quarta-feira, 13 de agosto de 2014

MANUEL MORA SERRANO | Sobre surrealismo



FM | Começo por uma observação que fez o chileno Enrique Gómez-Correa em uma conversa nossa, de que “o grupo dominicano de La poesía sorprendida foi, de certo modo, uma projeção da Mandrágora, graças ao escritor e poeta chileno Alberto Baeza Flores”. Aqui há dois temas: o das origens de La poesía sorprendida e seus postulados, inclusive a relação com o Surrealismo.

MMS | A primeira coisa em que devemos nos fixar, na história da literatura, é no que eu chamaria de efeito estufa cultural. É constante que em certo tempo apareçam juntos, como se houvessem se reunido para isto, grupos díspares de intelectuais que renovam e modificam tudo em um país. Em seguida damos nomes a essas coincidências, como ocorreu com o Romantismo europeu na música e na literatura, que ocorreu ao mesmo tempo em que a sensação de grandeza e decadência na política. Tiranias e impérios ou pseudodemocracias, como sucedeu em Roma na era de Augusto ou na Grécia de Péricles. Às vezes duram um século inteiro, como ocorreu na França e na Alemanha, porém essas coisas têm explicação pelo clima que existe e o fervor que desperta na sociedade. Pelo efeito estufa cultural.
Em outra oportunidade, eu me referi a uma série de circunstâncias que propiciaram o surgimento deste grupo dinâmico, que segundo é comentário crítico quase unânime “pôs em hora certa os relógios atrasados de nossa literatura”. Já em meu livro Postumismo y Vedrinismo – Primeras vanguardias dominicanas (2011), eu me referia a algo certo, e que regularmente se esquece, que nenhum movimento, nenhum grupo literário ou artístico surge do ar ou é um fenômeno violento e isolado como um raio em um céu sem nuvens, porque sempre é possível rastreá-lo na história, na própria sociedade onde ocorre ou nas obras dos anteriores, seus antecedentes e suas gestações; daí que é necessário rastrear o passado, sobretudo o imediato, para encontrá-los; até agora não se sabe de alguém que tenha realizado esse rastreamento para ir observando os sinais de fumaça desde as colinas do passado na existência de La poesía sorprendida, como fizemos com o Postumismo. Recentemente li em um opúsculo intitulado Los Granell de André Breton – Sueños de amistad, a propósito da exposição de suas obras na galeria Guillermo de Osma em Madri, de 8 de abril ao 28 de maio de 2010, no qual se diz que este havia fundado a revista La poesía sorprendida. Isto não é certo, já que a origem esteve nos Triálogos, umas conversações entre Domingo Moreno Jimenes, Alberto Baeza Flores e Mariano Lebrón Saviñón, uns meses antes do surgimento da revista que, por seus repentismos já tinham o selo de experimentos surrealistas. Inclusive o nome surgiu da parte deste último quando disse daqueles diálogos que eram uma forma de surpreender a poesia. Se bem que não há dúvida alguma de que a presença, tanto de Granell quando de Baeza, aponte claramente qual foi a origem dessa marca vanguardista.
Embora o Surrealismo já fosse algo literariamente adulto, com quase 20 anos de vigência, quando André Breton passa por Santo Domingo, em 1941, e Granell, sendo repórter do jornal La Nación o entrevista anonimamente, de tal modo que mais tarde Benjamin Péret (que o havia conhecido na Espanha durante a guerra), comenta algo sobre ele com Breton, que estava em Nova York, e este não recordava o nome do entrevistador, no entanto, esse contato fortuito foi uma experiência extraordinária que lhe fez mudar para sempre e o converteu em um surrealista total. A presença de uma personalidade literária universal de vanguarda como era Breton deve ter impactado os jovens intelelctuais dominicanos que leram a entrevista e viram a foto em primeira página. Desse modo, se para muitos era ignorado, para a minoria sempre (como dizia Juan Jamón Jiménez), o termo Surrealismo ganhava espaço na cultura nacional. Em geral se esquece que havia muitos intelectuais, além de Granell, que naquele momento era um comunista exilado da guerra civil e vivia no país do jornalismo e sua profissão de músico clássico, o que lhe permitiu ser membro da primeira Orquestra Sinfônica Nacional fundada por Enrique Casals Chapí, enfim, que havia outros exilados conhecedores do que se passava na Europa, nas vanguardas, e a prova irrefutável é que em uma foto aparecia junto a Breton ninguém menos do que um dos poetas da Geração do ’27. Refiro-me ao poeta Pedro Salinas. De modo que o ambiente cultural era de um efeito estufa, por isto e pela necessidade de experimentar coisas que estivessem proibidas pelo regime, provocado por tantos talentos próprios e estranhos naquela grande aldeia que era a Santo Domingo de então (devastada há 11 anos por um furacão e apenas em processo de reconstrução), deve ter provocado uma grande curiosidade e o desejo de conhecer mais sobre os movimentos literários de ultramar. Isto indica que a terra estava suficientemente abonada para que esta semente literária não tardasse em frutificar; havia uma estufa, um clima cultural sob a ditadura necessitado de falar e escrever outras coisas que não fossem as loas ao tirano.
Além do mais, a Geração do ’27, com nomes emblemáticos como o de Federico García Lorca, profusamente citado em jornais e revistas, estimulava admirações. Pedro René Contín Aybar deu uma conferência sobre o poeta granadino e os declamadores incluíam seus romances no repertório. Desde os anos 1920 há vários exemplos na imprensa diária e na revista dos postumistas, e um poeta importante como Tomás Hernández Franco, que havia vivido na França em meio à euforia vanguardista Dadá e do Surrealismo, havia publicado no jornal Patria (que se opunha à intervenção norte-americana de 1916 a 1924), poemas inovadores que poderiam ser considerados, senão proto-surrealistas, decididamente ultraístas.
Manuel Rueda, em sua Antología panorámica de la poesía dominicana contemporánea 1921-1962, e outros críticos e historiadores da literatura, omitem que El día estético, a revista dos postumistas que começa a ser publicada em 1928, tinha como subtítulo Revista indo-universal de vanguarda, e não podia ser, certamente, um movimento fechado nacionalista ou criollista como sempre disseram os surpreendidos (este epíteto é da autoria de Ramón Francisco, um poeta e crítico nosso, que não tomou parte do grupo), isto porque a divisa destes, de Poesia com o homem universal, não era mais universalista nem mais vanguardista do que aquela e denota que longe de ser o que lhe acusava, era um movimento muito aberto ao que acontecia no país e no mundo, sem desprezar o criollo, e ao usar o termo de vanguarda tirava-lhe o aspecto de tabu que o mesmo poderia ter no meio conservadoramente modernista do país.
E há mais, em entrevistas e artigos e em suas práxis, tanto Moreno Jimenes como Rafael Augusto Zorrila, dois dos três fundadores do movimento postumista, paqueravam com o subjetivo, mesmo que Manuel Rueda tratasse de dizer que foi uma conquista dos surpreendidos; além do mais, eles estiveram abertos às ideias socialistas e há correspondência com Víctor Raúl Haya de la Torre e mostras amplas e difusas dos poemas de protesto que eram editados em diversos países, especialmente Peru e Cuba. Vivíamos em uma ilha, porém não estávamos fora do mapa e os jovens que publicaram ao princípio da ditadura de Trujillo em San Pedro de Macorís, La Vega, Santiago e Moca, eram abertamente socialistas, porque no país houve epígonos, tanto do subjetivismo, no Ricardo Pérez Alfonseca de Oda de um Yo, como sociais, no Federico Bermúdez de Los humildes, ambos livros da segunda década do século passado (1913 e 1916). De modo que urge revisar qualquer afirmação cortante de dentro ou de fora acerca das origens do movimento dos surpreendidos e sobre quem ou quantos influeciaram para que o Surrealismo, que era o movimento mais poderoso internacionalmente, sobretudo na América Hispânica naquele momento, fosse a vanguarda esgrimida por eles.
Já vimos que quando André Breton visitou Santo Domingo pela primeira vez, então Ciudad Trujillo, infectou Granell, que era jornalista e músico, com o vírus do Surrealismo. Em seguida, existe a confissão de Alberto Baeza Flores, que chega dois anos depois à delegação chilena, de que ele trouxe e difundiu entre seus amigos literatos dominicanos textos surrealistas.
De modo que Granell foi o representante da diáspora que se aproximou deles e formou parte do grupo inicial que se reunia na casa do poeta mais notável que era Franklin Mieses Burgos, que logo tornou-se consagrada como “a casa da poesia surpreendida”, primeiro como desenhista e logo como colaborador literário, sendo já surrealista bretoniano, e que ele e Baeza formaram a ponta de lança; inclusive o próprio Baeza, em um prólogo datado de 1984, na Espanha, para a edição de Los Triálogos (recompilação de Maria Lebrón, filho de Mariano, em 2003), disse coisas que não deixam lugar a dúvidas: “Aqueles que bem rapidamente e sem conhecer a órbita do movimento surrealista, costumam escrever que La poesía sorprendida chegava atrasada com um Surrealismo ‘que já havia deixado de existir’, esquecem que o movimento surrealista vivia, na Europa e na América, com motivo da segunda grande guerra mundial, uma etapa profundamente criadora, uma nova dimensão, da anterior” […] “Estas expressões eram mais paralelas ou simultâneas de Mandrágora, expressão do Surrealismo chileno. Com isto não desejo indicar que La poesía sorprendida fosse uma expressão surrealista exclusiva, nem mesmo em sua primeira etapa, pois deu espaço a outras expressões da poesia, embora sua simpatia pelo Surrealismo – especialmente em sua etapa inicial – tenha sido evidente, em atos, textos e homenagens. A presença constante de Eugenio Fernández Granell, desde as vinhetas e seus textos, era uma fé de vida surrealista.” Assim que, do mesmo modo que já vimos que encarregaram a criação da revista a Granell, isto que disse Gómez-Correa é da mesma estirpe apaixonada.
O detonante foi a visita de Breton unida à conversação de Granell que havia optado pela pintura e a literatura e a presença excitante de um agitador cultural da categoria de Alberto Baeza Flores, que vinha de Havana, onde o futuro grupo de Orígenes, com José Lezama Lima à frente, vivia em plena euforia vanguardista. Sem dúvida alguma, como se vê nos primeiros números de La poesía sorprendida a inclusão de poemas do grupo Mandrágora contribuiu a dar mais vigência ao Surrealismo, porém não foi o detonante principal, mas sim a visita de Breton, a presença de Granell e a chegada de Baeza.

FM | Eu creio em duas coisas: o acaso objetivo que atuou por trás dos acontecimentos políticos, no caso dominicano com a presença de Eugenio Granell e Alberto Baeza Flores; e a necessidade orgânica de criação de algo novo, de fazer com que através da arte e da cultura a ilha participasse da realidade continental. Havia no espírito uma ponte preparada para a comunicação entre dois mundos e ali estava a oportunidade para tanto. O que quero definir aqui é que a relação entre Surrealismo e La poesía sorprendida não está dada como uma sequência ou aceitação ou projeção da praça de armas parisiense. É o mesmo que penso acerca da revista Tropiques, da Martinica, ou dos poetas argentinos ao redor das revistas Ciclo, Letra y Línea etc. Sem o preconceito católico que impediu a presença do Surrealismo em Cuba e Brasil, certamente que em tons distintos, o que vimos é a gestação de um Surrealismo outro, que não é a submissão às ortodoxias europeias, mas sim o avanço natural das entrelinhas dos manifestos originais. Como, a partir da vigência de La poesía sorprendida, se desenvolve a lírica dominicana?

MMS | A primeira coisa que omiti foi o fato da “continuidade lírica rebelde”. É curioso que tanto Domingo Moreno Jimenes como Rafael Américo Henríquez e Manuel Llanes foram militantes postumistas. Trata-se de poetas que haviam se rebelado contra o modernismo. De Moreno não vou falar muito porque sua participação principal foi como animador do futuro movimento, por puro acaso. Sua amizade com o então caçula do movimento (Mariano Lebrón Saviñón, nascido em 1922 e o único que ainda vive) é o que o conecta com Baeza Flores na experiência dos Triálogos; Mieses Burgos vem de La Cueva. Entre ele e Rafael América há outro tipo de rebeldia: ambos rimam de vez em quando e sempre medem seus versos. Enquanto Moreno e Llanes são poetas livres. Baeza militou no Chile e em Cuba, em distintos cenáculos, desde os dois Pablos de sua pátria até Lezama em Havana; Granell é herdeiro de uma rica tradição cultural e conheceu bem os poetas do ’27, por ser pessoa culta. De modo que a princípio apenas Freddy Gatón Arce (1920), que também é estudante universitário como Lebrón, está virgem de pecados porque vem da prosa e pode assimilar melhor esse namoro com o Surrealismo, ao extremo de converter-se, com o passar do tempo, no poeta surrealista nacional por excelência em seu extenso poema Vlía. Existe a anedota de que Mieses Burgos lhe fez desistir de seu automatismo porque acreditava que ele ia se tornar louco; comentário que demonstra que tratou de experimentar de acordo com o Manifesto de Breton e talvez de forma mais ortodoxa que muitos dos nomes mais soados do movimento.
Como já foi dito, La poesía sorprendida foi aberta. Rastros surrealistas podem ser encontrados em todos, como na Elegía por la muerte de Tomás Sandoval, de Mieses Burgos, que contém as metáforas e imagens mais inovadoras:

Para teus olhos?… Sombras dos corais mudos!
Areia e apenas areia
para enterrar teus sonhos
marítimos de nuvens e de gaivotas brancas,
sobre um céu de coco nublado de sardinhas.

Se buscamos encontramos tanto em Baeza Flores como em “Rosa de tierra”, poema de Rafael Américo; nos versos de Manuel Llanes que sustentava que tomava um ano fazendo um poema porque os seus eram partos de elefoas. Creio que em todos há traços surrealistas, porque aqui cabe o que disse Rubén sobre o Romantismo, quem é que não é surrealista? Porém, em realidade, o que podia ser surreal na Europa era o natural no Caribe moreno como esse céu de coco nublado de sardinhas. Em Césaire, nos poetas haitianos, nos dominicanos, o Surrealismo podia se confundir com a realidade, sobretudo entre nós com um governo como o de Trujillo, já que o ditador, pouco menos que analfabeto, acreditava-se um intelectual e, simpatizando como simpatizava com Hitler e Mussolini, tinha que fazer o papel de homem aberto às ideias, aceitando os judeus e os exilados que fugiam de quem logo seria seu grande amigo: Francisco Franco; o fato de que o país estivesse impregnado de socialistas militantes, sendo ele o campeão anticomunista da América. Queres mais Surrealismo especial?
Agora bem, a chamada Geração do ’48 se seguiu aos surpreendidos, porém em sua maioria não conheceram a revista e curiosamente colaboraram na do governo, Los Cuadernos Dominicanos de Cultura, que foi a contrapartida dos intelectuais do regime encabeçados por Pedro René Contín Aybar, e contou com a co-direção de Tomás Hernández Franco e Héctor Incháustegui Cabral, e a colaboração de Pedro Mir e outros que não foram partidários do sistema, porém eram amigos dos mencionados; ao final os surpreendidos, atraídos por Contín Aybar quando desapareceu sua revista, acabaram colaborando também. As edições de La poesía sorprendida eram de poucos exemplares e desapareceram; nós que viemos imediatamente após os de ’48, nos ’50, a desconhecíamos e se tivemos acesso foi graças às relações com alguns, como em meu caso com Gatón Arce. Não houve a continuidade de uma corrente para outra, mas sim o efeito estufa, o clima deixado por eles; além do mais, as suas obras apareciam em antologias, nos suplementos e em algumas revistas, como Ágora; daí que a marca surrealista não se manteve. Aparece em alguns como ecos distantes, porém já então o importante era a temática social. Esses jovens nascidos no início da tirania ou bem próximo dessa época vieram com outras ideologias e, como eram jovens, uns foram neoromânticos ou materialistas como Neruda. Embora seja curioso que as primeiras Residências na terra não tenham despertado, como a terceira, as mesmas paixões que os 20 poemas. Lidas agora as nossas produções, ou seja, daqueles que tínhamos uns poucos anos e dos nascidos após 1930, nota-se a diferença com os surpreendidos em uma clara adscrição ao socialismo lírico. Inclusive, os surpreendidos mais conotados também haviam mudado. Uma temática necessária implicou em martírios: a maioria desses poetas padeceu cárcere, exílios e alguns, como no caso de Juan Carlos Jiménez, um dos mais promissores, foram assassinados e seus corpos não apareceram jamais. De modo que por isso a aventura surrealista em Santo Domingo não teve continuidade naqueles que vieram depois, porque então a ordem que havia era a do protesto político e social e a maioria seguiu essa corrente. E outra vez nós ficamos isolados na ilha. Já não tínhamos um Baeza para a difusão.

FM | É inquestionável o internacionalismo de La poesía sorprendida, com a publicação de autores de quase 30 países, muitos deles sem relação direta ou mesmo indireta com o Surrealismo. Porém uma vez mais se configura a quase completa ausência do Brasil em ambientes culturais em nosso continente. O único brasileiro publicado na revista é Ronald de Carvalho (1893-1935), voz poética inexpressiva em nosso modernismo. Qual te parece – como bom observador – ser a razão desse isolamento do Brasil em seu próprio continente?

MMS | Sem dúvida, os intelectuais da diáspora espanhola e muitos dos surpreendidos eram pessoas cultas e bem informadas. Na capital existia um cenáculo rebelde chamado La Cueva, na casa do poeta Rafael Américo Henríquez, que editou um jornal e do qual formaram parte Juan Bosch, Franklin Mieses Burgos e outros que logo entraram em La poesía sorprendida. Naturalmente, Bosch, que havia iniciado um movimento que encontrou eco e seguidores para resgatar o romance seguindo as trajetórias lorquianas em seu Romancero gitano, com exemplos próprios excelentes e de outros, muito bons, sob a mesma influência, que foram publicados na revista Bahoruco, do venezuelano Horacio Blanco Fombona, era um prosista já consagrado como contista. No interior, na cidade de La Vega, em 1936, Rubén e Darío Suro, Luis Manuel Despradel, Mario Concepción, Van Elder Espinal e outros jovens iconoclastas, fundaram o grupo Los Nuevos. Nessa cidade havia um fervor socialista muito relatado, dirigido por espanhóis como o pai de Juan Bosch e logo por exilados da diáspora.
Tudo isto está documentado profusamente e o mesmo ocorreu em quase todo o país, especialmente na capital.
Quanto ao que ocorria com o Brasil, devo apontar que nunca tivemos relações estreitas com Portugal ou Brasil (apesar de vários literatos criollos, como Max Henríquez Ureña e Héctor Incháustegui Cabral, entre outros, terem sido diplomatas no Rio de Janeiro), como se o português que se fala nesses países não fosse latino e tão familiar ao castelhano. Ignorávamos, os jovens estudantes, tudo o que fosse relativo ao grande país sul-americano, exceto alguns nomes de jogadores ou de artistas, como a graciosa Carmen Miranda. Nos livros de literatura não aparecia a brasileira, pois estudávamos apenas a hispano-americana. Não recordo se Arturo Torres Rioseco, em sua história literária – que era texto oficial –, mencionava poetas brasileiros, porém se o fazia os professores saltavam esse tema.
De certa forma vivíamos e seguimos vivendo de costas para o grande irmão, apesar das facilidades tecnológicas, embora os meios de difusão, as viagens, os contatos e a existência da globalização tenham ido apagando fronteiras e destruindo preconceitos, poucos escritores nossos poderiam apontar que, à parte Guimarães Rosa, Jorge Amado, Murilo Mendes e agora Paulo Coelho, tenham lido mais cinco ou seis escritores brasileiros.
É certo que quando a revista O Cruzeiro, editada em espanhol, passou a ser vendida no país, fomos tendo conhecimento do Modernismo brasileiro como algo diferente do hispano-americano, porém isto se deu muitos anos depois dos surpreendidos.
Como dado curioso eu te digo que na minha história da literatura latino-americana destaco a influência da diáspora espanhola em nossa cultura, pela primera vez em um texto para estudantes do ensino médio e faço um pequeno resumo da brasileira.
Resulta muito estranho o fato de que apenas Carvalho tenha sido citado e não em originais, mas sim em versões. Não conheço as razões dessa desconexão com o resto do continente que não falava castelhano, porém reconheço que era realmente grave. E me parece que essas foram algumas delas.

FM | Lendo o conjunto de cartas enviadas à redação da revista La poesía sorprendida me parecem sempre curiosas as palavras de estímulo de André Breton: “Este trabalho há que dar-lhe a conhecer na Europa. Vocês podem estar seguros de que na América Hispânica não existe uma revista de tão nobre qualidade. Muitos de seus colaboradores gozam de renome universal.” Bem, não fala de Mandrágora, suponho porque estava bem informado de que a revista chilena já não se publicava desde 1944. Quando andou por terras hispano-americanas a comunicação de Breton com os nativos se deu graças a sua mulher, Elisa Breton, chilena de nascimento, e Eugenio Granell, que atuavam como seus intérpretes, uma vez que não falava espanhol. A verdade é que não tinha como avaliar a importância de La poesía sorprendida, tampouco tinha conhecimento do que se passava em todo o continente hispano-falante. De que modo acreditas que as palavras de Breton influíram em algum tipo de recepção do movimento dominicano na Europa?

MMS | O que me parece é que o fato de não haver traduções de nossos poetas para o francês é uma das razões mais poderosas. A ausência de tradutores em nossa literatura impediu tradicionalmente que os poetas mais importantes sejam conhecidos internacionalmente, inclusive nos meios hispanos. É curioso que essa declaração do sumo pontífice do Surrealismo não tenha despertado mais interesse; porém também é certo que até as últimas gerações a apatia por se dar a conhecer fora do território nacional era o frequente entre nossos literatos. Salvo Manuel del Cabral, que era seu primeiro propagandista, e dois ou três mais tradicionais que foram difundidos por Pedro e Max Henríquez Ureña, os manuais de uso de universidades e escolas secundárias não passavam de três ou quatro nomes e dois ou três exemplos, se muito, ou eram olimpicamente esquecidos. Enquanto que no Haiti, Martinica e outras ilhas que eram então colônias francesas, seus intelectuais se formavam na França e escreviam nessa língua, nos mantínhamos quase orgulhosamente unilíngues.
Há um fato que é preciso destacar. Durante 22 anos, de 1822 a 1844, os haitianos ocuparam a parte da ilha Hispaniola que depois se chamou República Dominicana e o francês foi o idioma oficial, e até finais desse século os códigos e os textos de estudo das carreiras profissionais estavam redigidos em francês e nossos profissionais se formavam em Paris ou na Bélgica, e por isso os poetas românticos e muitos dos modernistas falavam francês com fluência e quase todo o mundo lia os livros nesse idioma, de modo que se recebia a influência diretamente. A partir das nossas vanguardas, um nacionalismo talvez necessário frente à invasão norte-americana se concentrou na língua-mãe e se acaso aprendíamos outra era o inglês, por se tratar do idioma do invasor imperial.
Quando Breton chega em 1941 não creio que fizesse contatos com os falantes da língua gala como Tomás Hernández Franco e outros, que haviam se formado em Paris, daí que, lamentavelmente, em 1946, quando regressa, tem apenas a Granell e sua nova mulher chilena com quem se casou após viver em Nova York e no Havaí, como bem dizes, para traduzir-lhe. Para mim, essa ausência não se trata de uma questão de qualidade, mas sim que a falta de tradutores é a chave. Se tu não tens acesso a um texto em tua língua, poderia ser a Ilíada, porém se estivesse em grego, jamais poderias ler nem difundir.

FM | Um pouco antes de La poesía sorprendida, nasce na Martinica a revista Tropiques, criada em 1941, por Aimé Cesaire, René Ménil e Aristide Maugée. No Haiti temos a publicação de dois livros de Magloire Saint-Aude: Dialogue de mes lampes e Tabou. No mesmo ano, Breton descobre, encantado, a poesia de Césaire, chegando a escrever, anos depois, o prólogo à edição de Les armes miraculeuses (1943). A revista alcança com dificuldades dois anos de publicação, porém algo se nota de tentativa de recuperação de seu patrimônico cultural nas ilhas do Caribe francês – aqui talvez o fato mais importante tenha sido a criação do movimento Négritude, graças a Aimé Césaire, Léopold Sedar Senghor e León-Gontran Damas. É incrível o que me contas, de que na República Dominicana não houvesse uma aproximação de tudo isso. Inclusive alguma relação com o Surrealismo havia sido antecipada pela amizade entre Leon-Gontran Damas e Robert Desnos que, em 1937, havia assinado o prólogo do livro Pigments, de Damas.

MMS | Podes estar completamente seguro de não sabíamos de nada e que isto se devia entre outras coisas à barreira da língua, que foi algo tremendo, juntamente com o isolamento que provocava a ditadura e a censura de toda correspondência que viesse do exterior, porque vivíamos de costas para o mundo, até mesmo o Haiti, nosso vizinho mais próximo, pela ideia absurda de que era um país selvagem cuja literatura não nos importava para nada. Não recordo que Gatón Arce, antes de ser surpreendido, nem mesmo Mieses Burgos, tenham me falado do conhecimento que se tinha desses poetas. Embora jamais tenhamos admitido, nós nos sentíamos diferentes, mais espanhóis ou hispano-americanos do que geograficamente caribenhos reais, o que não deixa também de ser surrealista que precisamente os que ganharam o Nobel nascidos no Caribe não falavam espanhol, embora as Antilhas Maiores, Porto Rico, Cuba e Santo Domingo tivessem talentos que poderiam merecê-lo. Do mesmo modo, tanto os haitianos como os demais caribenhos de fala francesa, inglesa ou holandesa ignoravam totalmente a literatura dominicana. É exatamente La poesía sorprendida que abre essas portas e essas curiosidades. Em nosso país somente após a morte de Trujillo é que foram traduzidos os romances haitianos e ainda não temos uma boa antologia da excelente lírica deles em espanhol. Pensa apenas no isolado que estava Brasil, precisamente pela língua, dos países do Sul e não estranhe nossa realidade insular, que ainda se mantém. É muito pouco o que conhecemos de tudo o que se continua fazendo, salvo os casos citados e o de Dereck Walcott, após ganhar o Nobel. Quando tu pertences a uma literatura, como nós à hispânica, regularmente não importam as de outras línguas.

FM | Fala um pouco dos Triálogos. É certo o que disse Alberto Baeza Flores de que, ainda que seja uma experiência de criação poética coletiva, há uma diferença orgânica em comparação com outros casos surrealistas – de que são exemplos Les champs magnétiques (Breton & Soupault) e L’immaculée conception (Breton & Éluard) –, pois “existia uma compenetração, um clima de criação de conjunto, porém o que buscávamos era que se perdessem as individualidades”.[1] Além dos textos que foram originalmente publicados em 1943 – vale recordar que são anteriores à criação do grupo e da revista La poesía sorprendida –, me parece que seguiram outras experiências iguais, inclusive homenagens a César Vallejo e Pablo de Rokha.

MMS | A respeito dos Triálogos, são a porta de entrada ao reino de La poesía sorprendida. Aquelas conversações meses antes da aparição da revista que logo teria esse nome, em plena rua e nas praças públicas, de três personalidades tão distintas entre si como Domingo Moreno Jimenes, Alberto Baeza Flores e o jovem Mariano Lebrón Saviñón, onde tomavam um tema e começavam a improvisar e anotar as expressões de cada um, que logo foram editadas duas dessas sessões e a outra se extraviou entre os papéis de Baeza em um avião a caminho da Europa, pois bem, elas se converteram em uma experiência surrealista, já que assim o foram em ação; nada mais surrealista, com certeza, do que andar pelas ruas de uma cidade anotando o que falavam de poesia ou de temas poéticos. A imagem que oferece esse cenáculo ambulante naquele país com um alto índice de analfabetismo, é nada mais, nada menos, que o de um filme surrealista. As pessoas os veriam, apesar de sua envoltura senhorial, como três loucos disparatados se acaso se aproximassem deles para escutá-los.
Em certo sentido, falamos que a presença de Baeza, que era um homem muito bem informado, é o que abre os olhos aos nossos jovens de então e é ele quem, juntamente com Granell, internacionalizam a revista. Porém há mais, sem eles dois é muito difícil que tudo aquilo tivesse sido aceito e houvesse toda essa abertura. Então teria sido quase impossível, para os insulares pegados pela férrea ditadura, obter os endereços e saber da existência dessas publicações. Inclusive muitas coisas chegaram porque vinham nas malas diplomáticas. Quem não viveu aquela tirania não pode fazer ideia do que era, e como uma mostra eu te dou dois exemplos: Moreno Jimenes, embora recebesse convites de diversos países, só viajou a Porto Rico; Mieses Burgos também, sua única saída foi até a ilha vizinha. Ter um passaporte não era direito, era um privilégio diretamente concedido pelo ditador e sua maquinaria terrorista. Eles te submetiam a uma investigação e se acaso tinhas algum familiar desafeto ou inimigo do regime, de imediato te negavam sem direito a protesto.
Sem o Baeza diplomata é impossível imaginar La poesía sorprendida.

FM | Há pouco me falaste que Breton, quando Péret conversa com ele sobre o jornalista que lhe havia entrevistado em Santo Domingo, ele já não recorda seu nome. O jornalista era exatamente Eugenio Granell, bem o sabemos. Isto me recorda outra coisa. Em entrevista que lhe fez Stefan Baciu, destaca Alberto Baeza Flores: “No extenso estudo de Jean-Louis Bédouin no tomo dedicado a André Breton em Poètes d’Aujourd’hui (Paris: Pierre Seghers, 1963), não encontrei a informação desta viagem de Breton às Antilhas, em 1945-46. Ali se diz que no final de fevereiro de 1945, Elisa e André Breton abandonaram Port-au-Prince a caminho da Martinica. Se consultamos as rotas de navegação nas Antilhas, até a Martinica, veremos que a capital dominicana – tanto nas rotas aéreas como marítimas – era um ponto ou escala do trajeto. E me parece que Breton passa por Santo Domingo e vê os poetas de La poesía sorprendida então e não em dezembro de 1945, antes de sua chegada ao Haiti.”[2] O que me parece, afinal, é que a relação de Breton com o continente americano considerou a paisagem, como podemos ler em alguns de seus livros, porém jamais seus poetas e seus artistas.

MMS | É curioso, porém realmente Breton não cita nenhum dos poetas em particular. Quando se referiu a eles o fez generalizando. Não sei se por causa da língua ou por qual outro motivo. Suponho que lhe presentearam os exemplares da revista até então publicados, e que tudo se deu como pensa Baeza. Há provas de que sua viagem foi em 1946, acompanhado de sua nova esposa.

FM | Esquecemos algo?

MMS | Realmente não sabemos tudo o que ocorreu. Baeza é quem mais escreveu sobre essa experiência, mas sempre restam coisas no tinteiro. Inclusive recordo sua preocupação por publicar seus artigos de La Opinión que ninguém se preocupou de resgatar e ainda hoje é missão pendente. Mieses Burgos me disse que tinha vários livros inéditos, entre eles um de memórias. Quando indaguei a seu filho Franklin Manuel este me respondeu que não os havia encontrado. Quem sabe, qualquer dia, como por vezes tantas coisas são encontradas, topemos com algum detalhe iluminador como este de Baeza de que trouxe um número de Minotaure e outras novidades sobre o Surrealismo a Santo Domingo. Porém não vamos entrar no território das conjecturas.

[2012]

NOTA
Manuel Mora Serrano (República Dominicana, 1933). Escritor, jornalista e pesquisador de literatura, com intensa trajetória de atuação na vida cultural de seu país. Em 2011, publicou um amplo e indispensável volume crítico: Postumismo y vedrinismo – Primeras vanguardias dominicanas.



[1] Alberto Baeza Flores, La poesía dominicana en el siglo XX. Santo Domingo: Universidad Católica Madre y Maestra, 1976.
[2] “André Breton y La poesía sorprendida – Alberto Baeza Flores y el Surrealismo en el Caribe”, entrevista incluída em Surrealismo latinoamericano – Preguntas y respuestas, de Stefan Baciu. Chile: Ediciones Universitarias de Valparaíso, 1979.

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