FM Em que circunstância
surge este teu projeto editorial em torno das Edições Nephelibata?
CP A ideia inicial partiu
de uma revista que um amigo, Jason de Lima e Silva, e eu tínhamos em vista. Uma
revista que seria de arte e filosofia. Na época estudávamos juntos na PUC, em
Porto Alegre, e costumávamos construir inúmeros projetos, de peças de teatro a
grandes teorias filosóficas, que morriam dias depois. Mas com o projeto da
revista chegamos a convencer pessoas, reunir textos, e levar a coisa adiante
por alguns meses. Depois, não sei por que, a ideia morreu. Mas ficou a vontade
de publicar; e quando voltei a morar em Florianópolis já tinha alguns livros em
mente, traduções, e uma certa obsessão em montar uma editora. Cheguei a
consultar gráficas, conferir registros e coisas afins, mas por fim, achando que
tudo era muito complicado e caro, acabei recorrendo à velha fórmula do “faça-você-mesmo!”,
tendo em mãos uma caixa de disquetes e rodeado pelos fantasmas dos simbolistas
e decadentes.
FM Embora tenhas
inicialmente pensado em recuperar livros ligados ao Simbolismo, o catálogo das
Edições Nephelibata avança além disso, mais preocupado com a recuperação de
livros raros do que propriamente com títulos ligados a alguma estética em
particular. Além do mais, há esse cuidado, ao mesmo tempo, de trazer para o
leitor brasileiro títulos de autores estrangeiros de grande expressão que
curiosamente têm pouca atenção por parte do mercado editorial. Mas esta é uma
observação minha. Gostaria de saber de ti, de teu plano editorial, de como
desenhaste a concepção editorial que resulta hoje em valioso catálogo.
CP Quando morei em Porto
Alegre, apesar de já conhecer o monumental Panorama
do A. Muricy, eu não conhecia uma boa parte dos autores de quem ele fala, mas
tive a sorte de encontrar na biblioteca da PUC as obras completas de B. Lopes e
Pernetta, obras de Gonzaga Duque e Rocha Pombo, entre outros. E como um autor
leva a outro, acabei encontrando em sebos autores como Ernani Rosas, Xavier
Marques e Junqueira Freire, um romântico que é para mim um dos melhores poetas
do país. Isso, aliado a leituras anteriores, levou-me posteriormente a querer
publicá-los, já que quando se publica qualquer desses autores é sempre naquelas
feias edições patrocinadas por instituições e com a grafia atualizada. Daí
surgiram as edições de Xavier Marques, João do Rio, o Arquivo Decadente e em
breve dois livros de Adelino Magalhães. Por outro lado, os amigos de primeira
hora e novos conhecidos contribuíram com coisas inéditas e valiosas, como as
traduções de Kaváfis, Ritsos, Seféris, Campana, Delmira Agustini, Baroja e
Jaspers. E a partir daí foram surgindo os inesperados e o catálogo foi se
encorpando e se enriquecendo. O que significa que de algum modo desenhou-se por
uma junção de acasos. Mas sendo um leitor incansável e tendo trabalhado com
livros usados por alguns anos, adquiri um pouco de conhecimento dos livros que
são mais difíceis de encontrar e para os quais há um público leitor bastante
fiel. E logo percebi a inexistência de autores que interessariam a esse público
que ainda não tinham sido editados no Brasil, ou as edições existentes já se
tornavam raras. Com o passar dos anos, das distintas contribuições que foram
surgindo, perdi um pouco de vista esse meu objetivo, que é paralelo ao resgate
de autores brasileiros. E desde o ano passado tenho me voltado para isso. E em
breve haverão de sair alguns títulos de autores de literatura fantástica, como
Lovecraft, Lugones, Schwob, Bierce, Ruben Darío, Villiers de L’Isle-Adam…
FM Como acreditas que as
Edições Nephelibata atuem como opção de mercado no Brasil. Costumas dizer que
não és um editor e sim um artesão, mas a verdade é que os livros são editados e
comercializados. Como articulas sua circulação, acompanhamento de vendas etc?
CP Quando trabalhei com
venda de livros usados, dentro de universidades, percebi uma coisa: sabe onde
se encontram os alunos da área de “humanas”, menos interessados em livros? Na
pedagogia! Terminei recentemente um doutorado em literatura: tive professores
que conhecem tanto de literatura quanto eu entendo de mecânica de ônibus
espacial. O quadro geral da leitura no país é desagradável. Li recentemente
acerca de uma pesquisa que indica que no Brasil o número de não-leitores chega
a 77 milhões. Há alguns anos a porcentagem de leitores era algo por volta de
25%. Se você exclui os leitores de informação, leitores de jornais e revistas,
sobram poucos leitores de livros. E dentre esses leitores de livros, se você
tira aqueles que só leem livros didáticos ou “best-sellers”, o número de
leitores de boa literatura no Brasil é muito pequeno! Daí o fato de grandes
editoras não editarem determinados autores de expressão internacional. Eles não
têm leitores no país. Eu publiquei um volume de contos de Villiers de
L’Isle-Adam, autor que já foi publicado pela Iluminuras, Edusp e Edufpr. Mas se
você for perguntar para qualquer dessas editoras se publicariam um novo título
de Villiers sem apoio financeiro, todas responderiam: “não!”. Porque é um
grande autor que não tem leitores no Brasil. Mas é um dos títulos mais vendidos
da Nephelibata. Por quê? Porque 50 leitores de Villiers no Brasil para mim é
significativo, mas para uma editora que imprime 1000 exemplares, 50 leitores
significa um fracasso de vendas! Eu não gosto dessa palavra, “mercado”, mas
para lhe responder: a Nephelibata atua dentro de uma fração muito pequena do
mercado editorial brasileiro ao publicar, na maioria, autores que não valeria a
pena publicar em uma escala, digamos, “industrial”. De novos a velhos autores.
Um autor como Ruben Darío dispensa apresentação em todo o nosso continente, mas
aqui no Brasil é uma minoria que o conhece. Nenhuma grande editora se
empenharia, sem financiamento, em editá-lo. Mas para a Nephelibata vale, porque
ela está direcionada para essa minoria de leitores que gostaria de ler os
contos fantásticos de Darío e não o encontrava em português. O objetivo então é
atingir um público leitor que fica, de certo modo, à margem das grandes
tiragens. Mas isso não significa, obviamente, que a Nephelibata deixe de
publicar autores de amplo público leitor. Até prêmio Nobel de literatura está
no seu catálogo.
Agora, porque prefiro ser considerado um artesão
em vez de editor. Pense em editores como o Sr. Victor Civita, o Sr. Schwarcz ou
os Srs. Charles Cosac e Michael Naify. Que tenho eu de semelhança com esses empresários? Eu que sou
filho de um analfabeto e de uma empregada doméstica? Gosto dos livros editados
por eles; sem dúvida parte de minha formação é devida à leitura de livros
editados por eles, mas quanta distância entre eles e eu! Desconfio que eles
nunca costuraram um livro na vida. No Brasil não temos uma tradição de
editores, como tem na Itália, por exemplo. O que sempre tivemos aqui, na edição
de livros, foram empresários. Não julgo se isso é bom ou ruim, mas sei que não
sou um empresário; poderia ser um “micro”, mas não quero ser. Sinto-me muito
mais próximo do Sr. Robson Achiamé, do Sr. Plínio Coelho, da Imaginário, ou do
Sr. Cléber Teixeira, da Noa-Noa. Mas mesmo entre esses, acho que só o Sr.
Cléber sujou suas mãos na tinta de impressão. De certa perspectiva, sim, somos
todos editores. Mas para manter a distinção necessária, prefiro ser considerado
um artesão. E os livros são comercializados, claro, e não devem em nada, na
aparência, a qualquer livro editado de forma industrial. Acho que a diferença
principal está mesmo na tiragem, que na Nephelibata é sempre pequena.
FM Não resta dúvida que reside aí certo atrativo, na
costura, na manufatura, um aspecto que muitos podem ver como excessivamente
romântico em plena época de impressões on-demand, tecnologia gráfica de baixo
custo, claro, também com a maquiagem de vendas, complexidade nas relações entre
autor/editor no quesito prestação de contas etc. Onde eu creio que a
Nephelibata se torna mais expressiva é no que diz respeito à oferta de
conteúdo, sua sensibilidade para recuperar obras cegadas pela ganância
imediatista de mercado.
CP Sim, são aspectos distintos: manufatura, pequena
tiragem e conteúdo. Eu gosto da ideia de pequena tiragem. Mas a questão da
manufatura, não acho que seja importante, não. Eu continuo fazendo de forma
artesanal por hábito e pela facilidade de fazer pequenas tiragens, mas não
penso, de forma alguma, que um livro artesanal tenha mais valor do que um
industrial. O mais importante em um livro é seu conteúdo. Quando digo que me
sinto mais próximo da Achiamé, Noa-Noa e Imaginário é também pela ideia de
conteúdo. Grandes editoras, que podem publicar muito, acabam publicando de
tudo; as pequenas (as melhores pelo menos) acabam sendo seletivas e criam um
norte editorial que as caracteriza. E não se trata de ficar com os “restos”,
como certa ingenuidade poderia levar a pensar, mas de, por não se estar
subordinado de modo absoluto ao mercado, poder ofertar um conteúdo diferente. Além
disso, grandes editoras funcionam de forma empresarial, onde os editores são
funcionários encarregados de fazer o contato com os autores/tradutores. Nas
pequenas, o editor faz tudo, e isso o leva a ter uma relação mais afetiva com
os livros e reflete, creio, no conteúdo editado. Mas, independente do que
pensam os outros, sou com certeza um romântico em todos os sentidos da palavra:
do mais trágico ao mais patético.
FM Já é possível fazer uma
avaliação da repercussão crítica das Edições Nephelibata?
CP Não sei se isso já é
possível. Sei apenas que eu seria a pessoa menos indicada para fazer esse tipo
de avaliação. Mas há fatos que, mesmo sendo insignificantes para alguns, são
inalteráveis. Livros de autores como Pío Baroja, Baldomero Lillo, Dino Campana,
Giánnis Ritsos, Aldo Pellegrini, entre outros, foram editados no Brasil pela
primeira vez na Nephelibata. São autores pouco conhecidos aqui, mas em seus
países de origem, assim como em outros países do mundo, são bastante
conhecidos. Além disso, por exemplo, as edições que estão prontas para sair de
H. P. Lovecraft, Os fungos de Yuggoth,
tradução de Nicolau Saião, e A música de
Erich Zann, tradução de Renato Suttana, como todos os demais títulos
atuais, são impressos em papel de qualidade e em uma fonte favorável à leitura.
Lovecraft é um autor bastante publicado no Brasil, mas todas as edições que
conheço são em papel branco com letrinhas miúdas. Leitores inteligentes sabem
que esse tipo de publicação cansa os olhos e torna a leitura maçante. Desde o início
eu me preocupei em fazer livros que fossem agradáveis de ler, e atualmente,
mesmo com um alto custo, procuro manter mais a qualidade do livro do que o
lucro sobre ele. Contrariando desse modo a comum lógica empresarial que visa o
menor custo com o máximo de lucro. Qualquer repercussão futura que a
Nephelibata possa ter, creio que passa por aí.
FM O catálogo da
Nephelibata está aberto a sugestões editoriais? O que exatamente deve ser
ofertado a este catálogo? A ideia aqui é antecipar uma triagem que desperte a
atenção, em especial, de pesquisadores de um veio literário que interesse
diretamente ao teu catálogo.
CP Sim. A Nephelibata
sempre esteve aberta a sugestões. Agora, “o que deve ser ofertado”… isso é
difícil de responder, pois aquilo que eu conheço e quero editar eu vou atrás e
publico, e sobre aquilo que eu não conheço e que combinaria com o catálogo não
posso nada dizer. Ao longo dos anos tenho recebido muitas propostas, mas boa
parte não tem nada que ver com a Nephelibata. Seria o caso de se dizer: “Vai do
bom senso de cada um” observar o que combina com o catálogo, mas como bem notou
Descartes, quem admitiria que não tem bom senso? De qualquer modo, estou
atulhado de coisas no momento e o catálogo nos próximos meses vai receber pelo
menos uma dúzia de novos títulos. E dos “pesquisadores” eu quero distância!
Pesquisa é uma coisa científica. Não tem nada que ver com arte. E literatura é
arte. Qualquer cientista sério ri dessa pretensão “científica” dos professores
de literatura, de filosofia, etc. E por outro lado, qualquer artista digno
desse atributo, também ri das pretensas “interpretações” que se faz de textos
literários. Pesquisadores hoje estão todos subordinados às instituições que os
financiam e que, por vez, cobram um tipo de “pesquisa” baseada (obviamente) em
métodos científicos, e isso gera umas porcarias de textos que só servem para
ganhar títulos acadêmicos e bolsas de estudo. É lamentável, mas é a realidade
da atual “fôrma” acadêmica.
FM Há um folder que
utilizas para difusão que indica a reunião de plaquetas em uma caixa. Este é um
plano editorial novo, trabalhar com caixas? Fale do novo espaço, “O abominável
Prado” (http://oficinasnephelibata.blogspot.com/).
CP Não, é um plano antigo,
mas de realização atual. No caso das plaquetas é algo específico. Eu comecei a
fazer as plaquetas para aproveitar sobras de papel, mas com o tempo deixaram de
sobrar papéis e as plaquetas passaram a ter um custo alto e com desperdício de
papel. Além disso, é algo muito trabalhoso. Então decidi acabar de uma maneira,
digamos, elegante, fazendo uma caixinha para as oito plaquetas e vendendo-as
todas juntas. Isso restringe o acesso e consequentemente o trabalho, e elas
permanecem no catálogo. Mas as caixas acompanharão os volumes maiores. De
início, os dois volumes do Borges e em breve do Kaváfis. E alguns títulos
estarão saindo com uma luva simples, com um logotipo de dez anos da
Nephelibata.
O novo espaço virtual é mais pessoal. Criei para
divulgar alguns textos meus e também para gerar elos com outras páginas de
amigos, de revistas e outras coisas interessantes que há na internet. Essa
coisa de “editor” joga sobre os ombros da gente certa responsabilidade, e
apesar de lidar com uma boa quantidade de pessoas sérias, de escritores a
leitores, há em tudo isso um lado lúdico. Ainda que não seja possível delimitar
a fronteira, tentarei deixar o lado profissional mais na página da Nephelibata
e o lúdico nesse novo espaço, que tem esse nome justamente porque sei que
muitos me consideram “abominável”, injustamente eu diria, mas sou suspeito para
afirmar isso.
[2011]
[Entrevista com Camilo Prado (Brasil, 1969), publicada em Invenção do Brasil. São Paulo: Editora
Descaminhos, 2013. http://www.amazon.com/Inven%C3%A7%C3%A3o-Brasil-entrevistas-Portuguese-Edition-ebook/dp/B00FTBMR24]
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