FM
De onde vem essa paixão transbordante pela edição de autores fora de mercado?
Bem entendido, aqui o “fora de mercado” possui certa ambiguidade, segundo
penso, pois de algum modo aponta na direção das falhas desse mercado. Qual a
razão de ser da Sol Negro Edições?
MS
De um modo ou de outro o “fora de mercado” foi o que sempre me interessou. O
problema com o mercado, sem esquecer sua meia-irmã siamesa, a mídia de massa, é
que atua em função da padronização dos gostos e das experiências, de modo que
tudo aquilo que está “fora do padrão” não interessa e/ou é estigmatizado. Nesse
sentido, uma das razões de ser da Sol Negro é justamente editar títulos que não
interessam ao “grande público”, mas que possam interessar a um “pequeno público”
representativo para uma editora que trabalha com pequenas tiragens, dando vazão
a uma literatura — e um leitor — mais exigente e menos venal.
FM
Toda pequena empresa almeja uma expansão de sua área de atuação. No caso de uma
editora de livros artesanais, bem sabemos que a expansão será sempre de
títulos, porém nunca de tiragem. É uma espécie de contravenção mercadológica.
Evidente que há um amplo horizonte que permite a coexistência de inúmeros
princípios editoriais. Em um país altamente deficitário no plano educacional,
como o Brasil, o grande mercado atua contra ou em favor dessas defasagens
estruturais?
MS O panorama que apontas
é amplo, de modo que arrisco ser leviano com opiniões categóricas. Mas, de
maneira geral, o interesse do mercado — aí entrando as assim chamadas grandes
editoras — é mesmo o lucro. Assim que se há uma demanda de leitura de baixa
qualidade essas editoras vão atender essa demanda, sem cogitar se há uma
deficiência educacional por trás disso. Creio que o déficit educacional
flagrante do país atende a interesses outros — políticos, por exemplo — que não
o das editoras, e que se houvesse uma demanda maior por literatura de qualidade
ela também seria atendida pelo mercado. Gosto do que apontas como “um amplo
horizonte que permite a coexistência de inúmeros princípios editoriais”. Penso
que há espaço — e demanda — para projetos editoriais os mais variados, desde
best-sellers e livros de bolso, edições de luxo ou artesanais, autores de amplo
ou pequeno público. Sem dúvida que a valorização da leitura (bem como a
democratização do seu acesso) anda a par da necessidade de uma educação de
qualidade. E claro que as editoras poderiam desempenhar um papel fundamental
nisso, mas, para que algo desse tipo ocorresse para além das iniciativas
individuais, sem dúvida louváveis (como as edições a R$ 5,00 da L&PM),
precisaria haver um mínimo de parceria e vontade do poder público, o que não
creio que seja o caso. Por outro lado, editoras que atuam unicamente em causa
própria, utilizando recursos de mídia e publicidade para promover autores
medíocres somente porque “vendem” ou são nomes que de uma maneira ou de outra
têm ressonância nos meios de comunicação, agem de maneira no mínimo
irresponsável, sem nenhum compromisso com o meio social no qual estão
inseridas, atuando, desse modo, claramente em favor dessas “defasagens
estruturais” que mencionas.
FM Ao lado da Sol Negro
Edições também atuas como coeditor da Agulha Revista de Cultura, projeto
já existente desde 1999, que tem uma trajetória ambiciosa de tratar dos vícios
de limitação de pautas e visões de mundo de outros periódicos dedicados à
cultura e à criação artística. De que forma se funde essa tua dupla atividade
editorial?
MS
Tudo se funde em torno do trabalho do poeta. Esse é o ponto de partida e não
poderia responder de outra maneira. Todo o conjunto de conhecimentos e
habilidades para exercer as atividades editoriais que venho desempenhando
surgiu dessa atividade fundamental, essa mania
que nos leva a criar poemas, e tudo o que isso implica em termos de demanda
existencial, cultural, humana etc. Fui leitor da Agulha Revista de Cultura
desde o seu princípio, coincidindo com o início da popularização do acesso à
internet por aqui. A revista, justamente pelo pioneirismo e amplitude dos temas
— abrindo o leque de uma literatura ainda centrada quase que exclusivamente em
certo formalismo e alguns nomes consagrados — teve papel importante na minha
formação e acredito que também na de parte dos autores e interessados em
literatura mais ou menos da minha idade, de modo que estava familiarizado com a
revista e sua linha editorial quando surgiu a oportunidade de participar na sua
editoria.
FM E quem imprecisamente é
o poeta que torna possível a existência da Sol Negro Edições?
MS A pergunta traz em si
uma outra questão: a partir de que perspectiva caberia uma (in)definição? Se o
ambiente é o literário, este poeta deve ser buscado em seus poemas e nada que
eu venha a dizer aqui poderá ajudar. Por outro lado, não sou menos poeta ao
editar livros ou varrer meu quarto, mas ainda assim me sinto incapaz de dizer
algo que ajude na caracterização do personagem sem ser tendencioso (risos).
FM Um país curioso este
nosso: com uma das maiores riquezas da terra em termos de formação mestiça de
uma sociedade, no entanto o clero cimentou as ideias do burgo de tal modo que a
cobrança periódica da hipoteca tem se dado na forma de uma hipocrisia que
deforma ou paralisa o ideário popular. O mais curioso é como este cenário se
tornou a regra de uma cultura que rejeita toda forma de autocrítica. O que
significa ser poeta em um ambiente assim?
MS Naturalmente que a
maior parte do tempo este “ser poeta” não difere em nada do que ser qualquer
outra coisa. A busca de uma consciência crítica do tempo e do espaço, por
exemplo, é um princípio fundamental para qualquer atuação, em qualquer área. Me
escapa exatamente de que hipocrisia estejas tratando, colocado assim como está,
de forma genérica, embora esse mal perpasse as nossas relações de modo geral, e
em especial a imagem acrítica — e destorcida — que o país vem construindo de si
mesmo, fruto de seu meio cultural, e que inclui (ou mais propriamente exclui)
seu elemento mais forte e vívido: a mestiçagem, principalmente em seus aspectos
mágicos e não-domesticáveis. Nossa antropofagia ainda representa muito mais uma
“mesclagem” da matriz europeia com elementos outros — como o estrangeiro que se
enfeita com os adornos nativos para participar de suas festas — do que um
mergulho enérgico no certe de nossa mestiçagem constitutiva (e ainda
inexplorada). Como criador, o que me interessa é escapar conceitualmente desta
sociedade, especialmente de suas formas “naturalizadas” de pensar, suas “verdades
absolutas” e presunções conceituais. Não me importa propriamente reformar o
mundo, uma vez que não assumo responsabilidade por acordos e práticas que foram
estabelecidas sem minha presença ou consentimento. Nossa sociedade é o que é
porque os que estão no poder assim desejam, e os que não estão ou estão de
acordo tacitamente (seja por medo ou interesse próprio), ou não discordam o
suficiente. Merecemos cada uma das nossas mazelas. Sigo na perspectiva de uma
rebelião, sempre individual, e não de uma revolução, que não tem dado sinais de
viabilidade.
FM A hipocrisia não te
escapou em nada, considerando que a sintetizaste brilhantemente ao final de tua
resposta. É terrível quando governo e sociedade igualam-se em seus piores
aspectos. E parece que estamos vivendo este momento. A tamanha falácia em torno
da educação, tema que já é uma fístula irremediável. E a vulgarização
espetacular de todos os valores. Voltemos aos livros, ou melhor, à Sol Negro. A
editora tem um plano ousado de apresentação ao leitor brasileiro de obras completamente
fora de ambiente editorial. Desde já estão anunciados para este final de ano
livros de Yvan Goll, Pablo de Rokha e um encontro entre Vicente Huidobro e Hans
Arp. Qualquer leitor minimamente atento, além do agradecimento, teria a
curiosidade de saber o motivo do mercado editorial brasileiro não se interessar
por obras como estas.
MS A impressão que eu
tenho é de que não há compradores (já não digo leitores) que justifiquem um
alto investimento e tiragens expressivas. A tendência das grandes editoras é
apostar no que tem retorno certo: daí o enxame de estrelas midiáticas e autores
consagrados à exaustão nas livrarias. É evidente que aí os critérios já se vão
todos por ladeira abaixo. Mas, como sugerido anteriormente, autores seletos,
que, por suas qualidades intrínsecas, possam interessar a um pequeno público
mais exigente, são viáveis de serem editados por pequenas ou microeditoras
(como é o caso da Sol Negro), que lidam com tiragens restritas e técnicas
alternativas de fatura dos livros.
FM Sei que estás buscando
parceria com as Edições Nephelibata, que dirige Camilo Prado em Santa Catarina. Há
algo além da coincidente manufatura dos livros que te atrai em tal aproximação
estratégica?
MS A Sol Negro surge, em
verdade, do encontro com a Nephelibata (editora já com 10 anos de atuação) e a
figura singular do seu editor, Camilo Prado, que desenvolveu uma técnica de
produção de livros que podem ser feitos até por uma única pessoa. Isso com uma
qualidade que em nada deixa a dever aos livros feitos por meios mecânicos. Os
livros da Sol Negro são feitos segundo esse procedimento, que me foi
generosamente ensinado por ele. Editamos o Mattinata
do pernambucano Fernando Monteiro em coedição, e estamos preparando mais coisas
para breve, como as Três Novelas Exemplares,
de Vicente Huidobro e Hans Arp. Além de uma afinidade natural, fruto de uma
visão de mundo que coincide em vários pontos, a parceria fortalece as duas
editoras, que além de trabalharem conjuntamente na preparação dos livros,
contam com a divulgação e público uma da outra.
FM Márcio, o que vemos, em
relação ao livro, é uma estampa de identificação que remete à história do
livro. As discussões sobre novas perspectivas tecnológicas que podem eliminar o
objeto livro como o conhecemos são de uma tolice impressionante. O que eu
queria saber de ti diz respeito ao significado mágico do livro. O que um livro —
não importa a forma como o mercado o faça chegar em tuas mãos — verdadeiramente
significa na vida de uma pessoa?
MS Um livro contém
bastante do que costumamos chamar de vida em suas páginas. Não enxergo qualquer
exílio da literatura em relação à vida. Ler e escrever são formas de viver — de
estar vivendo — como qualquer outra. Às vezes infinitamente mais interessantes,
criativas e envolventes que as nossas rotinas sociais. O que parece estar em
jogo é uma de nossas maiores tecnologias: a escrita, cujo uso tem assumido uma
vertigem impressionante em nossos dias (assim como a produção de imagens). Sem
dúvida a leitura por meios digitais vai se disseminar, mas isso nos torna
diferentes em quê? Mesmo considerando as maneiras pelas quais as tecnologias
condicionam nossa percepção, ainda é o mesmo bicho humano fazendo suas
leituras, seja num tablet ou num
livro de papel. E o que determina isso é muito mais a subjetividade (individual
e coletiva) e a capacidade imaginativa (e de processamento de textos) do que o
suporte em que isso se dá. A partir daí tudo — e nada — são completamente
possíveis.
FM Esquecemos algo?
MS Não me parece. Mas algo
sempre fica para mais adiante, não? Muito obrigado.
[2012]
[Entrevista com Márcio Simões (Brasil, 1979), publicada em Invenção do Brasil. São Paulo: Editora
Descaminhos, 2013. http://www.amazon.com/Inven%C3%A7%C3%A3o-Brasil-entrevistas-Portuguese-Edition-ebook/dp/B00FTBMR24]
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