FM A tua formação musical reflete um ambiente
informal brasileiro ou tem alguma particularidade a ser destacada? Penso, por
exemplo, nesta tua aproximação casual do piano, a rigor comprado pelos pais
para tua irmã. É este o ponto inicial, não?
JSN Este é o ponto inicial do toque físico num
instrumento, mas musicalmente eu vinha me formando a partir de tudo que
compunha o universo sonoro da minha infância: marchinhas de carnaval, canções
no rádio, Altamiro Carrilho, Jackson do Pandeiro e Tia Amélia na TV,
toques de umbanda na casa vizinha etc.… Nesse ponto creio que essa
formação não é muito diferente das outras pessoas da minha geração (1954) e da
minha região (Zona Oeste do Rio).
FM Em uma entrevista mencionas, dentre as influências,
Jackson do Pandeiro e King Crimson, o que é curioso, sobretudo pela ausência do
piano como base nos dois exemplos. O que te chamava a atenção particularmente
nestes dois casos?
JSN No caso do Jackson, um bom humor ao mesmo tempo
malicioso e inocente, acoplado a um senso rítmico feroz. No King Crimson, uma
acidez mordaz e a capacidade de ir do sublime ao infernal sem barreiras. O fato
de não haver piano nessas gravações nem passou pela minha cabeça…
FM Eu observo o imenso carinho que tens pelo Hermeto
Pascoal, a maneira como falas que seu gênio um dia será reconhecido, e que a
dimensão desta genialidade requer mesmo certo tempo para sua percepção. Eu
penso em um exemplo aqui vizinho dos brasileiros, que é o Pablo Ziegler, que
foi pianista do grupo do Astor Piazzolla. Imagino que o carinho que Pablo tem
por Astor seja da mesma intensidade afetiva que tens por Hermeto. Contudo,
Astor contou, em vida, com um reconhecimento internacional e mesmo argentino um
pouco distinto daquele com que conta hoje Hermeto, pensemos em crítica ou
público. E a Argentina sequer tem uma mesma tradição musical de projeção
internacional como o Brasil. Como observas este tema?
JSN Esse é um assunto muito interessante, e
eu sempre penso muito a respeito. Uma coisa que é sempre difícil de fazer
é comparar duas carreiras musicais tão diversas como o Piazzola e o Hermeto.
Uma diferença marcante é que o Piazzola foi um músico genial que partindo de um
estudo musical acadêmico como aluno de composição de Nadia Boulanger em Paris,
retornou à Argentina e criou uma roupagem moderna para o tango, um estilo que
já era muito popular em todo o mundo. Daí ele ampliou o seu leque de cores,
escrevendo peças que hoje são tocadas por grupos de música de câmara etc.… Já o
Hermeto, totalmente autodidata, albino e deficiente visual, saiu de um vilarejo
no interior de Alagoas e foi construindo seu universo musical a partir de
empregos em regionais, tocando tudo desde o forró até o jazz, samba, bossa
nova, MPB. Se você examinar todos os movimentos musicais do Brasil a partir dos
anos 1950 — Beco das Garrafas no Rio, Bossa Nova, Samba jazz, os festivais de
MPB, o Hermeto está presente em todos eles, não como um coadjuvante, mas como
uma fonte de ideias e inspiração para todos os outros. Essa fonte de
criatividade musical expandiu-se a partir dos anos 1970 quando ele foi para os
Estados Unidos e influenciou toda uma geração de gigantes do jazz, desde Miles
Davis a Chick Corea, Gil Evans e Herbie Hancock. Para quem não conhece esse
lado do Hermeto, essa afirmação parece pretensiosa, mas eu posso garantir que é
verdade. Resumindo, eu acho que a falta de reconhecimento ao legado musical do
Hermeto deve-se justamente ao fato de que é impossível enquadrá-lo dentro de um
estilo, ou escaninho comercial. Sua obra é tão vasta que, como uma montanha
muito alta, precisa de certo distanciamento para ser totalmente apreciada. Como
você mencionou na sua pergunta, isso leva tempo.
FM O que a música te diz em termos de fortalecimento
existencial? Não me refiro ao convívio habitual com o universo da música, sua
agenda de shows, gravações, composição.
JSN A partir do momento em que o músico
sério e dedicado se dá conta da natureza e da essência da música, isso passa a
nortear sua vida assim como as outras forças do universo — tempo, gravidade,
luz, espaço, karma. A música não é uma carreira, nem um emprego. Tampouco é um
produto, um lazer ou uma comodidade. É um processo contínuo que segura as
galáxias nos seus eixos, que diz qual é o ritmo da órbita dos planetas, que
controla as reações químicas das enzimas e a evolução da vida. Tudo isso pode
ser definido em função de ritmos, harmonias e sincronicidades. O que é
isso, se não música? Quanto mais buscamos entender o cosmos, seja através da
contemplação mística ou da física quântica, mais perto chegamos de conceitos
aos quais os grandes músicos já chegaram há muito tempo.
FM Em algumas viagens pela América Hispânica, eu
tenho observado a intimidade com que músicos locais falam da música brasileira.
Não me refiro à canção, porque em geral eles são muito desinformados em relação
ao empobrecimento atual da canção brasileira, ou melhor, têm dela uma
informação cristalizada, quase mítica, de sua importância em um dado momento,
que é mais da ordem sociológica do que estética. Ao contrário, não conhecemos
quase nada da música hispano-americana, exceto o folclore acentuado por um Caetano
Veloso como sendo uma resposta a este princípio de cristalização, digamos [sua
incursão no cenário da canção popular internacional concorre com o catálogo do
selo Putumayo]. Porém há músicos oriundos de Cuba, Argentina, México, Panamá,
com seu valor e presença em um cenário internacional. Ouvimos a pior música dos
Estados Unidos — a melhor é quase sempre uma incógnita para nós — e
desconhecemos os países vizinhos. Tens algum comentário a este respeito?
JSN Tenho muitos amigos músicos que são cubanos, venezuelanos,
argentinos, colombianos, porto-riquenhos, etc. Há um sentido de afinidade muito
grande entre estas culturas musicais, em parte devido à língua espanhola que as
une. Existe um debate muito acalorado por aqui (EUA) sobre música latina. Há os
que dizem que a música brasileira deve ser vista como uma vertente separada, e
outros que a vêem como um dos afluentes do grande rio Latino. Eu não tenho uma
posição firme a respeito, pois consigo enxergar os dois pontos e ver o que eles
têm de certo e de errado. A meu ver, o que é necessário é que todos os músicos,
brasileiros ou não, consigam encarar a música de um ponto de vista (ou de
escuta) supra-nacional, ou seja, por cima das fronteiras que nem sempre
representam a diversidade e a riqueza das formas musicais.
FM De que maneira a ideia de “música livre” do
Hermeto poderia ser entendida como uma relação aproximada do que André Breton
defendia, em termos de Surrealismo, como um “livre pensamento integral”? Em uma
conversa que tive com um dos integrantes do Grupo Surrealista de Chicago,
falamos da proximidade de músicos como Hermeto e Frank Zappa do Surrealismo,
uma relação insólita do ponto de vista das origens francesas do movimento,
porque eram musicalmente surdos. Há muitos casos em que a imprensa refere-se a
uma “filosofia Hermeto”. O que pensas a este respeito?
JSN Breton e os surrealistas pregavam um enfoque livre
das restrições da percepção. Posso ver como a concepção do Hermeto, que
trata a música como uma força universal encontra simpatizantes nessas áreas. A
diferença é que quase todos os teóricos da arte partem de um processo
acadêmico, enquanto o Hermeto alcança e ultrapassa esses conceitos a partir de
uma musicalidade intuitiva e verdadeiramente naïve.
FM A rigor, havia mesmo uma comunidade Hermeto, algo
centrado em sua figura, em pleno esplendor de uma era que sob muitos aspectos
foi devorada por sua despretensão.
JSN Bem, houve aquele tempo todo entre, 1981 e
1992, em que o Grupo do Hermeto foi se aprimorando de uma forma
simbiótica. Eram 6 horas de ensaio por dia, 5 dias por semana. Isso criou uma
disciplina espartana que moldou o talento de todos os músicos que participaram:
eu, Itiberê Zwarg, Carlos Malta, Marcio Bahia, Pernambuco e Fabio
Pascoal . Essa comunidade existia em torno da liderança do Hermeto, e os
benefícios eram mútuos. Por um lado, nós, os músicos, tivemos a melhor escola
do mundo para aprender a tocar, compor, arranjar e liderar. E o Hermeto tinha
uma super-banda que dava a ele a possibilidade de imaginar o que quisesse, e
nós tocaríamos os sonhos musicais dele. Não posso dizer exatamente por que essa
era chegou ao fim, mas essa é a natureza dos processos orgânicos: nascimento,
crescimento e transformação. Não cabe dizer “morte”, porque as mesmas forças
continuam ativas no trabalho que nós, discípulos dessa escola, continuamos
fazendo hoje em dia.
FM E te observo em outra entrevista a falar de certas
composições como se houvesse toda uma trama cênica, o personagem que salta e
toca a ele uma ação, o que me lembra não propriamente o casamento da música com
o desenho animado ou o teatro, mas antes de sua compreensão como uma entidade
espiritual, com vida própria, que sugere toda uma existência. É assim que o
Jovino vê a música?
JSN Sem dúvida. Não se trata de dar um tratamento
pseudo-visual a uma arte que é por natureza invisível, mas sim de entender
que como a música é a forma de expressão mais sutil que existe,
podemos incorporar aos seus processos outros ciclos, sejam eles estórias,
sagas, sonhos, abstrações ou expressões mesmo visuais. Eu acabei de compor um
xote que por algum motivo me lembra um jumento trotando bem contente. Aí chamei
a música de “Donkey Xote”, que liga o burro (“donkey” em inglês) ao
Rocinante do Don Quixote, e isso tudo cria em minha mente um enredo que se
desenrola como um filme. O interessante é que, a cada execução, o filme é
completamente diferente!
FM Quem, afinal, é o Jovino Santos Neto?
JSN Essa pergunta eu me faço todos os dias ao acordar.
Eu sou a somatória de tudo o que rolou desde que eu nasci, mais tudo o que
aprendi dos outros, mais todos os eventos de todos os tipos que aconteceram e
que vão acontecer… e isso tudo é lenha pra fogueira da música.
FM Como observas o trabalho de outros músicos que
estiveram contigo na formação inaugural da banda do Hermeto, como esta
orquestra do Itiberê?
JSN A Itiberê Orquestra Família é maravilhosa, é
justamente a prova de que tudo aquilo que o Hermeto nos mostrou é uma proposta
válida. O trabalho do Itiberê com uma nova geração de músicos, bem como o meu
trabalho aqui nas escolas onde eu ensino nos Estados Unidos, é a aplicação
prática de uma nova concepção musical, levando a linguagem harmônica, rítmica e
melódica aos seus extremos, sem nunca perder o sotaque regional de onde ela
brotou. Hermeto continua sendo o ponto de referência desta escola, mas ela
existe mesmo sem a presença física dele. É importante frisar que as
várias formações do Grupo do Hermeto existiram desde os anos 60, e
praticamente todos os grandes músicos do país passaram pela nossa escola.
FM Nos anos 60 a proximidade entre música popular e erudita
era da ordem intuitiva ou da percepção despertada pelos agentes do êxtase,
digamos. Muito do que se conheceu como rock progressivo tinha por base o
passeio alucinógeno da época. O que foi determinante para ti, em tua formação,
em termos de música clássica?
JSN Meu estudo de música clássica se resume a uns 6
meses de aulas particulares de piano quando eu tinha 12 anos. O resto foi
de ouvido, gravando músicas que eu gostava do rádio e buscando
tirar no piano. Foi apenas quando comecei a tocar com o Hermeto em 1977
que eu vim a aprender leitura musical, harmonia e ritmo. A minha geração teve a
sorte de crescer numa época em que várias barreiras foram quebradas, inclusive
as da percepção. Isso possibilitou essa aproximação a que você se refere. Os
tempos são outros, há um recrudescimento das barreiras e das fronteiras, o que
faz nosso trabalho ser ainda mais importante.
FM E como a tua música se relaciona hoje com o que se
possa chamar de música erudita contemporânea? Isto envolve, segundo pensas, a
música que se compõe para cinema e teatro, ou acaso integram outra categoria?
JSN São coisas diversas. Eu escrevo bastante para
grupos de música de câmara. Há uma receptividade muito grande no meio musical
erudito para a música que combina o virtuosismo técnico com harmonias
requintadas e melodias inspiradas. Isso significa que a música brasileira, com
todos esses quesitos muito bem representados, é ideal para esse nicho. Como
falamos do Piazzola há pouco, ele é outro favorito desse meio musical. Sobre
música para cinema, aqui nos Estados Unidos isso é um outro universo do qual eu
não participo. Há muita gente escrevendo a mesma música, um abuso de clichês e
muita ganância.
FM Temos alguns selos de música instrumental, porém
de circulação muito restrita e em grande parte definida por uma barreira de
mídia em relação ao tema. Tua larga experiência de Estados Unidos traça qual
distinção entre os dois mercados no que diz respeito ao tema? A extinção dos
selos, ou seu deslocamento para uma vertente mais perversa, seria um parâmetro
para o entendimento deste assunto?
JSN Hoje eu vejo este movimento como um retorno
ao artesanato musical. A era das grandes gravadoras, grandes estúdios e
orçamentos gigantes para um projeto musical pertence ao passado, como os
dinossauros. O próprio conceito do disco como uma coisa contínua se diluiu com
os tocadores de MP3, onde geralmente se escuta um acervo de milhares de músicas
aleatoriamente, quase uma volta à “jukebox” e ao compacto simples, lembra? Com
a crescente inclusão digital, gravar um disco ficou mais accessível para muita
gente. Isso tem um reverso também, pois tem muita gente que ainda não está
preparada musicalmente para gravar lançando um CD atrás do outro. É sem dúvida
um tempo de transição, que requer criatividade e flexibilidade dos músicos.
FM De que maneira acreditas que o mercado defina a formação
de um músico no sentido de se orientar ou demarcar as opções estéticas?
JSN Essa é uma opção individual de cada músico.
No meio musical, geralmente se chama “comercial” àquela música fabricada para
consumo de massas. No entanto, essa palavra denota simplesmente aquilo que
pode ser comercializado. Ora, se um quadro do Salvador Dalí é vendido num
leilão, isso significa que sua arte é “comercial”? Eu, como muitos outros
músicos, gostaria que as pessoas comprassem meus discos e me chamassem para
tocar. Isso não significa que eu vou começar a tocar uma música pobre em termos
harmônicos e rítmicos, como muito do que se ouve nos rádios e TVs do mundo.
Nesse ponto o Hermeto teve uma influência enorme na nossa forma de conceber a
interseção entre nossa arte e a sobrevivência. Me orgulho de dizer que vivo
exclusivamente da música desde que me tornei profissional em 1977. Seja
compondo, tocando, arranjando, ensinando ou dando palestras, todas as minhas
atividades são coerentes com os preceitos básicos que aprendemos do nosso
mestre. Não são compartimentos estanques (tocar por grana, tocar por prazer
etc.…), mas um só universo em que todas as facetas se inter-relacionam.
[2006]
[Entrevista com Jovino Santos Neto (Brasil, 1954), publicada em Invenção
do Brasil. São Paulo: Editora Descaminhos, 2013. http://www.amazon.com/Inven%C3%A7%C3%A3o-Brasil-entrevistas-Portuguese-Edition-ebook/dp/B00FTBMR24]
Nenhum comentário:
Postar um comentário