo, já que a origem esteve nos Triálogos, umas conversações entre Domingo Moreno Jimenes, Alberto
Baeza Flores e Mariano Lebrón Saviñón, uns meses antes do surgimento da revista
que, por seus repentismos já tinham o selo de experimentos surrealistas.
Inclusive o nome surgiu da parte deste último quando disse daqueles diálogos
que eram uma forma de surpreender a
poesia. Se bem que não há dúvida alguma de que a presença, tanto de Granell
quando de Baeza, aponte claramente qual foi a origem dessa marca vanguardista.
Embora o Surrealismo já fosse algo literariamente
adulto, com quase 20 anos de vigência, quando André Breton passa por Santo
Domingo, em 1941, e Granell, sendo repórter do jornal La Nación o entrevista anonimamente, de tal modo que mais tarde
Benjamin Péret (que o havia conhecido na Espanha durante a guerra), comenta
algo sobre ele com Breton, que estava em Nova York, e este não recordava o nome
do entrevistador, no entanto, esse contato fortuito foi uma experiência
extraordinária que lhe fez mudar para sempre e o converteu em um surrealista
total. A presença de uma personalidade literária universal de vanguarda como
era Breton deve ter impactado os jovens intelelctuais dominicanos que leram a
entrevista e viram a foto em primeira página. Desse modo, se para muitos era
ignorado, para a minoria sempre (como
dizia Juan Jamón Jiménez), o termo Surrealismo
ganhava espaço na cultura nacional. Em geral se esquece que havia muitos
intelectuais, além de Granell, que naquele momento era um comunista exilado da
guerra civil e vivia no país do jornalismo e sua profissão de músico clássico,
o que lhe permitiu ser membro da primeira Orquestra Sinfônica Nacional fundada
por Enrique Casals Chapí, enfim, que havia outros exilados conhecedores do que
se passava na Europa, nas vanguardas, e a prova irrefutável é que em uma foto
aparecia junto a Breton ninguém menos do que um dos poetas da Geração do ’27.
Refiro-me ao poeta Pedro Salinas. De modo que o ambiente cultural era de um
efeito estufa, por isto e pela necessidade de experimentar coisas que estivessem
proibidas pelo regime, provocado por tantos talentos próprios e estranhos
naquela grande aldeia que era a Santo Domingo de então (devastada há 11 anos
por um furacão e apenas em processo de reconstrução), deve ter provocado uma
grande curiosidade e o desejo de conhecer mais sobre os movimentos literários
de ultramar. Isto indica que a terra estava suficientemente abonada para que
esta semente literária não tardasse em frutificar; havia uma estufa, um clima cultural sob a ditadura necessitado de falar e
escrever outras coisas que não fossem as loas ao tirano.
Além do mais, a Geração do ’27, com nomes emblemáticos
como o de Federico García Lorca, profusamente citado em jornais e revistas,
estimulava admirações. Pedro René Contín Aybar deu uma conferência sobre o
poeta granadino e os declamadores incluíam seus romances no repertório. Desde
os anos 1920 há vários exemplos na imprensa diária e na revista dos
postumistas, e um poeta importante como Tomás Hernández Franco, que havia
vivido na França em meio à euforia vanguardista Dadá e do Surrealismo, havia
publicado no jornal Patria (que se
opunha à intervenção norte-americana de 1916 a 1924), poemas inovadores que
poderiam ser considerados, senão proto-surrealistas, decididamente ultraístas.
Manuel Rueda, em sua Antología panorámica de la poesía dominicana contemporánea 1921-1962,
e outros críticos e historiadores da literatura, omitem que El día estético, a revista dos
postumistas que começa a ser publicada em 1928, tinha como subtítulo Revista indo-universal de vanguarda, e
não podia ser, certamente, um movimento fechado nacionalista ou criollista como sempre disseram os surpreendidos (este epíteto é da autoria
de Ramón Francisco, um poeta e crítico nosso, que não tomou parte do grupo),
isto porque a divisa destes, de Poesia
com o homem universal, não era mais universalista nem mais vanguardista do
que aquela e denota que longe de ser o que lhe acusava, era um movimento muito aberto
ao que acontecia no país e no mundo, sem desprezar o criollo, e ao usar o termo de vanguarda tirava-lhe o aspecto de
tabu que o mesmo poderia ter no meio conservadoramente modernista do país.
E há mais, em entrevistas e artigos e em suas práxis,
tanto Moreno Jimenes como Rafael Augusto Zorrila, dois dos três fundadores do
movimento postumista, paqueravam com o subjetivo, mesmo que Manuel Rueda
tratasse de dizer que foi uma conquista dos surpreendidos;
além do mais, eles estiveram abertos às ideias socialistas e há correspondência
com Víctor Raúl Haya de la Torre e mostras amplas e difusas dos poemas de
protesto que eram editados em diversos países, especialmente Peru e Cuba.
Vivíamos em uma ilha, porém não estávamos fora do mapa e os jovens que
publicaram ao princípio da ditadura de Trujillo em San Pedro de Macorís, La
Vega, Santiago e Moca, eram abertamente socialistas, porque no país houve
epígonos, tanto do subjetivismo, no Ricardo Pérez Alfonseca de Oda de um Yo, como sociais, no Federico
Bermúdez de Los humildes, ambos
livros da segunda década do século passado (1913 e 1916). De modo que urge
revisar qualquer afirmação cortante de dentro ou de fora acerca das origens do
movimento dos surpreendidos e sobre
quem ou quantos influeciaram para que o Surrealismo, que era o movimento mais
poderoso internacionalmente, sobretudo na América Hispânica naquele momento,
fosse a vanguarda esgrimida por eles.
Já vimos que quando André Breton visitou Santo Domingo
pela primeira vez, então Ciudad Trujillo, infectou Granell, que era jornalista
e músico, com o vírus do Surrealismo. Em seguida, existe a confissão de Alberto
Baeza Flores, que chega dois anos depois à delegação chilena, de que ele trouxe
e difundiu entre seus amigos literatos dominicanos textos surrealistas.
De modo que Granell foi o representante da diáspora
que se aproximou deles e formou parte do grupo inicial que se reunia na casa do
poeta mais notável que era Franklin Mieses Burgos, que logo tornou-se
consagrada como “a casa da poesia surpreendida”, primeiro como desenhista e
logo como colaborador literário, sendo já surrealista bretoniano, e que ele e
Baeza formaram a ponta de lança; inclusive o próprio Baeza, em um prólogo
datado de 1984, na Espanha, para a edição de Los Triálogos (recompilação de Maria Lebrón, filho de Mariano, em
2003), disse coisas que não deixam lugar a dúvidas: “Aqueles que bem
rapidamente e sem conhecer a órbita do movimento surrealista, costumam escrever
que La poesía sorprendida chegava
atrasada com um Surrealismo ‘que já havia deixado de existir’, esquecem que o
movimento surrealista vivia, na Europa e na América, com motivo da segunda
grande guerra mundial, uma etapa profundamente criadora, uma nova dimensão, da
anterior” […] “Estas expressões eram mais paralelas ou simultâneas de Mandrágora, expressão do Surrealismo
chileno. Com isto não desejo indicar que La
poesía sorprendida fosse uma expressão surrealista exclusiva, nem mesmo em
sua primeira etapa, pois deu espaço a outras expressões da poesia, embora sua
simpatia pelo Surrealismo – especialmente em sua etapa inicial – tenha sido
evidente, em atos, textos e homenagens. A presença constante de Eugenio
Fernández Granell, desde as vinhetas e seus textos, era uma fé de vida surrealista.”
Assim que, do mesmo modo que já vimos que encarregaram a criação da revista a
Granell, isto que disse Gómez-Correa é da mesma estirpe apaixonada.
O detonante foi a visita de Breton unida à conversação
de Granell que havia optado pela pintura e a literatura e a presença excitante
de um agitador cultural da categoria de Alberto Baeza Flores, que vinha de
Havana, onde o futuro grupo de Orígenes, com José Lezama Lima à frente, vivia
em plena euforia vanguardista. Sem dúvida alguma, como se vê nos primeiros
números de La poesía sorprendida a
inclusão de poemas do grupo Mandrágora
contribuiu a dar mais vigência ao Surrealismo, porém não foi o detonante
principal, mas sim a visita de Breton, a presença de Granell e a chegada de Baeza.
FM | Eu creio em duas coisas: o acaso objetivo que atuou
por trás dos acontecimentos políticos, no caso dominicano com a presença de
Eugenio Granell e Alberto Baeza Flores; e a necessidade orgânica de criação de
algo novo, de fazer com que através da arte e da cultura a ilha participasse da
realidade continental. Havia no espírito uma ponte preparada para a comunicação
entre dois mundos e ali estava a oportunidade para tanto. O que quero definir aqui
é que a relação entre Surrealismo e La poesía
sorprendida não está dada como uma sequência ou aceitação ou projeção da
praça de armas parisiense. É o mesmo que penso acerca da revista Tropiques, da Martinica, ou dos poetas
argentinos ao redor das revistas Ciclo,
Letra y Línea etc. Sem o preconceito
católico que impediu a presença do Surrealismo em Cuba e Brasil, certamente que
em tons distintos, o que vimos é a gestação de um Surrealismo outro, que não é
a submissão às ortodoxias europeias, mas sim o avanço natural das entrelinhas
dos manifestos originais. Como, a partir da vigência de La poesía sorprendida, se desenvolve a lírica dominicana?
MMS | A primeira coisa que omiti foi o fato da “continuidade
lírica rebelde”. É curioso que tanto Domingo Moreno Jimenes como Rafael Américo
Henríquez e Manuel Llanes foram militantes postumistas. Trata-se de poetas que
haviam se rebelado contra o modernismo. De Moreno não vou falar muito porque
sua participação principal foi como animador do futuro movimento, por puro
acaso. Sua amizade com o então caçula do movimento (Mariano Lebrón Saviñón,
nascido em 1922 e o único que ainda vive) é o que o conecta com Baeza Flores na
experiência dos Triálogos; Mieses
Burgos vem de La Cueva. Entre ele e
Rafael América há outro tipo de rebeldia: ambos rimam de vez em quando e sempre
medem seus versos. Enquanto Moreno e Llanes são poetas livres. Baeza militou no
Chile e em Cuba, em distintos cenáculos, desde os dois Pablos de sua pátria até
Lezama em Havana; Granell é herdeiro de uma rica tradição cultural e conheceu
bem os poetas do ’27, por ser pessoa culta. De modo que a princípio apenas
Freddy Gatón Arce (1920), que também é estudante universitário como Lebrón,
está virgem de pecados porque vem da prosa e pode assimilar melhor esse namoro
com o Surrealismo, ao extremo de converter-se, com o passar do tempo, no poeta
surrealista nacional por excelência em seu extenso poema Vlía. Existe a anedota de que Mieses Burgos lhe fez desistir de seu
automatismo porque acreditava que ele ia se tornar louco; comentário que
demonstra que tratou de experimentar de acordo com o Manifesto de Breton e
talvez de forma mais ortodoxa que muitos dos nomes mais soados do movimento.
Como já foi dito, La
poesía sorprendida foi aberta. Rastros surrealistas podem ser encontrados
em todos, como na Elegía por la muerte de
Tomás Sandoval, de Mieses Burgos, que contém as metáforas e imagens mais inovadoras:
Para teus
olhos?… Sombras dos corais mudos!
Areia e
apenas areia
para enterrar
teus sonhos
marítimos de
nuvens e de gaivotas brancas,
sobre um céu
de coco nublado de sardinhas.
Se buscamos encontramos tanto em Baeza Flores como em “Rosa
de tierra”, poema de Rafael Américo; nos versos de Manuel Llanes que sustentava
que tomava um ano fazendo um poema porque os seus eram partos de elefoas. Creio
que em todos há traços surrealistas, porque aqui cabe o que disse Rubén sobre o
Romantismo, quem é que não é surrealista?
Porém, em realidade, o que podia ser surreal na Europa era o natural no Caribe
moreno como esse céu de coco nublado de
sardinhas. Em Césaire, nos poetas haitianos, nos dominicanos, o Surrealismo
podia se confundir com a realidade, sobretudo entre nós com um governo como o
de Trujillo, já que o ditador, pouco menos que analfabeto, acreditava-se um
intelectual e, simpatizando como simpatizava com Hitler e Mussolini, tinha que
fazer o papel de homem aberto às ideias, aceitando os judeus e os exilados que
fugiam de quem logo seria seu grande amigo: Francisco Franco; o fato de que o
país estivesse impregnado de socialistas militantes, sendo ele o campeão
anticomunista da América. Queres mais Surrealismo especial?
Agora bem, a chamada Geração do ’48 se seguiu aos surpreendidos, porém em sua maioria não
conheceram a revista e curiosamente colaboraram na do governo, Los Cuadernos Dominicanos de Cultura,
que foi a contrapartida dos intelectuais do regime encabeçados por Pedro René
Contín Aybar, e contou com a co-direção de Tomás Hernández Franco e Héctor
Incháustegui Cabral, e a colaboração de Pedro Mir e outros que não foram
partidários do sistema, porém eram amigos dos mencionados; ao final os surpreendidos, atraídos por Contín Aybar
quando desapareceu sua revista, acabaram colaborando também. As edições de La poesía sorprendida eram de poucos
exemplares e desapareceram; nós que viemos imediatamente após os de ’48, nos
’50, a desconhecíamos e se tivemos acesso foi graças às relações com alguns,
como em meu caso com Gatón Arce. Não houve a continuidade de uma corrente para
outra, mas sim o efeito estufa, o
clima deixado por eles; além do mais, as suas obras apareciam em antologias,
nos suplementos e em algumas revistas, como Ágora;
daí que a marca surrealista não se manteve. Aparece em alguns como ecos
distantes, porém já então o importante era a temática social. Esses jovens
nascidos no início da tirania ou bem próximo dessa época vieram com outras
ideologias e, como eram jovens, uns foram neoromânticos ou materialistas como
Neruda. Embora seja curioso que as primeiras Residências na terra não tenham despertado, como a terceira, as
mesmas paixões que os 20 poemas.
Lidas agora as nossas produções, ou seja, daqueles que tínhamos uns poucos anos
e dos nascidos após 1930, nota-se a diferença com os surpreendidos em uma clara adscrição ao socialismo lírico.
Inclusive, os surpreendidos mais
conotados também haviam mudado. Uma temática necessária implicou em martírios:
a maioria desses poetas padeceu cárcere, exílios e alguns, como no caso de Juan
Carlos Jiménez, um dos mais promissores, foram assassinados e seus corpos não
apareceram jamais. De modo que por isso a aventura surrealista em Santo Domingo
não teve continuidade naqueles que vieram depois, porque então a ordem que
havia era a do protesto político e social e a maioria seguiu essa corrente. E
outra vez nós ficamos isolados na ilha. Já não tínhamos um Baeza para a difusão.
FM | É inquestionável o internacionalismo de La poesía sorprendida, com a publicação
de autores de quase 30 países, muitos deles sem relação direta ou mesmo
indireta com o Surrealismo. Porém uma vez mais se configura a quase completa
ausência do Brasil em ambientes culturais em nosso continente. O único
brasileiro publicado na revista é Ronald de Carvalho (1893-1935), voz poética
inexpressiva em nosso modernismo. Qual te parece – como bom observador – ser a
razão desse isolamento do Brasil em seu próprio continente?
MMS | Sem dúvida, os intelectuais da diáspora espanhola e
muitos dos surpreendidos eram pessoas
cultas e bem informadas. Na capital existia um cenáculo rebelde chamado La Cueva, na casa do poeta Rafael
Américo Henríquez, que editou um jornal e do qual formaram parte Juan Bosch,
Franklin Mieses Burgos e outros que logo entraram em La poesía sorprendida. Naturalmente, Bosch, que havia iniciado um movimento
que encontrou eco e seguidores para resgatar o romance seguindo as trajetórias
lorquianas em seu Romancero gitano,
com exemplos próprios excelentes e de outros, muito bons, sob a mesma
influência, que foram publicados na revista Bahoruco,
do venezuelano Horacio Blanco Fombona, era um prosista já consagrado como
contista. No interior, na cidade de La Vega, em 1936, Rubén e Darío Suro, Luis
Manuel Despradel, Mario Concepción, Van Elder Espinal e outros jovens
iconoclastas, fundaram o grupo Los Nuevos.
Nessa cidade havia um fervor socialista muito relatado, dirigido por espanhóis
como o pai de Juan Bosch e logo por exilados da diáspora.
Tudo isto está documentado profusamente e o mesmo
ocorreu em quase todo o país, especialmente na capital.
Quanto ao que ocorria com o Brasil, devo apontar que
nunca tivemos relações estreitas com Portugal ou Brasil (apesar de vários
literatos criollos, como Max
Henríquez Ureña e Héctor Incháustegui Cabral, entre outros, terem sido
diplomatas no Rio de Janeiro), como se o português que se fala nesses países
não fosse latino e tão familiar ao castelhano. Ignorávamos, os jovens
estudantes, tudo o que fosse relativo ao grande país sul-americano, exceto
alguns nomes de jogadores ou de artistas, como a graciosa Carmen Miranda. Nos livros
de literatura não aparecia a brasileira, pois estudávamos apenas a
hispano-americana. Não recordo se Arturo Torres Rioseco, em sua história
literária – que era texto oficial –, mencionava poetas brasileiros, porém se o
fazia os professores saltavam esse tema.
De certa forma vivíamos e seguimos vivendo de costas
para o grande irmão, apesar das facilidades tecnológicas, embora os meios de
difusão, as viagens, os contatos e a existência da globalização tenham ido apagando fronteiras e destruindo preconceitos,
poucos escritores nossos poderiam apontar que, à parte Guimarães Rosa, Jorge
Amado, Murilo Mendes e agora Paulo Coelho, tenham lido mais cinco ou seis
escritores brasileiros.
É certo que quando a revista O Cruzeiro, editada em espanhol, passou a ser vendida no país,
fomos tendo conhecimento do Modernismo
brasileiro como algo diferente do hispano-americano, porém isto se deu
muitos anos depois dos surpreendidos.
Como dado curioso eu te digo que na minha história da
literatura latino-americana destaco a influência da diáspora espanhola em nossa
cultura, pela primera vez em um texto para estudantes do ensino médio e faço um
pequeno resumo da brasileira.
Resulta muito estranho o fato de que apenas Carvalho
tenha sido citado e não em originais, mas sim em versões. Não conheço as razões
dessa desconexão com o resto do continente que não falava castelhano, porém
reconheço que era realmente grave. E me parece que essas foram algumas delas.
FM | Lendo o conjunto de cartas enviadas à redação da
revista La poesía sorprendida me
parecem sempre curiosas as palavras de estímulo de André Breton: “Este trabalho
há que dar-lhe a conhecer na Europa. Vocês podem estar seguros de que na
América Hispânica não existe uma revista de tão nobre qualidade. Muitos de seus
colaboradores gozam de renome universal.” Bem, não fala de Mandrágora, suponho porque estava bem informado de que a revista
chilena já não se publicava desde 1944. Quando andou por terras
hispano-americanas a comunicação de Breton com os nativos se deu graças a sua
mulher, Elisa Breton, chilena de nascimento, e Eugenio Granell, que atuavam
como seus intérpretes, uma vez que não falava espanhol. A verdade é que não
tinha como avaliar a importância de La
poesía sorprendida, tampouco tinha conhecimento do que se passava em todo o
continente hispano-falante. De que modo acreditas que as palavras de Breton
influíram em algum tipo de recepção do movimento dominicano na Europa?
MMS | O que me parece é que o fato de não haver traduções
de nossos poetas para o francês é uma das razões mais poderosas. A ausência de
tradutores em nossa literatura impediu tradicionalmente que os poetas mais
importantes sejam conhecidos internacionalmente, inclusive nos meios hispanos.
É curioso que essa declaração do sumo
pontífice do Surrealismo não tenha despertado mais interesse; porém também
é certo que até as últimas gerações a apatia por se dar a conhecer fora do
território nacional era o frequente entre nossos literatos. Salvo Manuel del
Cabral, que era seu primeiro propagandista, e dois ou três mais tradicionais
que foram difundidos por Pedro e Max Henríquez Ureña, os manuais de uso de
universidades e escolas secundárias não passavam de três ou quatro nomes e dois
ou três exemplos, se muito, ou eram olimpicamente esquecidos. Enquanto que no
Haiti, Martinica e outras ilhas que eram então colônias francesas, seus
intelectuais se formavam na França e escreviam nessa língua, nos mantínhamos
quase orgulhosamente unilíngues.
Há um fato que é preciso destacar. Durante 22 anos, de
1822 a 1844, os haitianos ocuparam a parte da ilha Hispaniola que depois se
chamou República Dominicana e o francês foi o idioma oficial, e até finais
desse século os códigos e os textos de estudo das carreiras profissionais
estavam redigidos em francês e nossos profissionais se formavam em Paris ou na
Bélgica, e por isso os poetas românticos e muitos dos modernistas falavam
francês com fluência e quase todo o mundo lia os livros nesse idioma, de modo
que se recebia a influência diretamente. A partir das nossas vanguardas, um
nacionalismo talvez necessário frente à invasão norte-americana se concentrou
na língua-mãe e se acaso aprendíamos outra era o inglês, por se tratar do
idioma do invasor imperial.
Quando Breton chega em 1941 não creio que fizesse
contatos com os falantes da língua gala como Tomás Hernández Franco e outros,
que haviam se formado em Paris, daí que, lamentavelmente, em 1946, quando
regressa, tem apenas a Granell e sua nova mulher chilena com quem se casou após
viver em Nova York e no Havaí, como bem dizes, para traduzir-lhe. Para mim,
essa ausência não se trata de uma questão de qualidade, mas sim que a falta de
tradutores é a chave. Se tu não tens acesso a um texto em tua língua, poderia
ser a Ilíada, porém se estivesse em
grego, jamais poderias ler nem difundir.
FM | Um pouco antes de La poesía sorprendida, nasce na Martinica a revista Tropiques, criada em 1941, por Aimé
Cesaire, René Ménil e Aristide Maugée. No Haiti temos a publicação de dois
livros de Magloire Saint-Aude: Dialogue
de mes lampes e Tabou. No mesmo
ano, Breton descobre, encantado, a poesia de Césaire, chegando a escrever, anos
depois, o prólogo à edição de Les armes
miraculeuses (1943). A revista alcança com dificuldades dois anos de
publicação, porém algo se nota de tentativa de recuperação de seu patrimônico
cultural nas ilhas do Caribe francês – aqui talvez o fato mais importante tenha
sido a criação do movimento Négritude, graças a Aimé Césaire, Léopold Sedar
Senghor e León-Gontran Damas. É incrível o que me contas, de que na República
Dominicana não houvesse uma aproximação de tudo isso. Inclusive alguma relação
com o Surrealismo havia sido antecipada pela amizade entre Leon-Gontran Damas e
Robert Desnos que, em 1937, havia assinado o prólogo do livro Pigments, de Damas.
MMS | Podes estar completamente seguro de não sabíamos de
nada e que isto se devia entre outras coisas à barreira da língua, que foi algo
tremendo, juntamente com o isolamento que provocava a ditadura e a censura de
toda correspondência que viesse do exterior, porque vivíamos de costas para o
mundo, até mesmo o Haiti, nosso vizinho mais próximo, pela ideia absurda de que
era um país selvagem cuja literatura não nos importava para nada. Não recordo
que Gatón Arce, antes de ser surpreendido,
nem mesmo Mieses Burgos, tenham me falado do conhecimento que se tinha desses
poetas. Embora jamais tenhamos admitido, nós nos sentíamos diferentes, mais
espanhóis ou hispano-americanos do que geograficamente caribenhos reais, o que
não deixa também de ser surrealista que precisamente os que ganharam o Nobel
nascidos no Caribe não falavam espanhol, embora as Antilhas Maiores, Porto
Rico, Cuba e Santo Domingo tivessem talentos que poderiam merecê-lo. Do mesmo
modo, tanto os haitianos como os demais caribenhos de fala francesa, inglesa ou
holandesa ignoravam totalmente a literatura dominicana. É exatamente La poesía sorprendida que abre essas
portas e essas curiosidades. Em nosso país somente após a morte de Trujillo é
que foram traduzidos os romances haitianos e ainda não temos uma boa antologia
da excelente lírica deles em espanhol. Pensa apenas no isolado que estava
Brasil, precisamente pela língua, dos países do Sul e não estranhe nossa
realidade insular, que ainda se mantém. É muito pouco o que conhecemos de tudo
o que se continua fazendo, salvo os casos citados e o de Dereck Walcott, após
ganhar o Nobel. Quando tu pertences a uma literatura, como nós à hispânica,
regularmente não importam as de outras línguas.
FM | Fala um pouco dos Triálogos. É certo o que disse Alberto Baeza Flores de que, ainda
que seja uma experiência de criação poética coletiva, há uma diferença orgânica
em comparação com outros casos surrealistas – de que são exemplos Les champs magnétiques (Breton &
Soupault) e L’immaculée conception
(Breton & Éluard) –, pois “existia uma compenetração, um clima de criação
de conjunto, porém o que buscávamos era que se perdessem as individualidades”.[1]
Além dos textos que foram originalmente publicados em 1943 – vale recordar que
são anteriores à criação do grupo e da revista La poesía sorprendida –, me parece que seguiram outras experiências
iguais, inclusive homenagens a César Vallejo e Pablo de Rokha.
MMS | A respeito dos Triálogos,
são a porta de entrada ao reino de La
poesía sorprendida. Aquelas conversações meses antes da aparição da revista
que logo teria esse nome, em plena rua e nas praças públicas, de três
personalidades tão distintas entre si como Domingo Moreno Jimenes, Alberto
Baeza Flores e o jovem Mariano Lebrón Saviñón, onde tomavam um tema e começavam
a improvisar e anotar as expressões de cada um, que logo foram editadas duas
dessas sessões e a outra se extraviou entre os papéis de Baeza em um avião a
caminho da Europa, pois bem, elas se converteram em uma experiência
surrealista, já que assim o foram em ação; nada mais surrealista, com certeza,
do que andar pelas ruas de uma cidade anotando o que falavam de poesia ou de
temas poéticos. A imagem que oferece esse cenáculo ambulante naquele país com
um alto índice de analfabetismo, é nada mais, nada menos, que o de um filme
surrealista. As pessoas os veriam, apesar de sua envoltura senhorial, como três
loucos disparatados se acaso se aproximassem deles para escutá-los.
Em certo sentido, falamos que a presença de Baeza, que
era um homem muito bem informado, é o que abre os olhos aos nossos jovens de
então e é ele quem, juntamente com Granell, internacionalizam a revista. Porém
há mais, sem eles dois é muito difícil que tudo aquilo tivesse sido aceito e
houvesse toda essa abertura. Então teria sido quase impossível, para os insulares
pegados pela férrea ditadura, obter os endereços e saber da existência dessas
publicações. Inclusive muitas coisas chegaram porque vinham nas malas diplomáticas.
Quem não viveu aquela tirania não pode fazer ideia do que era, e como uma mostra
eu te dou dois exemplos: Moreno Jimenes, embora recebesse convites de diversos
países, só viajou a Porto Rico; Mieses Burgos também, sua única saída foi até a
ilha vizinha. Ter um passaporte não era direito, era um privilégio diretamente
concedido pelo ditador e sua maquinaria terrorista. Eles te submetiam a uma
investigação e se acaso tinhas algum familiar desafeto ou inimigo do regime, de imediato te negavam sem direito a
protesto.
Sem o Baeza diplomata é impossível imaginar La poesía sorprendida.
FM | Há pouco me falaste que Breton, quando Péret
conversa com ele sobre o jornalista que lhe havia entrevistado em Santo Domingo,
ele já não recorda seu nome. O jornalista era exatamente Eugenio Granell, bem o
sabemos. Isto me recorda outra coisa. Em entrevista que lhe fez Stefan Baciu,
destaca Alberto Baeza Flores: “No extenso estudo de Jean-Louis Bédouin no tomo
dedicado a André Breton em Poètes
d’Aujourd’hui (Paris: Pierre Seghers, 1963), não encontrei a informação
desta viagem de Breton às Antilhas, em 1945-46. Ali se diz que no final de
fevereiro de 1945, Elisa e André Breton abandonaram Port-au-Prince a caminho da
Martinica. Se consultamos as rotas de navegação nas Antilhas, até a Martinica,
veremos que a capital dominicana – tanto nas rotas aéreas como marítimas – era
um ponto ou escala do trajeto. E me parece que Breton passa por Santo Domingo e
vê os poetas de La poesía sorprendida
então e não em dezembro de 1945, antes de sua chegada ao Haiti.”[2]
O que me parece, afinal, é que a relação de Breton com o continente americano
considerou a paisagem, como podemos ler em alguns de seus livros, porém jamais
seus poetas e seus artistas.
MMS | É curioso, porém realmente Breton não cita nenhum
dos poetas em particular. Quando se referiu a eles o fez generalizando. Não sei
se por causa da língua ou por qual outro motivo. Suponho que lhe presentearam
os exemplares da revista até então publicados, e que tudo se deu como pensa
Baeza. Há provas de que sua viagem foi em 1946, acompanhado de sua nova esposa.
FM | Esquecemos algo?
MMS | Realmente não sabemos tudo o que ocorreu. Baeza é
quem mais escreveu sobre essa experiência, mas sempre restam coisas no
tinteiro. Inclusive recordo sua preocupação por publicar seus artigos de La Opinión que ninguém se preocupou de resgatar
e ainda hoje é missão pendente. Mieses Burgos me disse que tinha vários livros
inéditos, entre eles um de memórias. Quando indaguei a seu filho Franklin
Manuel este me respondeu que não os havia encontrado. Quem sabe, qualquer dia,
como por vezes tantas coisas são encontradas, topemos com algum detalhe iluminador
como este de Baeza de que trouxe um número de Minotaure e outras novidades sobre o Surrealismo a Santo Domingo.
Porém não vamos entrar no território das conjecturas.
[2012]
NOTA
Manuel
Mora Serrano (República Dominicana, 1933). Escritor, jornalista e pesquisador
de literatura, com intensa trajetória de atuação na vida cultural de seu país.
Em 2011, publicou um amplo e indispensável volume crítico: Postumismo y vedrinismo – Primeras vanguardias dominicanas.
[1] Alberto Baeza Flores, La poesía dominicana en el siglo XX. Santo Domingo: Universidad Católica Madre y Maestra,
1976.
[2] “André Breton y La poesía sorprendida – Alberto Baeza
Flores y el Surrealismo en el Caribe”, entrevista incluída em Surrealismo latinoamericano – Preguntas y respuestas,
de Stefan Baciu. Chile: Ediciones
Universitarias de Valparaíso, 1979.
Nenhum comentário:
Postar um comentário