FM Em uma entrevista dizes
que “exprimir emoção não é apenas uma questão estética, é questão de saúde. O
que tem buscado a poesia através da Astrid Cabral e como ela tem reagido a
isto, ao longo de sua obra?
AC Sou um ser de muita
compaixão. A doença é algo que me comove e abala. Na infância quando visitava o
tio-avô Teófilo, que em consequência de queda de rede tinha uma grande mala nas
costas, começava a sentir doer as minhas. As pessoas brincavam comigo, quem tem
pena é galinha, menina. A preocupação com saúde resultou de ter presenciado meu
pai no hospital, de turbante na cabeça já sem algum osso do crânio, meu avô
vítima de esclerose a falar de uma máquina monstruosa que um inimigo construíra
para eliminá-lo, minha irmã perdendo o fôlego em constantes crises de asma. Até
os 11, quando fui a Fortaleza conhecer a família de meu pai, meu projeto era
estudar medicina. Mas o sonho foi enterrado com o cadáver que eu vi na
Faculdade de Medicina, desfigurado, boiando em formol. Passei muito mal. Eu não
tinha os nervos, a devida serenidade para enfrentar tais situações. Ao longo da
vida, minha resposta foi valorizar a saúde e ocupar-me com a prevenção. Leio
apaixonadamente sobre o assunto e faço o possível para mantê-la. Acho que, de
um modo geral, as pessoas menosprezam o corpo, desrespeitando-lhe as
exigências.
Por outro lado essa idolatria
no mundo atual, a obsessiva malhação nas academias, não me convence. Não passa
de modismo meio mórbido. Uma falta de equilíbrio bastante insana, que aponta
para um vazio interior deplorável. As pessoas descartaram o fanatismo religioso
e adotaram o fanatismo atlético.
Saúde para mim brota do
reconhecimento e preenchimento das profundas necessidades de cada um. Acho que
tem a ver com o que Yung fala sobre o processo de individuação, a possibilidade
de desabrochar-se em plenitude. Essa história de amordaçar os sentimentos é uma
submissão covarde ao culto das aparências. Puro medo de manifestar fraqueza. E
quem não tem as suas? Mas se fraqueza disfarçada é altamente corrosiva, quando
assumida perde o travo, fica mais convivível, mais combatível. Que história é
essa dos homens posarem de deuses? Não quererem confessar que levaram porrada?
Adoro o poema de Pessoa em que ele desmascara tal vaidade covarde. Nos dias de
hoje o mito do sucesso é tão ditatorial que as pessoas não ousam admitir suas
falhas e incapacidades. Tudo porque o próximo é antes de tudo visto como um
competidor em potencial. Ninguém quer ficar por baixo. Tem que levar a melhor
nem que seja de fachada. As pessoas vivendo a vida como se estivessem o tempo
todo no palco.
Vejo a poesia como um eficaz
“conhece-te a ti mesmo”, isso na modalidade lírica, um “conheçamo-nos a nós
mesmos” na modalidade épica. Suponho que nunca recorri a psicanálise por causa
desse hábito de descer sozinha ao meu porão. E até comprazer-me nesses
mergulhos no escuro. Além de suspeitar de tudo por onde passa o dinheiro, de
tudo que cheira a negócio e dá espaço para charlatanismo, sempre detestei
tutelas. A poesia me compraz por ser atividade de absoluta independência. Me
faz sentir livre (embora, a rigor, a liberdade não passe de uma utopia), é um
vinho reconstituinte. Produzi-la me dá também uma sensação de poder. Só eu
posso executar a minha poesia. Não posso delegar a ninguém a tarefa. Gosto
muito de cozinhar e já ensinei muita gente a fazer do meu jeito. E as pessoas
executam como se fosse com as minhas mãos. Mas poesia não é ensinável.
Tem muito autor por aí
falando no sofrimento do ato de escrever. Cada um fala da sua experiência
particular, é claro. No meu caso seria uma mentira descarada, pois se a vida me
faz penar e já me feriu muitas vezes, a literatura sempre me proporcionou
prazer. Através dela posso dialogar com a dor e transfigurá-la. Escrever para
mim só foi desagradável quando no serviço público eu tinha que “redigir”, isto
é, utilizar-me da linguagem convencional, rígida, fossilizada. Era um uniforme
com que eu tinha de vestir o pensamento alugado, que não era meu. Tratava-se de
um ato de disciplina, nada a ver com o ato de criação. Mas a criação é uma
dança da alma. Vale o tempo empregado.
Como lidar com palavras é um
ato altamente aprazível (poucos fazem poesia, mas muitos brincam de palavras
cruzadas), temos aí uma ocupação terapêutica. O prazer sempre foi manancial de
saúde. Eu consegui através da poesia restabelecer o equilíbrio pessoal ameaçado
pelas exigências familiares e profissionais. Os encargos particulares e
públicos eram tantos que eu me sentia sugada por força centrífuga, afastada de
mim mesma, girando em torno dos outros. É comum as mulheres passarem pelo
processo de perda de identidade, não saberem quem são além de filhas, esposas,
mães, amantes, secretárias, profissionais, etc. Abdicarem até da primazia do
pensamento sobre a vida. Passarem a pensar conforme vivem e não o inverso. A
entrega total ao outro é nociva, tem que haver momentos de pausa e retorno ao
âmago de cada um. De vez em quando precisa ocorrer revolução na casa
antropófaga que vai engolindo nossos pensamentos, mãos, pés e sobretudo nosso
tempo. Temos que reagir sem sentimento de culpa contra o canibalismo do excesso
altruístico, o auto-esvaziamento.
Através da poesia busquei e
cultivo a minha identidade. Sempre quis me descobrir. Tentar saber o que se
esconde em mim. Toda uma trajetória de vida pode ser rastreada nos meus textos:
os arroubos da juventude, as indagações existenciais que me perturbam, os
momentos cruciais, os espaços por onde andei e que me causaram deslumbramentos
ou decepções, os encontros transformadores. É um itinerário emocional. Nunca me
debrucei sobre temas puramente (será que existem?) intelectuais e abstratos. As
tragédias que me sacodem são as que vivencio ou testemunho, de pessoas próximas
de carne e osso, não de ilustres e remotos gregos e troianos. Talvez por
contingências específicas não tenha enveredado a fundo pelos caminhos da
cultura como gostaria e sonhei na juventude. Mas quando converso com certas
pessoas simples do povo, com crianças e velhos (que ainda não foram iniciados
na cultura oficial ou já esqueceram tudo), aprendo coisas sobre a condição
humana e a natureza, nuvens, formigas, hábitos dos bichos, e convenço-me de que
a vida é um livro aberto, onde letras e páginas não fazem falta. A questão é
abrir os olhos e aprender a enxergar diretamente, sem intermediação. Como já
dizia o nosso Oswald, “ver com olhos livres” e que até adotei como lema para
meus alunos de formação, a fim de ousarem pensar sozinhos sobre o que liam, sem
se valer de interpretações alheias, nem sempre de boa qualidade. Exercitar a
própria intuição sempre me pareceu um hábito mais enriquecedor do que entupir a
memória de material em abundância, sem processá-lo de modo crítico.
FM Não creio que o Oswald
de Andrade praticasse o que preconizava, mas entendo o que dizes. De que
maneira busca e cultivo de identidade se mostram, em teu caso, em termos de
poética? É possível que te distancies da Astrid Cabral e comentes a percepção
crítica que tens de sua obra?
AC Para início de conversa
vale dizer que não tenho grande paixão pela obra do Oswald. Considero-o
supervalorizado. Dele eu pinço e adoto um ou outro relâmpago de intuição. Meu
enorme respeito é mesmo pelo Mário, que tanto trabalhou pela identidade
nacional, com seriedade em vez de humor.
Quanto à questão da identidade
sempre agucei o ouvido para a voz interior. Nunca me deixei levar pelas
expectativas que os outros possam ter de mim. Nem adolescente me importei pela
moda reinante. Sempre fui “inner directed”, pelo menos nas minhas intenções
conscientes. Nos anos 50, a maioria dos meus amigos do Clube da Madrugada
cultivava o soneto e as formas fixas. Eu escrevia à solta. Quando, ginasiana
ainda, eu descobri o modernismo, vibrei. Era o direito ao verso fora da gaiola,
em que eu, timidamente, ensaiava. Aliás, a essa altura, eu me exercitava muito
mais na prosa, e foi nela que me inaugurei nas letras. Em 52, no curso clássico
do colégio Pedro II, organizou-se um debate para comemorar os 30 anos da
Semana. A província ainda era tão impregnada de parnasianismo que ninguém
queria participar na bancada de defesa. Fiquei cabalando até encontrar dois
colegas para atuarem comigo em prol do modernismo. Convivi com poetas da
geração de 45 e apreciava a competência técnica deles, mas não me submetia
àquela disciplina. Comecei a praticar o soneto ao traduzir Petrarca como tarefa
do curso de língua e literatura italianas, já na faculdade. Gostei da
experiência, mas há na minha natureza uma espécie de rebeldia a balizas e
portas fechadas. Sou claustrófoba por natureza e estou sempre com um pé atrás
diante de leis e convenções.(Enquanto minha avó beijava o anel do bispo, eu
apenas lhe estendia a mão.)
Ao analisar minha obra vejo
nela a manifestação das contradições e conflitos, indagações e descobertas que
me habitam desde que me entendo por gente. Em testes de psicologia empato
extroversão com introversão, daí uma espécie de força centrífuga que me conduz
à descrição e crítica do mundo real circundante, e de uma força centrípeta que
me reconduz ao âmago de mim mesma, à ponderação e reflexão de questões
filosóficas, invisíveis. Adepta da linguagem mais concreta, uso metáforas para
expressar realidades imateriais. (Por exemplo, me refiro à morte como onça sem
pelo, bicho de sete cabeças, coisas assim.) Amazonense, nascida e criada em Manaus,
aberração de cidade sofisticada no meio do mato, sou atraída pela natureza e
pela cultura. O balanço entre esses pólos pode ser rastreado na temática e
também na fatura dos meus poemas. Acolho o popular e o erudito, o coloquial e o
requintado, o regional e o universal, sem preconceitos. A vida é feita de
aspectos contraditórios e quero apreendê-la no seu todo, sem preocupação
elitista, no calor da paixão, sem a frieza das coisas idealizadas. Por isso é
que tanto leio os clássicos como ando de ouvidos abertos para o que as pessoas
dizem nos ambientes informais das feiras, das filas, etc. Tudo me apraz. A
linguagem oral é também um espetáculo imperdível e a vida incessante
aprendizagem.
Creio que meu foco poético
está no existencial e não no metalinguístico. A linguagem para mim, só
eventualmente constitui-se em tema. Ela é sobretudo meu instrumento de sondagem
e apropriação direta da realidade, sem intermediários, a não ser os que o
inconsciente convoca. Não utilizo o que Benedito Nunes chama de “esfolhamento
das tradições”. De um modo geral, meu discurso poético decorre mais da
intuição, filtrada, é claro, pelo conhecimento de várias tradições literárias
(leio poesia em várias línguas), que da memória consciente de outros textos e
autores. Já li tanto que se tivesse boa memória até que teria armazenado
razoável erudição, mas minha cabeça funciona em sínteses, não se detém muito
nos detalhes, a não ser os que a emoção sublinha.
FM Como se deu tua
experiência de ensino por ocasião da criação de Brasília. Ali te encontraste,
por exemplo, com o poeta Santiago Naud. Que espécie de esperança alimentava
então aqueles dias de surgimento da nova capital e até que ponto esta esperança
foi abortada pelo golpe militar?
AC Entrei para UnB pela
mão de José Carlos Lisboa, irmão de nossa querida Henriqueta, que nem ela, um
ser culto e sensível. Foi meu professor de língua e literatura espanhola na
Faculdade Nacional de Filosofia do Rio, onde cursei neolatinas, idos de 55-58.
Devo a ele minha formação como professora. Era desses que não se limitava a
trazer os peixes. Ensinava efetivamente a pescar. Tinha metodologia e estava
sempre interessado no crescimento pessoal de cada aluno de per si.
Tanto lidava com os grandes painéis, como descia às minúcias do texto. Era um
dissecador dos problemas linguísticos, dos recursos literários e exigia
produção e aperfeiçoamento. Estava sempre avaliando o progresso ou a estagnação
do aluno. Mantendo uma estreita aliança com seus discípulos, conhecendo-os em
suas potencialidades, escolhia os autores e os temas em que cada aluno deveria
trabalhar com extrema perspicácia psicológica. Impossibilitado de se transferir
definitivamente para Brasília (era catedrático no Rio e em Belo Horizonte),
passou o cargo ao Cyro dos Anjos que me recebeu muito bem, pois apreciara a
contista de Alameda.
Na UnB tínhamos contratos
semestrais e com isso estávamos sempre trabalhando em áreas diferentes, como
auxiliares jovens de professores mais velhos e experientes. Trabalhei em teoria
literária com Oswaldino Marques, em língua portuguesa com Adriano da Gama Kury,
em literatura portuguesa com o professor George Agostinho da Silva. Foi na
equipe deste que me encontrei com o Santiago Naud, até hoje meu grande amigo.
Tenho por ele uma admiração total, pela alta qualidade de seu trabalho e pela
figura humana extremamente digna. É um ser como o Afonso Félix de Sousa era, de
alta espiritualidade. Nos idos de Brasília estávamos todos unidos pela utopia
de um Brasil melhor, de uma universidade de alto nível. Mas nós, idealistas,
volta e meia nos defrontávamos com fatos reais decepcionantes. Darcy Ribeiro,
por exemplo, a despeito de toda bagagem etnográfica e sociológica, era de uma
prepotência terrível. Queria sempre ditar as leis, não sabia dialogar. Uma de
suas propostas era de que o mestrado em letras devia incluir obrigatoriamente
línguas indígenas, podendo até dispensar o latim e o grego. Um dia um colega
lhe disse de cara que ele não parecia um reitor de universidade, mas um feitor
de fazenda. Havia também muita rivalidade entre equipes oriundas de regiões
diferentes, o grupo paulista, o grupo baiano, o mineiro. Farpas e mais farpas.
Porém a degringolada veio com o golpe militar, pois a degola começou pelas
figuras de proa. Eu trabalhava num curso de morfologia dos gêneros literários
com o professor Oswaldino Marques, quando ele foi cassado. Pedi exoneração em
solidariedade e também porque o ambiente estava lúgubre. Apareciam figuras
suspeitas a paisana espionando as aulas e até policiais certa vez invadiram
minha sala dando busca em papéis e livros. (Vários amigos me aconselharam a
queimar os livros de esquerda que eu tinha em casa. O Afonso estava viajando e
eu podia ser surpreendida por uma visita de inspeção. Felizmente eu não cometi
o crime de jogar fora os livros.) As vagas dos cassados foram preenchidas por
pessoas favoráveis à ditadura e incapazes na profissão, espertalhões que
avidamente abocanharam os empregos sem o menor escrúpulo. Por outro lado os
professores que permaneceram durante a instalação da ditadura passaram por
grandes apuros. Quando retornei à UnB, depois da anistia em 88, observei que
com o passar dos anos tinha havido uma certa recuperação e o nível no
departamento de letras estava bom.
FM Bom exatamente em que
sentido, Astrid? Quais relações poderiam ser traçadas, em termos de qualidade
de ensino, entre o que se tinha no período do regime militar e o que se tem
hoje em âmbito democrático?
AC Observei, Floriano,
contrariando minhas expectativas pessimistas, que o nível dos alunos era de
melhor qualidade. Brasília dispõe hoje de bons colégios de nível médio. Nos
idos de 60, os candidatos afluíam de vários pontos do país, eram moradores
recentes, com bagagem educacional de origem muito variada. Já nas últimas
décadas, a seleção mais apertada no vestibular, devido à forte competição,
redundou em turmas mais aptas e homogêneas. Os três ou quatro alunos que não
consegui aprovar por total falta de base, eram beneficiados por lei de
transferência dos servidores públicos, com dispensa de vestibular para o ingresso
na UnB.
Nesses mais de 20 anos de
ausência, a competição entre maior número de professores determinou processos
de avaliação, em princípio mais difíceis, maior cobrança de produção acadêmica.
O atual quadro docente é basicamente constituído de doutores com
especialização.
Cabe lembrar que não
testemunhei o terrível período da ditadura no poder, a não ser no primeiro ano
de sua instalação. Isso me impede de traçar uma análise profunda das
transformações.
De certo modo, acho que dei
uma pequena contribuição à democracia quando, ao reassumir o magistério,
incentivei vivamente os alunos a fazerem uma avaliação do meu curso. O fato é
que eu, na condição de oficial de chancelaria do Ministério das Relações
Exteriores, durante vinte anos fui julgada pelos chefes diplomatas, o que
sempre me pareceu um abuso de poder, dada a inexistência de julgamento em
sentido inverso. Pude portanto ver com alegria o diretório estudantil começar a
avaliar semestralmente os cursos, dando nota aos professores, contribuindo portanto
diretamente no aperfeiçoamento do processo de aprendizagem. Se a gente abre bem
os olhos, vê que no Brasil ainda se tem uma democracia muito de fachada. A todo
momento deparamos situações de flagrante autoritarismo, as pessoas crentes que
os cargos lhes concedem poderes absolutos.
FM Falemos sobre poetas
brasileiros com os quais acaso tenhas dialogado no desenho de uma poética que
te define. Mencionaste em algum momento o “fôlego épico-lírico” de Jorge de
Lima. Que importância tem este poeta para ti?
AC Pergunto onde falei do
“fôlego épico-lírico” de Jorge de Lima, pois não estou me lembrando. Tenho uma
verdadeira paixão pela poesia dele, em particular pelo Invenção de
Orfeu, que tanto me seduz quanto me escapa. Acho de uma complexidade
fascinante. Esse poema tem uma dimensão de mistério que me atrai. É um
labirinto que convoca ao desafio. Meu poeta preferido é Drummond, mais ao
alcance do meu entendimento, mais em sintonia com a minha cosmovisão prosaica.
Jorge de Lima me ultrapassa em seus oníricos périplos, seus altíssimos vôos. Eu
não me alço muito alto, tenho asas de galinha, mas tenho o desejo de
ultrapassar meus limites. Aliás, a minha proposta para dissertação de mestrado
(1963/1964) era sobre os processos de criação vocabular em Invenção de
Orfeu, que terminei por abandonar a meio caminho. O primeiro obstáculo foi
a morte do meu orientador, o Hélcio Martins que faleceu de uma anemia
perniciosa. Depois veio a ditadura e a essa altura, aos 29 anos, eu já estava
com uma escadinha de 4 filhos e outros problemas de pesada sabotagem.
Quanto a outros poetas
brasileiros, estou à espera de que alguém me diga onde me encaixo, quais são
meus antepassados. Já me aproximaram de Ungaretti, Francis Ponge, Elizabeth
Bishop. O Otávio Mora já me falou até de um poeta escocês, de quem esqueci o
nome, mas que segundo ele tem tudo a ver comigo. E eu que sou escancaradamente
brasileira, não sei mesmo onde me entronco, com quem me aparento. Será que você
me ajudaria? Uma coisa é certa, nunca me preocupei em imitar ninguém. Não sou
furta-cor e qualquer semelhança é mera coincidência, ou fruto de uma elaboração
gratuita do inconsciente.
FM Não pretendia falar em
semelhanças ou coincidências, mas antes em afinidades, ou seja, quem te chama a
atenção em termos de poesia brasileira, e que importância atribuis a tais
afinidades em tua poética. Mencionaste aqui uma grande poeta brasileira
raramente lembrada, a Henriqueta Lisboa. O que disseste sobre o Jorge de Lima
foi em resenha escrita sobre livro do Reynaldo Valinho Alvarez. Não me
interessa com quem te aparentas. Eu tampouco me aparento com ninguém, por
exemplo, mas sei observar algum diálogo valioso que minha poesia traçou, em
algum momento, com poetas como Roberto Piva, Ferreira Gullar e o próprio Jorge
de Lima. É disto que quero que fales.
AC Muitos poetas
brasileiros me tocam fundo, além de Drummond e Jorge de Lima. Gosto imensamente
de Gregório de Matos e Augusto dos Anjos. São poetas de incontida força,
vulcões em erupção. Dos árcades prefiro Claudio Manuel da Costa e dos românticos,
me amarrei primeiro em Castro Alves e mais amadurecida, vim a preferir
Gonçalves Dias, mais épico e menos altissonante. Entre os modernistas, além dos
já mencionados, gosto do Bopp com quem comungo do telurismo amazônico, e
sobretudo de Joaquim Cardoso e Mario Quintana. Estes dois sempre me arrebatam e
iluminam. Cecília Meireles me embala com sua finíssima musicalidade e
imagética. Gilka Machado me atrai por sua sensualidade e coragem, precursoras
do aflorar da voz feminina, secularmente reprimida. A importância dela ainda
não foi devidamente aferida nas gerações que lhe sucederam. Creio, em certo
aspecto temático, estar mais próxima dela do que de Cecília. Dos contemporâneos
mantenho intercâmbio com grupos em vários pontos do Brasil, mas acho difícil
apontar afinidades. Nutro admiração por alguns autores de expressão singular,
que não nomeio para evitar os infalíveis esquecimentos.
FM Segundo teu
entendimento, se tem praticado a crítica no Brasil dando-se importância menor à
obra literária, ou seja, nossos críticos “servem-se dela mais como pretexto do
que como núcleo de análise”. Poderíamos conversar mais claramente, em torno de
nomes?
AC Floriano, lógico que há
muita gente séria, tipo Wilson Martins, Antônio Cândido, Alfredo Bosi, Fábio
Lucas, etc. Peço que você guarde segredo sobre os nomes dos outros. De muitos
eu nem gravo os nomes, desisto no meio do caminho, só vejo lá no pé do texto
que o autor é doutor em letras. Quando um aluno meu me apresentava texto mal
elaborado, eu assinalava todas as falhas para que ele corrigisse raciocinando.
Alguns apresentavam várias versões como exercício até a definitiva. Tenho ganas
de mandar certos críticos de volta a uma classe de redação. O ensaísta ou o
crítico, a meu ver, não pode ser ambíguo, nem lacônico. Sua função é
desembrulhar e não embrulhar. Ele tem que ter uma postura preferencialmente
didática. Fico espera de que alguém traduza, em linguagem legível, os
críticos de pensamento confuso. Penso com Boileau, “ce que
l’on conçoit bien, s’ennonce clairement”.
FM Mas não te parece que
os próprios escritores, sobretudo pensando naqueles que exercitam a crítica,
são muito coniventes com essa linguagem cifrada de teus dois belos exemplos?
Observo ainda que é muito pouco substantiva a pretensão crítica em nossos poetas.
Isto acaso deriva de alguma falha de cultura? Seria reflexo inclusive de tanta
imaturidade poética, como a que sabe existir desenfreadamente e até conviver
muito bem com esses libelos da crítica acadêmica? Isto acaso nos levaria a um
círculo vicioso?
AC Sim, há muitos cultores
de linguagem cifrada, tanto entre criadores como entre críticos. Será um estilo
de expressão típico da atualidade? Mais um modismo vigente? Um barroquismo
pós-moderno? Por que estarei eu a exigir tanta claridade? A luz equatorial que
me banhou na infância me viciou até hoje? Ou lê-se tanto hoje em dia que a
assimilação se processa de modo atropelado e imperfeito? As pessoas, em geral,
não mais se debruçam sobre coisas, fatos e palavras com o devido vagar. São
engolidas pela voragem da leitura, enfeitiçados pela erudição. Não lhes sobra
tempo para refletir. Empanturradas de informações, se perdem ao dissecar e
analisar. Não se dão as pausas necessárias para chegar ao amálgama da síntese.
Que existe falha de cultura e imaturidade poética, falta de pretensão crítica
da parte de muitos criadores é um fato. Nesse caso, estarão expostos ao crivo
dos leitores e entendidos. Mas a crítica hermética acaso poderá resolver isso?
Para ser de alguma utilidade, ela precisa mostrar com precisão as deficiências
ou apontar as qualidades de modo convincente. Afinal, espera-se da crítica como
gênero secundário, uma atitude auxiliar, avaliadora. Cito aqui o Fausto Cunha,
um dos críticos mais lúcidos que o país já produziu: “A crítica não supre o
conhecimento da obra, como o conhecimento da obra quase sempre dispensa o
conhecimento da crítica” . A impressão que tenho é de que a crítica está
disputando o primeiro plano, competindo com a obra de criação, usando-a apenas
como ponto de partida para uma criação paralela de outra natureza, analítica,
parafrásica, sei lá, desdenhando portanto de sua função original. Bem,
Floriano, estás a ver que não sou nenhuma teórica, uso apenas o bom senso que
às vezes não passa de uma incapacidade para atingir alvos mais distantes ou
mais profundos.
[2004]
[Astrid
Cabral (Amazonas, 1936)]
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