quarta-feira, 13 de agosto de 2014

BEATRIZ HAUSNER | Sobre surrealismo



FM | Agora mesmo eu ouvia uma leitura tua na Internet, tua presença em 2011 em algo intitulado 100 thousand poets for change, em Toronto. Suponho que antes de surrealista, és essencialmente poeta, assim que podemos começar por aqui: o que pode mudar a poesia, inclusive através de eventos como este?

BH | Não. Para mim é impossível separar os dois conceitos. Surrealista e poeta são sinônimos, são inseparáveis como conceitos. Penso que a poesia é um meio, um instrumento com o qual é possível transformar a realidade. Esta lição eu a aprendi com Aldo Pellegrini, quando traduzi (creio que foi, de fato, minha primeira experiência com tradução) um brilhante ensaio seu: “Poesia é tudo aquilo que fecha a poeta aos imbecis”. Creio que esta possibilidade é a grande contribuição do Surrealismo à sociedade moderna e sinto que neste ponto radica sua potência e vigência.

FM | Uma vez falamos de Surrealismo e me disseste que ele significava para ti “a possibilidade de tocar o absoluto”. Podes aclarar um pouco a tua ideia e dizer-me quais possibilidades tem a gente comum, através do Surrealismo, de tocar o absoluto?

BH | Quando me refiro ao absoluto eu penso nesse momento mágico que se dá quando escrevo poesia. É como se todos os impedimentos e limitações que impõe a vida diária (que, contraditoriamente provê os elementos dos quais está feita a poesia), as restrições que inventa a gente, se dissipassem e, de repente, como por magia, alguém entrasse em um espaço onde tudo parece claro, puro, visível, sensível, onde tudo é POSSÍVEL.

FM | Não sei o que opinas das relações entre ciência e religião, mas o que observo é que há demasiado embate entre as duas esferas e que a arte foi ficando fora desse tablado de especulações e decisões, o que significa dizer que a beleza já não importa quando o tema é a precisão científica ou a divagação religiosa. Observando isoladamente o tema, alguém pode lastimar que o mundo tenha se tornado feio, simplesmente. Porém, o que houve com a terceira força, a arte?

BH | Parece que a arte e a ciência, a estas alturas, se irmanaram. É um processo que, ao meu ver, vem se dando desde o Iluminismo. Eu uso muito material que provém da ciência em minha poesia, sobretudo das ciências orgânicas. Se eu fosse mais inteligente, e entendesse melhor os conceitos das ciências puras, como a física (por exemplo, ao que parece os físicos desenvolveram equações que comprovam que há mais de três dimensões, que podem ser quatro ou cinco ou seis…), as matemáticas, estou segura que me serviria delas para enriquecer meu processo poético. Tudo está relacionado. TUDO. Quem sabe a religião, ou melhor, o religioso, é como a poesia, algo transformador, uma força interior que permite aos seres o poder sentir, ver, perceber outra realidade, mais rica, dentro da própria realidade em que se desenvolvem. A mística é possível dentro do mundo científico e artístico, segundo a concebo.

FM | Já sei que tuas referências são muito fortes acerca do que chamas de Surrealismo em sua “expressão hispano-americana”. Como sabes, este nosso diálogo é parte de um livro sobre a presença do Surrealismo em todo o continente americano. Tua experiência de vida está situada em Toronto. No próprio Canadá, há como duas expressões surrealistas, para seguir com tua visão. Como tens relacionado essas distintas expressões, a partir de uma base, que é europeia, para definir uma percepção tua do Surrealismo?

BH | Excelente questão! O problema, segundo penso, é que a vida cultural de Toronto é muito recente. Até os anos 1970, o mundo artístico era muito limitado aqui. Tivemos exceções, como o caso de W. W. E. Ross, que experimentou com a expressão através da imagem; o pintor e artista gráfico Bertram Brooker, cuja obra pictórica tem referência próxima com o Cubismo. Porém são casos isolados, que não pertencem a uma corrente, a uma tendência, muito menos a um movimento artístico como o Surrealismo. A fonte de tudo isto radica no fato de que Toronto se origina em um conservadorismo extremo, como reação ao espírito revolucionário e independente dos Estados Unidos. Tudo isto combina com um preconceito subjacente no antigo mundo anglo-saxônico referente a toda ideia de excesso ou emoção. Quando eu era adolescente, recordo, minhas colegas de classe me acusavam de ser too emotional, como se isto fosse uma falha. Até hoje se percebe um medo, um preconceito em relação às imagens como forma de expressão. Por isso, a arte e a poesia experimental se expressam melhor através de formas abstratas e expressões mais conceituais. Creio que estas últimas são perfeitamente compatíveis com o Surrealismo, que existiram sempre no Surrealismo (Duchamp, Man Ray, movimentos como COBRA e R.I.X.E.S.), porém aqui se associam como algo incompatível com o Surrealismo.
Tem sido excessiva a ignorância a respeito do Surrealismo no mundo inglês. Eu creio que tem a ver com o medo da possibilidade de mudança total que propõe o Surrealismo, dessa ideia de transformação que eu menciono e que é, quando se pensa em sua totalidade, uma forma revolucionária de conceber o mundo, algo que parece estar oprimido pela cultura anglo-americana. Talvez eu me equivoque, porém esta é a minha experiência.

FM | O Surrealismo no Canadá, em sua aparente complexidade, está definido pelo duplo ambiente linguístico?

BH | Me parece interessante que uses a palavra “complexidade”. Eu vejo a problemática como algo extremamente simples. Em Quebec se dá o Surrealismo e no mundo anglo-canadense não se dá. Em Quebec coincide com uma reação à igreja católica e seus poderes extremos no que diz respeito à repressão cultural e social. Ou seja, através de visionários como Paul-Emile Borduas e seus amigos (os irmãos Gauvreau e Françoise Sullivan são meus favoritos), tem início a verdadeira revolução cultural em Quebec. E o interessante é que se baseiam no automatismo, tal como propunham os primeiros surrealistas, para identificar-se dentro dessa mudança cultural. No Canadá inglês não se dá nada assim. Só agora recentemente, na última década, é que alguém pode se expressar como surrealista sem cair no ridículo.
De volta a Quebec. Em uma mesa-redonda que ocorreu há aproximadamente dois anos, por ocasião de uma exposição retrospectiva sobre Les Automatistes (como prova do marginal que é o Surrealismo nesta cidade, menciono que não foi possível fazer a exposição no Museu de Arte Moderna de Toronto, mas sim em um centro cultural em um pequeno distrito fora da cidade), ali se falava do contexto social dos anos 1940, quando surge o Surrealismo em Montreal, como a igreja em Quebec controlava o que a gente podia ler através de uma lista de livros estritamente proibidos; eu indaguei a Françoise Sullivan, que estava presente, de onde tiravam os textos surrealistas nessa época? Como faziam para obter todo esse material produzido na França e em Nova York, por exemplo? Ela me contou que, em seu caso, uma bailarina e artista do grupo automatista tinha uma irmã que trabalhava como babá para o dono da galeria Pierre Matisse em Nova York, onde expunham os surrealistas. Ela trazia de volta a Montreal revistas como Minotaure e outras publicações surrealistas da época. Os automatistes que viajavam a Paris faziam outro tanto. Ou seja, o tráfico de ideias era entre Paris, Montreal e Nova York. Nunca se deu tal fenômeno no mundo anglo-saxônico canadense.

FM | Este tipo de tráfico se verificou de várias maneiras em todo o continente. Revistas surrealistas francesas que foram levadas ao Chile por Pablo Neruda, por exemplo, passaram às mãos do grupo Mandrágora e depois, graças a Alberto Baeza Flores, foram parar nas mãos dos dominicanos da revista La poesía sorprendida. Mas note que eu falei em aparente complexidade. Na primeira metade do século XX foi muito forte a presença do Surrealismo no Canadá francês. Há movimentos que são importantes, como Automatistes, Refus global e Les herbes rouges, especialmente nos anos 1940. Há todo um sistema: editoras, galerias, críticos, pesquisadores etc. Já no Canadá inglês o Surrealismo chega um pouco pelas mãos da Escola de Nova York e a Beat Generation. São ambientes muito distintos e quando em 2004 se publica o livro Surreal estate, de que participas, logo no título se menciona que há Surrealismo, sim, porém under the influence, e o próprio editor do livro, Stuart Ross, na apresentação observa que Toronto não é um ninho subversivo do Surrealismo. Certamente quero a tua opinião sobre tudo isto, mas em especial indago sobre os ambientes que não são propícios ao Surrealismo.

BH | Não creio que o Surrealismo chegue ao Canadá inglês através da Beat Generation, nem da assim chamada Escola de Nova York. Em minha opinião, o Surrealismo chegou a Toronto através de meus pais, Ludwig Zeller e Susana Wald. A opinião de Stuart Ross contém um erro de tipo conceitual, onde se concebe o Surrealismo como um estilo, uma estética, e não como uma filosofia de vida. Os Beats, sim, foram influenciados pelo Surrealismo, sobretudo por poetas levemente independentes do grupo original de Paris, como os irmãos Prévert. E há, entre os artistas estadunidenses dessa geração, como Ira Cohen, aqueles que viveram a aventura surrealista. Isto não se deu aqui em Toronto até bem recentemente, nos anos ‘90, com as atividades de um grupo de artistas que se denominam Recordists (William Davison, Sherri L. Higgins e Steve Venright) que têm levado a cabo atividades nitidamente surrealistas. Ray Ellenwood e eu nos juntamos a eles em Toronto. Também colaboraram com os Recordists Enrique Lechuga e Peter Dubé, um escritor surrealista de Montreal. O único lugar onde existiu um grupo surrealista em língua inglesa no Canadá foi em British Columbia, com os artistas Gregg Simpson e o falecido escritor de origem inglesa Michael Bullock, entre outros.

FM | Poderias falar um pouco de tuas referências surrealistas (não necessariamente na poesia, porém sem fronteiras linguísticas) no Canadá?

BH | A mim me resulta incrivelmente estimulante a obra de meus amigos surrealistas Sherri L. Higgins (cujos collages estão na capa de dois de meus livros: The stitched heart e Sew him up) e William Davison. Conversar com Peter Dubé e Ray Ellenwood sempre me enriquece. Na plástica histórica do Surrealismo canadense me inspira a obra de Borduas, cujas abstrações da paisagem canadense são maravilhosas. E me encanta o que fez Françoise Sullivan na dança. É completamente transformadora sua coreografia, tão original e bela. Embora em outro estilo, tem algo em comum com a estadunidense Alice Farley. Acabo de me dar conta, ao fazer essa recordação, o importante que me resulta a dança, a festa, a combinação de movimento e som em um espaço tridimensional.

FM | Levaste ao leitor de língua inglesa no Canadá a poesia de uma reunião magnífica de poetas hispano-americanos (The invisible presence, 1996). Qual foi a reação diante de um mundo mágico que puseste ao conhecimento dos poetas canadenses?

BH | É estranho, porém esse livro, apesar de não ter recebido maior atenção por parte dos meios estabelecidos, ainda anda circulando. Os poetas daqui seguem fazendo referências a essas traduções. Pouco a pouco vou editando pequenas antologias de alguns dos poetas que aparecem aí pela primeira vez em língua inglesa, como César Moro, Rosamel del Valle, Enrique Molina, Aldo Pellegrini e os poetas da Mandrágora.

FM | Como se atualiza o Surrealismo, no plano estético, tomando em conta as seduções tecnológicas e o ambiente midiático?

BH | Há mais disseminação de ideias, em geral, e me interessam as publicações eletrônicas, porém me parece que o Surrealismo segue funcionando como uma espécie de sociedade secreta. Não creio muito na efetividade da tecnologia. É um aparelho e, por consequência, uma imposição de um poder alheio ao impulso poético. A criação continua sendo algo que se dá como por milagre, como por magia. Para comunicar-me com meus amigos surrealistas eu prefiro a telepatia.

FM | Regressemos à poesia, à tua poesia. Ali está a soma do mistério e sua carnalidade, é algo que me encanta em uma poética, que não seja o abismo entre dois pontos, porém a soma deles. Conta-me um pouco de tua vida, como o Surrealismo mudou a tua vida, como podes mudar a vida do Surrealismo em suas leituras demasiado desencontradas.

BH | É difícil para mim a vida que me coube viver. Tão difícil, de fato, essa constante impossibilidade de viver em um mundo aberto à magia do verbo, às sensações e às imagens, que houve uma época em que deixei por completo o Surrealismo. Deixei de escrever poesia, tratei de viver de outra maneira. O que me manteve viva foi servir à poesia traduzindo outros. Porém escrever através de outros (para mim, isto é a tradução) também se tornou insuportável. Chegou um momento em que entendi que necessitava reconciliar-me comigo mesma, que o mundo que eu havia construído ao meu redor, onde dominavam o doméstico e o trabalho, que esses mundos podiam servir como fonte do poético. E o entendi escutando música popular. Em um disco do grupo The Supremes encontrei o eco de minhas nostalgias românticas; em Blonde on blonde, de Bob Dylan, a expressão de minha raiva das minhas chefes, minhas opressoras no trabalho; em Annie Lennox encontrei a expressão do quão elegante e estilizada pode ser a presença poética; em Stevie Wonder identifiquei a ideia do som poético, o que chamam wall of sound: a música e o poético como um universo total; em Sly and The Family Stone encontrei minhas equivalências rítmicas, essa forma de justapor contrapontos como se fosse um collage polifônico. Uma vez identificadas minhas próprias referências musicais pude finalmente adentrar-me em meu eu e encontrar-me com equivalências anímicas, como no caso da poesia de César Moro e Jorge Cáceres, poetas cuja expressão do erótico se aproxima muito da minha, ao menos dentro do Surrealismo.
De uns dois ou três anos para cá estou em um lugar anímico distinto: é como se a totalidade do mundo estivesse à minha disposição. Tudo é exprimível, tudo está a serviço da transformação do mundo. Sinto-me inteiramente VIVA.

[2012]

NOTA
Beatriz Hausner (Canadá, 1958). Poeta, ensaísta e tradutora. Publicou The Archival Stone (2005), Sew Him Up (2010) e La costurera y el muñeco viviente (2012). Entrevista realizada em espanhol, em fevereiro de 2012. Tradução de Floriano Martins.

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