sexta-feira, 8 de agosto de 2014

BETTY MILAN | Escutando o amor pelas palavras



FM Teu livro Quem ama escuta (2011) é a rigor um ofertório de máximas, no mais amplo sentido do que se poderia chamar de uma estratégica proverbial, e nisto é um livro-limite, com um risco imenso de ser interpretado como literatura menor, por exemplo. Poderíamos começar este nosso diálogo falando de tua relação com o provérbio como afirmação estética ou recurso jornalístico funcional?

BM Ainda bem que você disse livro-limite. O que é ruim é o não-livro, que pôs para escanteio o livro bom. Mas felizmente o não-livro tende a desaparecer, graças à Internet. Quero dizer com isso que o livro impresso vai ficar para o livro bom, que inclui o livro-limite. Porque é, no limite, que a coisa acontece, no limite do ridículo, entre um gênero e outro. As grandes obras da humanidade não se inscrevem nesta ou naquela tradição, elas a subvertem. O que tem o Quixote a ver com o romance de cavalaria escrito antes dele? Sempre trabalhei no limite e na contramão da comunicação, dando ênfase ao ritmo e à palavra. Como o poeta. Isso implicou trabalhar durante muito tempo sem reconhecimento. Por sorte eu tenho uma editora, Luciana Villas Boas, que acreditou no que eu fazia. Gostou e sustentou o meu projeto. Quem ama escuta é um consultório sentimental e se inscreve no limite da literatura e da psicanálise. Subverte a tradição do consultório sentimental porque não é moralista.

FM Betty, eu não creio nisto que falas da Internet, que o não-livro tende a desaparecer. A menos que estejas ironizando, situando como não-livro o objeto amorfo que não se identifica como livro e que se utiliza do veio fácil de circulação da Internet para correr mundo. A tecnologia barateou os custos de edição de discos e livros. Então a ironia — se é o caso — estaria no aspecto de que a facilidade ou excesso de circulação das obras permitiria filtrar as mais significativas, ao mesmo tempo em que acabaria com o pseudo-mito de que as gavetas estão infestadas de grandes títulos incompreendidos. Já sabemos que o ineditismo persistente, não deliberado, cultua a paranoia. O que não sabemos até aqui: o que chamas de não-livro?

BM O não-livro é aquele que poderia não ter sido impresso, circular, por exemplo, só pela Internet. Inclusive porque ele não para de mudar, está ligado à atualidade. Já a literatura, cuja relação com o tempo é de outra natureza, não dispensa o papel. Recentemente fui para a praia levando comigo a edição maravilhosa de capa dura do Quixote com as ilustrações do Gustave Doré. Pesa um quilo, mas o prazer que eu tenho com o livro em questão é insubstituível.

FM Logo no início de Quem ama escuta observas que a mídia desempenha atualmente um papel educador. Entendo que para o bem ou para o mal, naturalmente. Ou seja, que tanto forma quanto deforma. A escola — e aqui se trata de escola pública, porque falamos dos primeiros estudos, de formação de caráter etc. — é de todo ausente no Brasil. Sabemos que a administração pública no Brasil é uma atividade criminosa. O que me preocupa é até que ponto a mídia corresponde a este novo papel que desempenha.

BM Um dia a editora da Veja.com me disse que eu era um ET e ela não entendia como eu estava lá, embora gostasse muito da coluna. Já são quatro anos fazendo a coluna e felizmente eu não caí do cavalo. Digo felizmente porque é um desafio contínuo. Nenhuma história é igual à outra e todas podem se tornar universais se for possível mostrar a sua universalidade. Na Veja, propriamente dita, eu faço literatura, difundindo valores. A minha coluna é bem diferente de todas as outras e também é surpreendente que a revista a autorize. Acho que é porque eu introduzo a subjetividade na mídia e também porque a imprensa reconhece a necessidade de formar o público. Ainda que os jornalistas nem sempre sejam devidamente formados. Por causa do vício da corrupção, o mal estar é enorme e a imprensa é um recurso educativo poderoso para lutar contra ele. Qualquer brecha a gente tem que entrar.

FM As redes sociais, hoje de ampla circulação virtual, se delas nos aproximamos com uma escuta livre de preconceitos, o que observamos é um desgaste do ambiente físico, o que está à mão, e uma busca de afeto em outra zona, o que evidentemente espelha insatisfação a todo custo. E a exploração sexual é uma espécie de Serra Pelada em seu esplendor. A exemplo da jazida paraense, não estariam as redes sociais acabando com o que ainda resta de doce esperança nos sentimentos mais puros?

BM Sempre digo que o amor pela Internet não satisfaz, pois quem se ama precisa saber do perfume, da pele, do prazer do carinho. Agora, por outro lado, a Internet é um instrumento de liberação porque autoriza a expressar a fantasia, o que não é pouco. O problema todo está no uso que se faz da Internet, que tanto pode ser perverso quanto levar a um casamento feliz.

FM Vivemos em um país passional, onde aspectos como ciúmes, rejeições, amores traídos, invejas, timidez, preconceitos sexuais, taras, determinam o top dos relatórios criminais no tocante a vítimas fatais. O chifre mata mais que o crime organizado. Talvez até mais do que o trânsito e o alcoolismo, descontando as origens passionais de ambas ocorrências. Sexo antiquado, revolução sexual, tirania do sexo… em nenhum dos casos o afeto, o carinho, a descoberta do outro, esteve presente. As meninas se dispõem. Os meninos são uns tontos. A falsa modernidade do homossexualismo ou da bissexualidade é uma espécie de adequação a essa carência sentimental?

BM O machismo continua a vigorar. Mas eu tendo a achar que ele está condenado a desaparecer. Faz parte do meu trabalho desqualificar os valores do machismo, que exalta a vingança e é contrário ao amor. Tendo nascido na década de quarenta e sendo brasileira, fui vítima do machismo, e, já no Sexophuro, o meu primeiro romance, fiz a sátira do macho que é macho sim senhor. Depois, continuei em E o que é o amor, um livro pequeno que provocou escândalo pelo que eu dizia sobre o machismo. Os foliculários entraram de pau. Por sorte, vários escritores protestaram, escrevendo belos artigos. Entre os que escreveram estavam homossexuais que se identificaram comigo por valorizarem o amor. Não sei o que você quer dizer com a falsa modernidade do homossexualismo e do bissexualismo. Será que você pode me explicar?

FM Referia-me a casos em que a opção sexual é definida por aspectos como carência afetiva e modismos. Mas vamos à tua Trilogia do amor. Idealização, fantasia, companheirismo. O que a editora anuncia, no caso do terceiro volume, O amante brasileiro, como “comunhão vivida de maneira plena na realidade”, se acaso invalida fantasia e idealização, não subtrairia da relação amorosa dois condimentos valiosos?

BM — A comunhão vivida de maneira plena na realidade não implica a ausência de fantasia. Por isso, Clara, no amante Brasileiro faz o elogio do simulacro, dizendo que o amado aceita ser quem o amado deseja que ele seja. O fato de privilegiar o acordo não suspende o imaginário. Permite que a fantasia seja vivida com maior liberdade.

FM Ao final da apresentação de Quem ama escuta desejas que o livro “faça o leitor refletir sobre a sua existência e ter um encontro consigo mesmo”. A publicação original de seus textos, em tua participação semanal na Veja.com, já havia alcançado uma quantidade de leitores cuja vendagem estimada de livros não poderia acompanhar. Que outro tipo de leitor busca o livro?

BM Vários leitores da Veja.com estiveram no lançamento do livro em São Paulo. Ler a coluna na Internet e ler no livro é diferente. A coluna parece fácil, mas não é, porque o meu texto é elíptico. Na Internet o leitor toma conhecimento do texto e ponto. No livro, ele pode se aprofundar e é isso que eu quero. Quem ama escuta é um livro de sabedoria.

FM Evidente. São duas formas de convívio. A Internet, neste sentido, além de uma inestimável fonte de consulta — e aqui lastimamos tanto a irresponsabilidade da inserção de informações errôneas quanto a absurda política de censura das redes sociais — atua como bom veículo de circulação do poema lírico. No entanto, o que observo é que a arte — em qualquer gênero — não descobriu ainda como lidar com esse suporte. Sempre penso na estupidez da discussão sobre letra de música ser ou não ser poesia. O dilema que a tecnologia coloca nas mãos do artista é que ela sugere a criação de novas linguagens e não de uma disputa de ambientes entre linguagens já existentes.

BM Procuro usar a internet na contramão da convenção, valorizando o significante e não o significado. O meu site é um exemplo disso. Trabalhei muito nele com Luiz Stein para fazer quase tudo sem imagem só com a letra e ritmo. Haveria muitas outras possibilidades. Para o poeta a internet é um prato cheio.

FM Consolação é um romance em particular atrativo pela viagem mítica que destaca mais do que propriamente a cidade de São Paulo certas características da alma brasileira. Há ali um outro livro, um livro de entrelinhas, que é como uma cartografia da terra brasilis. Além do mais a sua plasticidade dramática o situa de cara para o gol no que diz respeito a uma adaptação cinematográfica, sobretudo quando pensamos que o cinema brasileiro mantém sua carência histórica, a ausência completa de roteiro.

BM O Marcelo Drummond, ator do Teatro Oficina também me disse isso. A versão cinematográfica implicaria uma adaptação. Quem sabe um dia alguém faz isso.

FM Lendo algumas entrevistas que deste por ocasião da publicação de Consolação, trago aqui para nossa boa mesa de conversa uma inquietude que sempre tenho no tocante ao que antes mais facilmente identificávamos como um conflito entre fundo e forma na criação literária. A partir de teu livro, tomemos um caso concreto, o da eutanásia. Um poema (por extensão, um romance, um filme, uma canção, uma peça de teatro) não existe em função da defesa de um tema, mas sim, do encontro de dois mundos que cada vez me parecem mais irreconciliáveis: o que digo e a maneira como digo. Antes essa fraude de linguagem era facilmente identificada pelo que chamávamos de arte engajada. Hoje circula o espectro matreiro das campanhas moralistas, com seu conjunto de slogans que pode aqui ser resumido em algo como “a arte me ensina a ser feliz”. Repete-se o equívoco do fundo superar a forma, o que é muito curioso aplicado em um país essencialmente formalista em sua tradição literária. Nem pensar em voltar à velha discussão: fundo sem forma e forma sem fundo.

BM Claro que não existe fundo sem forma e vice-versa. O que existe é autor que pensa antes de escrever e o outro que escreve, e, com isso, se dá conta da ideia. Fundamentalmente há duas posições subjetivas, a de quem se deixa preceder pelo pensamento e a de quem se deixa preceder pela palavra. Tendo, desde sempre, a me deixar preceder pela palavra, mas confiança absoluta neste procedimento eu só adquiri agora. Com isso eu fico muito feliz, deito e rolo. Paris não acaba nunca foi escrito sem roteiro e deu super-certo. Agora, estou fazendo a mesma coisa na Carta ao Filho, uma auto-ficção. Trata-se de um On the Road, na estrada da vida que, no meu caso, já foi longa. Estou no lucro.

FM Nos dois últimos anos vimos publicando na Agulha Revista de Cultura uma série de entrevistas tuas, recuperação de diálogos fascinantes que mantiveste com personagens expressivos da cultura. Quando estavas do outro lado do microfone, dando entrevista sobre as entrevistas que fizeste, certa vez um repórter manifestou curiosidade sobre os bastidores de uma entrevista. Este é um aspecto que sempre me diverte, por seu incontornável diapasão mundano, que a mídia crie o palco com indisfarçável atenção a seu camarim.

BM O camarim é interessante e também é por isso que me refiro a ele na Carta ao Fiho. A Folha de S. Paulo cortava as introduções onde eu falava dos bastidores e eu agora estou voltando a elas na Carta ao Fiho. E eu nunca escrevi suficientemente sobre o que aconteceu. Com Nathalie Sarraute, por exemplo. Foram meses para conseguir a entrevista. E ela só a concedeu exigindo que eu a mostrasse a ela o texto por escrito. Argumentei que não escrevia em francês, mas em português e ela não quis saber. Consequência: escrevi a entrevista em duas línguas. Daí ela leu e me disse pelo telefone que foi a melhor entrevista que fizeram com ela. Acredite se quiser. Sei que foi necessário muito senso de oportunidade para chegar ao prêmio Nobel. Assim, por exemplo, o Octavio Paz, cuja entrevista a Gallimard recusou. Telefonei diretamente para ele e disse que, em meia hora estaria no hotel e só precisava de 5 minutos para a entrevista. Paz aceitou e depois ficamos mais de uma hora juntos no saguão do Lutetia. Foi um belo momento.

FM Betty, todos nós nos ressentimos da ausência de crítica literária no Brasil. Há muito que trabalhamos com mídia e sabemos que não é a mídia que faz o crítico e sim o contrário. O intelectual brasileiro é ausente de toda e qualquer discussão, seja sobre as especificidades de sua obra, seus pares, circunstâncias que envolvem diretamente sua mesa de trabalho… Ausente também no que diz respeito a expressar seu pensamento sobre questões diversas: política, cultura, economia etc. O resumo dessa ópera chama-se caráter. No entanto, da forma como o tema é habitualmente tratado parece um caso de perseguição de um suposto sistema que atua contra a cultura no Brasil. Este sistema somos nós mesmos, nossos colegas de profissão, escritores.

BM Floriano, passei anos da minha vida debruçada sobre a cultura brasileira, fiz Os Bastidores do Carnaval, O País da Bola e muitos artigos de crítica social publicados na Folha de S. Paulo. O Otavio Frias Filho me deu todo o espaço. Agora, crítica não dá Ibope e infelizmente não muda a realidade a curto prazo. E talvez nem a longo. Joãozinho Trinta morreu e eu escrevi um longo artigo sobre ele. Para mim, Joãozinho é figura máxima da cultura brasileira. A Veja não deu a matéria. Sugeriu que eu enviasse para a Veja.com. A Folha sugeriu que eu reduzisse para 30 linhas. Até hoje, a imprensa não entendeu a dimensão cultural da nossa ópera de rua. Mas vai-se fazer o que?

FM Esquecemos algo?

BM Só quero expressar a admiração que eu tenho pelo seu trabalho, sua dedicação. O que você faz é muito sério e foi ótimo ter sido entrevistada por você ainda neste 2011, que termina amanhã.

[2011]

[Entrevista com Betty Milan (Brasil, 1944), publicada em Invenção do Brasil. São Paulo: Editora Descaminhos, 2013. http://www.amazon.com/Inven%C3%A7%C3%A3o-Brasil-entrevistas-Portuguese-Edition-ebook/dp/B00FTBMR24]

Nenhum comentário:

Postar um comentário