FM Estava aqui pensando naquele navio cor de chumbo
que em 1995 surge em teu horizonte estético trazendo a bordo as figuras que por
algum momento haviam desaparecido dentro da paisagem de uma nova fase de tua
pintura. É uma imagem muito bonita e que me faz pensar sobre a conexão entre a
realidade e a criação, mundo exterior e mundo interior. Como se descortina em
ti essa conexão entre dois mundos? São, de fato, dois mundos?
SL São sim dois mundos, porém complementares e
indissociáveis. O que me faz pensar que os dois sejam em verdade um. Vejo a
questão da conexão entre os dois mundos de forma particular. O elo é um
terceiro elemento, me parece. Esta concepção em tríade sugere, ao fim, uma
realidade complexa, o real com o qual lidamos na experiência cotidiana.
Para mim, logo no inicio, foram estas as questões essenciais. Hoje sinto que a
coisa é ainda mais complexa, sinto que há algo presente sobre o qual nada ou
quase eu posso falar. Trata-se de um dado imponderável, algo que atua à revelia
de minha consciência manipuladora, mas que efetivamente consubstancia, para
mim, a realidade de significado. O que me parece mais próximo ao que eu estou
tentando expressar é a concepção da ideia da Graça.
A pintura cumpre em
mim esta função, elemento comunicante entre o dentro e o fora e além. Deste
além fala a pintura só, em silêncio.
FM Graça compreendida não somente no sentido de
dádiva, mas também de Beleza e Vontade, suponho. De outra forma, a reduziríamos
apenas a um conceito teológico, que não interessa à Arte em isolado. Com esta
tríade temos constituído o Mistério da Criação e sua indissociável relação com
a realidade. Aplicando isto à tua pintura, adentramos assim o Maravilhoso,
muito mais do que o Fantástico. Estás de acordo?
SL Absolutamente de acordo. A Graça a que me refiro
diz respeito ao advento do imponderável e isto, embora espontâneo, só se dá sob
determinadas condições. Minha experiência não se reporta a qualquer conceito
teológico, embora veja certas analogias com a experiência dos místicos, o que
afirmo é que, para mim, isto que se passa ao fazer pintura é a essência do que
entendo por espiritual. Adorei a expressão “Maravilhoso” que usastes. O
conceito do fantástico sempre me pareceu reducionista.
FM Há um depoimento teu em que suspeitas que “todas
as nuanças da natureza humana podem ser trazidas à tona sob a lona de um circo
ou palco de um teatro”. Isto me parece definir que pensas na criação artística
como representação.
SL À época desta declaração eu era ainda muito jovem,
mas no essencial posso concordar com a ideia da criação como representação.
Entretanto, tenho hoje uma concepção diferente daquilo que se busca
representar. Quando vi Morandi ante meus olhos pela primeira vez, algo dentro
de mim cristalizou-se. Levei anos para elaborar isto. (Vale salientar que já o
vira inúmeras vezes antes em reproduções, o que mostra o poder da pintura em
sua realidade material.) Na época, qual um bárbaro ignorante, achava que a
pintura de natureza-morta era algo menor, meu olhar alcançava apenas a
superfície, enxergava só o assunto representado. Um copo, uma garrafa, um prato
com frutas, enfim, um tema prosaico demais para minha expectativa de artista
determinado a mudar o mundo. Morandi me tirou das trevas. Foi quando finalmente
acordei para a questão da pintura como linguagem e não como representação. Aqui
pareço contradizer o que falei de inicio, mas não, a linguagem existe para
formalizar algo. Esta é a questão com que me deparo desde então.
A linguagem como meio
da criação artística, que produz o ainda não conceituado, o novo, aquilo que
quando elaborado apresenta uma nova instância, um novo patamar de consciência
para o artista.
Para mim isto
corresponde a uma atitude histórica da espécie, desde os primórdios, que busca
alcançar a representação do inconcebível, a fim de nos apoderarmos dele. Esta é
a nossa vã pretensão, a qual é fadada ao fracasso. Parece-me ser esta a tensão
essencial da condição humana, aquilo que nos impulsiona.
FM Esta tua ideia do fracasso acaso não traz consigo
uma sensação de impotência? Isto me faz ironicamente pensar que não se deve dar
crédito à consciência na criação.
SL Não há consciência na criação. A consciência
ocorre a posteriori e não a priori. Este é um dado fundamental
para mim. Uma nova consciência é possível a partir da realidade do objeto
criado. O artista só dispõe da consciência do até então, este é o seu limite e
também seu trampolim para o porvir.
FM Diria que o artista ao criar luta ao mesmo tempo
contra a ordem e o acaso?
SL A ordem é o que foi estabelecido. Marcel Duchamp
estabeleceu um novo paradigma. Hoje as questões levantadas por Duchamp estão
estabelecidas e ocupam o espaço da ordem anterior. Daí que surge assim a nova
academia, que é o que temos novamente como orientação conceitual totalitária. O
artista quando luta contra a ordem, e vence, consegue apenas isto: gerar uma
nova ordem. Eu vejo que este caminho não leva a outra coisa senão à repetição,
à permanência na roda de Samsara. Pela mesma razão acho bobagem o artista lutar
contra o acaso, não é uma atitude artística, ao contrario, é uma atitude
puramente racional, e consequentemente menor, além de ser uma postura capaz de
derivar para políticas de dominação e coisas do gênero. Eu não acredito no
acaso, nem na arte nem na vida. Gosto de ver naquilo a que chamam de acaso
mensagens do que em mim ainda não É, mas quer Ser. Se não as
compreendo, aguardo. Esta é a relação tenho com a vida e com a pintura.
FM O que busca expressar a pintura através de Sérgio
Lucena?
SL Não sei, e lhe digo isso com toda franqueza.
FM Eu sempre prefiro comentar a respeito de
identificações que propriamente evocar o lugar-comum das influências. Não sei
como convives com isto, mas gostaria também de saber quais os teus
interlocutores alheio às dimensões de tempo e espaço. Mencionaste Morandi. Quem
mais e por quais motivos?
SL São muitos e muitos o foram por determinado
período, deixando em dado momento o posto de referência maior para outros,
entretanto nunca saindo do panteão de divindades que cultuo. Vou citar alguns
por ordem histórica na minha vida, a partir dos cinco anos, quando vi pela
primeira vez uma reprodução de pintura. Os flamengos de uma maneira geral com
ênfase, no primeiro momento, em Pieter Brueghel o velho e Hieronymus Bosch. Os
expressionistas alemães, com ênfase em Otto Dix e Max Beckmann. O estranhamento deles em
relação ao mundo em volta, creio, era o que os tornava próximos a mim. Este
estranhamento aliado a uma referência espiritual, mais do que estética, em Van Gogh , e estética,
mais do que espiritual, em
Gauguin. O bom Manet que me mandou de volta aos clássicos,
Velásquez, El Greco, Rubens, Ticiano, Tintoretto e o meu amado deus Rembrandt.
Hoje encontro boas referências em pintores como Bacon — graças a Velásquez —,
Gerhard Richter — graças aos flamengos —, e o escultor Anish Kapoor — graças a
todos juntos.
FM Desde que momento e em que circunstância o menino
Sérgio Lucena identifica como arte sua necessidade de anotação e/ou
decifração simbólica do mundo?
SL Isso se deu muito cedo mesmo em minha vida, bem
antes até de eu entender que, primeiro o desenho e depois a pintura, cumpriam
esta função em mim. Foi
algo instintivo, uma maneira natural de buscar uma realidade possível, uma
realidade que fizesse sentido para mim. Não era isto o que eu percebia no mundo
ao redor, portanto… Quando ainda bem criança sentia que o desenho era o meu
mundo real e o sonho, já desde então, era o chão desta realidade. Quando me
deitava para dormir, dizia para mim mesmo: agora vamos para a outra vida.
Por anos tentei assistir a passagem, mas nisto nunca fui bem sucedido.
Hoje, assim como
quando criança, considero como minha realidade o amor e a minha pintura. A arte
e o Amor, as únicas coisas realmente sólidas, concretas e factíveis. O mais,
para mim, é pura fantasia.
FM E não conflitantes entre si, assim espero, ou
seja, as duas forças são uma a extensão da outra. Porém como ambas convivem com
as ardilezas morais do cotidiano e seu plano de restrições bem palpáveis, o que
em teu caso inclui também o ambíguo mercado das artes?
SL É sim, uma só força. Quanto ao mercado das artes,
minha experiência permite que eu tenha uma noção da coisa. Trabalhei muito
tempo da minha vida com comércio, estive atrás de um balcão o bastante para
saber o que é mercado. Não é o que vejo no Brasil quando o assunto é arte. Tudo
é ainda embrionário, uma possibilidade que efetivamente ainda não se concretizou.
Acontecerá um dia, é certo, mas ainda estamos engatinhando. Isto certamente é
uma dificuldade de grande impacto e que causa imenso prejuízo à produção
artística no Brasil. Entretanto, isto não está dissociado da forma como no país
são tratadas as demais questões essenciais, educação, saúde, estrutura, a
logística enfim, não há ainda claro um projeto para o país, tudo se dá na base
do improviso. Esta é a nossa realidade cultural e política.
FM Recorto palavras tuas: “revelar através da luz era
a minha obsessão”, que me parecem bem atuais, considerando um plano espiritual
acentuado que encontramos hoje em tua pintura. Esta exposição mais recente, por
exemplo, com notável bestiário dialogando com uma paisagem que toca o sublime.
Alcançaste o entendimento da luz na pintura? O que este conhecimento te revela?
SL Tu sabes, eu me sinto hoje como se tudo
essencialmente ainda estivesse por ser feito, este momento que é o maior e o
mais importante de toda a minha carreira, me diz que estou apenas no começo. É
difícil falar deste sentimento paradoxal, é tão contraditório, entretanto, é
assim mesmo e nunca foi diferente. Percebo que muito foi cristalizado, houve
uma sedimentação de aspectos essenciais que me deram o chão que nunca antes
sentira sob os meus pés, e é justo este leito rochoso que me traz de novo a
vontade louca de saltar no abismo, como todas às vezes antes: “desta vez para
sempre”.
FM Quero retornar à ideia de fracasso para concluir
com uma provocação: costumas estabelecer o que é essencial e acessório em tuas
obsessões? Quando realmente importa saber se na relação entre triunfo e
fracasso por vezes os papéis não estão trocados?
SL Nada acessório convive com o que me obceca.
Discernir sobre isto não é um problema para mim, mas é para aqueles próximos, e
daí passa a ser um problema meu, pois eu os amo. O fato é que se for para
escolher, fico com o que é essencial para mim. O único triunfo que vislumbro
consiste em alcançar minha expressão de louvor à vida, meu testemunho do
mistério. Abdicar deste propósito, em nome do que quer que seja, é o fracasso.
Não tenho duvida que a minha loucura protegeu-me até aqui, agora que estou
velho e que minhas forças diminuem, tenho na prece minha força e refúgio. Minha
pintura é a minha oração.
FM Esquecemos algo?
SL Sim, eu gostaria de falar sobre o interlocutor e
seu papel para o artista.
FM Uma importância posterior, da mesma ordem da
consciência?
SL A importância é determinante. Não cabe aqui
qualquer escala de valor em importância, pois o artista sequer existiria sem o
interlocutor. Ele é o espelho, aquele que diz ao artista o que ele é a partir
do que ele traz. O interlocutor é uma entidade que ao longo da vida do artista
migra, a partir da natureza, as pedras, a água, o ar, as plantas, os animais,
as pessoas, uma pessoa; que venha a representar a soma de toda consciência
adquirida até então, e seja capaz de catalisar no artista a forma possível de
atender à nova demanda de significados que se apresenta à época. A relação é
naturalmente amorosa, implica em confiança e vontade férrea de romper com o
limite, avançar em campo desconhecido, não é possível sem confiar no outro. O
artista traz, o interlocutor reconhece e dimensiona o que foi trazido, o
artista reconhece assim a si mesmo, adquire fôlego e mergulha outra vez. A
ambos cabe o mesmo desafio: encarar o novo com consciência critica, mas também,
sem pré-conceito.
[2007]
[Entrevista com Sérgio Lucena (Brasil, 1963), publicada em Invenção
do Brasil. São Paulo: Editora Descaminhos, 2013. http://www.amazon.com/Inven%C3%A7%C3%A3o-Brasil-entrevistas-Portuguese-Edition-ebook/dp/B00FTBMR24]
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