FM | Agora mesmo eu ouvia uma leitura tua na Internet,
tua presença em 2011 em algo intitulado 100
thousand poets for change, em Toronto. Suponho que antes de surrealista, és
essencialmente poeta, assim que podemos começar por aqui: o que pode mudar a
poesia, inclusive através de eventos como este?
BH | Não. Para mim é impossível separar os dois conceitos.
Surrealista e poeta são sinônimos, são inseparáveis como conceitos. Penso que a
poesia é um meio, um instrumento com o qual é possível transformar a realidade.
Esta lição eu a aprendi com Aldo Pellegrini, quando traduzi (creio que foi, de
fato, minha primeira experiência com tradução) um brilhante ensaio seu: “Poesia
é tudo aquilo que fecha a poeta aos imbecis”. Creio que esta possibilidade é a
grande contribuição do Surrealismo à sociedade moderna e sinto que neste ponto
radica sua potência e vigência.
FM | Uma vez falamos de Surrealismo e me disseste que
ele significava para ti “a possibilidade de tocar o absoluto”. Podes aclarar um
pouco a tua ideia e dizer-me quais possibilidades tem a gente comum, através do
Surrealismo, de tocar o absoluto?
BH | Quando me refiro ao absoluto eu penso nesse momento mágico que se dá quando escrevo
poesia. É como se todos os impedimentos e limitações que impõe a vida diária
(que, contraditoriamente provê os elementos dos quais está feita a poesia), as
restrições que inventa a gente, se dissipassem e, de repente, como por magia, alguém
entrasse em um espaço onde tudo parece claro, puro, visível, sensível, onde tudo
é POSSÍVEL.
FM | Não sei o que opinas das relações entre ciência e
religião, mas o que observo é que há demasiado embate entre as duas esferas e
que a arte foi ficando fora desse tablado de especulações e decisões, o que
significa dizer que a beleza já não importa quando o tema é a precisão
científica ou a divagação religiosa. Observando isoladamente o tema, alguém
pode lastimar que o mundo tenha se tornado feio, simplesmente. Porém, o que
houve com a terceira força, a arte?
BH | Parece que a arte e a ciência, a estas alturas, se
irmanaram. É um processo que, ao meu ver, vem se dando desde o Iluminismo. Eu
uso muito material que provém da
ciência em minha poesia, sobretudo das ciências orgânicas. Se eu fosse mais
inteligente, e entendesse melhor os conceitos das ciências puras, como a física
(por exemplo, ao que parece os físicos desenvolveram equações que comprovam que
há mais de três dimensões, que podem ser quatro ou cinco ou seis…), as
matemáticas, estou segura que me serviria delas para enriquecer meu processo
poético. Tudo está relacionado. TUDO. Quem sabe a religião, ou melhor, o religioso, é como a poesia, algo
transformador, uma força interior que permite aos seres o poder sentir, ver,
perceber outra realidade, mais rica, dentro da própria realidade em que se
desenvolvem. A mística é possível dentro do mundo científico e artístico,
segundo a concebo.
FM | Já sei que tuas referências são muito fortes acerca
do que chamas de Surrealismo em sua “expressão hispano-americana”. Como sabes,
este nosso diálogo é parte de um livro sobre a presença do Surrealismo em todo
o continente americano. Tua experiência de vida está situada em Toronto. No próprio
Canadá, há como duas expressões surrealistas, para seguir com tua visão. Como
tens relacionado essas distintas expressões, a partir de uma base, que é europeia,
para definir uma percepção tua do Surrealismo?
BH | Excelente questão! O problema, segundo penso, é que
a vida cultural de Toronto é muito recente. Até os anos 1970, o mundo artístico
era muito limitado aqui. Tivemos exceções, como o caso de W. W. E. Ross, que
experimentou com a expressão através da imagem; o pintor e artista gráfico
Bertram Brooker, cuja obra pictórica tem referência próxima com o Cubismo.
Porém são casos isolados, que não pertencem a uma corrente, a uma tendência, muito
menos a um movimento artístico como o Surrealismo. A fonte de tudo isto radica
no fato de que Toronto se origina em um conservadorismo extremo, como reação ao
espírito revolucionário e independente dos Estados Unidos. Tudo isto combina
com um preconceito subjacente no antigo mundo anglo-saxônico referente a toda
ideia de excesso ou emoção. Quando eu era adolescente,
recordo, minhas colegas de classe me acusavam de ser too emotional, como se isto fosse uma falha. Até hoje se percebe um
medo, um preconceito em relação às imagens como forma de expressão. Por isso, a
arte e a poesia experimental se expressam melhor através de formas abstratas e
expressões mais conceituais. Creio que estas últimas são perfeitamente
compatíveis com o Surrealismo, que existiram sempre no Surrealismo (Duchamp,
Man Ray, movimentos como COBRA e R.I.X.E.S.), porém aqui se associam como algo
incompatível com o Surrealismo.
Tem sido excessiva a ignorância a respeito do
Surrealismo no mundo inglês. Eu creio que tem a ver com o medo da possibilidade
de mudança total que propõe o Surrealismo, dessa ideia de transformação que eu
menciono e que é, quando se pensa em sua totalidade, uma forma revolucionária
de conceber o mundo, algo que parece estar oprimido pela cultura
anglo-americana. Talvez eu me equivoque, porém esta é a minha experiência.
FM | O Surrealismo no Canadá, em sua aparente
complexidade, está definido pelo duplo ambiente linguístico?
BH | Me parece interessante que uses a palavra “complexidade”. Eu
vejo a problemática como algo extremamente simples. Em Quebec se dá o Surrealismo
e no mundo anglo-canadense não se dá. Em Quebec coincide com uma reação à
igreja católica e seus poderes extremos no que diz respeito à repressão
cultural e social. Ou seja, através de visionários como Paul-Emile Borduas e
seus amigos (os irmãos Gauvreau e Françoise Sullivan são meus favoritos), tem
início a verdadeira revolução cultural em Quebec. E o interessante é que se
baseiam no automatismo, tal como propunham os primeiros surrealistas, para
identificar-se dentro dessa mudança cultural. No Canadá inglês não se dá nada
assim. Só agora recentemente, na última década, é que alguém pode se expressar
como surrealista sem cair no ridículo.
De volta a Quebec.
Em uma mesa-redonda que ocorreu há aproximadamente dois anos, por ocasião de
uma exposição retrospectiva sobre Les
Automatistes (como prova do marginal que é o Surrealismo nesta cidade,
menciono que não foi possível fazer a exposição no Museu de Arte Moderna de
Toronto, mas sim em um centro cultural em um pequeno distrito fora da cidade),
ali se falava do contexto social dos anos 1940, quando surge o Surrealismo em
Montreal, como a igreja em Quebec controlava o que a gente podia ler através de
uma lista de livros estritamente proibidos; eu indaguei a Françoise Sullivan,
que estava presente, de onde tiravam os textos surrealistas nessa época? Como
faziam para obter todo esse material produzido na França e em Nova York, por
exemplo? Ela me contou que, em seu caso, uma bailarina e artista do grupo automatista
tinha uma irmã que trabalhava como babá para o dono da galeria Pierre Matisse
em Nova York, onde expunham os surrealistas. Ela trazia de volta a Montreal
revistas como Minotaure e outras
publicações surrealistas da época. Os automatistes
que viajavam a Paris faziam outro tanto. Ou seja, o tráfico de ideias era entre
Paris, Montreal e Nova York. Nunca se deu tal fenômeno no mundo anglo-saxônico
canadense.
FM | Este tipo de tráfico se verificou de várias maneiras em todo o
continente. Revistas surrealistas francesas que foram levadas ao Chile por
Pablo Neruda, por exemplo, passaram às mãos do grupo Mandrágora e depois, graças
a Alberto Baeza Flores, foram parar nas mãos dos dominicanos da revista La poesía sorprendida. Mas note que eu
falei em aparente complexidade. Na
primeira metade do século XX foi muito forte a presença do Surrealismo no
Canadá francês. Há movimentos que são importantes, como Automatistes, Refus global
e Les herbes rouges, especialmente
nos anos 1940. Há todo um sistema: editoras, galerias, críticos, pesquisadores
etc. Já no Canadá inglês o Surrealismo chega um pouco pelas mãos da Escola de
Nova York e a Beat Generation. São ambientes muito distintos e quando em 2004
se publica o livro Surreal estate, de
que participas, logo no título se menciona que há Surrealismo, sim, porém under the influence, e o próprio editor
do livro, Stuart Ross, na apresentação observa que Toronto não é um ninho subversivo do Surrealismo. Certamente
quero a tua opinião sobre tudo isto, mas em especial indago sobre os ambientes
que não são propícios ao Surrealismo.
BH | Não creio que o Surrealismo chegue ao Canadá inglês através da
Beat Generation, nem da assim chamada Escola de Nova York. Em minha opinião, o
Surrealismo chegou a Toronto através de meus pais, Ludwig Zeller e Susana Wald.
A opinião de Stuart Ross contém um erro de tipo conceitual, onde se concebe o
Surrealismo como um estilo, uma
estética, e não como uma filosofia de vida. Os Beats, sim, foram influenciados pelo Surrealismo, sobretudo por
poetas levemente independentes do grupo original de Paris, como os irmãos Prévert.
E há, entre os artistas estadunidenses dessa geração, como Ira Cohen, aqueles
que viveram a aventura surrealista. Isto não se deu aqui em Toronto até bem
recentemente, nos anos ‘90, com as atividades de um grupo de artistas que se
denominam Recordists (William
Davison, Sherri L. Higgins e Steve Venright) que têm levado a cabo atividades
nitidamente surrealistas. Ray Ellenwood e eu nos juntamos a eles em Toronto.
Também colaboraram com os Recordists
Enrique Lechuga e Peter Dubé, um escritor surrealista de Montreal. O único
lugar onde existiu um grupo surrealista em língua inglesa no Canadá foi em
British Columbia, com os artistas Gregg Simpson e o falecido escritor de origem
inglesa Michael Bullock, entre outros.
FM | Poderias falar um pouco de tuas referências surrealistas (não
necessariamente na poesia, porém sem fronteiras linguísticas) no Canadá?
BH | A mim me resulta incrivelmente estimulante a obra de meus
amigos surrealistas Sherri L. Higgins (cujos collages estão na capa de dois de meus livros: The stitched heart e Sew him
up) e William Davison. Conversar com Peter Dubé e Ray Ellenwood sempre me
enriquece. Na plástica histórica do
Surrealismo canadense me inspira a obra de Borduas, cujas abstrações da
paisagem canadense são maravilhosas. E me encanta o que fez Françoise Sullivan
na dança. É completamente transformadora sua coreografia, tão original e bela.
Embora em outro estilo, tem algo em comum com a estadunidense Alice Farley.
Acabo de me dar conta, ao fazer essa recordação, o importante que me resulta a
dança, a festa, a combinação de movimento e som em um espaço tridimensional.
FM | Levaste ao leitor de língua inglesa no Canadá a poesia de uma
reunião magnífica de poetas hispano-americanos (The invisible presence, 1996). Qual foi a reação diante de um mundo
mágico que puseste ao conhecimento dos poetas canadenses?
BH | É estranho, porém esse livro, apesar de não ter recebido maior
atenção por parte dos meios estabelecidos, ainda anda circulando. Os poetas
daqui seguem fazendo referências a essas traduções. Pouco a pouco vou editando
pequenas antologias de alguns dos poetas que aparecem aí pela primeira vez em
língua inglesa, como César Moro, Rosamel del Valle, Enrique Molina, Aldo
Pellegrini e os poetas da Mandrágora.
FM | Como se atualiza o Surrealismo, no plano estético, tomando em
conta as seduções tecnológicas e o ambiente midiático?
BH | Há mais disseminação de ideias, em geral, e me interessam as
publicações eletrônicas, porém me parece que o Surrealismo segue funcionando
como uma espécie de sociedade secreta. Não creio muito na efetividade da
tecnologia. É um aparelho e, por consequência, uma imposição de um poder alheio
ao impulso poético. A criação continua sendo algo que se dá como por milagre,
como por magia. Para comunicar-me com meus amigos surrealistas eu prefiro a telepatia.
FM | Regressemos à poesia, à tua poesia. Ali está a soma do mistério
e sua carnalidade, é algo que me encanta em uma poética, que não seja o abismo
entre dois pontos, porém a soma deles. Conta-me um pouco de tua vida, como o
Surrealismo mudou a tua vida, como podes mudar a vida do Surrealismo em suas
leituras demasiado desencontradas.
BH | É difícil para mim a vida que me coube viver. Tão difícil, de
fato, essa constante impossibilidade de viver em um mundo aberto à magia do
verbo, às sensações e às imagens, que houve uma época em que deixei por
completo o Surrealismo. Deixei de escrever poesia, tratei de viver de outra
maneira. O que me manteve viva foi servir à poesia traduzindo outros. Porém
escrever através de outros (para mim, isto é a tradução) também se tornou
insuportável. Chegou um momento em que entendi que necessitava reconciliar-me
comigo mesma, que o mundo que eu havia construído ao meu redor, onde dominavam
o doméstico e o trabalho, que esses mundos podiam servir como fonte do poético.
E o entendi escutando música popular. Em um disco do grupo The Supremes
encontrei o eco de minhas nostalgias românticas; em Blonde on blonde, de Bob Dylan, a expressão de minha raiva das
minhas chefes, minhas opressoras no trabalho; em Annie Lennox encontrei a
expressão do quão elegante e estilizada pode ser a presença poética; em Stevie
Wonder identifiquei a ideia do som poético, o que chamam wall of sound: a música e o poético como um universo total; em Sly
and The Family Stone encontrei minhas equivalências rítmicas, essa forma de
justapor contrapontos como se fosse um collage
polifônico. Uma vez identificadas minhas próprias referências musicais pude
finalmente adentrar-me em meu eu e encontrar-me com equivalências anímicas,
como no caso da poesia de César Moro e Jorge Cáceres, poetas cuja expressão do
erótico se aproxima muito da minha, ao menos dentro do Surrealismo.
De uns dois ou
três anos para cá estou em um lugar anímico distinto: é como se a totalidade do
mundo estivesse à minha disposição. Tudo é exprimível, tudo está a serviço da
transformação do mundo. Sinto-me inteiramente VIVA.
[2012]
NOTA
Beatriz
Hausner (Canadá, 1958). Poeta, ensaísta e tradutora. Publicou The Archival Stone (2005), Sew Him Up (2010) e La
costurera y el muñeco viviente (2012). Entrevista
realizada em espanhol, em fevereiro de 2012. Tradução de Floriano Martins.
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