FM Teu livro Quem ama
escuta (2011) é a rigor um ofertório de máximas, no mais amplo sentido do
que se poderia chamar de uma estratégica proverbial, e nisto é um livro-limite,
com um risco imenso de ser interpretado como literatura menor, por
exemplo. Poderíamos começar este nosso diálogo falando de tua relação com o
provérbio como afirmação estética ou recurso jornalístico funcional?
BM Ainda bem que você
disse livro-limite. O que é ruim é o não-livro, que pôs para escanteio o livro
bom. Mas felizmente o não-livro tende a desaparecer, graças à Internet. Quero
dizer com isso que o livro impresso vai ficar para o livro bom, que inclui o
livro-limite. Porque é, no limite, que a coisa acontece, no limite do ridículo,
entre um gênero e outro. As grandes obras da humanidade não se inscrevem nesta
ou naquela tradição, elas a subvertem. O que tem o Quixote a ver com o romance de cavalaria escrito antes dele? Sempre
trabalhei no limite e na contramão da comunicação, dando ênfase ao ritmo e à
palavra. Como o poeta. Isso implicou trabalhar durante muito tempo sem
reconhecimento. Por sorte eu tenho uma editora, Luciana Villas Boas, que
acreditou no que eu fazia. Gostou e sustentou o meu projeto. Quem ama escuta
é um consultório sentimental e se inscreve no limite da literatura e da
psicanálise. Subverte a tradição do consultório sentimental porque não é
moralista.
FM Betty, eu não creio
nisto que falas da Internet, que o não-livro tende a desaparecer. A menos que
estejas ironizando, situando como não-livro o objeto amorfo que não se
identifica como livro e que se utiliza do veio fácil de circulação da Internet
para correr mundo. A tecnologia barateou os custos de edição de discos e
livros. Então a ironia — se é o caso — estaria no aspecto de que a facilidade
ou excesso de circulação das obras permitiria filtrar as mais significativas,
ao mesmo tempo em que acabaria com o pseudo-mito de que as gavetas estão
infestadas de grandes títulos incompreendidos. Já sabemos que o ineditismo
persistente, não deliberado, cultua a paranoia. O que não sabemos até aqui: o
que chamas de não-livro?
BM O não-livro é aquele
que poderia não ter sido impresso, circular, por exemplo, só pela Internet.
Inclusive porque ele não para de mudar, está ligado à atualidade. Já a
literatura, cuja relação com o tempo é de outra natureza, não dispensa o papel.
Recentemente fui para a praia levando comigo a edição maravilhosa de capa dura
do Quixote com as ilustrações do
Gustave Doré. Pesa um quilo, mas o prazer que eu tenho com o livro em questão é
insubstituível.
FM Logo no início de Quem ama escuta observas que a mídia
desempenha atualmente um papel educador. Entendo que para o bem ou para o mal,
naturalmente. Ou seja, que tanto forma quanto deforma. A escola — e aqui se
trata de escola pública, porque falamos dos primeiros estudos, de formação de
caráter etc. — é de todo ausente no Brasil. Sabemos que a administração pública
no Brasil é uma atividade criminosa. O que me preocupa é até que ponto a mídia
corresponde a este novo papel que desempenha.
BM Um dia a editora da
Veja.com me disse que eu era um ET e ela não entendia como eu estava lá, embora
gostasse muito da coluna. Já são quatro anos fazendo a coluna e felizmente eu
não caí do cavalo. Digo felizmente porque é um desafio contínuo. Nenhuma
história é igual à outra e todas podem se tornar universais se for possível
mostrar a sua universalidade. Na Veja,
propriamente dita, eu faço literatura, difundindo valores. A minha coluna é bem
diferente de todas as outras e também é surpreendente que a revista a autorize.
Acho que é porque eu introduzo a subjetividade na mídia e também porque a
imprensa reconhece a necessidade de formar o público. Ainda que os jornalistas
nem sempre sejam devidamente formados. Por causa do vício da corrupção, o mal
estar é enorme e a imprensa é um recurso educativo poderoso para lutar contra
ele. Qualquer brecha a gente tem que entrar.
FM As redes sociais, hoje
de ampla circulação virtual, se delas nos aproximamos com uma escuta livre de
preconceitos, o que observamos é um desgaste do ambiente físico, o que está à
mão, e uma busca de afeto em outra zona, o que evidentemente espelha
insatisfação a todo custo. E a exploração sexual é uma espécie de Serra Pelada
em seu esplendor. A exemplo da jazida paraense, não estariam as redes sociais
acabando com o que ainda resta de doce esperança nos sentimentos mais puros?
BM Sempre digo que o amor
pela Internet não satisfaz, pois quem se ama precisa saber do perfume, da pele,
do prazer do carinho. Agora, por outro lado, a Internet é um instrumento de
liberação porque autoriza a expressar a fantasia, o que não é pouco. O problema
todo está no uso que se faz da Internet, que tanto pode ser perverso quanto
levar a um casamento feliz.
FM Vivemos em um país
passional, onde aspectos como ciúmes, rejeições, amores traídos, invejas,
timidez, preconceitos sexuais, taras, determinam o top dos relatórios
criminais no tocante a vítimas fatais. O chifre mata mais que o crime
organizado. Talvez até mais do que o trânsito e o alcoolismo, descontando as
origens passionais de ambas ocorrências. Sexo antiquado, revolução sexual,
tirania do sexo… em nenhum dos casos o afeto, o carinho, a descoberta do outro,
esteve presente. As meninas se dispõem. Os meninos são uns tontos. A falsa
modernidade do homossexualismo ou da bissexualidade é uma espécie de adequação
a essa carência sentimental?
BM O machismo continua a
vigorar. Mas eu tendo a achar que ele está condenado a desaparecer. Faz parte
do meu trabalho desqualificar os valores do machismo, que exalta a vingança e é
contrário ao amor. Tendo nascido na década de quarenta e sendo brasileira, fui
vítima do machismo, e, já no Sexophuro, o meu primeiro romance, fiz a
sátira do macho que é macho sim senhor. Depois, continuei em E o que
é o amor, um livro pequeno que provocou escândalo pelo que eu dizia sobre o
machismo. Os foliculários entraram de pau. Por sorte, vários escritores
protestaram, escrevendo belos artigos. Entre os que escreveram estavam
homossexuais que se identificaram comigo por valorizarem o amor. Não sei o que
você quer dizer com a falsa modernidade do homossexualismo e do bissexualismo.
Será que você pode me explicar?
FM
Referia-me a casos em que a opção sexual é definida por aspectos como carência
afetiva e modismos. Mas vamos à tua Trilogia
do amor. Idealização, fantasia, companheirismo. O que a editora anuncia, no
caso do terceiro volume, O amante
brasileiro, como “comunhão vivida de maneira plena na realidade”, se acaso
invalida fantasia e idealização, não subtrairia da relação amorosa dois condimentos
valiosos?
BM
— A comunhão vivida de maneira plena na realidade não implica a ausência de
fantasia. Por isso, Clara, no amante Brasileiro faz o elogio do simulacro,
dizendo que o amado aceita ser quem o amado deseja que ele seja. O fato de privilegiar
o acordo não suspende o imaginário. Permite que a fantasia seja vivida com
maior liberdade.
FM Ao final da
apresentação de Quem ama escuta desejas que o livro “faça o leitor
refletir sobre a sua existência e ter um encontro consigo mesmo”. A publicação
original de seus textos, em tua participação semanal na Veja.com, já
havia alcançado uma quantidade de leitores cuja vendagem estimada de livros não
poderia acompanhar. Que outro tipo de leitor busca o livro?
BM Vários leitores da Veja.com
estiveram no lançamento do livro em São Paulo. Ler a coluna na Internet e ler no
livro é diferente. A coluna parece fácil, mas não é, porque o meu texto é
elíptico. Na Internet o leitor toma conhecimento do texto e ponto. No livro,
ele pode se aprofundar e é isso que eu quero. Quem ama escuta é um livro
de sabedoria.
FM Evidente. São duas
formas de convívio. A Internet, neste sentido, além de uma inestimável fonte de
consulta — e aqui lastimamos tanto a irresponsabilidade da inserção de
informações errôneas quanto a absurda política de censura das redes sociais —
atua como bom veículo de circulação do poema lírico. No entanto, o que observo
é que a arte — em qualquer gênero — não descobriu ainda como lidar com esse
suporte. Sempre penso na estupidez da discussão sobre letra de música ser ou
não ser poesia. O dilema que a tecnologia coloca nas mãos do artista é que ela
sugere a criação de novas linguagens e não de uma disputa de ambientes entre
linguagens já existentes.
BM Procuro usar a internet
na contramão da convenção, valorizando o significante e não o significado. O
meu site é um exemplo disso. Trabalhei muito nele com Luiz Stein para fazer
quase tudo sem imagem só com a letra e ritmo. Haveria muitas outras
possibilidades. Para o poeta a internet é um prato cheio.
FM Consolação é um romance em particular atrativo pela viagem mítica
que destaca mais do que propriamente a cidade de São Paulo certas
características da alma brasileira. Há ali um outro livro, um livro de
entrelinhas, que é como uma cartografia da terra
brasilis. Além do mais a sua plasticidade dramática o situa de cara para o
gol no que diz respeito a uma adaptação cinematográfica, sobretudo quando
pensamos que o cinema brasileiro mantém sua carência histórica, a ausência
completa de roteiro.
BM O Marcelo Drummond,
ator do Teatro Oficina também me disse isso. A versão cinematográfica
implicaria uma adaptação. Quem sabe um dia alguém faz isso.
FM Lendo algumas
entrevistas que deste por ocasião da publicação de Consolação, trago aqui para nossa boa mesa de conversa uma
inquietude que sempre tenho no tocante ao que antes mais facilmente
identificávamos como um conflito entre fundo e forma na criação literária. A
partir de teu livro, tomemos um caso concreto, o da eutanásia. Um poema (por
extensão, um romance, um filme, uma canção, uma peça de teatro) não existe em
função da defesa de um tema, mas sim, do encontro de dois mundos que cada vez
me parecem mais irreconciliáveis: o que digo e a maneira como digo. Antes essa
fraude de linguagem era facilmente identificada pelo que chamávamos de arte
engajada. Hoje circula o espectro matreiro das campanhas moralistas, com seu
conjunto de slogans que pode aqui ser resumido em algo como “a arte me ensina a
ser feliz”. Repete-se o equívoco do fundo superar a forma, o que é muito
curioso aplicado em um país essencialmente formalista em sua tradição
literária. Nem pensar em voltar à velha discussão: fundo sem forma e forma sem
fundo.
BM Claro que não existe
fundo sem forma e vice-versa. O que existe é autor que pensa antes de escrever
e o outro que escreve, e, com isso, se dá conta da ideia. Fundamentalmente há
duas posições subjetivas, a de quem se deixa preceder pelo pensamento e a de
quem se deixa preceder pela palavra. Tendo, desde sempre, a me deixar preceder pela
palavra, mas confiança absoluta neste procedimento eu só adquiri agora. Com
isso eu fico muito feliz, deito e rolo. Paris não acaba nunca foi escrito sem
roteiro e deu super-certo. Agora, estou fazendo a mesma coisa na Carta ao Filho, uma auto-ficção.
Trata-se de um On the Road, na
estrada da vida que, no meu caso, já foi longa. Estou no lucro.
FM Nos dois últimos anos
vimos publicando na Agulha Revista de
Cultura uma série de entrevistas tuas, recuperação de diálogos fascinantes
que mantiveste com personagens expressivos da cultura. Quando estavas do outro
lado do microfone, dando entrevista sobre as entrevistas que fizeste, certa vez
um repórter manifestou curiosidade sobre os bastidores de uma entrevista. Este
é um aspecto que sempre me diverte, por seu incontornável diapasão mundano, que
a mídia crie o palco com indisfarçável atenção a seu camarim.
BM O camarim é
interessante e também é por isso que me refiro a ele na Carta ao Fiho. A Folha de S.
Paulo cortava as introduções onde eu falava dos bastidores e eu agora estou
voltando a elas na Carta ao Fiho. E
eu nunca escrevi suficientemente sobre o que aconteceu. Com Nathalie Sarraute,
por exemplo. Foram meses para conseguir a entrevista. E ela só a concedeu
exigindo que eu a mostrasse a ela o texto por escrito. Argumentei que não
escrevia em francês, mas em português e ela não quis saber. Consequência:
escrevi a entrevista em duas línguas. Daí ela leu e me disse pelo telefone que
foi a melhor entrevista que fizeram com ela. Acredite se quiser. Sei que foi
necessário muito senso de oportunidade para chegar ao prêmio Nobel. Assim, por
exemplo, o Octavio Paz, cuja entrevista a Gallimard recusou. Telefonei
diretamente para ele e disse que, em meia hora estaria no hotel e só precisava
de 5 minutos para a entrevista. Paz aceitou e depois ficamos mais de uma hora
juntos no saguão do Lutetia. Foi um belo momento.
FM Betty, todos nós nos
ressentimos da ausência de crítica literária no Brasil. Há muito que
trabalhamos com mídia e sabemos que não é a mídia que faz o crítico e sim o
contrário. O intelectual brasileiro é ausente de toda e qualquer discussão,
seja sobre as especificidades de sua obra, seus pares, circunstâncias que
envolvem diretamente sua mesa de trabalho… Ausente também no que diz respeito a
expressar seu pensamento sobre questões diversas: política, cultura, economia
etc. O resumo dessa ópera chama-se caráter. No entanto, da forma como o tema é
habitualmente tratado parece um caso de perseguição de um suposto sistema que
atua contra a cultura no Brasil. Este sistema somos nós mesmos, nossos colegas
de profissão, escritores.
BM Floriano, passei anos
da minha vida debruçada sobre a cultura brasileira, fiz Os Bastidores do Carnaval, O
País da Bola e muitos artigos de crítica social publicados na Folha de S. Paulo. O Otavio Frias Filho
me deu todo o espaço. Agora, crítica não dá Ibope e infelizmente não muda a
realidade a curto prazo. E talvez nem a longo. Joãozinho Trinta morreu e eu
escrevi um longo artigo sobre ele. Para mim, Joãozinho é figura máxima da
cultura brasileira. A Veja não deu a
matéria. Sugeriu que eu enviasse para a Veja.com.
A Folha sugeriu que eu reduzisse para
30 linhas. Até hoje, a imprensa não entendeu a dimensão cultural da nossa ópera
de rua. Mas vai-se fazer o que?
FM Esquecemos algo?
BM Só quero expressar a
admiração que eu tenho pelo seu trabalho, sua dedicação. O que você faz é muito
sério e foi ótimo ter sido entrevistada por você ainda neste 2011, que termina
amanhã.
[2011]
[Entrevista com Betty Milan (Brasil, 1944), publicada em Invenção
do Brasil. São Paulo: Editora Descaminhos, 2013. http://www.amazon.com/Inven%C3%A7%C3%A3o-Brasil-entrevistas-Portuguese-Edition-ebook/dp/B00FTBMR24]
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