FM
| Creio que estamos de acordo com José Pierre (1927-1999), ao situar o
manifesto Refus global, de 1948, “como
a primeira ação de reconquista pelo Quebec de sua autonomia cultural e política”.
Qual o significado específico dessa reconquista, que se dá justamente no
decorrer do governo conservador de Maurice Duplessis?
AL
| O reino de Maurice Duplessis e de seu partido, A União Nacional (no poder de
1944 a 1959), foi estigmatizado pela expressão “La grande noirceur” (A grande
escuridão). Esse governo, ao mesmo tempo autoritário e paternalista, respondia
a um conservadorismo profundo da sociedade quebequense, que freou as reformas
necessárias para uma entrada no mundo moderno. Paradoxalmente, durante esse
período do pós-guerra se puseram em marcha as forças que, a partir de 1960,
levaram a mutações significativas. A publicação de Refus global, manifesto redigido pelo pintor Paul-Émile Borduas (1905-1960)
e apoiado por quinze outros signatários, constitui uma ruptura simbólica com o Quebec
tradicional, dominado pelo clero católico e definido por uma atitude geral de
redobrar sobre si. É uma sociedade fechada que essa intervenção inflamada tenta
abalar.
Entretanto, é difícil falar
de “reconquista”. A liberdade de expressão artística e política que reclama Refus global jamais existiu antes. O
Canadá francês constitui de fato uma dupla colônia. A Nova-França (1534-1760)
era submetida à autoridade dos administradores coloniais e ao clero. A
conquista pelos ingleses lançou o lento, mas inexorável processo de minorização
dos francófonos da América. A propósito de Refus
global e de seus signatários, chamados de os automatistas, é preciso,
antes, falar de um desejo e de um trabalho de invenção de uma autonomia
cultural e política. Dito isto, o pensamento político dos automatistas não é
muito elaborado: trata-se de uma forma de anarquismo liberal que não anuncia
diretamente os desenvolvimentos do nacionalismo quebequense de orientação social-democrata,
que se desdobrará ao longo dos anos 1960. É, antes, uma forma de
internacionalismo que preconiza Borduas. Nesse sentido, suas reflexões e suas
tomadas de partido são muito atuais. Por outro lado, o grupo automatista
entretém laços com os meios sindicais e de esquerda da época. Ele clama,
portanto, por mais democracia e por uma liberação global que não se apoia sobre uma análise política precisa.
É, sobretudo, nos planos
intelectual, cultural e artístico que Refus
global desempenha um “primeiro ato” determinante. Reclama uma liberdade de
pensamento, uma liberdade de criação, uma abertura às forças inconscientes e
uma revolução estética sem precedente no Canadá. É significativo que Refus global tenha sido referendado por
artistas de artes visuais (pintura, escultura, fotografia), poetas, artistas do
espetáculo (particularmente mulheres coreógrafas) e outras pessoas que se
tornaram ilustres nos domínios do design,
da televisão… e da psiquiatria. Esse agrupamento de forças vivas significa a
determinação de fundar, em toda sua diversidade, uma cultura que não se chamará
mais franco-canadense, mas quebequense, aberta sobre a modernidade e sobre o
mundo. Refus global é, portanto, uma certidão de nascimento.
Além disso, trata-se ali de
autonomia, já que essa revolta não visa uma destruição cega, mas sim uma
construção nova: “À recusa global nós opomos uma responsabilidade inteira”.
Essa responsabilidade que reivindica Borduas é de início aquela de um reembolso
lúcido das principais mutações culturais, artísticas, ideológicas e científicas
da humanidade. Numa sociedade marcada pelo imobilismo, essa ação consiste em
reencontrar o movimento, a fim de “extrair o presente dos limbos do passado”. “Nossas
paixões moldam espontaneamente, imprevisivelmente, necessariamente o futuro.”
Tais são os fundamentos sobre os quais se edificou a cultura quebequense. Em
seus avanços essenciais, o programa de Refus
global permanece na ordem do dia.
FM
| No final do manifesto Refus global
lemos: “O Surrealismo recolocou a obra
de arte em seu lugar na atividade humana. Permitiu conhecer melhor o mecanismo
da criação poética. Ele nos revelou a continuidade das profecias.”
Mas logo em seguida se observa a condição de imprevisibilidade e ilegitimidade
de uma suposta paternidade. Quais seriam então as conjunções e disjunções
identificadas entre Refus global e
Surrealismo?
AL
| Se os artistas e escritores signatários de Refus global aceitaram e adotaram a denominação de “automatistas”,
entre outras razões, foi para identificar sua filiação e, ao mesmo tempo,
distinguir sua conduta da do Surrealismo.
Enquanto o movimento
francês do pós-guerra parece longe de sua “idade do ouro” (após a mudança de
cabo, a defecção e a exclusão de vários dos adeptos da primeira hora), o grupo
de Borduas se vincula resolutamente às origens do Surrealismo. Ele se refere
particularmente a seus escritores inspiradores (Refus global cita Sade e Lautréamont), assim como aos textos que
considera fundadores (por exemplo, os primeiros manifestos redigidos por
Breton). O texto “Commentaires sur des mots courants” (anexado à publicação de
1948) ilustra muito bem o pensamento do qual Borduas mantém a autoridade. Ele
distingue e define três tipos de automatismos. Significa que os artistas
quebequenses, em sua própria reflexão, exploram e radicalizam essa noção.
Pode-se, de fato, ter a impressão de que, para os escritores franceses, a
escritura automática constitui apenas o objeto de um “período”, que tem como
eixo a experimentação e a descoberta.
Assim, o Refus global e a corrente de pensamento
que o prolonga tentam, de uma parte, se ligar a uma concepção original do Surrealismo
e, de outra, fazê-la progredir, até mesmo impulsioná-la aos seus limites. Entre
as noções fundamentais do Surrealismo, Borduas retém “a importância moral do
ato não preconcebido”. Refus global
formula uma crítica da razão e da intenção que bloqueiam o desenvolvimento humano.
Constata-se que Borduas se situa no exterior do único domínio artístico e visa
uma posição filosófica e moral que afeta todos os aspectos da vida individual
(psíquica e criadora) e social. O enunciado “nós perseguimos na alegria nossa
selvagem necessidade de liberação” (que encerra o manifesto) se junta aos
princípios do projeto surrealista em sua pureza.
Onde Borduas e seu grupo se
afastam resolutamente do Surrealismo é a propósito dos meios para atingir esse
objetivo, particularmente no domínio da expressão plástica. A análise da noção
de automatismo leva a promover uma arte não figurativa, em poesia e nas artes
plásticas. O Surrealismo europeu se situaria assim na categoria do “automatismo
psíquico”, inicialmente no eixo sobre um conteúdo de representação. Como
pintor, Borduas não aceita se limitar à figuração onírica dos Dalí e Magritte.
Ele pretende obrar na própria matéria da pintura. Só posso retomar a análise de
André G. Bourassa, especialista do automatismo: “É notável que a definição do
automatismo quebequense volte-se primeiramente sobre a pintura, ao passo que a
definição portara-se antes sobre a escritura”. (“Une nuit particulière”, 1980)
Portanto, é possível
considerar Refus global como um
prolongamento norte-americano do Surrealismo. Entretanto, o atraso desse eco
ultra-atlântico faz com que o deslocamento espaço-temporal tome dimensões
críticas e proponha uma superação do Surrealismo francês. Seria preciso citar
textualmente o fim desse texto de 1947: “Somos os filhos imprevisíveis, quase
desconhecidos, aliás, do Surrealismo. Filhos ilegítimos talvez, cuja filiação
se fez à distância, não voluntariamente de nossa parte, mas pela força das
coisas.” É o tema da paternidade que opõe radicalmente os dois movimentos.
Enquanto Breton (qualificado de “papa do Surrealismo”) sempre desejou manter
sua alta autoridade, Borduas simbolicamente abandonou os seus ao se exilar em
New York, e depois em Paris. O filho imprevisto e rebelde não se tornou um pai.
FM
| Que importância teriam, para o surgimento de Refus global, as agitações vanguardistas de Maurice Gagnon, já em
1944?
AL
| Maurice Gagnon era crítico de arte e professor, colega de Borduas numa
instituição de ensino. Seu trabalho é o sintoma de que um terreno preparatório
para a explosão de Refus global
existia no mundo do ensino, particularmente do ensino das artes, onde debates
tempestuosos opuseram desde o início dos anos 1940 alguns indivíduos
partidários da modernidade e os conservadores do imobilismo ambiente. As
viagens à Europa de algumas pessoas esclarecidas e os contatos que se seguiram,
estiveram na origem do desenvolvimento de um pensamento estético autônomo e
crítico, que se expressou por meio de publicações de artigos e livros. Por
outro lado, durante a Segunda Guerra mundial, a edição canadense-francesa
parcialmente tomou o lugar da edição francesa. O desenvolvimento das Éditions
de L’Arbre é testemunha disso; elas publicaram um volume de ensaios sobre o
pintor Fernand Léger (Fernand Léger: la
forme humaine dans l’espace, 1945) e a primeira série de monografias sobre
artistas contemporâneos de Quebec, sob o título de coleção “Art vivant” (Arte
Viva). Por si mesma essa denominação indica o programa das mudanças por vir.
Maurice Gagnon colaborou no primeiro título e publicou uma monografia sobre
Alfred Pellan (1906-1988), pintor quebequense também inspirado pelo Surrealismo
(e por Matisse).
Entretanto, os dois títulos
principais de Gagnon são Peinture moderne
(primeira edição em 1940), em que ele mostra a situação das grandes correntes
europeias, entre elas o cubismo e o Surrealismo, e Sur un état actuel de la peinture canadienne (1945), que assinala,
antes de Refus global, o nascimento
de um movimento forte de criação artística entre os francófonos da América: “Podemos
produzir, em plena consciência, obras livres”. A linguagem dos automatistas já
se anuncia. O volume de Gagnon age como um prefácio ao manifesto de 1948.
FM
| 1944 é o ano em que André Breton (1896-1966) esteve no Canadá, quando então
exilado em New York, mas não se encontrou com ninguém ligado a uma vanguarda
que ainda estava sendo gestada. Sua passagem por Gaspésie e Sainte-Agathe
encontra-se narrada em Arcane 17. A
este episódio acaso não é dada uma importância excessiva por parte de críticos
e historiadores?
AL
| De fato, trata-se de um episódio menor ao mesmo tempo na história do
Surrealismo e do automatismo. É a história de um encontro frustrado. Bem
fechado na escritura de seu livro, Breton retém do Quebec o exotismo
maravilhoso do Rocher Percé e ágatas que semeiam as orlas da ponta da Gaspésie. Sua visão global da sociedade canadense francesa o leva a mostrar apenas uma
caricatura dela. Não podemos criticá-lo por isso. Do Canadá francês ele viu
apenas “A Grande Escuridão”. É estranho, para um quebequense, ler o início de Arcano 17: “Essa região do Canadá vive,
de fato, sobre um estatuto particular e apesar de tudo um pouco à margem da
história”. Acreditaríamos estar lendo Borduas! Estranhamente, num parágrafo, o
quadro esboçado por Breton anuncia algumas das críticas da sociedade
quebequense formuladas em Refus global
(influência da Igreja, marginalidade, falta de identidade cultural e política).
Assim, as forças subterrâneas de mudança permaneceram ocultas para Breton. Ele,
entretanto, profetizou os efeitos da abertura sobre o mundo do pós-guerra: “Talvez,
por dramático que seja, o desembarque atual de inúmeros canadenses franceses
sobre a costa da Normandia ajudará no restabelecimento de um contato vital, que
falta há quase dois séculos”. (Breton não sabe que milhares de canadenses
franceses não retornarão vivos desse terrível episódio da Segunda Guerra mundial.)
Mais tarde, ele lamentará
ter faltado com Borduas. Entretanto, sabemos que, já nesse momento, os futuros
automatistas debatem sobre o Surrealismo e não teriam acolhido Breton como
salvador. De fato, o grupo recusou educadamente, em 1943, um convite para se
inscrever formalmente no movimento surrealista estabelecido em New York. Talvez
eles tivessem tido um diálogo de surdos.
FM
| Artistas como Paul-Émile Borduas e Jean-Paul Riopelle (1923-2001) aproximaram
o Surrealismo e a arte abstrata, como também havia feito Jackson Pollock nos
Estados Unidos. No Brasil essa conjunção não foi realizada. Em um artista como
Antônio Bandeira (1922-1967), relacionado mais com Wols (1913-1951) e com
Camille Bryen (1907-1977), a crítica nunca observou a evidente influência do
Surrealismo. Gostaria que você fizesse algumas observações a respeito desse
encontro que Borduas chegaria a estabelecer sob a denominação de expressionismo
abstrato ou “automatismo super-racional”.
AL
| De fato, pode-se dizer que Borduas e Riopelle fizeram decorrer da noção de
automatismo, proveniente do Surrealismo, a necessidade de uma arte não
figurativa, já que “não preconcebida”, segundo a expressão de Borduas. Assim,
pode-se falar, desde o ponto de partida, de uma ruptura com a tomada de partido
figurativa e a retórica onírica da pintura surrealista. Ao radicalizarem a
noção de automatismo, Borduas e seus amigos se encontravam já na contramão do movimento europeu.
Enquanto Mondrian e Kandinsky tinham evoluído rumo à abstração, despojando progressivamente
a figura de sua figuração, os automatistas quebequenses a recusaram de cara,
apoiando-se sobre os princípios surrealistas para superá-los.
Em seus “Commentaires sur
des mots courants”, Borduas define o “automatismo suprarracional” como uma “escritura
plástica não preconcebida” e descreve o processo: “uma forma chama outra até ao
sentimento da unidade”. Constata-se que essa teoria coincide exatamente com
todas as práticas do expressionismo abstrato, chamado também de abstração
lírica ou abstração barroca, que designa essa parte da arte não figurativa em
que a gestualidade é essencial.
Nos Estados Unidos, um
pintor como Robert Motherwell (1915-1991) reconhece, em um texto de 1967, uma
dívida semelhante para com o Surrealismo, mas é ao desenho automático de André
Masson (1896-1987) que ele faz referência. Pode-se dizer que o Surrealismo teve
um efeito desencadeador sobre o nascimento da “Action Painting” e da evolução
estética da Escola de Nova York.
FM
| Em relação à poesia, o livro Les sables
du rêve (1946), de Thérèse Renaud (1927),[1]
seria apenas um marco histórico, em função do emprego da escritura automática,
ou significa uma ruptura estética relevante?
AL
| A publicação de Les sables du rêve
tem de início uma importância histórica. Trata-se não apenas do primeiro livro
publicado pelo grupo automatista, mas também de uma data na história do livro
de artista. Além disso, devemos considerar que esse livro marca a história da
escritura das mulheres no Canadá.
Esse livro breve e
ilustrado com desenhos automáticos de Jean-Paul Mousseau constitui o primeiro
sinal concreto da ruptura estética efetuada no plano da escritura pela poesia
surrealista e automatista no Canadá francês. Thérèse Renaud é a primeira
escritora automatista. O choque se opera menos no nível formal (parágrafos
curtos, versos livres e “diálogos surrealistas”) que no plano da pesquisa
imaginária, que se volta sobre as relações simbólicas entre homens e mulheres.
A conduta da poeta pode se aproximar daquela de Joyce Mansour, por exemplo.
Sublinhemos o fato de que a metáfora do título é extraída de um verso de André
Breton (“il y aura toujours une pelle au vent dans les sables du revê” – “haverá
sempre uma pá ao vento nas areias do sonho” –, “Les états généraux”, 1943) que
ela deve ter lido em VVV (nº 4, New
York, 1944). O livro de Renaud se diferencia pela violência da expressão do
fantasma: “Je levai les couvertures et me précipitai dans le volcan des rêves…”
(“Levantei as coberturas e me precipitei no vulcão dos sonhos…”) Num universo
maravilhoso, oriundo daquele dos contos (personagens de gigantes e de crianças,
objetos animados, animais personificados), a narradora recebe imagens potentes
que lhe abalam: “Ah! Enfermez-moi pour avoir dérobé ce secret.” (“Ah!
Tranquem-me por ter revelado este segredo.”)
Podemos só lamentar que
essa experiência poética não tenha tido uma sequência imediata, o exílio na
França da autora tendo sido acompanhado de um longo silêncio que freou o
nascimento de uma obra. Relembremos que o exílio e o silêncio foram a sina de
vários signatários de Refus global e
seus camaradas, sendo para eles intolerável o fechamento da sociedade quebequense.
Será preciso esperar os anos 1950 para constatar uma verdadeira eclosão da
poesia das mulheres em Quebec, em qualidade e em importância (a poesia de Anne
Hébert, por exemplo); os anos 1970 para a confirmação de obras poéticas maiores
(as de Nicole Brossard, nascida em 1943, entre outras); e os anos 1980 para uma
explosão quantitativa das publicações poéticas feitas por mulheres. Uma das
características da cultura quebequense atual é essa parte essencial do mundo da
poesia que as mulheres ocupam.
Permanece que Thérèse
Renaud desempenhou um papel significativo no desenvolvimento da estética
automatista, desde o início, como criadora. Um de seus poemas foi recitado em
espetáculo, acompanhado de uma coreografia de Françoise Sullivan, outra signatária
do manifesto, e de uma música de Pierre Mercure, importante compositor de
música contemporânea. Além do mais, o fato de que ela figura entre os nomes que
apoiam o manifesto demonstra sua integração ao grupo. Insistamos no fato de que
sete desses 15 signatários são mulheres, o que faz de Refus global uma das intervenções intelectuais mais igualitárias
que existem.
FM
| Quando o argentino Aldo Pellegrini organiza aquela que seria a primeira
antologia do Surrealismo de língua francesa publicada em outro idioma, em 1961,
Roland Giguère seria o único canadense ali incluído. Giguère tomou parte da
fundação do grupo Phases, conduzido
por Édouard Jaguer (1924),[2]
que não constituía propriamente um segmento dentro de uma ortodoxia do
Surrealismo. Giguère é uma participação em isolado, ou este outro momento do
Surrealismo encontra desdobramento no Canadá?
AL
| O retorno de Roland Giguère da França é o retorno de um indivíduo. Ele não
representa nenhum movimento. Como os automatistas, ele bebeu nas fontes do
Surrealismo. Tendo vivido alguns anos em Paris, ao longo dos anos 1950, ele
encontrou Breton, frequentou os surrealistas, conheceu os membros do grupo Cobra, depois participou das atividades
do grupo Phases e publicou na revista
homônima. Esses encontros o levaram a publicar e a expor em vários países. Os
movimentos marginais e dissidentes do Surrealismo francês, portanto, não fincaram
raízes neste lado de cá do Atlântico.
O que Giguère relatou é um
núcleo puro do Surrealismo. É talvez o único poeta quebequense cujo conjunto da
obra pode ser qualificado de surrealista. Trata-se de uma poesia marcada pela
leitura do primeiro Éluard e que se aparenta à de Henri Michaux. A poesia de
Giguère efetua uma exploração de um imaginário individual e coletivo. Na época
da “Grande escuridão”, “nós éramos um pouco como toupeiras que cavávamos um
túnel em direção à luz”, dirá ele em 1968. Devemos notar que, como Michaux,
Giguère é um artista visual: ao mesmo tempo pintor, desenhista e entalhador.
Ele mesmo associa, unifica as duas condutas: “O pintor, como o poeta, faz hoje
um trabalho de escafandrista. Ele desce. Ele desce ao leito de seu próprio rio
e busca no navio que se encontra ali naufragado, entre duas águas, os tesouros
que, sabe, lá estão.” (1951) É, de fato, uma filiação e uma dívida que ele
reconhece: “Uma boa parte de nossa poesia atual é diretamente proveniente do
Surrealismo. Poderíamos, aliás, dizer o mesmo de quase toda a poesia
contemporânea, esse fenômeno não tem, portanto, nada de particular em Quebec…”,
declara em 1968.
Estranhamente, se há um
grupo quebequense ao qual Giguère se associou, é o dos poetas das Éditions de
l’Hexagone, cujas estéticas eram variadas e divergentes, mas que tinham em
comum o trabalho de fundação da poesia quebequense moderna, menos centrado
sobre o eixo de uma escritura do que sobre uma temática, aquela do país, da
identidade, ligada a certo humanismo universal. Grafista e tipógrafo, Giguère
realizou numerosas concepções gráficas para as Éditions de l’Hexagone. Sendo
ele mesmo editor de poesia e de livros de arte, isto o torna um animador
importante do meio cultural quebequense.
FM
| A exemplo do que já conversamos aqui sobre abstracionismo, há uma compreensão
bastante vaga das relações do Surrealismo com a música, em parte um assunto
velado em função da surdez de Breton
– era patente seu preconceito no tocante à música. A aproximação que o Grupo
Surrealista de Chicago estabelece com o blues, por exemplo, me recorda um
vínculo da poética de Paul-Marie Lapointe (1927) com o jazz. Gostaria de saber
tua opinião a respeito.
AL
| Paul-Marie Lapointe escreveu um dos grandes livros do Surrealismo
internacional, Le Vierge incendié,
editado em 1948 por seus novos amigos automatistas. Ora, esse livro oferece
poucos laços com a música. Podemos sentir nele a explosão de uma revolta rimbaudiana
que se expressa num aumento intenso do volume de imagens violentas e
inventivas. Entretanto, a apresentação formal da maior parte dos textos anuncia
as pesquisas que seguirão. A forma de base é o “parágrafo retangular”, formando
um bloco compacto, onde a pontuação é frequentemente feita de espaços em branco
de diversos comprimentos.
A poesia de Lapointe
atravessou várias fases. Podemos afirmar que seus poemas publicados a partir de
1960 recortam um período de poemas se aparentando à linguagem do jazz. Ele não
está sozinho nesse caso: vários poetas que publicaram nas Éditions de l’Hexagone,
em Montréal, interessaram-se pelo jazz, por exemplo, Fernand Ouellette (nascido
em 1930, que além do mais escreveu uma biografia do compositor de música
contemporânea Edgar Varèse). Em suas “Notes pour une poétique contemporaine”
(1962), Lapointe escreve: “A forma de improvisação particular ao jazz – ad libitum sobre uma estrutura dada,
linear e vertical – me parece dever expressar da maneira mais concreta a forma
da nova poesia”. Ele próprio qualifica essa escritura que praticará de “nova
forma de lirismo”. Significa que passou do automatismo à improvisação, mas
também de uma linguagem não preconcebida para novas estruturas, rítmicas e
temáticas. Não há laço entre Surrealismo e jazz. O poema “Blues” (1965) é uma
longa composição em versos livres, alternando células ou grupos de versos como
frases musicais, constituindo variações sobre temas. Tempos depois, Lapointe se
dedicou a diversas formas de escritura experimental: jogos formais e gráficos,
poesia concreta, escritura aleatória, que culminaram na publicação de um livro
enigmático e monumental, em dois tomos: écRiturEs
(1980, mais de 900 páginas…).
Da mesma maneira que o
americano Philip Lamantia (1927),[3]
após ter sido batizado por Breton como “o único poeta surrealista americano”,
afirma ter “rompido” com o Surrealismo desde 1946, podemos dizer que a obra de
Paul-Marie Lapointe pertence ao Surrealismo apenas entre os anos 1947/48.
Trata-se, entretanto, do desencadeamento determinante e do início fulgurante de
uma grande obra da poesia internacional.
FM
| Tens duas teses acadêmicas, sobre Alberto Giacometti (1901-1966) e Jean-Paul
Sartre (1905-1980). Como concilias as relações entre Surrealismo e Existencialismo?
AL
| Entre o Surrealismo e o existencialismo, podemos apenas constatar um fosso
intransponível. Sartre é de alguma maneira um escritor que combate a si mesmo,
daí o caráter estressado de sua escritura na autobiografia Les mots. Em seu Baudelaire
(1947) e em Qu’est-ce que la littérature?
(1948), faz uma crítica severa da poesia como recusa da linguagem, recusa da comunicação:
“o poeta está fora da linguagem, ele vê as palavras às avessas”. De fato,
Michel Leiris, ex-surrealista, mas sempre poeta, lhe reprova, no prefácio ao
ensaio sobre Baudelaire, sua “execução sumária do Surrealismo”. Toda a obra de
Sartre pode ser interpretada como uma vasta empreitada de questionamento do
imaginário. Por outro lado, evidentemente, o existencialismo é uma filosofia
que só pode invalidar os fundamentos teóricos do Surrealismo concebido como uma
forma de idealismo, de essencialismo, até mesmo um platonismo roçando o
misticismo. A força de Breton não reside certamente na manipulação do discurso
filosófico nem, aliás, da linguagem política.
Inversamente, Breton,
grande liberador do imaginário, pôde apenas tomar um recuo radical face ao
existencialismo, filosofia colada ao real, um real ao qual o Surrealismo
interroga a definição e os limites. É interessante notar que o pensamento
político de Breton, após o fracasso da aproximação com o Partido Comunista
francês, não caiu na ingenuidade da qual Sartre fez prova, passando da posição
de “aliado objetivo” dos stalinistas à de defensor dos maoístas. Permanecendo
libertário, Breton se aproximou de Trotsky e de uma posição política aberta à
liberdade de criação.
A conduta do pintor,
desenhista e escultor Alberto Giacometti é interessante, já que ele passa da
órbita de Breton à de Sartre. Membro do movimento surrealista no início dos
anos 1930, na mesma época de Dalí e Buñuel, ele vê uma de suas esculturas
longamente comentada em L’Amour fou
(1934). Giacometti em seguida rompeu com uma arte de transcrição do imaginário
para se dedicar a uma incansável e infinita empreitada de apreensão da presença do ser no mundo. É possível
qualificá-lo de escultor filosófico e aproximar sua empreitada do
existencialismo. Sartre, de fato, escreveu dois artigos importantes sobre o
trabalho de Giacometti. Mas a obra do artista escapa às categorias e a toda
tentativa de anexação. Se ele interrogou a existência tal qual, é com a mesma
insatisfação da qual fez prova afrontando o imaginário. O poeta Yves Bonnefoy
(nascido em 1923, ele também um ex-surrealista) demonstrou, em seu texto “Le
problème des deux époques” (1991), que não se trata, em Giacometti, de duas
condutas contraditórias e que a passagem de uma à outra não constitui o fato de
uma ruptura, mas sim de um aprofundamento, de uma travessia das etapas de uma
única e mesma pesquisa (empreendida nos anos 1920), voltando-se sobre a força
do aparecimento do ser no campo de visão. Se seguirmos a lição de Giacometti,
os irreconciliáveis que são o Surrealismo e o existencialismo podem se
articular, se os situarmos em um projeto que os englobe.
FM
| A existência de uma forte definição editorial no Canadá no sentido de
preservar e pôr em discussão a sua história é algo que chama a atenção, em
particular, se comparada à maneira dispersa como o mercado editorial no Brasil
reage em relação ao tema. Uma pergunta final que faço diz respeito às ações
atuais do Surrealismo, a maneira como ainda se percebe sua presença na cultura
canadense.
AL
| O estatuto minoritário dos francófonos da América explica essa longa
empreitada intelectual. Os fundamentos da cultura quebequense atual foram
postos ao longo dos anos 1960, enquanto, por exemplo, apareceram as primeiras
histórias e análises examinadas da literatura e da arte em Quebec. Trata-se de
uma sociedade cuja identidade frágil está constantemente a se sustentar, a se
redefinir e a se reinventar. O que faz de nós campeões da recuperação
histórica: enquanto, em 1948, Borduas é licenciado de seu posto de professor
por causa da publicação de Refus global,
14 anos mais tarde, quase dois anos depois da morte do artista, é o governo do Quebec
que organiza uma importante exposição retrospectiva no Museu de Arte Contemporânea
de Montréal. Além disso, o catálogo da exposição dedicada aos automatistas em
1972 contém uma reprodução integral dos textos do manifesto!
Dito isto, no Canadá, o
Surrealismo aparece como datado. O período automatista se estende de 1944 a
1959. Em artes plásticas, os artistas oriundos do automatismo foram todos
assimilados ao grande movimento da arte não-figurativa. Individualmente, vários
permaneceram fiéis aos enunciados de Refus
global, mas eles não se dizem nem automatistas, nem surrealistas. A arte em
Quebec seguiu todas as agitações da arte contemporânea, da pop art à arte conceitual, da arte pobre à integração das
tecnologias de todos os tipos, do “retorno” da figuração ao “retorno” da
não-figuração. Nesse contexto, o Surrealismo pertence à história da arte do
Século XX e, na melhor das hipóteses, ele constitui uma referência e um
reservatório de formas que, num contexto pós-moderno, podemos citar, comentar e
transformar. O que alguns chamam de “a retórica surrealista” pôde reencontrar
um ar novo de vida em arte já que, num sentido, o Surrealismo é uma arte
conceitual na medida em que nega a materialidade do médium (pintura ou escultura). A crítica automatista sempre
reclamou a superação dessa limitação. A arte dita “pós-moderna” faz assim um
novo uso da colagem, da citação, da “imagem”, apenas mantendo o imaginário à
distância.
Em poesia, acontece o
mesmo. Apenas a obra de Roland Giguère continua fiel a si mesma, sem que o
poeta defina para si uma pertença estética. É significativo que os poetas das
gerações subsequentes cuja escritura se aparenta a certo Surrealismo tenham se
juntado, entre outras, à corrente da “contracultura”. Denis Vanier (1949-1998),
por exemplo, é um digno herdeiro da revolta automatista, mas também da Beat Generation e da poesia rock. Ele
não se vinculou especificamente ao Surrealismo. Da mesma maneira, a escritura
formalista de um Roger Des Roches (1950) engloba a problemática e os
procedimentos surrealistas num trabalho que toca todos os aspectos da obra:
disposição, ritmo, simbólico, tonalidades.
Assim, do nosso ponto de
vista, a revolução surrealista aconteceu.
O que me fascina em tua
conduta de antologista é que propões uma releitura da história do Surrealismo
modificando o ponto de vista. Se pararmos de considerar Octavio Paz, Aimé
Césaire e Malcolm de Chazal como satélites distanciados da central parisiense
do Surrealismo, essa inversão de perspectiva tem consequências importantes. Tua
empreitada de desocultação de um Surrealismo pan-americano traz à luz relações
Norte-Sul e dos centros de difusão, ignoradas até aqui, que se ignoram uns aos
outros. Imagino que um dos efeitos consiste também em recolocar o pai Breton no
seu lugar e impedir que sua memória confisque a totalidade do Surrealismo.
Assim se instala uma rede periférica tornada autônoma. Esse movimento me parece
mais forte e vivo na América Latina. Podemos falar de um novo Surrealismo, de
novos Surrealismos? Quais seriam seus textos fundadores? O que quer que seja,
assistimos a uma vasta descolonização da herança europeia que os surrealistas
da primeira hora, fortemente anticolonialistas, não poderiam deixar de reconhecer.
[2003]
NOTA
André Lamarre (Canadá, 1950). Tendo formação em
estudos literários e em história da arte, escreve sobre arte há muitos anos.
Interessa-se particularmente pela arte atual, pelas relações entre arte e
literatura, assim como pela poética da escrita da arte. É professor de
literatura. Entrevista publicada originalmente em Agulha Revista de Cultura # 36 - Outubro de
2003. Tradução de Eclair Antonio Almeida Filho.
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