FM Em um poema teu
intitulado “Meu conflito” (Meridiano
celeste & Bestiário, 2006) encontro esta intrigante imagem de um
falante que se debate “vida afora à procura de Ulisses”, invertendo o curso
mitológico entre busca e extravio. Começamos então nosso diálogo por esta
inversão sugestiva. Quem é o interlocutor que procuras?
ML Ah, Floriano, você
aponta para a ferida. O norte. A demanda do santo Graal. A ideia de uma procura
que se torna capítulo de outra busca. Ulisses tentando voltar para a sua
rochosa Ítaca. E Telêmaco, nos rastros de Ulisses. Uma procura que se procura.
Uma demanda que não se consome. Houve de fato uma Telemaquia. Mas pouquíssimos
versos nos chegaram desse poema. Eu me aflijo por essa dupla ausência e me
enamoro deste ainda-não: a ilha não alcançada e Ulisses não encontrado. Assim,
desde cedo fiquei intrigado diante desses textos sugestivos e inatingíveis. A
literatura como a demanda de uma contra-demanda. Presença e Não-presença. A
obra futura e — portanto — inacabada. E uma espécie de verificação do sistema,
medindo os limites daquela obra. Ou então: a poesia em estado absoluto, como a
de Ulisses, em seus dez anos de errância, e a vigilância do metro, da beleza,
da verdade, na inespera crítica de
Telêmaco. E esses aspectos cresceram na obra de Dante — quando eu estudava o
canto XXVI do Inferno. E me deparo com Ulisses que não volta para Ítaca, indo
naufragar nas praias da eternidade, junto ao Purgatório… Mas eu preciso
responder, Floriano. Que uma primeira ideia de Telemaquia — para mim — se
resolve na busca do Outro. Em Dante, essa visão tremenda do Paraíso XXXIII — de
um Deus-livro, no Poeta — e cada um de nós — volta para a sua Ilha. Rochosa e
perdida. O meu interlocutor são os que têm na literatura uma pátria de coisas
perdidas e inacabadas, cuja beleza se origina precisamente desse estado. O
ainda-não como a coroa do rei. Uma telemaquia interna e perigosa. Bela e
simultânea.
FM Em entrevista que fiz
ao poeta Sérgio Campos, ele me disse que suas margens de atividade criadora são
“a primeira sílaba da primeira palavra de um conjunto e a última do
movimento polifônico de vida que ela desencadeia”. É também assim que buscas “o
outro lado da noite”?
ML Bela definição, essa do
Sérgio Campos. Metáfora valente. Ora, o outro lado da noite, está em Saudades do paraíso, o livro que me
levou para as minhas sílabas, as inserções primeiras de meus dias. Por onde
passam Antonio Carlos Villaça, Nise da Silveira, Roger Garaudy, Eco, Rubens
Corrêa, Nagib Mahfuz, Adélia, Esquivel, em formas de crônica, ensaio poético. O
outro lado da noite, portanto, depois de uma palestra que assisti de Carlo
Rubbia, Prêmio Nobel da Física, na Praia Vermelha. Pensava nas potências da
palavra. Verso e anverso. Os infinitos infinitos. O grande e o pequeno. Dos
universos-bolha. E dos paralelos. Pensei na potência das palavras (Cecília: que
potência, a vossa). Palavras capazes de tudo. De guardar e transformar. Pensei em Lucrécio. E de repente
— Floriano — precisei respirar vida, o aqui e o agora. Caminhei pelo Bem-Te-Vi,
que é o outro lado do Pão de Açúcar. Pensando em amores. Pensando
em tanta coisa. Mas tanta, Floriano, tanta, que mal consigo dizer. Influxo.
Influência.
FM E ali em Teatro alquímico (1999), esta
configuração preciosa da integração entre aquilo que nos influi e a maneira
como também influímos em toda escolha, em todo domínio. “Pertenço a Georg Trakl
tanto quanto este me pertence”, dizes. E assim destroças toda uma pasmaceira em
torno da influência e suas pequenas angústias. Somos modificados pela história
na medida em que a modificamos. Contudo, nosso tempo rompeu desastrosamente com
esta identificação profunda entre ser e tempo, e o hiato nos fez perder o lugar
de origem, o que nos impede o curso da viagem. Como vês a relação de forças
entre ciência, religião e arte, a esfera de poder em que agem e desertificam o mundo?
ML Vivemos da quebra das
possíveis harmonias primordiais. Somos Filhos do Plural e da Névoa. Separados
da Origem. Exilados no Futuro. As perspectivas não são maravilhosas. Mas há que
aceitá-las, como Nietzsche, tremendamente chocado e apaixonado pela intuição de
Sils-Maria. Separações neopositivistas parecem impor uma exclusão absoluta
entre os pólos da ciência e da religião. E minha vida tem sido a do diálogo.
Trabalho com teólogos. E com cientistas. Sou amigo do físico Ildeu de Castro
como do teólogo Faustino Teixeira. Do astrônomo Ronaldo Rogério Mourão, como do
matemático Ubiratan D’Ambrósio. Conversei com metropolitas ortodoxos de vários
cantos da Europa e do Oriente Médio, como com bispos e aiatolás, no Brasil e no
Irã. Com Frei Betto e Leonardo Boff. Cícero — com lágrimas nos olhos — e
percorri as mesquitas de Shiraz. A minha paixão tem sido a de conjugar as
partes quebradas de um diálogo. E tenho como certo que a cidadania vem dos
âmbitos de uma conversa toda marcada de adição. Não quero “ou”. Quero “e”. Dou
um exemplo. Estou em
Recife. Tenho quinze anos. 1979. Levam-me à casa de Cussy de
Almeida, em Piedade.
Talvez o maestro não se lembre. Eu era um rapazola tímido.
Ele, sem o Stradivarius. Havia terminado de tocar Vivaldi na Sala Cecilia
Meirelles. Era uma tarde linda no Recife. E havia um senhor de rosto que me
parecia familiar. Sabe quem era, Floriano? Luis Gonzaga. E tratou de tocar “Asa
Branca”, como se fosse aquela a primeira vez. Cussy e Gonzaga. Não era “ou”.
Era “e”.
FM Esplêndido exemplo. Defendia o poeta argentino Aldo Pellegrini que “la imagen poética en todas
sus formas actúa como desintegradora de ese mundo convencional, nos muestra su
fragilidad y su artificio, lo sustituye por otro palpitante y viviente que
responde al deseo del hombre”. Como crês que atua ainda a poesia, considerando sua condição
essencialmente subversiva, em nosso tempo?
ML Quanto admiro o
Pellegrini! Sempre criou situações novas e, mais que novas, seminais. Gosto
dele. Do Girondo. Da Alejandra. E do Temperley. Pra ficar com os ausentes.
Creio ainda — em tempos escuros e sombrios como os nossos — na força imagética.
O arquétipo jamais poderá perder sua grande sinergia. E todas as suas
implicações. Estamos na era dos homens, bem entendido. Mas a era dos deuses —
para falar com Vico, para dividir as ideias de Herder — não creio que ela cesse
de todo. Em outras palavras, lembro do impacto tremendo da poesia de Hölderlin,
quase que ferido de abstração. E — de repente — nos anos em que se manifestava
a loucura, o poema “Patmos”, a espera dos deuses e a vitória absoluta das
imagens. Uma tempestade imagética. Um triunfo absoluto da poesia. Das altitudes
rarefeitas, esbatidas de um elemento misteriosamente concreto. Pellegrini não
erra. E a poesia não conhece limites. Proibições. Sabe apenas de desafios.
Desde as Janelas altas, de Philip
Larkin, aos livros de Mario Luzi e Milosz, vemos que mesmo depois de Auschwitz,
ou por causa de Auschwitz, a poesia não cessa. Mesmo em Celan. Não cessa. O
Aleph de Borges. A Dublin de Joyce. Os Cronópios de Cortazar. Tudo em tudo.
FM Em teu segundo livro de
poemas, Alma Vênus (2000), nos
deparamos com uma epígrafe de Guimarães Rosa: “Tudo, para mim, é viagem de
volta”. Anteriormente se publicou Saudades
do Paraíso (1997), um livro de memória. Ali há outra epígrafe, de Mário de
Andrade, onde lemos: “só o esquecimento é que condensa”. Tudo nos leva sempre
ao passado, ou a esta “nostalgia do mais”, como intitulas uma edição dedicada a
Artaud que organizaste em 1989. Se tudo é supostamente memória, em que radica o
desejo? Como pensas no futuro?
ML Com saudades. Saudades
do Futuro. Saudades do ainda-não. Mesmo que no passado. A volta de Guimarães
Rosa como a volta ao primordial, fora do tempo e do espaço. A demanda de Ítaca
e do tempo mítico. Eliot fala do pantempo. Jung, do tempo Áion. Fascina-me a ideia
do eterno retorno. E de modo ambíguo. Porque, ao mesmo tempo em que me atrai
também me assusta. Outra concepção, a do físico Mario Novello, com suas viagens
no tempo. Viagens não convencionais: no papel, nos cálculos. Mas viagem. Nas
curvas de tempo fechado. Na herança das cogitações de Gödel. Isso tudo em Alma
Vênus , que é um livro temperado por questões cósmicas, em
cujas águas eu tentei elaborar um micro-lusíadas quântico, marcado por
elementos de retorno (“novos pedros e outros vascos, dos quais marítimos ou
anfíbios descendemos”), e observações cosmológicas (“o nada sobrenada entre
infinitos infinitos”) e o problema da matéria (“mil pássaros do silêncio dão
asas ao coração fugitivo da matéria”). Em Saudades,
a ideia da condensação me encanta desde Dante. As almas estão — as do inferno e
purgatório — em estado de fulminante compreensão do que foram e do que
aconteceu. Dizem medulas e essências. A condensação que a morte inaugura lhes
deixou uma espécie de triunfo da clareza. Ou do triunfo da brevidade. Um
relâmpago. E as coisas emergem com uma clareza terrível e feroz. Como a clareza
de Artaud, quando escreve aos diretores dos hospitais na França… Mas não é no
passado e nem tampouco para o futuro. O passado e o futuro são dois fantasmas
que podem esgotar — assombrando — o aqui e o agora. O que importa é a conquista
do presente. Continente imenso, mas que esbarramos com ele todo o tempo e é
como se ele fugisse de nós. Saudades, portanto. Saudades do agora. Como se
chega?
FM Seria a “paixão do
infinito”, que intitula um de teus livros. Gosto da tua referência ao “Inferno”,
em Dante, como um “imenso hospital”, uma viagem ulterior pela psique humana,
igual viagem arriscada por Nise da Silveira, ao buscar o fundamento do ser em
suas antípodas. Tens razão: a ousadia maior é tocar o presente. E a chave está
ali no verso inicial de teu Meridiano
celeste: “Bem sei que as partes / que me cercam /não me atendem”. Vou
abstrair todo o caráter metafísico desta afirmação, resumindo-a
provocativamente à condição mundana de teus pares. Não sei se somos exatamente
da mesma geração, Marco, inclusive porque perdemos, no Brasil, a percepção
deste componente cartográfico. Quero saber como sobrevives à ausência de pares
tangíveis, contemporâneos teus. Com quem dialogas, afinal? — considerando aqui
o plano mais terreno possível.
ML Olha, Floriano, esse é
um diálogo dos mais bonitos de que tenho participado. E como gosto de teus
reptos. Porque eles saltam. Mas saltam com tanta seriedade. Sou de dezembro de
1963. Sagitário. Acho que lanço algumas flechas. Aponto o meu telescópio para o
céu, na condição de astrônomo amador — um pouco relapso nesses dois últimos
anos. De pescar não sei. Nunca me atrevi. Gosto de mandar mensagens em garrafas. E lembro do
lindo poema de Whitman. Quando a mensagem chegar até o leitor, talvez eu não
exista. E pode ser que ao escrever a mensagem o leitor ainda não existisse.
Portanto… sempre esse gap. Essa
falta. Essa latência. Os meus pares são os que aderem aos horizontes que
buscamos. E não aos que militam na burocracia, no inferno das formalidades
desfibradas, sem entusiasmo. Sem aderir à tarefa. Os que têm esse pacto — que é
o seu, Floriano — das llamaradas.
Vejo, por exemplo, em seus poemas uma presença de fogo tão intensa que a sua
poesia carrega a maior concentração de incêndios na poesia brasileira. Assim
como nunca choveu tanto na poesia brasileira como na obra de Joaquim Cardozo.
Os meus pares, Floriano? A nossa possível cartografia? O excesso!
FM Quando li teu O Sorriso do Caos (1997), o que mais me
chamou a atenção eu posso tomar emprestado de uma observação tua, ali, a
respeito de outro livro: “o que realmente encanta neste livro não depende das
partes, mas do sistema que as configura”, e recordo que foi a partir deste
entendimento que escrevi uma resenha, à época, sobre o livro. O desenho ou
estrutura de teus livros dá no alvo do que propões. Não tens a presunção do
protagonista onipresente. Assim como Per Johns acertou ao dizer que em Os olhos do deserto (2000), “o deserto é
o personagem”, podemos dizer que a biblioteca é o personagem em O
Sorriso do Caos,
ou que Marco Lucchesi é o personagem em Meridiano
celeste. Esta “aventura da unidade” é algo que se contrapõe a uma dispersão
corriqueira se observarmos como são pensados os livros entre nossos
contemporâneos. Como lidas exatamente com este sentido da unidade?
ML O sentido da unidade,
Floriano, é uma necessidade tão delicada e dramática em mim… Começou quando eu
estudava metafísica — nos livros latinos — quando eu estava enamorado de
universais e de transcendentais. A procura da unidade. A procura da causa.
Esses fantasmas que me tomaram de assalto na minha juventude. Veja só,
Floriano. Eu estava dividido e levei tempo para aglutinar a metafísica e a
revolução. A ontologia e a dialética. Tempos em que eu estudava muito lógica e
matemática. Tempos árduos em que eu acreditava — quinze, dezesseis anos — que o
mistério podia ser matematizado. Pensava nisso. Mas desconfiava. A ideia da
unidade, como transcendental puro. Depois, com Dante, sempre Dante, apostando
na unidade de cada pedra na Comédia. Pedra. Astro. Nuvem. Tudo muito cerrado.
Muito articulado. Não uma enciclopédia booleana, apenas, mas uma rede profunda
de remissões, desprovida de acidentes ou gratuidades. E tudo isso, contudo — e
essa era a parte mais admirável — tudo isso começando a se dissolver no último
Canto do Paraíso. A liberdade na linguagem. A unidade como segurança
ontológica. Depois, porque sempre tive uma espécie de repugnância por uma
coleção de livros, ou de ideias, que não se tornassem mais abrangentes e
interdependentes. A ideia não é a de fechar os olhos diante do caos que nos
circunda, e de não ler os saltos, os cortes, os devaneios, clivagens e
fragmentações. Essas questões são reais, existem assim como são — e o trabalho
da razão está em amar a biodiversidade dionisíaca e lançar um diálogo luminoso
através de Apolo. Sem oposição. Concordo plenamente que em O sorriso do caos a biblioteca é a personagem. Leio os livros que
me lêem. E tento uma espécie de breve cartografia pessoal dos livros que formam
a minha república. Em Meridiano o
poeta é o tema do livro. Da busca de si mesmo. Cheio de livros. Mas de vida. De
viagem. E minhas loucuras. Meus venenos. Minha insensatez. A unidade e a
dispersão. Eu gosto de trabalhar na beira, no limite. Dante tem a belíssima ideia
de como narrar Deus. Se o decide fazer, a ideia é a do sonho, que se desfaz
pela manhã. Ou da neve que se liquefaz sob o impacto do sol. Ou quando
finalmente trata de Beatriz e diz ser impossível descrever sua beleza — Borges
amava essa passagem: E qui convien saltar
ogni costrutto. Não dá para avançar no seio da unidade… então convém
saltar. É disso que eu gosto Floriano: a coisa minuciosa e flexível. A unidade
quase se quebrando. Mas sobretudo a liberdade. Responsável. De acordo. Mas
sempre a liberdade. Porque o que conta é a intangibilidade do rosto de Beatriz.
FM E naturalmente os
muitos rostos de Beatriz, a exemplo da Camila que encontramos em Bizâncio (1997) ou desta ainda mais
enigmática Leila que buscas em Os olhos
do deserto, estou certo?
ML Claro! Claro! Embora
exista um abismo entre ambas, trata-se de um mesmo rosto perdido. O rosto da
poesia. Os seios do futuro. Túmidos de espera. Leila é outro momento de
libertação. Foi um livro — sobre o qual você escreveu com tanta beleza — que me
veio de uma felicidade. A de estar em nova geografia. Novo céu. Nova cidade. A
experiência da guerra. E da paz. Como e quanto se acenderem as minhas
esperanças, Floriano, em outra língua, em destinos impensados e insabidos. Nos
olhos de Leila — personagem puramente fictícia — o lugar em que cumpro o que me
resta de paz e a luz inesperada de minha possível redenção.
FM Chega a ser
desnorteante para o leitor afeito à poesia deparar-se com declarações de um
mesmo crítico no tocante à condição excelsa de cada poeta que comenta, ou seja,
a cada resenha sempre afirma ser aquele o poeta que produz o que há de melhor
na poesia brasileira. Quando não age assim a nossa crítica ela simplesmente se
cala, deixa passar despercebidos valores expressivos. Completa o quadro a
recusa em aceitar determinados fatos poéticos que se impõem por si mesmos,
claro, porém que são prejudicados por um verdadeiro sistema de rejeição. Os
motivos, nos três casos, são sempre da ordem da cegueira, da presunção e dos
interesses cartoriais. Com tudo isto, o leitor se ressente de confiabilidade,
vive em desamparo, ou pior, é induzido a uma falsa convivência, a uma falsa
aprendizagem. Acreditas que esta seja uma situação remediável? Dá para avaliar
seu custo e apontar alguma perspectiva de mudança?
ML Esse tema um pouco nos
abate a todos. Momentos de desesperação. Não raros. A crítica de poesia — meu
Deus, Floriano… Que tema duríssimo, esse. Chega a ser uma afronta, o
desentendimento. E no Brasil, quantas capelinhas, ainda. Confrarias. Atitudes
maçônicas de críticos e poetas. Que se reconhecem. Desta ou daquela irmandade.
Quando não se chega ao cúmulo de se escrever poesia servindo a uma tendência
crítica! A crítica deve perseguir a poesia, como alvo da linguagem nova que
instaura, e não a poesia perseguir a crítica. A inversão muitas vezes se dá por
uma vontade — ligeiramente compreensível, mas realmente entristecedora — de
entrar para um circuito. Não necessariamente midiático, mas para um circuito de
ligeira compreensão. Sair dos guetos solidários. Encontrar o seu crítico. Mas
aí está a morte. Pagar o preço da solidão. Pode ser duro, mas não se mede o
preço da liberdade. Uma relação cartorial se estabelece e tudo vai perdido.
Depois, contamos nos dedos os críticos de poesia. Livres. Que não precisem de
bula para a determinação deste ou daquele caminho. E que, sobretudo, respeitem
as diferenças. As dificuldades. Eu penso, Floriano, na delicadeza de um Machado
de Assis crítico. No exercício da humildade. Mas atenção da humildade como
instrumento da crítica e da metodologia. Para saber que a capacidade de
admiração não significa derrota do espírito crítico. Que há sempre um brilho
possível. E que é preciso descortiná-lo, antes de estabelecer um juízo de valor
superficial, que pode custar talentos. Não vamos lembrar aqui do exemplo de
Lobato e Anita Malfatti. Mas olha… Não estamos longe de certas posturas
semelhantes…
FM Sim, um exercício
crítico que nos permita inclusive aquele “radical elogio da diferença” que
evocas em uma entrevista que fizeste a Roger Garaudy. Ou o deleite ante “os
pequenos modos da substância infinita”, como Nise da Silveira recorda Spinoza
em outra entrevista tua. A crítica que identifique o diverso e se proponha a
iluminar suas eventuais zonas obscuras. Não o carteado de mágoas, invejas,
preconceitos e negociatas. O que vivemos no Brasil é que as distorções de
crítica assumem uma conotação de transfiguração da história. Não se trata de
uma leviandade esporádica que a história naturalmente tritura. É todo um
sistema de reorientação do próprio eixo da história. A maneira como se
supervaloriza a débil representatividade da Semana de Arte Moderna ou de
caprichos excludentes como a Tropicália e o Concretismo, ao lado desta rejeição
sistemática à incontestável expressão da obra de Murilo Mendes e Jorge de Lima
da parte de um crítico-maior como Wilson Martins etc., tudo isto se ramifica por
repetição e ausência de contestação. E se repete de outras maneiras, como a
configuração de um cinema brasileiro, uma imposição cartorial que sofremos
hoje. Há um outro Brasil, sendo fundado em uma mentira, da forma mais cínica
que se possa imaginar.
ML As coisas nesse campo
são ásperas. Parece que ainda estamos numa santa cruzada da indiferença e do
alto obscurantismo no campo de uma crítica difusa e perdida. A crítica de
poesia, meu Deus! E as exclusões, a pressa em catalogar as borboletas,
assassinado-as, impedindo-lhes o vôo — penso nas borboletas magníficas do
México e da Bolívia. Uma espécie de ontologia de juízos apriorísticos, que
impedem qualquer abrangência, qualquer tipo de hipótese. Seria preciso escrever
uma história da ausência brasileira. Do cânone rígido. Da exclusão total,
absoluta e inexplicada. Onde Joaquim Cardozo? Onde Murilo e Jorge de Lima?
Pronunciados com desculpas. Apontados como imprecisos. Ou louvados sem que se
saiba ao certo como e por quê. Mas isso não pertence apenas ao campo da
literatura. Mas ao da cultura — quero dizer de modo mais abrangente, sem
produzir clivagem. Veja o caso da música brasileira. Henrique de Curitiba.
Mignone. Radamés. Guerra Peixe… São praticamente matéria inatingível. Por isso
eu sugiro o livro A Literatura
Brasileira, Ausente de si Mesma.
FM Em Bizâncio, há um capítulo dedicado a traduções, um encontro com
poemas, mais do que com poetas, que presumivelmente expressam uma afinidade
estética. De alguma maneira recordo o mexicano José Emilio Pacheco, ao inserir
em Tarde o temprano (1980) um
capítulo igualmente dedicado a traduções de poemas. Pensemos na ideia de aproximações, defendida por ele, ou de visitações, como sugeres, é fato que a
poesia somente se realiza no diálogo, neste convívio inesgotável com a
tradição. Mesmo quando se declara uma imitação ou um pastiche, o que se revela
é o diálogo, onde importa essencialmente identificar as duas vozes. De outra
maneira, instaura-se uma submissão, com consequente diluição, empobrecimento da
linguagem poética etc.
ML Floriano, você sabe que
eu precisei escrever — isso é verdade, não é blague — uma carta para mim mesmo e para várias editoras avisando
de minha morte como tradutor. Reproduzi uma parte dessa atitude em A memória de Ulisses. Sobretudo porque a
tradução para mim foi sempre um imenso sacrifício. Um trabalho desesperador. Um
massacre. Um convite para insônias. Clarões. Exílios terríveis. Abandonos. E
veja, as traduções de Eco me maltrataram pelo volume e pelas exigências. Mas o
meu duro exercício foi com os russos, o Doutor
Jivago, e com o poeta Rûmî, com João da Cruz, Hölderlin e Trakl. Passei
anos da minha vida aprendendo línguas — por causa daquela telemaquia referida
acima. E a tradução era uma forma de compensar esse esforço extra-muros. Ficar
dentro da casa de minha língua. Minha relação com a tradução foi sofrida e por
isso decidi que não iria traduzir mais. E assim me mantenho até hoje, às vezes
escrevendo um e outro poema em outra língua, ditado pela necessidade, como em Meridiano, o poema que escrevi para a
escritora búlgara Svoboda Bachvarova, que tem pelo russo um grande amor, língua
de sua religião e de sua pátria literária. Mas, enfim… acho que a tradução é um
desafio árduo e magnífico. E quando escolho um autor, eu trabalho com afinidades,
com admirações, com zonas de fronteira e de leituras coincidentes, de modo que
não haja arbitrariedades perpetradas de mim contra mim, esquizofrenias e
pluralidades que não me pertençam — ah!, o fogo da unidade, outra vez. A
escolha é fatal. Porque então eu me torno invisível. Tenho certeza de que a
invisibildade do tradutor é a melhor parte do que faz. A linguagem, esta sim, é
que merece visibilidade. Não admiti complacências narcisistas demasiadas, sequestradoras
de textos outros, desrespeitando-os, inclusive, para mostrar a capacidade de melhorar Dante, Goethe, Shakespeare. Em Teatro alquímico, eu defendia uma tênue
relação que aproximava o alquimista do tradutor. As escolhas que me escolhem. A
economia e as relações bilaterais do texto-origem ao texto-fim. Retortas.
Pelicanos. Atanores — de um lado —; dicionários, leituras e palimpsestos — de
outro. De modo que não sei determinar onde começo e onde termino, como poeta e
tradutor. Exercício de tormento e paixão…
FM Sim, eu recordo como
aproximas tradução e alquimia em um ensaio do livro Teatro alquímico, busca idêntica, da palavra perfeita e da pedra
filosofal. Igualmente atormentada e apaixonada, como dizes. Convergentes, em
nome da criação. Porém exatamente em nome da criação matas o tradutor que há em ti. Há acaso uma
contradição nisto? Ou por outro lado, quem agora recomeças?
ML Concordo absolutamente
com a contradição desavergonhada e quase exuberante, atrás de cuja espessura eu
me escondo, assassino de uma dialética sutil. Você percebeu com absoluta
precisão. E por causa disso, tento explicar o sofisma, em que eu me perdi. Ou
seja: concordo que tradução e criação representam uma só atitude. O problema é
que a legislação dos deslocamentos semânticos, as compensações, os equivalentes
que não existem e a vontade de chegar ao fim de uma geografia, tudo isso
mostrava-se com uma veemência terrível. Eu queria outras dificuldades,
liberdades que não me calassem a música interior — em A memória de Ulisses eu trato dos meus pianos, o de verdade e o
interno. E porque tive alegrias e galardões bem marcados nesse campo. E só me
viam. Só me queriam como tradutor. Nada era mais importante. Por isso decidir
acabar com ele. E com a parte dele que trago em mim. Eu não queria que ele,
o tradutor, me eclipsasse e me vedasse as partes desejadas que eu trazia
dentro. O meu piano. Cheio de dissonâncias. E de alguma harmonia.
[2006]
[Entrevista com Marco Lucchesi (Brasil, 1963), publicada em Invenção
do Brasil. São Paulo: Editora Descaminhos, 2013. http://www.amazon.com/Inven%C3%A7%C3%A3o-Brasil-entrevistas-Portuguese-Edition-ebook/dp/B00FTBMR24]
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