FM - Ao referir-se à tua poética Ángel Crespo
nos chama a atenção para o recurso às “infrações desmitificadoras das
sintaxes”. Não somente em relação à sintaxe, a poesia me parece essencial
justamente por sua condição infratora. O que andaste a buscar através da
poesia? O que ela tem te revelado após tão largo e intenso diálogo com seus
caprichos de toda ordem?
AH - A «condição infratora» foi um aspecto
determinante na minha carreira literária e sobretudo na minha poesia da fase
experimental, que ocorreu entre os anos 60 e 80. depois desse período de
intensa experimentação na área verbo-voco-visual – como na esteira de Joyce
preconizava o Experimentalismo mundial – libertei-me dessas influências
seguindo um caminho mais própria, mais pessoal. Consegui isso separando a minha
poesia verbal da minha poesia visual, que se individualizou também,
aproximando-se mais da pintura e do cinema. O que o Experimentalismo trouxe
para o meu trabalho poético foi uma oportunidade de colaborar ativamente num
processo de questionamento dos modelos herdados pelas convenções da nossa
cultura secular e ao mesmo tempo participar numa ação cívica contra o establishment
político que nos anos 60-70 se vivia em Portugal e, depois do 25 de abril,
participar na euforia da libertação que então se produziu. A partir dos anos 80
esse aspecto já tinha evoluído e assim fiquei livre para outras pesquisas, mas
é preciso notar que mesmo durante o meu período experimentalista eu me dediquei
à investigação da literatura portuguesa do período barroco, que me levou a
descobrir o enorme acervo de poesia dessa época, visual ou não, que prossigo
até hoje, e que foi para mim e, creio, para a cultura portuguesa, uma revelação
da maior importância. As obras que nessa área publiquei, e continuo a publicar,
são hoje clássicos da cultura nacional, mas na altura em que comecei a
divulgá-las fizeram parte da minha «condição infratora», pois a área do Barroco
era então considerada uma fase negra da nossa história criativa.
FM - Em seu livro O Surrealismo na Poesia
Portuguesa (Frenesi, 2ª ed., Lisboa, 2002), Natália Correia estabelece uma
série de categorias a partir das quais define a inserção das mais
variadas poéticas em um mapa do surrealismo em Portugal. Tua poesia
não escapa à ótica limitadora da ensaísta e ali te encontras em capítulo
dedicado à anamorfose, sendo a partir desta “perspectiva anamorfótica” que a
autora sugere tua afinidade com o Surrealismo. Dirias que há mesmo tal
afinidade? E como consideras essa leitura do Surrealismo levada a termo por
Natália Correia?
AH - A «perspectiva anamorfótica», que se aplica
com justeza a certa arte do período Maneirista/Barroco, não se deve confundir
com aquilo a que Natália Correia chama «o olho selvagem», que é uma bela frase,
mas pouco mais. O conceito de Surrealismo que ela tem, como sendo uma
«depravação da perspectiva óptica», correspondendo a um momento em que «as
coisas se simplificam para o poeta quando começam a ser absurdas para os
outros», aplica-se talvez a alguns surrealistas, mas não é o que caracteriza o
Experimentalismo. Na verdade, o Experimentalismo opõe-se ao Surrealismo,
nomeadamente ao seu «automatismo psíquico», assim como o Surrealismo se opõe ao
Neo-Realismo. De resto, a idéia de encontrar o Surrealismo em toda a parte,
como ela faz, imita o que Eugénio D’Ors fez com o Barroco, que deu origem a uma
discussão interminável e vã. Dito isto, há uma coisa que nunca se pode
esquecer: a história cultural é um percurso cheio de rupturas e retornos – algo
que foi no passado sempre se infiltra no que é presente, ou em sucessivos
presentes -, e os poetas da geração de 50/60 que enveredaram por uma postura
experimentalista, acusam ecos de um passado ainda muito próximo. Outros, como
Mário Cesariny e Herberto Hélder, colaboraram nos Cadernos da Poesia
Experimental por engano, e logo que o Experimentalismo se definiu criticamente
fugiram espavoridos…
FM - De fato, há tanto teóricos que veem
determinada tendência ou escola em tudo, quanto aqueles que querem restringir
seu campo de atuação. No Surrealismo seguimos tendo os dois casos, e não só em Portugal. No que diz
respeito ao Experimentalismo, acaso seria possível apontar exemplos concretos
dessas modalidades de desfoques?
AH – O Experimentalismo, em Portugal, nunca teve
aceitação comparável ao Surrealismo. Era mais difícil de entender e era mais
novo do que o Surrealismo, que chegou a Portugal com décadas de atraso.
Quando cá chegou já tinha praticamente acabado em França. Tinha
havido, portanto, tempo para ser assimilado. O Experimentalismo não chegou
atrasado. Chegou mesmo no início da difusão do Movimento internacional. No
início dos anos 60, quando surgiu com os Cadernos da Poesia Experimental I e II
(1964-1966), era uma novidade em toda a parte mas a sua teorização não tinha
sido ainda bem compreendida e assimilada. Só com o tempo se tornou mais clara a
sua evolução a partir da Poesia Concreta. Realmente o Concreto/Experimentalismo
não se confunde com nada, porém não deixa de ter os seus antecedentes:
Mallarmé, Joyce, alguns aspectos do Futurismo/Dadá e mesmo do Surrealismo,
assim como a linguística moderna e mais remotamente com os poetas visuais da
antiguidade greco-latina e depois barroca etc. Além disso, como movimento de
vanguarda, tem semelhanças, na sua estratégia, com todos os movimentos de
vanguarda de todos os tempos: marginalização assumida, postura política,
radicalismo teórico e prático etc. Mesmo hoje em dia não foi ainda devidamente
compreendido, embora os vocábulos «experimental» ou « experimentalismo» sejam
usados em diversos contextos. Quem está mais ou menos conscientemente usando a
«lição» da PO.EX (abreviatura de Experimentalismo Português) são sobretudo os
artistas, os que fazem design, publicidade ou cinema, não os poetas.
FM - Em termos de criação poética, quer pensemos
na escritura automática do Surrealismo ou no que chamas de “escrita
conceitual”, acaba por se revelar a maneira como o que há de expressivo,
essencial, se organiza no íntimo do poeta. Em todo caso, pela própria condição
humana, busca-se a comunicação, o que nos leva aos domínios do significado,
tornando irrelevante, quando menos, o isolamento do signo como se propunha na
experiência do Concretismo. De que maneira vês como complementares as duas
modalidades de escrita poética aqui mencionadas?
AH - Não são complementares a não ser do ponto
de vista histórico. A comunicação é uma preocupação de todos os movimentos
artísticos – quer facilitando-a quer dificultando-a, como é o caso de todos os
movimentos de vanguarda. Cada nova geração quer sempre ultrapassar a anterior,
e no fim, cada nova tendência acrescenta sempre algo ao curso geral da
criatividade. Só que umas acrescentam mais do que outras.
FM - Em que sentido te referes ao livro, em um
poema do livro O pavão negro (2003), como «um golem alugado»?
AH – A frase «um golem alugado» é uma citação de
um amigo meu espanhol a quem o poema é dedicado. Mas o que é um golem? Um golen
é um homúnculo, um ser criado por artes mágicas dotado de poderes
sobrenaturais, para cuja fabricação, por exemplo Paracelso, deu a receita, mas
está sobretudo ligado à tradição hebraica medieval e ao Rabino Lowe etc. Goethe
também fala do golem no seu Fausto. Essencialmente representa a audácia
do homem ao querer substituir-se a Deus, ou à natureza, criando por suas
próprias mãos, um ser sem ser pela via normal… O livro é um «golem alugado» na
medida em que é um ser (um objeto) provisoriamente «habitado» por uma
existência que lhe é «emprestada» pelo seu autor e utente. A arte mágica que
cria o golem/livro é a arte da escrita.
FM - Em entrevista que concedeste a Ana Marques
Gastão, dizes que “antroporfizar um anjo é no mínimo um sacrilégio”. Como vês,
a propósito, a relação entre sagrado e material, enigma e factual, religioso e
cotidiano, percebido pela lírica portuguesa posterior à tua geração? Quem
estaria hoje a cometer sacrilégio, por exemplo, ante as perspectivas de
entrelaçamento desses elementos aqui evocados?
AH - Essa frase diz respeito ao meu livro Rilkeana,
em que eu faço Variações sobre as Elegias de Duíno, de Rilke,
obra desse poeta em que os anjos têm um lugar importante. A obra de Rilke, em
geral, teve muita importância em determinada época da poesia portuguesa, dando
lugar a uma vaga de imitadores, que Jorge de Sena apelidou de «rilkinhos» no
seu livro Peregrinatio ad loca infecta, de 1969, onde aliás inclui uma
homenagem ao poeta mas denuncia «essa mentira dos anjos porque o humano é
incômodo». É evidente que o meu poema, publicado em 1999, apesar de ser uma
homenagem não é um poema laudatório/imitativo. É um diálogo com essa obra e
alguns conceitos nela presentes. Com os radicalismos religiosos que neste
momento imperam no mundo tudo pode – ou não – ser discutido.
FM - E quais outras vagas, desde Pessoa, teriam
sido avassaladoras, recorrendo a um termo empregado por João Barrento no caso
de Rilke, dentro da tradição lírica portuguesa? E como se comporta hoje, sob
esse aspecto, a poesia que nos é contemporânea?
AH – Pessoa foi e continua a ser o grande
modelo, o grande inspirador, juntamente com Camões. Mas há uma enorme lista de
«inspiradores». Tudo depende da formação de cada poeta. A escola francesa dos
séculos XIX e XX influenciou a maior parte dos escritores portugueses
contemporâneos, mas há também os que seguiram a escola anglo-americana ou a
alemã. Há mesmo uma nítida separação na adesão a uma escola e outra. Eu
pertenço nitidamente à escola anglo-americana-alemã, que é, aliás, a que domina
atualmente.
FM - A participação de Herberto Helder em um
ambiente de poesia experimental portuguesa me parece bastante efêmera e não
muito significativa no próprio desdobramento de sua poética. Na mesma
entrevista, mencionas o aspecto redutor do Concretismo e certo desgaste no
experimentalismo, ao longo de duas décadas de sua projeção em Portugal. Gostaria
que me falasses um pouco mais desses aspectos aqui referidos.
AH - O movimento da Poesia Experimental
Portuguesa, iniciado oficialmente com a publicação dos seus dois Cadernos – de
1964 e 1966 -, fui fundado em Lisboa por António Aragão e Herberto Hélder,
ambos madeirenses mas residentes na capital. Logo a seguir, Herberto Hélder
desligou-se completamente e António Aragão, Melo e Castro, Salette Tavares e eu
própria, com mais alguns, assumiram a tarefa de levar para diante o Movimento,
teorizando, publicando, intervindo agressivamente a nível nacional e
internacional. Muito importante na época foi a sua postura anti-establishment,
pois desde 1961 decorria a Guerra Colonial que só terminou em 1974 com
Revolução dita «dos cravos». O Experimentalismo Português, além de derivar,
inicialmente, do Movimento da Poesia Concreta, sobretudo de origem brasileira,
por influência de Melo e Castro, que depois se alargou ao que hoje poderemos
chamar de Experimentalismo Mundial, teve essa particular dimensão histórica,
mas também se inseria nos movimentos de contestação mundial, como os célebres make
love not war, women’s lib, pop art, rock and roll
etc., seus contemporâneos. Tudo isto contribuiu para a verdadeira perseguição
de que os Experimentalistas foram objeto, mas também é verdade que os textos
que produziram nessa época eram uma afronta ao imobilismo nacional e seus
mandarins. Textos como por exemplo o meu poema LEONORANA, escrito nos
anos 60 mas só publicado em 1970, baseado num conhecido tema camoniano, causou
um escândalo que ainda hoje não se dissipou completamente.
AH - Mas exatamente em que, a partir de um dado
momento, passas a considerar redutora a experiência da Poesia Concreta? Em que
sentido se dá este alargamento da Poesia Experimental Portuguesa e quais seus
pontos em comum com os diversos movimentos de contestação mundial aqui citados,
além do plano da mera coincidência cronológica?
AH – Como expliquei no prefácio à antologia da
minha poesia experimental, publicada em 2001, intitulada Um calculador de
improbabilidades, eu rapidamente me apercebi dos limites da Poesia Concreta
ortodoxa e portanto, desde cedo comecei a evoluir para o que veio a chamar-se
Poesia Visual, que era um campo de exploração muito mais vasto e que acabou por ser aquele que veio a
definir-se afinal como Experimentalismo. Nesse prefácio eu refiro também todos
os movimentos de contestação mundial aos quais o Concreto/Experimentalismo se
ligou, característicos da década de 60, uma época revolucionária em termos
artísticos e sociais bem conhecidos, aos quais, a conjuntura política
portuguesa (o regime de Salazar, a guerra colonial etc.) acrescentava uma
coloração especial.
FM - Que importância tiveram na consubstanciação
dessa fase experimentalista nomes como António Aragão e Salette Tavares? E o
que se mantém com um frescor atemporal na poética de todos os que
compartilharam contigo essa aventura?
AH - António Aragão, Salette Tavares, Melo e
Castro, e outros, produziram textos de grande importância teórica e artística
que hoje começam a ser devidamente apreciados. Mas o Experimentalismo teve a
sua época – terminou nos anos 80 – e os que por acaso persistem em ficar
agarrados ao passado precisam de acordar rapidamente.
FM - Considerando o que dizes seria possível
destacar algo, em particular, de António Aragão e Salette Tavares, por exemplo?
E de que maneira o Experimentalismo português influencia, a teu ver, as
gerações que o sucederam?
AH – António Aragão, como um dos fundadores da
PO.EX, foi uma figura de destaque. A sua obra poética e plástica, hoje pouco
acessível, é extremamente interessante, enquanto que a sua participação teórica
é bastante reduzida. Salette Tavares, não tendo sido fundadora do Movimento, a
ele se associou de uma forma muito ativa e original. A sua obra poética foi
postumamente reunida num volume editado pela Imprensa Nacional, em Lisboa. Em 1995 foi
feita uma grande exposição da sua poesia gráfica na Casa Fernando Pessoa, em
Lisboa, para cujo catálogo eu escrevi um largo texto sobre o seu papel na
PO.EX. Infelizmente, Salette Tavares, muito competente em Estética e História
da Arte, não teve participação teórica no Movimento. Quanto a influências da
PO.EX. nas gerações atuais, creio que já respondi quando falei do que foi o
Movimento no seu tempo.
FM - Tens um ciclo de poemas dedicados ao
Brasil. O que teria sugerido esse diálogo? Além daqueles nomes ligados ao
Concretismo, seria possível mencionar mais afinidades tuas com poetas
brasileiros?
AH - O Brasil teve um grande papel na minha
vida. Tive e tenho lá grandes amigos que me estimaram como pessoa e como
escritora – por exemplo, a minha novela O Mestre, de 1963, fez parte da
formação acadêmica de estudantes de literatura portuguesa nas universidades
brasileiras durante décadas… Os textos que coligi no meu recente livro Itinerários,
intitulados Evocação do Brasil, datados de 1970-90, fazem eco do meu
amor por esse país, pela sua natureza deslumbrante, pela sua carinhosa gente.
Durante muitos anos fui regularmente ao Brasil para participar em Congressos e
Colóquios, viajando de norte a sul, sempre descobrindo novas formas de
encantamento.
Quanto ao contato com a literatura brasileira,
foi sempre muito intenso. Falando de poetas do século XX, João Cabral de Melo
Neto e Drummond de Andrade, entre outros, foram muito importantes para mim e para
a maior parte dos poetas portugueses do seu tempo. Mas os prosadores também.
Érico Veríssimo, Jorge Amado, Guimarães Rosa e tantos outros, tiveram um
impacto enorme na cultura portuguesa. O meu conhecimento da obra dos
concretistas brasileiros (poética e teórica) desempenhou um papel importante na
evolução da minha poesia, mas tenho também de mencionar o contato que ainda
hoje mantenho com Affonso Ávila e o grupo de Minas, inclusive pelo seu empenho
na defesa e na divulgação do Barroco, em que Haroldo de Campos também se destacou.
FM - Justamente em um poema de Itinerários
(2003), dizes: «Ah / como é desigual / a viagem da descoberta!» Mas acaso não
radica nessa desigualdade o aspecto mais fascinante da viagem, no que diz
respeito a estar aberto à presença de todos os horizontes? O que segues a
descobrir?
AH – Sim. Mas a descoberta de que eu falo nesse
poema é o processo da criatividade: sua luta, seus esplendores e fracassos, sua
interminável procura.
FM – Eu também me referia a este mesmo sentido
de descoberta.
[2005]
[Ana Hatherly (Portugal, 1929)]
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