sexta-feira, 22 de agosto de 2014

ANA HATHERLY | Os espelhos da escrita



FM - Ao referir-se à tua poética Ángel Crespo nos chama a atenção para o recurso às “infrações desmitificadoras das sintaxes”. Não somente em relação à sintaxe, a poesia me parece essencial justamente por sua condição infratora. O que andaste a buscar através da poesia? O que ela tem te revelado após tão largo e intenso diálogo com seus caprichos de toda ordem?

AH - A «condição infratora» foi um aspecto determinante na minha carreira literária e sobretudo na minha poesia da fase experimental, que ocorreu entre os anos 60 e 80. depois desse período de intensa experimentação na área verbo-voco-visual – como na esteira de Joyce preconizava o Experimentalismo mundial – libertei-me dessas influências seguindo um caminho mais própria, mais pessoal. Consegui isso separando a minha poesia verbal da minha poesia visual, que se individualizou também, aproximando-se mais da pintura e do cinema. O que o Experimentalismo trouxe para o meu trabalho poético foi uma oportunidade de colaborar ativamente num processo de questionamento dos modelos herdados pelas convenções da nossa cultura secular e ao mesmo tempo participar numa ação cívica contra o establishment político que nos anos 60-70 se vivia em Portugal e, depois do 25 de abril, participar na euforia da libertação que então se produziu. A partir dos anos 80 esse aspecto já tinha evoluído e assim fiquei livre para outras pesquisas, mas é preciso notar que mesmo durante o meu período experimentalista eu me dediquei à investigação da literatura portuguesa do período barroco, que me levou a descobrir o enorme acervo de poesia dessa época, visual ou não, que prossigo até hoje, e que foi para mim e, creio, para a cultura portuguesa, uma revelação da maior importância. As obras que nessa área publiquei, e continuo a publicar, são hoje clássicos da cultura nacional, mas na altura em que comecei a divulgá-las fizeram parte da minha «condição infratora», pois a área do Barroco era então considerada uma fase negra da nossa história criativa.

FM - Em seu livro O Surrealismo na Poesia Portuguesa (Frenesi, 2ª ed., Lisboa, 2002), Natália Correia estabelece uma série de categorias a partir das quais define a inserção das mais variadas poéticas em um mapa do surrealismo em Portugal. Tua poesia não escapa à ótica limitadora da ensaísta e ali te encontras em capítulo dedicado à anamorfose, sendo a partir desta “perspectiva anamorfótica” que a autora sugere tua afinidade com o Surrealismo. Dirias que há mesmo tal afinidade? E como consideras essa leitura do Surrealismo levada a termo por Natália Correia?

AH - A «perspectiva anamorfótica», que se aplica com justeza a certa arte do período Maneirista/Barroco, não se deve confundir com aquilo a que Natália Correia chama «o olho selvagem», que é uma bela frase, mas pouco mais. O conceito de Surrealismo que ela tem, como sendo uma «depravação da perspectiva óptica», correspondendo a um momento em que «as coisas se simplificam para o poeta quando começam a ser absurdas para os outros», aplica-se talvez a alguns surrealistas, mas não é o que caracteriza o Experimentalismo. Na verdade, o Experimentalismo opõe-se ao Surrealismo, nomeadamente ao seu «automatismo psíquico», assim como o Surrealismo se opõe ao Neo-Realismo. De resto, a idéia de encontrar o Surrealismo em toda a parte, como ela faz, imita o que Eugénio D’Ors fez com o Barroco, que deu origem a uma discussão interminável e vã. Dito isto, há uma coisa que nunca se pode esquecer: a história cultural é um percurso cheio de rupturas e retornos – algo que foi no passado sempre se infiltra no que é presente, ou em sucessivos presentes -, e os poetas da geração de 50/60 que enveredaram por uma postura experimentalista, acusam ecos de um passado ainda muito próximo. Outros, como Mário Cesariny e Herberto Hélder, colaboraram nos Cadernos da Poesia Experimental por engano, e logo que o Experimentalismo se definiu criticamente fugiram espavoridos…

FM - De fato, há tanto teóricos que veem determinada tendência ou escola em tudo, quanto aqueles que querem restringir seu campo de atuação. No Surrealismo seguimos tendo os dois casos, e não só em Portugal. No que diz respeito ao Experimentalismo, acaso seria possível apontar exemplos concretos dessas modalidades de desfoques?

AH – O Experimentalismo, em Portugal, nunca teve aceitação comparável ao Surrealismo. Era mais difícil de entender e era mais novo do que o Surrealismo, que chegou a Portugal com décadas de atraso. Quando cá chegou já tinha praticamente acabado em França. Tinha havido, portanto, tempo para ser assimilado. O Experimentalismo não chegou atrasado. Chegou mesmo no início da difusão do Movimento internacional. No início dos anos 60, quando surgiu com os Cadernos da Poesia Experimental I e II (1964-1966), era uma novidade em toda a parte mas a sua teorização não tinha sido ainda bem compreendida e assimilada. Só com o tempo se tornou mais clara a sua evolução a partir da Poesia Concreta. Realmente o Concreto/Experimentalismo não se confunde com nada, porém não deixa de ter os seus antecedentes: Mallarmé, Joyce, alguns aspectos do Futurismo/Dadá e mesmo do Surrealismo, assim como a linguística moderna e mais remotamente com os poetas visuais da antiguidade greco-latina e depois barroca etc. Além disso, como movimento de vanguarda, tem semelhanças, na sua estratégia, com todos os movimentos de vanguarda de todos os tempos: marginalização assumida, postura política, radicalismo teórico e prático etc. Mesmo hoje em dia não foi ainda devidamente compreendido, embora os vocábulos «experimental» ou « experimentalismo» sejam usados em diversos contextos. Quem está mais ou menos conscientemente usando a «lição» da PO.EX (abreviatura de Experimentalismo Português) são sobretudo os artistas, os que fazem design, publicidade ou cinema, não os poetas.

FM - Em termos de criação poética, quer pensemos na escritura automática do Surrealismo ou no que chamas de “escrita conceitual”, acaba por se revelar a maneira como o que há de expressivo, essencial, se organiza no íntimo do poeta. Em todo caso, pela própria condição humana, busca-se a comunicação, o que nos leva aos domínios do significado, tornando irrelevante, quando menos, o isolamento do signo como se propunha na experiência do Concretismo. De que maneira vês como complementares as duas modalidades de escrita poética aqui mencionadas?

AH - Não são complementares a não ser do ponto de vista histórico. A comunicação é uma preocupação de todos os movimentos artísticos – quer facilitando-a quer dificultando-a, como é o caso de todos os movimentos de vanguarda. Cada nova geração quer sempre ultrapassar a anterior, e no fim, cada nova tendência acrescenta sempre algo ao curso geral da criatividade. Só que umas acrescentam mais do que outras.

FM - Em que sentido te referes ao livro, em um poema do livro O pavão negro (2003), como «um golem alugado»?

AH – A frase «um golem alugado» é uma citação de um amigo meu espanhol a quem o poema é dedicado. Mas o que é um golem? Um golen é um homúnculo, um ser criado por artes mágicas dotado de poderes sobrenaturais, para cuja fabricação, por exemplo Paracelso, deu a receita, mas está sobretudo ligado à tradição hebraica medieval e ao Rabino Lowe etc. Goethe também fala do golem no seu Fausto. Essencialmente representa a audácia do homem ao querer substituir-se a Deus, ou à natureza, criando por suas próprias mãos, um ser sem ser pela via normal… O livro é um «golem alugado» na medida em que é um ser (um objeto) provisoriamente «habitado» por uma existência que lhe é «emprestada» pelo seu autor e utente. A arte mágica que cria o golem/livro é a arte da escrita.

FM - Em entrevista que concedeste a Ana Marques Gastão, dizes que “antroporfizar um anjo é no mínimo um sacrilégio”. Como vês, a propósito, a relação entre sagrado e material, enigma e factual, religioso e cotidiano, percebido pela lírica portuguesa posterior à tua geração? Quem estaria hoje a cometer sacrilégio, por exemplo, ante as perspectivas de entrelaçamento desses elementos aqui evocados?

AH - Essa frase diz respeito ao meu livro Rilkeana, em que eu faço Variações sobre as Elegias de Duíno, de Rilke, obra desse poeta em que os anjos têm um lugar importante. A obra de Rilke, em geral, teve muita importância em determinada época da poesia portuguesa, dando lugar a uma vaga de imitadores, que Jorge de Sena apelidou de «rilkinhos» no seu livro Peregrinatio ad loca infecta, de 1969, onde aliás inclui uma homenagem ao poeta mas denuncia «essa mentira dos anjos porque o humano é incômodo». É evidente que o meu poema, publicado em 1999, apesar de ser uma homenagem não é um poema laudatório/imitativo. É um diálogo com essa obra e alguns conceitos nela presentes. Com os radicalismos religiosos que neste momento imperam no mundo tudo pode – ou não – ser discutido.

FM - E quais outras vagas, desde Pessoa, teriam sido avassaladoras, recorrendo a um termo empregado por João Barrento no caso de Rilke, dentro da tradição lírica portuguesa? E como se comporta hoje, sob esse aspecto, a poesia que nos é contemporânea?

AH – Pessoa foi e continua a ser o grande modelo, o grande inspirador, juntamente com Camões. Mas há uma enorme lista de «inspiradores». Tudo depende da formação de cada poeta. A escola francesa dos séculos XIX e XX influenciou a maior parte dos escritores portugueses contemporâneos, mas há também os que seguiram a escola anglo-americana ou a alemã. Há mesmo uma nítida separação na adesão a uma escola e outra. Eu pertenço nitidamente à escola anglo-americana-alemã, que é, aliás, a que domina atualmente.

FM - A participação de Herberto Helder em um ambiente de poesia experimental portuguesa me parece bastante efêmera e não muito significativa no próprio desdobramento de sua poética. Na mesma entrevista, mencionas o aspecto redutor do Concretismo e certo desgaste no experimentalismo, ao longo de duas décadas de sua projeção em Portugal. Gostaria que me falasses um pouco mais desses aspectos aqui referidos.

AH - O movimento da Poesia Experimental Portuguesa, iniciado oficialmente com a publicação dos seus dois Cadernos – de 1964 e 1966 -, fui fundado em Lisboa por António Aragão e Herberto Hélder, ambos madeirenses mas residentes na capital. Logo a seguir, Herberto Hélder desligou-se completamente e António Aragão, Melo e Castro, Salette Tavares e eu própria, com mais alguns, assumiram a tarefa de levar para diante o Movimento, teorizando, publicando, intervindo agressivamente a nível nacional e internacional. Muito importante na época foi a sua postura anti-establishment, pois desde 1961 decorria a Guerra Colonial que só terminou em 1974 com Revolução dita «dos cravos». O Experimentalismo Português, além de derivar, inicialmente, do Movimento da Poesia Concreta, sobretudo de origem brasileira, por influência de Melo e Castro, que depois se alargou ao que hoje poderemos chamar de Experimentalismo Mundial, teve essa particular dimensão histórica, mas também se inseria nos movimentos de contestação mundial, como os célebres make love not war, women’s lib, pop art, rock and roll etc., seus contemporâneos. Tudo isto contribuiu para a verdadeira perseguição de que os Experimentalistas foram objeto, mas também é verdade que os textos que produziram nessa época eram uma afronta ao imobilismo nacional e seus mandarins. Textos como por exemplo o meu poema LEONORANA, escrito nos anos 60 mas só publicado em 1970, baseado num conhecido tema camoniano, causou um escândalo que ainda hoje não se dissipou completamente.

AH - Mas exatamente em que, a partir de um dado momento, passas a considerar redutora a experiência da Poesia Concreta? Em que sentido se dá este alargamento da Poesia Experimental Portuguesa e quais seus pontos em comum com os diversos movimentos de contestação mundial aqui citados, além do plano da mera coincidência cronológica?

AH – Como expliquei no prefácio à antologia da minha poesia experimental, publicada em 2001, intitulada Um calculador de improbabilidades, eu rapidamente me apercebi dos limites da Poesia Concreta ortodoxa e portanto, desde cedo comecei a evoluir para o que veio a chamar-se Poesia Visual, que era um campo de exploração muito mais vasto  e que acabou por ser aquele que veio a definir-se afinal como Experimentalismo. Nesse prefácio eu refiro também todos os movimentos de contestação mundial aos quais o Concreto/Experimentalismo se ligou, característicos da década de 60, uma época revolucionária em termos artísticos e sociais bem conhecidos, aos quais, a conjuntura política portuguesa (o regime de Salazar, a guerra colonial etc.) acrescentava uma coloração especial.

FM - Que importância tiveram na consubstanciação dessa fase experimentalista nomes como António Aragão e Salette Tavares? E o que se mantém com um frescor atemporal na poética de todos os que compartilharam contigo essa aventura?

AH - António Aragão, Salette Tavares, Melo e Castro, e outros, produziram textos de grande importância teórica e artística que hoje começam a ser devidamente apreciados. Mas o Experimentalismo teve a sua época – terminou nos anos 80 – e os que por acaso persistem em ficar agarrados ao passado precisam de acordar rapidamente.

FM - Considerando o que dizes seria possível destacar algo, em particular, de António Aragão e Salette Tavares, por exemplo? E de que maneira o Experimentalismo português influencia, a teu ver, as gerações que o sucederam?

AH – António Aragão, como um dos fundadores da PO.EX, foi uma figura de destaque. A sua obra poética e plástica, hoje pouco acessível, é extremamente interessante, enquanto que a sua participação teórica é bastante reduzida. Salette Tavares, não tendo sido fundadora do Movimento, a ele se associou de uma forma muito ativa e original. A sua obra poética foi postumamente reunida num volume editado pela Imprensa Nacional, em Lisboa. Em 1995 foi feita uma grande exposição da sua poesia gráfica na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, para cujo catálogo eu escrevi um largo texto sobre o seu papel na PO.EX. Infelizmente, Salette Tavares, muito competente em Estética e História da Arte, não teve participação teórica no Movimento. Quanto a influências da PO.EX. nas gerações atuais, creio que já respondi quando falei do que foi o Movimento no seu tempo.

FM - Tens um ciclo de poemas dedicados ao Brasil. O que teria sugerido esse diálogo? Além daqueles nomes ligados ao Concretismo, seria possível mencionar mais afinidades tuas com poetas brasileiros?

AH - O Brasil teve um grande papel na minha vida. Tive e tenho lá grandes amigos que me estimaram como pessoa e como escritora – por exemplo, a minha novela O Mestre, de 1963, fez parte da formação acadêmica de estudantes de literatura portuguesa nas universidades brasileiras durante décadas… Os textos que coligi no meu recente livro Itinerários, intitulados Evocação do Brasil, datados de 1970-90, fazem eco do meu amor por esse país, pela sua natureza deslumbrante, pela sua carinhosa gente. Durante muitos anos fui regularmente ao Brasil para participar em Congressos e Colóquios, viajando de norte a sul, sempre descobrindo novas formas de encantamento.
Quanto ao contato com a literatura brasileira, foi sempre muito intenso. Falando de poetas do século XX, João Cabral de Melo Neto e Drummond de Andrade, entre outros, foram muito importantes para mim e para a maior parte dos poetas portugueses do seu tempo. Mas os prosadores também. Érico Veríssimo, Jorge Amado, Guimarães Rosa e tantos outros, tiveram um impacto enorme na cultura portuguesa. O meu conhecimento da obra dos concretistas brasileiros (poética e teórica) desempenhou um papel importante na evolução da minha poesia, mas tenho também de mencionar o contato que ainda hoje mantenho com Affonso Ávila e o grupo de Minas, inclusive pelo seu empenho na defesa e na divulgação do Barroco, em que Haroldo de Campos também se destacou.

FM - Justamente em um poema de Itinerários (2003), dizes: «Ah / como é desigual / a viagem da descoberta!» Mas acaso não radica nessa desigualdade o aspecto mais fascinante da viagem, no que diz respeito a estar aberto à presença de todos os horizontes? O que segues a descobrir?

AH – Sim. Mas a descoberta de que eu falo nesse poema é o processo da criatividade: sua luta, seus esplendores e fracassos, sua interminável procura.

FM – Eu também me referia a este mesmo sentido de descoberta.


[2005]

[Ana Hatherly (Portugal, 1929)]

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