FM - Eu gostaria de saber por onde começas a criar,
se pela expressão lírica ou pela plástica. Conversemos sobre os primórdios da criação
em NS e a partir daí vamos construindo o universo de nossa entrevista.
NS - Tanto quanto me lembro sempre tive ritmos, que
mais tarde aprendi que se chamavam versos, na minha cabeça. As pessoas mais chegadas
e os meus amigos em geral sempre notaram - com alguma inquietação, até, o que me
diverte - que disponho duma memória que me atreverei a classificar de muito boa.
Por isso recordo perfeitamente que, bem pequeno, já respondia aos acontecimentos
do quotidiano da maneira específica que depois se foi configurar em poesia escrita.
Creio que a denominada “poesia da infância” vive em todos e perdura - é o
elo que mais tarde permite que haja leitores a buscar-nos e a entender-nos - e,
nalguns, encarna mais tarde numa escrita deliberadamente construída e desconstruída.
Comecei a ler aos cinco anos, porque
o meu pai era professor pelo “método de João de Deus”, a célebre “Cartilha Maternal”
incrementada durante a Primeira República. Eu ouvia-o ler o jornal e todo eu me
danava por não poder fazer o mesmo. Às vezes simulava que o lia… Tanto o atenazei
que ele, com a bondade e a paciência que o caracterizavam, me ensinou. E nunca mais
parou o meu contacto com as letras e os livros, esses castelos enfeitiçados!
Publiquei o meu
primeiro poema no canónico Juvenil, do Diário de Lisboa, andava pelos
16/17 anos. Importa dizer que uns dois ou três anos antes, na sala de espera dum
médico, eu contactara com o surrealismo ao folhear uma revista brasileira, O
Cruzeiro, que dava a lume nesse número um artigo sobre diversos autores. Fiquei
encantado, porque vi que as coisas que se agitavam dentro do meu entendimento afinal
tinham nome!
No que respeita
à pintura, começou assim: havia e ainda há perto da casa que habito em Portalegre
uma espécie de moradia apalaçada que tinha na frontaria uns painéis de azulejos
com flores e motivos vegetais em diversos tons de cor. Aquilo fascinava-me
e sempre que ia para a “mestra” virava-me repetidas vezes a contemplá-los. Nas minhas
horas desenhava, mas sem muito empenho. Aos dezoito anos, tendo já mais mundo, entrei
uma vez numa galeria de pintura e, agradando-me uma obra, perguntei quanto custava.
A quantia que me indicaram derrotou-me de imediato. Mas eu desejava ver-me rodeado
de beleza e então pensei com os meus botões: “E se eu tentasse fazer quadros?”.
Andavam-me frequentemente na cabeça, de mistura com os versos, traços, cores, formas…
Comprei uma caixa com canetas de feltro - e meti mãos à obra.
Há dias em que é alucinante: uma
palavra, uma música, o simples olhar duma coisa fazem-me agarrar no papel ou nos
cartões e nos materiais de pintura e gastar todo o santo dia naquela construção/desconstrução.
Outras vezes passo semanas sem tocar em nada. A escrita pode aparecer a seguir ou
antes, dum texto se passa para um quadro e daí para dias sem pintar e escrever,
inventando, arrolando, transfigurando coisas na cabeça e se calhar no corpo todo:
fico sendo um magneto, um motor alquímico, uma panela onde se cozinham os quadros
e os versos.
FM - Em teu Os Olhares Perdidos (2001), logo
no prefácio João Rui de Souza refere-se a «uma palavra devastada e devastadora na
procura contraditória do seu espasmo e da sua luz», como sendo uma das características
essenciais de tua poética. O que buscas através da poesia?
NS - Peguemos no título que referes. Porquê este título?
Simplesmente por isto: quando um editor me convidou a publicar o anterior livro,
Flauta de Pan, disse-me mais ou menos assim: “Veja se não sai um volume muito
grande… Arranje aí coisa para cento e tal páginas…”. Os editores, ao que me dizem
e eu acredito, têm de ter cuidado com certos aspectos não propriamente poéticos.
Então, bom aluno, arranjei cento e quarenta paginas de flauta…
Verifiquei de imediato que me havia ficado, do acervo
que tinha, uma boa quantidade de poemas. Olhares perdidos… Olhares que não pudera
dar à luz das montras (diz um confrade que muito estimo, José do Carmo Francisco,
que “os poemas devem ser para a luz das montras e não para o escuro das gavetas”).
Depois, com a natural evolução dos dias, o Ruy Ventura
alertou-me: “Amigo, creio que tem aí material que dá outro livro!” Tinha
quase, de facto. Acrescentados de mais poemas que entretanto fui fazendo, os ditos
olhares antes postos em sossego sairam noutra editora com o título
que lhes acertava em cheio.
Portanto, creio poder inferir-se que, à partida, através
da poesia busco olhar as coisas duma maneira reconvertida, transfigurada. Na poesia
há, implícito, umjogo intenso que ao poeta permite renovar-se, dar mais vida
a si mesmo ou conservar, intacta, a que tem - antes de tudo o resto. Faço poesia
para não morrer. Ou seja, para dar vazão ao núcleo duro de vida plena que em mim
sinto e que a sociedade, frequentemente, busca extinguir em nós ou se vai corroendo
por acção dessa mesma sociedade informe ou deformada. Também é uma incursão no mistério,
nesta coisa estranha que é haver existência e palavras e maneiras de as fazer bailar
desta ou daquela maneira e darem com maior ou menor perfeição o cheiro dum momento
passado, a cor dum pensamento, o rebrilhar duma emoção antiga, dum temor, duma alegria.
Repara que aponto, sem soberba, antes com serenidade
feliz, para a sabedoria e não para o conhecimento. Digamos que a poesia
é o pedacinho de sabedoria que pudémos granjear ou a que temos direito. Se nisso
fazemos concorrência aos deuses, pior para eles. Não têm de que se queixar, é o
resíduo divino que em nós mora e que epigrafamos sem maldade…
FM - Mas o que exatamente procuram ser teus escritos?
NS - Interrogo-me se procuram ser alguma coisa… Quando
escrevo estou preso ao motivo do que me apareceu na cabeça, como Cézanne
ante o seu quadro. O que naquele momento me interessa é a coisa em si: se
servir para algo, tanto melhor. Mas isso não me preocupa grandemente. Creio que,
como dizia Gherasim Luca, a beleza é uma doença de pele, de sangue, de nervos. Cito
de memória. E cito também um poeta que muito me interessa, Cristóvam Pavia, que
num poema escreveu: “Até as imagens me são inúteis porque contemplo tudo”.
Nas alturas em que escrevo entra tudo, creio: o que aprendi, o que fui sentindo
através do tempo, as alegrias e fundas mágoas, o que esqueci, o que desejo. Nos
últimos tempos, pois com a passagem da idade adquirem-se novos olhos e novas tristezas,
a presença da nostalgia e a fidelidade aos amores mortos têm na minha escrita um
peso cada vez maior. Eu costumo dizer, com ironia, que não tenho fantasmas mas
tenho muitas nostalgias. E os fantasmas, se acaso se apresentarem, procurarei
fazer-lhes frente com as pobres mas implacáveis armas que possuo: as palavras, a
sua organização e reorganização, as frases com a sua construção e desconstrução.
Nada mais quero, nada mais me preocupa do que viajar por esses continentes encantados
e temerosos que são a feitura do poema e a sua introdução no espaço e no tempo.
Não sei quanto tempo eles irão durar, mas espero que alguns dos meus versos possam
tocar o coração e a mente de algum ou alguma daqui a um considerável lapso de tempo…
Por outro lado, já do outro lado do espelho - os poemas
feitos, já em estado de papel: que sejam uma proposta de interrogação para aqueles
que os lerem e mesmo de confrontação com os mistérios da existência. Sim,
amigo, estás a perceber-me bem: a matéria poética como matéria philosófica.
Seria preciso acrescentar mais? Talvez isto: que os poetas honrados (e não tenho
de honra uma noção burguesa ou cínica) entre si se congreguem para que os
que desejam impedir que eles publiquem não levem a sua àvante.
FM - Já participaste de inúmeras exposições de mail
art. No Brasil a mail art acabou limitando-se a um ludismo da forma sem
maiores consequências estéticas. É muito raro encontrarmos entre nós um artista
como o Hélio Rola, cuja interferência a partir da mail art sempre se deu
de uma maneira crítica e não de mero seguimento de modismos. Meteram-se com a mail
art mais os poetas afeitos a um construtivismo inócuo do que propriamente os
artistas plásticos que eventualmente poderiam ver ali uma possibilidade de fusão
de duas linguagens, a plástica e a poética. Como se deu tua aventura em tal território
e até que ponto se pode vislumbrar algum contributo estético a ser destacado em
Portugal em tal área?
NS - A mail art é, por definição à letra, a arte
que se pode enviar pelo correio. Mas se encararmos o seu espírito chegaremos a definições
e conceitos mais apropriados: arte que modestamente aproveita as virtualidades de
se poder enviar algo de específicamente artístico ou poéticamente plástico num simples
envelope, numa pequena encomenda. À partida, as encomendas dos que são civilmente
despossuídos ou não muito abonados, que não dispõem de galerias para as suas trocas
artísticas, para as suas mundividências de alma de seres do lado dos que sofrem
a História e não dos que a fazem. Em suma: dos que procuram utilizar os meios
que os outros, mais fornecidos de dinheiro ou poder, desprezam ou não aproveitam.
O envio interior, a troca, processa-se em geral a partir
de materiais pobres, usando de maneira muito própria as possibilidades postas à
disposição do artista e a partir daí é a imaginação que comanda o jogo: utilização
de cartões habilmente modificados, fotografias rasgadas e recompostas com outra
estrutura, invólucros poeticamente deturpados e transfigurados, bocados de revistas
e jornais forçados doravante a proporcionar outro “espectáculo”, desenhos, guaches
ou aguarelas dissimulando-se nos intervalos da vida plástico-quotidiana, etc.
Nos últimos tempos assiste-se no entanto a umas burlazitas:
o que alguns enviam são pequenos quadros sem especificidade. Chega-se mesmo a isto:
certas escolas dão aos alunos possibilidade de enviarem para exposições produções
suas, à guisa de trabalho curricular - com horripilantes resultados, adulterando
a verdade, a realidade e a liberdade da mail art.
No meu caso, comecei por enviar coisas a amigos, sem
mesmo pensar que era uma actividade que podia desaguar em exposições. Depois, com
o Almeida e Sousa, o Carlos Martins e o João Garção, entrei no chamado circuito.
Procurámos sempre ser autênticos na nossa participação, o que pode comprovar-se
vendo os catálogos que transportam as coisas remetidas por nós.
Devo salientar que muitos organizadores ao levarem a
efeito mostras de mail art visam sim alambazar-se com pequenos museus
mais que serem um motivo para as trocas, sempre excitantes e por vezes surpreendentes,
da arte postal.
FM - Fala-me agora da tua aproximação de Mário Cesariny
e Carlos Martins, da maneira como acabou resultando na organização da exposição
“O Fantástico e o Maravilhoso”. Claro que ambos conceitos estavam ligados e numa
percepção dentro da ótica surrealista. Mas o que a eles acrescentavam então poetas
e artistas portugueses?
NS - A exposição surgiu da maneira
mais expontânea e informal que possa pensar-se. Mas já lá vamos…
Conheci o Carlos na chamada vida militar, em Leiria
- numa noite com certas peripécias surreais. Ficámos amigos quase de imediato e
verificámos que navegávamos na escuna surrealista e libertária. Estivémos depois
em comissão de serviço “por imposição”, como oficialmente dizia na guia-de-marcha,
na Guiné. Escrevíamos, principalmente e, quando podíamos, pintávamos - eu pratiquei
mesmo cerâmica e tentei aprender, em boas condições, tapeçaria com os nativos.
Quando viémos para casa, contactámos com os membros
do “Grupo do Grifo”, da revista do mesmo nome que saíra por essa altura e a PIDE
logo apreendera: Virgílio Martinho, Ernesto Sampaio, António José Forte, Pedro Oom,
António B. da Fonseca, Ricarte-Dácio. Também apareciam no Café Monte Carlo, local
da tertúlia, o Herberto Helder, o Luís Pacheco, o Miguel Erlich, a Luiza Neto Jorge,
a actriz Eunice Muñoz, o declamador Mário Viegas…
Só em 76 conheci o Cesariny: eu estava ao pé da Estação
do Rossio quando ouvi ao lado uma voz a pedir à ardina um jornal que tivesse notícias
boas… Era o Mário. Dirigi-me a ele, apresentei-me: ficámos até às quatro da manhã
a conversar no seu atelier . E passámos a contactar regularmente e a levar
a efeito actividades em conjunto.
A exposição surgiu por acaso: tanto o Mário com o Carlos
partilhavam comigo o deslumbramento pelas coisas do Lovecraft, do Georges du Maurier,
do “Monk Lewis”, do Bulgakov, dos antigos e modernos cultores do humor negro, do
maravilhoso e do fantástico e falávamos muito a seu propósito. Como nessa altura
o Carlos e a Ana estavam no Teatro de Xabregas, ela como actriz e ele como encarregado
do sector cultural, pensámos em artilhar a mostra. Eu conhecia o Miranda Calha,
que era secretário de Estado do Desporto e ele falou com o Coimbra Martins, ministro
da Cultura de então. Ultrapassadas algumas dificuldades que nessa época ocorriam
- o Cesariny por seu turno falara com a secretária do Mário Soares - articulou-se
a exposição com o apoio do movimento “Phases” e de autores ingleses, brasileiros,
belgas, angolanos, moçambicanos, holandeses, etc.
Conseguimos também, por intervenção do Soares junto
de certas embaixadas, a participação de alguns autores do leste…
Os portugueses (Mário Botas, Paula Rego, Eurico, Armanda
Andrade, António Quadros, Relógio, Garizo do Carmo, Areal, Júlio Reis Pereira, Escada,
Isabel Meyrelles entre muitos mais) quando vivos eram contactados por conhecimento
próprio de uns e de outros ou disponibilizavam-se ao saber da coisa. Se falecidos,
falava-se com os herdeiros.
A minha contribuição de maior vulto - além de traduzir
textos e publicar poemas no catálogo-livro e expor dois quadros - foi descobrir
um surrealista ínsito, meu companheiro de adolescência: de sua profissão carpinteiro,
meio-surdo e com dificuldades na fala mas muito atento e inteligente, o Manuel Mourato
nos dias em que tivera de ficar em repouso por haver partido uma perna pintara um
enorme quadro com as tintas da profissão: O bosque encantado, título de minha
lavra e que foi uma das revelações da Mostra.
Mal recebida pela crítica au pair (estava-se
em plena época da reacção pura e dura aos que não aceitassem os ditames culturais
dum certo sector) a mostra foi depois levada para a Sociedade Nacional de Belas
Artes pela mão competente e esclarecida do crítico democrata Rui Mário Gonçalves.
FM - De que maneira te sentes integrado ao surrealismo
em Portugal? Explica-me tua participação efectiva no movimento e as afinidades electivas.
NS - Começarei por dizer que “surrealismo em Portugal”
é uma espécie de ave rara que diversos caçadores tentam abater, uns por umas
razões e outros por outras. Se ser surrealista é sentir o primado da imaginação
e da transfiguração que a liberdade livre proporciona, do sentido que o humor negro,
o amor e a lealdade aos poderes do espírito nos concede, sou surrealista e tenho
como meu albergue a terra inteira. Ser surrealista em Portugal é entretanto um negócio
arriscado, no mínimo, constantemente sujeito a deturpações, difamações, fingimentos
e desprezos subreptícios. Nesta nação nunca houve uma verdadeira democracia - o
que há agora é uma partidocracia num país belíssimo, paisagem que o povo vai ornamentando
(e com frequência o melhor surrealismo sai do povo espontaneamente, feito com arte
ingénua e perfurante inocência), mas dominado por gente que se apoia nos meios de
comunicação, no caciquismo e nos maus hábitos seculares. Nestas circunstâncias,
o espaço de manobra do surrealismo é pequeno.. Éimpensável, por exemplo,
que a entrevista que V. me estão a fazer me fôsse feita por qualquer órgão de referência
nacional. A imprensa portuguesa vive dominada por uma espécie de paranóia guerreira
que existe entre os diversos quadrantes políticos, sendo porta-voz das trocas
e baldrocas em que estes vivem mergulhados. Também se alimenta intensamente
da saga futebolística e dos talk-shows televisivos, criando um espaço letal para
a poesia e de entre ela para a poética surrealista. Quando necessidades de maquilhagem
cultural a isso aconselham recordam-se de novo, pela milésima vez, os tempos já
idos dos surrealistas Cesariny, Seixas e um ou outro mais (António Maria Lisboa
e o também já falecido Mário Henrique Leiria, quando muito) faz-se uma excursão
por esses anos (cerca de 50 atrás…) e aproveita-se para dar a entender que, afinal,
o surrealismo que foi giro nessa época está extinto, kaputt, passemos agora
a coisas sérias e importantes - as literatices que rendem.
Por isso o que há, falando em grupos, é grupos de
um - como o Cesariny me dizia há anos com ironia - ou de dois ou três no máximo,
reunidos quase por acaso, ajudados por companheiros de jornada. De vez em
quando tem-se a possibilidade de fazer uma exposição, publicar um livro…
A minha participação no… movimento (?) caracterizou-se
por um lado pela feitura de poemas e pela efectivação de mostras, os primeiros publicados
em jornais e revistas que respeitavam a sua qualidade sem repararem muito na sua
condição surreal e as segundas levadas a cabo pelas entidades que, sendo um pouco
de letras grossas, não viam bem a epidemia que lhes levávamos…
Quanto aos meus livros foram dados a lume com dificuldade.
E saíram porque subsidiados pela autarquia da minha cidade - onde gozo de respeito
pela minha condição de democrata que ajudou a fazer o “25 de Abril”. Por outro lado,
nos tempos mais chegados com o Ruy Ventura e o João Garção, tenho levado a efeito
palestras e conferências aproveitando as abertas que se podem e sempre escorado
no prestígio pessoal enquanto poeta e militante democrata. Escrevendo nos jornais
que me dão eventual guarida, indo à rádio de tempos a tempos, metendo aqui e ali
a palpitação surrealista…
Nunca tive, todavia, qualquer dificuldade em mostrar-me
em Espanha e em colaborar com entidades culturais espanholas, devido à maior abertura
que existe do outro lado da fronteira.
FM - No que diz respeito ao “temperamento” da imprensa
em Portugal, isto tem sido a tónica dos organismos de comunicação em todo o mundo,
não constituindo uma particularidade portuguesa. O que intriga é a maneira como
esta forma violenta tornou-se natural com a conivencia da própria casta intelectual
que a deveria combater. Meter-se com a mídia hoje é coisa para excluídos que ainda
sonham em ser incluídos. Já não se questiona a deformação moral do que seja. Não
se trata de ideologia ou estética e sim de um naufrágio existencial.
NS - Gostaria de contar uma pequena estória que eu apelidaria,
com humor negro, de “proveito e exemplo” como se diz por cá: no filme do
Oliver Stone sobre o assassinato do Kennedy o procurador que está a investigar a
conspiração, ao encontrar-se com o operacional reformado que pertencera aos mais
altos círculos da “secreta” e lhe dá informações, começa a falar-lhe na filosofia
do mal dos previsíveis assassinos e em outras coisas transcendentes que tais.
Ele, com um sorriso, diz-lhe então:” Deixe-se de filosofias e de “poesia” e siga
a pista da massinha…”. A minha posição perante o que deixas transparecer na tua
pergunta é exactamente a mesma. A meu ver não se trata de um naufrágio existencial
e sim de algo que tem a ver com a charra e crassa falta de ética e do desejo de
estar à manjedoira do poder. Há uma parte da intelectualidade que questiona a deformação
moral que muito bem referes. Mas são defenestrados, marginalizados e mesmo perseguidos
quando é necessário. Creio que os movimentos sociais de ponta - nos quais os surrealistas
a mais de um título militam - devem forçá-los a definir-se - e não se julgue que
é um esforço ingénuo ou desinteressante, este. Pela minha parte não estou nada intrigado
com os fastos que os lacaios de sempre se auto-ofertam: os oportunistas sempre jogaram
pelo seguro e têm artes de estar sempre do lado onde há sol…
Creio que a pouco e pouco a figura está a reconfigurar-se:
também os de Leste se pensavam eternos e veja-se a implosão que os deitou todos
abaixo. Nisto, sou optimista. Também os que pensam que a bambochata sequente durará
encontrarão o seu Waterloo mais depressa do que julgam. Hoje já nem os próprios
gurus da economia de mercado se atrevem a arvorar um sorriso sobranceiro, eles sabem
bem quanto as suas aparelhagens aparentemente de precisão são falíveis. As próprias
religiões reveladas, que são outra das partes (baixas) da questão, sentem um frio
mortal à sua volta. Mesmo os chefes do Islão, de acordo com dados a que se tem acesso,
no fundo estão muito pouco tranquilos - e por isso tentam uma fuga para a frente
mediante o fundamentalismo mais agreste e o terrorismo como razão intrínseca duma
linha que já se perdeu na História e está prestes a perder a própria História. Aos
surrealistas caberá então uma tarefa definitiva: colocar sempre e cada vez mais
em evidência as margens do amor sublime, da transfiguração imaginativa para
além do simplesmente literário ou societário. Como diziam e viviam os mestres alquimistas,
a questão que se põe é mais artística (ou seja, de paixão e de um
realismo que sabe espiritualizar a matéria e materializar o espírito) que técnica
ou filosófica (no sentido estrito). O próprio exagero das forças dominantes - entre
as quais os médias se contam - em rebaixar a ética, nos diz que eles percebem
que existe um certo estrebuchar imparável. Não tenho da vida um sentido catastrofista
e, por isso, sinto uma certa calma que me permite viver sem a angústia que é natural
muitos terem colada aos ossos e à alma.
FM - Qual a situação hoje do Surrealismo
em Portugal? Bem sabemos da importância do trabalho que vem realizando um crítico
como Perfecto Cuadrado. Contudo, não te parece que se está dando ao Surrealismo
uma conotação essencialmente historicista, minando-lhe a atualidade?
NS - Confesso, sem nenhuma malícia, que não conheço
muito o trabalho a que te referes. E isso será já significativo em si. Num país
normal eu não poderia deixar de ter bom conhecimento disso. Mas se calhar sou como
o personagem do livro do Richard Wright sobre o racismo, um homem invisível.
E como eu há mais… É claro que isto sucede porque, precisamente, o Perfecto Quadrado
está dando ao surrealismo isso que referes. Ou então foi alguém que, interessado,
inteligente, agilmente manobrador, lhe deu a volta como a uma luva velha, como
se diz que o Napoleão fez a um encarniçado opositor. Mas isto são conjecturas. Não
conheço esse estudioso, não sei se é uma alma cândida ou uma pessoa que, interessada
e ardente, tem no entanto do surrealismo português a visão que o imperador Guilherme
tinha da Alemanha: uma dama pronta para todas as aventuras… Sério calculo
eu que deva ser.
Seja como fôr, o historicismo interessa a muita gente
- desde logo os pequenos aristocratas da fantasia aplicada que são óptimos para
lançar uma cortina de nevoeiro sobre os tempos e os modos. Só posso, a este propósito
e de boa catadura, dizer que houve uma ensaísta que em tempos escreveu um tomo sobre
o surrealismo que, lido por mim e pelo Carlos Martins - que aliás lhe escreveu uma
carta, eu dispensei-me de tal maçada - nos fez rir primeiro a bandeiras despregadas.
Aquilo que lá dizia que nós tínhamos feito era uma traquinice pegada, não fôra nada
daquilo. Depois, pelo menos eu - que tenho um temperamento dramático, quase trágico
- gelou-se-me o riso nos lábios. Era, com todo o respeito, uma quase pequena impostura.
Que nos dá tristeza, a nós que estamos de boa-fé.
FM - És o responsável pelo Centro
de Estudos José Régio, em Portalegre. De que maneira isto permite alguma aproximação
entre literatura em Portugal e demais países de língua portuguesa? O que se conhece
da poesia brasileira em Portugal?
NS - Régio era um poeta que, apesar
do que certos sectores ainda pretendem, prezava os encontros além de ser dotado
de um espírito curioso e interessado. Tinha muito razoáveis contactos no Brasil.
A talhe de foice: Ribeiro Couto (que ele recebeu em Portalegre numa noite memorável
de que há registos), Cecília Meireles, Dante Milano, Manuel Bandeira, Herberto Sales,
José Paulo Moreira da Fonseca, Mauro Mota, Domingos Carvalho da Silva…
Trocavam os livros, exprimiam-se
mutuamente apreço e admiração - e como se diz passavam palavra, procediam a cooptações.
Logo que cheguei ao Centro - e
já lá vão 13 anos - comecei imediatamente a ler tudo o que ele tinha em acervo,
não só por brio profissional e necessidade decorrente da minha função mas por gosto
e vontade. Aliás, há lá livros que se calhar já só se encontram nas bibliotecas
nacionais…
Em certos casos foi um deslumbramento.
Autores de que só tinha ouvido falar, nalguns casos e, noutros, lera de raspão na,
à altura, mal fornecida Biblioteca da cidade, estavam à minha disposição! É claro
que depois passei as minhas leituras, entre outros elementos que lhes fornecia,
aos visitantes. Não é para me gabar, mas muitas pessoas em Portugal passaram a ler
autores brasileiros com renovado interesse depois da minha “evangelização”… E não
só visitantes, mas confrades e amigos. E, muitas vezes, quando ia ou vou à Rádio,
frequentemente leio poemas dos teus compatriotas. Porque tenho prazer nisso, porque
eles merecem - mas também porque acredito que é importante difundir a literatura
brasileira. E tenho sido “recompensado”: tempos atrás, por exemplo, foi-me solicitado
por uma senhora de Almada que lhe enviasse fotocópias de poemas de Moreira da Fonseca
e de uma escola do Baixo Alentejo fui solicitado a proferir uma palestra sobre Régio
e os escritores brasileiros, o que fiz, tendo depois escrito um pequenino ensaio.
Não me parece que se conheça muito
da vossa poesia cá no país. Em geral fala-se em Bandeira, Murilo Mendes, Jorge Amado,
Ledo Ivo, outros como Rubem Fonseca - mas é nas correntes intelectuais que o conhecimento
pode ser mais fundo. Estou a lembrar-me que um poeta de categoria, C. Ronald, eu
mesmo só relativamente há pouco tempo o li. E deve haver dezenas de autores de mérito
que desconheço, o que diz de imediato que se num leitor tenaz e intemerato como
eu isso é assim… como não será noutros um pouco mais distantes da leitura!
FM - O que consideras esteja a faltar para que haja
uma presença significativa de escritores brasileiros em Portugal? Penso, por exemplo,
que vocês podem contar com o apoio financeiro do IPLB, enquanto que no Brasil nada
temos neste sentido.
NS - Em primeiro
lugar, e com amiga ironia to digo, a expressão vocês podem contar com
faz-me ficar com um riso amarelo… Podem - alguns; os que o tal IPLB distingue. E
confesso-te que me dás uma novidade: se a sigla a que aludes é o Instituto
Português do Livro e das Bibliotecas (o meu relativo desconhecimento já é, acho
eu, significativo) nunca recebi e nunca receberei, de certeza, qualquer apoio para
divulgação no Brasil. Bem como outros que não usam (galhardamente falando) gravata
nem fato de três peças… Faço-me entender? Fui até há bem pouco tempo co-coordenador
de um suplemento literário, editado durante três anos ininterruptamente. E publicámos,
como sabes, um número considerável de textos e poemas de autores brasileiros. Quando,
a dada altura, pusémos a hipótese de solicitar algum apoio a essa sigla, olhámos
uns para os outros e concluímos de pronto: sabendo o actual hábito lusitano, nem
vale a pena tentar… Teremos sido injustos? Se acaso o fômos, foi de alma branca.
Com sinceridade. De boa-fé. Mas adiante…
Creio que se deve começar, ou continuar, pelas cooptações.
Entre escritores. Entre jornais e revistas do sector. Entre editores. E depois,
de facto, ter a esperança ou a exigência de que os dois Estados cobrem coragem
para não se ficarem só pelo parlapié (conversa fiada). Gasta-se tanto dinheiro
mal gasto! E tanta coisa que se podia fazer - palestras, colóquios, edições conjuntas...
(Mas se calhar estou a sonhar alto).
Finalmente, confesso que fico espantado por não terem
vocês nenhum organismo que apoie essas actividades essenciais num país a sério.
Mas talvez - espero bem - a coisa possa agora mudar. Afinal têm como ministro da
cultura um artista e como presidente um homem de bem (a meu ver, apesar de conhecer
mal a política brasileira). Faço sinceros votos para que o panorama mude depressa
- dos dois lados do Atlântico!
[2003]
NOTA
Nicolau Saião (Alentejo, 1946) é poeta e artista plástico.
Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polônia,
Brasil, Canadá, Estados Unidos, e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente
em lugares como Paris, Lisboa, Porto e Sevilha. Organizou, com Mário Cesariny e
Carlos Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984), patente no Teatro
de Xabregas e na Soc. Nac. de Belas Artes (tendo traduzido diversos autores incluídos
no livro-catálogo) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).
Actualmente é responsável pelo Centro de Estudos José Régio, adstrito à Casa-Museu.
Tem colaboração diversa na imprensa cultural em vários países, de que são exemplos
Colóquio Letras (Portugal), DiVersos(Bruxelas), Albatroz (Paris),
Agulha (Brasil), Mele (Honolulu) e Espacio/Espaço Escrito (Badajoz).
Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens” (Rádio
Portalegre). Está representado em antologias de poesia e pintura. Em 1992 a Associação
Portuguesa de Escritores lhe atribuiu o prêmio Revelação/Poesia ao livro Os objectos
inquietantes (Editorial Caminho). Nos anos 90 orientou e dirigiu o suplemento
literário Miradouro, saído no Notícias de Elvas. Com João Garção e
Ruy Ventura coordenouFanal, suplemento cultural publicado mensalmente n’O
Distrito de Portalegre, de março de 2000 a julho de 2003. Autor de livros comoOs
objectos inquietantes (1992), Flauta de Pan (1998) e Os olhares perdidos
(2001).
[Entrevista publicada na Agulha Revista de Cultura # 37 - Janeiro de 2004]
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