quarta-feira, 13 de agosto de 2014

ANDRÉ LAMARRE | Sobre surrealismo



FM | Creio que estamos de acordo com José Pierre (1927-1999), ao situar o manifesto Refus global, de 1948, “como a primeira ação de reconquista pelo Quebec de sua autonomia cultural e política”. Qual o significado específico dessa reconquista, que se dá justamente no decorrer do governo conservador de Maurice Duplessis?

AL | O reino de Maurice Duplessis e de seu partido, A União Nacional (no poder de 1944 a 1959), foi estigmatizado pela expressão “La grande noirceur” (A grande escuridão). Esse governo, ao mesmo tempo autoritário e paternalista, respondia a um conservadorismo profundo da sociedade quebequense, que freou as reformas necessárias para uma entrada no mundo moderno. Paradoxalmente, durante esse período do pós-guerra se puseram em marcha as forças que, a partir de 1960, levaram a mutações significativas. A publicação de Refus global, manifesto redigido pelo pintor Paul-Émile Borduas (1905-1960) e apoiado por quinze outros signatários, constitui uma ruptura simbólica com o Quebec tradicional, dominado pelo clero católico e definido por uma atitude geral de redobrar sobre si. É uma sociedade fechada que essa intervenção inflamada tenta abalar.
Entretanto, é difícil falar de “reconquista”. A liberdade de expressão artística e política que reclama Refus global jamais existiu antes. O Canadá francês constitui de fato uma dupla colônia. A Nova-França (1534-1760) era submetida à autoridade dos administradores coloniais e ao clero. A conquista pelos ingleses lançou o lento, mas inexorável processo de minorização dos francófonos da América. A propósito de Refus global e de seus signatários, chamados de os automatistas, é preciso, antes, falar de um desejo e de um trabalho de invenção de uma autonomia cultural e política. Dito isto, o pensamento político dos automatistas não é muito elaborado: trata-se de uma forma de anarquismo liberal que não anuncia diretamente os desenvolvimentos do nacionalismo quebequense de orientação social-democrata, que se desdobrará ao longo dos anos 1960. É, antes, uma forma de internacionalismo que preconiza Borduas. Nesse sentido, suas reflexões e suas tomadas de partido são muito atuais. Por outro lado, o grupo automatista entretém laços com os meios sindicais e de esquerda da época. Ele clama, portanto, por mais democracia e por uma liberação global que não se apoia sobre uma análise política precisa.
É, sobretudo, nos planos intelectual, cultural e artístico que Refus global desempenha um “primeiro ato” determinante. Reclama uma liberdade de pensamento, uma liberdade de criação, uma abertura às forças inconscientes e uma revolução estética sem precedente no Canadá. É significativo que Refus global tenha sido referendado por artistas de artes visuais (pintura, escultura, fotografia), poetas, artistas do espetáculo (particularmente mulheres coreógrafas) e outras pessoas que se tornaram ilustres nos domínios do design, da televisão… e da psiquiatria. Esse agrupamento de forças vivas significa a determinação de fundar, em toda sua diversidade, uma cultura que não se chamará mais franco-canadense, mas quebequense, aberta sobre a modernidade e sobre o mundo. Refus global é, portanto, uma certidão de nascimento.
Além disso, trata-se ali de autonomia, já que essa revolta não visa uma destruição cega, mas sim uma construção nova: “À recusa global nós opomos uma responsabilidade inteira”. Essa responsabilidade que reivindica Borduas é de início aquela de um reembolso lúcido das principais mutações culturais, artísticas, ideológicas e científicas da humanidade. Numa sociedade marcada pelo imobilismo, essa ação consiste em reencontrar o movimento, a fim de “extrair o presente dos limbos do passado”. “Nossas paixões moldam espontaneamente, imprevisivelmente, necessariamente o futuro.” Tais são os fundamentos sobre os quais se edificou a cultura quebequense. Em seus avanços essenciais, o programa de Refus global permanece na ordem do dia.

FM | No final do manifesto Refus global lemos: “O Surrealismo recolocou a obra de arte em seu lugar na atividade humana. Permitiu conhecer melhor o mecanismo da criação poética. Ele nos revelou a continuidade das profecias.” Mas logo em seguida se observa a condição de imprevisibilidade e ilegitimidade de uma suposta paternidade. Quais seriam então as conjunções e disjunções identificadas entre Refus global e Surrealismo?

AL | Se os artistas e escritores signatários de Refus global aceitaram e adotaram a denominação de “automatistas”, entre outras razões, foi para identificar sua filiação e, ao mesmo tempo, distinguir sua conduta da do Surrealismo.
Enquanto o movimento francês do pós-guerra parece longe de sua “idade do ouro” (após a mudança de cabo, a defecção e a exclusão de vários dos adeptos da primeira hora), o grupo de Borduas se vincula resolutamente às origens do Surrealismo. Ele se refere particularmente a seus escritores inspiradores (Refus global cita Sade e Lautréamont), assim como aos textos que considera fundadores (por exemplo, os primeiros manifestos redigidos por Breton). O texto “Commentaires sur des mots courants” (anexado à publicação de 1948) ilustra muito bem o pensamento do qual Borduas mantém a autoridade. Ele distingue e define três tipos de automatismos. Significa que os artistas quebequenses, em sua própria reflexão, exploram e radicalizam essa noção. Pode-se, de fato, ter a impressão de que, para os escritores franceses, a escritura automática constitui apenas o objeto de um “período”, que tem como eixo a experimentação e a descoberta.
Assim, o Refus global e a corrente de pensamento que o prolonga tentam, de uma parte, se ligar a uma concepção original do Surrealismo e, de outra, fazê-la progredir, até mesmo impulsioná-la aos seus limites. Entre as noções fundamentais do Surrealismo, Borduas retém “a importância moral do ato não preconcebido”. Refus global formula uma crítica da razão e da intenção que bloqueiam o desenvolvimento humano. Constata-se que Borduas se situa no exterior do único domínio artístico e visa uma posição filosófica e moral que afeta todos os aspectos da vida individual (psíquica e criadora) e social. O enunciado “nós perseguimos na alegria nossa selvagem necessidade de liberação” (que encerra o manifesto) se junta aos princípios do projeto surrealista em sua pureza.
Onde Borduas e seu grupo se afastam resolutamente do Surrealismo é a propósito dos meios para atingir esse objetivo, particularmente no domínio da expressão plástica. A análise da noção de automatismo leva a promover uma arte não figurativa, em poesia e nas artes plásticas. O Surrealismo europeu se situaria assim na categoria do “automatismo psíquico”, inicialmente no eixo sobre um conteúdo de representação. Como pintor, Borduas não aceita se limitar à figuração onírica dos Dalí e Magritte. Ele pretende obrar na própria matéria da pintura. Só posso retomar a análise de André G. Bourassa, especialista do automatismo: “É notável que a definição do automatismo quebequense volte-se primeiramente sobre a pintura, ao passo que a definição portara-se antes sobre a escritura”. (“Une nuit particulière”, 1980)
Portanto, é possível considerar Refus global como um prolongamento norte-americano do Surrealismo. Entretanto, o atraso desse eco ultra-atlântico faz com que o deslocamento espaço-temporal tome dimensões críticas e proponha uma superação do Surrealismo francês. Seria preciso citar textualmente o fim desse texto de 1947: “Somos os filhos imprevisíveis, quase desconhecidos, aliás, do Surrealismo. Filhos ilegítimos talvez, cuja filiação se fez à distância, não voluntariamente de nossa parte, mas pela força das coisas.” É o tema da paternidade que opõe radicalmente os dois movimentos. Enquanto Breton (qualificado de “papa do Surrealismo”) sempre desejou manter sua alta autoridade, Borduas simbolicamente abandonou os seus ao se exilar em New York, e depois em Paris. O filho imprevisto e rebelde não se tornou um pai.

FM | Que importância teriam, para o surgimento de Refus global, as agitações vanguardistas de Maurice Gagnon, já em 1944?

AL | Maurice Gagnon era crítico de arte e professor, colega de Borduas numa instituição de ensino. Seu trabalho é o sintoma de que um terreno preparatório para a explosão de Refus global existia no mundo do ensino, particularmente do ensino das artes, onde debates tempestuosos opuseram desde o início dos anos 1940 alguns indivíduos partidários da modernidade e os conservadores do imobilismo ambiente. As viagens à Europa de algumas pessoas esclarecidas e os contatos que se seguiram, estiveram na origem do desenvolvimento de um pensamento estético autônomo e crítico, que se expressou por meio de publicações de artigos e livros. Por outro lado, durante a Segunda Guerra mundial, a edição canadense-francesa parcialmente tomou o lugar da edição francesa. O desenvolvimento das Éditions de L’Arbre é testemunha disso; elas publicaram um volume de ensaios sobre o pintor Fernand Léger (Fernand Léger: la forme humaine dans l’espace, 1945) e a primeira série de monografias sobre artistas contemporâneos de Quebec, sob o título de coleção “Art vivant” (Arte Viva). Por si mesma essa denominação indica o programa das mudanças por vir. Maurice Gagnon colaborou no primeiro título e publicou uma monografia sobre Alfred Pellan (1906-1988), pintor quebequense também inspirado pelo Surrealismo (e por Matisse).
Entretanto, os dois títulos principais de Gagnon são Peinture moderne (primeira edição em 1940), em que ele mostra a situação das grandes correntes europeias, entre elas o cubismo e o Surrealismo, e Sur un état actuel de la peinture canadienne (1945), que assinala, antes de Refus global, o nascimento de um movimento forte de criação artística entre os francófonos da América: “Podemos produzir, em plena consciência, obras livres”. A linguagem dos automatistas já se anuncia. O volume de Gagnon age como um prefácio ao manifesto de 1948.

FM | 1944 é o ano em que André Breton (1896-1966) esteve no Canadá, quando então exilado em New York, mas não se encontrou com ninguém ligado a uma vanguarda que ainda estava sendo gestada. Sua passagem por Gaspésie e Sainte-Agathe encontra-se narrada em Arcane 17. A este episódio acaso não é dada uma importância excessiva por parte de críticos e historiadores?

AL | De fato, trata-se de um episódio menor ao mesmo tempo na história do Surrealismo e do automatismo. É a história de um encontro frustrado. Bem fechado na escritura de seu livro, Breton retém do Quebec o exotismo maravilhoso do Rocher Percé e ágatas que semeiam as orlas da ponta da Gaspésie. Sua visão global da sociedade canadense francesa o leva a mostrar apenas uma caricatura dela. Não podemos criticá-lo por isso. Do Canadá francês ele viu apenas “A Grande Escuridão”. É estranho, para um quebequense, ler o início de Arcano 17: “Essa região do Canadá vive, de fato, sobre um estatuto particular e apesar de tudo um pouco à margem da história”. Acreditaríamos estar lendo Borduas! Estranhamente, num parágrafo, o quadro esboçado por Breton anuncia algumas das críticas da sociedade quebequense formuladas em Refus global (influência da Igreja, marginalidade, falta de identidade cultural e política). Assim, as forças subterrâneas de mudança permaneceram ocultas para Breton. Ele, entretanto, profetizou os efeitos da abertura sobre o mundo do pós-guerra: “Talvez, por dramático que seja, o desembarque atual de inúmeros canadenses franceses sobre a costa da Normandia ajudará no restabelecimento de um contato vital, que falta há quase dois séculos”. (Breton não sabe que milhares de canadenses franceses não retornarão vivos desse terrível episódio da Segunda Guerra mundial.)
Mais tarde, ele lamentará ter faltado com Borduas. Entretanto, sabemos que, já nesse momento, os futuros automatistas debatem sobre o Surrealismo e não teriam acolhido Breton como salvador. De fato, o grupo recusou educadamente, em 1943, um convite para se inscrever formalmente no movimento surrealista estabelecido em New York. Talvez eles tivessem tido um diálogo de surdos.

FM | Artistas como Paul-Émile Borduas e Jean-Paul Riopelle (1923-2001) aproximaram o Surrealismo e a arte abstrata, como também havia feito Jackson Pollock nos Estados Unidos. No Brasil essa conjunção não foi realizada. Em um artista como Antônio Bandeira (1922-1967), relacionado mais com Wols (1913-1951) e com Camille Bryen (1907-1977), a crítica nunca observou a evidente influência do Surrealismo. Gostaria que você fizesse algumas observações a respeito desse encontro que Borduas chegaria a estabelecer sob a denominação de expressionismo abstrato ou “automatismo super-racional”.

AL | De fato, pode-se dizer que Borduas e Riopelle fizeram decorrer da noção de automatismo, proveniente do Surrealismo, a necessidade de uma arte não figurativa, já que “não preconcebida”, segundo a expressão de Borduas. Assim, pode-se falar, desde o ponto de partida, de uma ruptura com a tomada de partido figurativa e a retórica onírica da pintura surrealista. Ao radicalizarem a noção de automatismo, Borduas e seus amigos se encontravam já na contramão do movimento europeu. Enquanto Mondrian e Kandinsky tinham evoluído rumo à abstração, despojando progressivamente a figura de sua figuração, os automatistas quebequenses a recusaram de cara, apoiando-se sobre os princípios surrealistas para superá-los.
Em seus “Commentaires sur des mots courants”, Borduas define o “automatismo suprarracional” como uma “escritura plástica não preconcebida” e descreve o processo: “uma forma chama outra até ao sentimento da unidade”. Constata-se que essa teoria coincide exatamente com todas as práticas do expressionismo abstrato, chamado também de abstração lírica ou abstração barroca, que designa essa parte da arte não figurativa em que a gestualidade é essencial.
Nos Estados Unidos, um pintor como Robert Motherwell (1915-1991) reconhece, em um texto de 1967, uma dívida semelhante para com o Surrealismo, mas é ao desenho automático de André Masson (1896-1987) que ele faz referência. Pode-se dizer que o Surrealismo teve um efeito desencadeador sobre o nascimento da “Action Painting” e da evolução estética da Escola de Nova York.

FM | Em relação à poesia, o livro Les sables du rêve (1946), de Thérèse Renaud (1927),[1] seria apenas um marco histórico, em função do emprego da escritura automática, ou significa uma ruptura estética relevante?

AL | A publicação de Les sables du rêve tem de início uma importância histórica. Trata-se não apenas do primeiro livro publicado pelo grupo automatista, mas também de uma data na história do livro de artista. Além disso, devemos considerar que esse livro marca a história da escritura das mulheres no Canadá.
Esse livro breve e ilustrado com desenhos automáticos de Jean-Paul Mousseau constitui o primeiro sinal concreto da ruptura estética efetuada no plano da escritura pela poesia surrealista e automatista no Canadá francês. Thérèse Renaud é a primeira escritora automatista. O choque se opera menos no nível formal (parágrafos curtos, versos livres e “diálogos surrealistas”) que no plano da pesquisa imaginária, que se volta sobre as relações simbólicas entre homens e mulheres. A conduta da poeta pode se aproximar daquela de Joyce Mansour, por exemplo. Sublinhemos o fato de que a metáfora do título é extraída de um verso de André Breton (“il y aura toujours une pelle au vent dans les sables du revê” – “haverá sempre uma pá ao vento nas areias do sonho” –, “Les états généraux”, 1943) que ela deve ter lido em VVV (nº 4, New York, 1944). O livro de Renaud se diferencia pela violência da expressão do fantasma: “Je levai les couvertures et me précipitai dans le volcan des rêves…” (“Levantei as coberturas e me precipitei no vulcão dos sonhos…”) Num universo maravilhoso, oriundo daquele dos contos (personagens de gigantes e de crianças, objetos animados, animais personificados), a narradora recebe imagens potentes que lhe abalam: “Ah! Enfermez-moi pour avoir dérobé ce secret.” (“Ah! Tranquem-me por ter revelado este segredo.”)
Podemos só lamentar que essa experiência poética não tenha tido uma sequência imediata, o exílio na França da autora tendo sido acompanhado de um longo silêncio que freou o nascimento de uma obra. Relembremos que o exílio e o silêncio foram a sina de vários signatários de Refus global e seus camaradas, sendo para eles intolerável o fechamento da sociedade quebequense. Será preciso esperar os anos 1950 para constatar uma verdadeira eclosão da poesia das mulheres em Quebec, em qualidade e em importância (a poesia de Anne Hébert, por exemplo); os anos 1970 para a confirmação de obras poéticas maiores (as de Nicole Brossard, nascida em 1943, entre outras); e os anos 1980 para uma explosão quantitativa das publicações poéticas feitas por mulheres. Uma das características da cultura quebequense atual é essa parte essencial do mundo da poesia que as mulheres ocupam.
Permanece que Thérèse Renaud desempenhou um papel significativo no desenvolvimento da estética automatista, desde o início, como criadora. Um de seus poemas foi recitado em espetáculo, acompanhado de uma coreografia de Françoise Sullivan, outra signatária do manifesto, e de uma música de Pierre Mercure, importante compositor de música contemporânea. Além do mais, o fato de que ela figura entre os nomes que apoiam o manifesto demonstra sua integração ao grupo. Insistamos no fato de que sete desses 15 signatários são mulheres, o que faz de Refus global uma das intervenções intelectuais mais igualitárias que existem.

FM | Quando o argentino Aldo Pellegrini organiza aquela que seria a primeira antologia do Surrealismo de língua francesa publicada em outro idioma, em 1961, Roland Giguère seria o único canadense ali incluído. Giguère tomou parte da fundação do grupo Phases, conduzido por Édouard Jaguer (1924),[2] que não constituía propriamente um segmento dentro de uma ortodoxia do Surrealismo. Giguère é uma participação em isolado, ou este outro momento do Surrealismo encontra desdobramento no Canadá?

AL | O retorno de Roland Giguère da França é o retorno de um indivíduo. Ele não representa nenhum movimento. Como os automatistas, ele bebeu nas fontes do Surrealismo. Tendo vivido alguns anos em Paris, ao longo dos anos 1950, ele encontrou Breton, frequentou os surrealistas, conheceu os membros do grupo Cobra, depois participou das atividades do grupo Phases e publicou na revista homônima. Esses encontros o levaram a publicar e a expor em vários países. Os movimentos marginais e dissidentes do Surrealismo francês, portanto, não fincaram raízes neste lado de cá do Atlântico.
O que Giguère relatou é um núcleo puro do Surrealismo. É talvez o único poeta quebequense cujo conjunto da obra pode ser qualificado de surrealista. Trata-se de uma poesia marcada pela leitura do primeiro Éluard e que se aparenta à de Henri Michaux. A poesia de Giguère efetua uma exploração de um imaginário individual e coletivo. Na época da “Grande escuridão”, “nós éramos um pouco como toupeiras que cavávamos um túnel em direção à luz”, dirá ele em 1968. Devemos notar que, como Michaux, Giguère é um artista visual: ao mesmo tempo pintor, desenhista e entalhador. Ele mesmo associa, unifica as duas condutas: “O pintor, como o poeta, faz hoje um trabalho de escafandrista. Ele desce. Ele desce ao leito de seu próprio rio e busca no navio que se encontra ali naufragado, entre duas águas, os tesouros que, sabe, lá estão.” (1951) É, de fato, uma filiação e uma dívida que ele reconhece: “Uma boa parte de nossa poesia atual é diretamente proveniente do Surrealismo. Poderíamos, aliás, dizer o mesmo de quase toda a poesia contemporânea, esse fenômeno não tem, portanto, nada de particular em Quebec…”, declara em 1968.
Estranhamente, se há um grupo quebequense ao qual Giguère se associou, é o dos poetas das Éditions de l’Hexagone, cujas estéticas eram variadas e divergentes, mas que tinham em comum o trabalho de fundação da poesia quebequense moderna, menos centrado sobre o eixo de uma escritura do que sobre uma temática, aquela do país, da identidade, ligada a certo humanismo universal. Grafista e tipógrafo, Giguère realizou numerosas concepções gráficas para as Éditions de l’Hexagone. Sendo ele mesmo editor de poesia e de livros de arte, isto o torna um animador importante do meio cultural quebequense.

FM | A exemplo do que já conversamos aqui sobre abstracionismo, há uma compreensão bastante vaga das relações do Surrealismo com a música, em parte um assunto velado em função da surdez de Breton – era patente seu preconceito no tocante à música. A aproximação que o Grupo Surrealista de Chicago estabelece com o blues, por exemplo, me recorda um vínculo da poética de Paul-Marie Lapointe (1927) com o jazz. Gostaria de saber tua opinião a respeito.

AL | Paul-Marie Lapointe escreveu um dos grandes livros do Surrealismo internacional, Le Vierge incendié, editado em 1948 por seus novos amigos automatistas. Ora, esse livro oferece poucos laços com a música. Podemos sentir nele a explosão de uma revolta rimbaudiana que se expressa num aumento intenso do volume de imagens violentas e inventivas. Entretanto, a apresentação formal da maior parte dos textos anuncia as pesquisas que seguirão. A forma de base é o “parágrafo retangular”, formando um bloco compacto, onde a pontuação é frequentemente feita de espaços em branco de diversos comprimentos.
A poesia de Lapointe atravessou várias fases. Podemos afirmar que seus poemas publicados a partir de 1960 recortam um período de poemas se aparentando à linguagem do jazz. Ele não está sozinho nesse caso: vários poetas que publicaram nas Éditions de l’Hexagone, em Montréal, interessaram-se pelo jazz, por exemplo, Fernand Ouellette (nascido em 1930, que além do mais escreveu uma biografia do compositor de música contemporânea Edgar Varèse). Em suas “Notes pour une poétique contemporaine” (1962), Lapointe escreve: “A forma de improvisação particular ao jazz – ad libitum sobre uma estrutura dada, linear e vertical – me parece dever expressar da maneira mais concreta a forma da nova poesia”. Ele próprio qualifica essa escritura que praticará de “nova forma de lirismo”. Significa que passou do automatismo à improvisação, mas também de uma linguagem não preconcebida para novas estruturas, rítmicas e temáticas. Não há laço entre Surrealismo e jazz. O poema “Blues” (1965) é uma longa composição em versos livres, alternando células ou grupos de versos como frases musicais, constituindo variações sobre temas. Tempos depois, Lapointe se dedicou a diversas formas de escritura experimental: jogos formais e gráficos, poesia concreta, escritura aleatória, que culminaram na publicação de um livro enigmático e monumental, em dois tomos: écRiturEs (1980, mais de 900 páginas…).
Da mesma maneira que o americano Philip Lamantia (1927),[3] após ter sido batizado por Breton como “o único poeta surrealista americano”, afirma ter “rompido” com o Surrealismo desde 1946, podemos dizer que a obra de Paul-Marie Lapointe pertence ao Surrealismo apenas entre os anos 1947/48. Trata-se, entretanto, do desencadeamento determinante e do início fulgurante de uma grande obra da poesia internacional.

FM | Tens duas teses acadêmicas, sobre Alberto Giacometti (1901-1966) e Jean-Paul Sartre (1905-1980). Como concilias as relações entre Surrealismo e Existencialismo?

AL | Entre o Surrealismo e o existencialismo, podemos apenas constatar um fosso intransponível. Sartre é de alguma maneira um escritor que combate a si mesmo, daí o caráter estressado de sua escritura na autobiografia Les mots. Em seu Baudelaire (1947) e em Qu’est-ce que la littérature? (1948), faz uma crítica severa da poesia como recusa da linguagem, recusa da comunicação: “o poeta está fora da linguagem, ele vê as palavras às avessas”. De fato, Michel Leiris, ex-surrealista, mas sempre poeta, lhe reprova, no prefácio ao ensaio sobre Baudelaire, sua “execução sumária do Surrealismo”. Toda a obra de Sartre pode ser interpretada como uma vasta empreitada de questionamento do imaginário. Por outro lado, evidentemente, o existencialismo é uma filosofia que só pode invalidar os fundamentos teóricos do Surrealismo concebido como uma forma de idealismo, de essencialismo, até mesmo um platonismo roçando o misticismo. A força de Breton não reside certamente na manipulação do discurso filosófico nem, aliás, da linguagem política.
Inversamente, Breton, grande liberador do imaginário, pôde apenas tomar um recuo radical face ao existencialismo, filosofia colada ao real, um real ao qual o Surrealismo interroga a definição e os limites. É interessante notar que o pensamento político de Breton, após o fracasso da aproximação com o Partido Comunista francês, não caiu na ingenuidade da qual Sartre fez prova, passando da posição de “aliado objetivo” dos stalinistas à de defensor dos maoístas. Permanecendo libertário, Breton se aproximou de Trotsky e de uma posição política aberta à liberdade de criação.
A conduta do pintor, desenhista e escultor Alberto Giacometti é interessante, já que ele passa da órbita de Breton à de Sartre. Membro do movimento surrealista no início dos anos 1930, na mesma época de Dalí e Buñuel, ele vê uma de suas esculturas longamente comentada em L’Amour fou (1934). Giacometti em seguida rompeu com uma arte de transcrição do imaginário para se dedicar a uma incansável e infinita empreitada de apreensão da presença do ser no mundo. É possível qualificá-lo de escultor filosófico e aproximar sua empreitada do existencialismo. Sartre, de fato, escreveu dois artigos importantes sobre o trabalho de Giacometti. Mas a obra do artista escapa às categorias e a toda tentativa de anexação. Se ele interrogou a existência tal qual, é com a mesma insatisfação da qual fez prova afrontando o imaginário. O poeta Yves Bonnefoy (nascido em 1923, ele também um ex-surrealista) demonstrou, em seu texto “Le problème des deux époques” (1991), que não se trata, em Giacometti, de duas condutas contraditórias e que a passagem de uma à outra não constitui o fato de uma ruptura, mas sim de um aprofundamento, de uma travessia das etapas de uma única e mesma pesquisa (empreendida nos anos 1920), voltando-se sobre a força do aparecimento do ser no campo de visão. Se seguirmos a lição de Giacometti, os irreconciliáveis que são o Surrealismo e o existencialismo podem se articular, se os situarmos em um projeto que os englobe.

FM | A existência de uma forte definição editorial no Canadá no sentido de preservar e pôr em discussão a sua história é algo que chama a atenção, em particular, se comparada à maneira dispersa como o mercado editorial no Brasil reage em relação ao tema. Uma pergunta final que faço diz respeito às ações atuais do Surrealismo, a maneira como ainda se percebe sua presença na cultura canadense.

AL | O estatuto minoritário dos francófonos da América explica essa longa empreitada intelectual. Os fundamentos da cultura quebequense atual foram postos ao longo dos anos 1960, enquanto, por exemplo, apareceram as primeiras histórias e análises examinadas da literatura e da arte em Quebec. Trata-se de uma sociedade cuja identidade frágil está constantemente a se sustentar, a se redefinir e a se reinventar. O que faz de nós campeões da recuperação histórica: enquanto, em 1948, Borduas é licenciado de seu posto de professor por causa da publicação de Refus global, 14 anos mais tarde, quase dois anos depois da morte do artista, é o governo do Quebec que organiza uma importante exposição retrospectiva no Museu de Arte Contemporânea de Montréal. Além disso, o catálogo da exposição dedicada aos automatistas em 1972 contém uma reprodução integral dos textos do manifesto!
Dito isto, no Canadá, o Surrealismo aparece como datado. O período automatista se estende de 1944 a 1959. Em artes plásticas, os artistas oriundos do automatismo foram todos assimilados ao grande movimento da arte não-figurativa. Individualmente, vários permaneceram fiéis aos enunciados de Refus global, mas eles não se dizem nem automatistas, nem surrealistas. A arte em Quebec seguiu todas as agitações da arte contemporânea, da pop art à arte conceitual, da arte pobre à integração das tecnologias de todos os tipos, do “retorno” da figuração ao “retorno” da não-figuração. Nesse contexto, o Surrealismo pertence à história da arte do Século XX e, na melhor das hipóteses, ele constitui uma referência e um reservatório de formas que, num contexto pós-moderno, podemos citar, comentar e transformar. O que alguns chamam de “a retórica surrealista” pôde reencontrar um ar novo de vida em arte já que, num sentido, o Surrealismo é uma arte conceitual na medida em que nega a materialidade do médium (pintura ou escultura). A crítica automatista sempre reclamou a superação dessa limitação. A arte dita “pós-moderna” faz assim um novo uso da colagem, da citação, da “imagem”, apenas mantendo o imaginário à distância.
Em poesia, acontece o mesmo. Apenas a obra de Roland Giguère continua fiel a si mesma, sem que o poeta defina para si uma pertença estética. É significativo que os poetas das gerações subsequentes cuja escritura se aparenta a certo Surrealismo tenham se juntado, entre outras, à corrente da “contracultura”. Denis Vanier (1949-1998), por exemplo, é um digno herdeiro da revolta automatista, mas também da Beat Generation e da poesia rock. Ele não se vinculou especificamente ao Surrealismo. Da mesma maneira, a escritura formalista de um Roger Des Roches (1950) engloba a problemática e os procedimentos surrealistas num trabalho que toca todos os aspectos da obra: disposição, ritmo, simbólico, tonalidades.
Assim, do nosso ponto de vista, a revolução surrealista aconteceu.
O que me fascina em tua conduta de antologista é que propões uma releitura da história do Surrealismo modificando o ponto de vista. Se pararmos de considerar Octavio Paz, Aimé Césaire e Malcolm de Chazal como satélites distanciados da central parisiense do Surrealismo, essa inversão de perspectiva tem consequências importantes. Tua empreitada de desocultação de um Surrealismo pan-americano traz à luz relações Norte-Sul e dos centros de difusão, ignoradas até aqui, que se ignoram uns aos outros. Imagino que um dos efeitos consiste também em recolocar o pai Breton no seu lugar e impedir que sua memória confisque a totalidade do Surrealismo. Assim se instala uma rede periférica tornada autônoma. Esse movimento me parece mais forte e vivo na América Latina. Podemos falar de um novo Surrealismo, de novos Surrealismos? Quais seriam seus textos fundadores? O que quer que seja, assistimos a uma vasta descolonização da herança europeia que os surrealistas da primeira hora, fortemente anticolonialistas, não poderiam deixar de reconhecer.

[2003]

NOTA
André Lamarre (Canadá, 1950). Tendo formação em estudos literários e em história da arte, escreve sobre arte há muitos anos. Interessa-se particularmente pela arte atual, pelas relações entre arte e literatura, assim como pela poética da escrita da arte. É professor de literatura. Entrevista publicada originalmente em Agulha Revista de Cultura # 36 - Outubro de 2003. Tradução de Eclair Antonio Almeida Filho.



[1] Thérèse Renaud morreu em 2005.
[2] Édouard Jaguer morreu em 2006.
[3] Philip Lamantia morreu em 2005. 

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