FM |
Qual aquele ponto de interesse que define tua afinidade com a criação
artística, a arte popular, o desenho, a gravura, qual?
KV |
Desde criança, sempre quis ser artista. Não pensava em fama, mas unicamente no
prazer de fazer arte. O desenho, em particular, sempre ocupou um espaço
importante na minha vida.
Nasci na zona
rural de Quixeramobim, num local isolado de tudo. Nossa família era pobre, as
coisas eram muito difíceis, ninguém podia usar um lápis para rabiscar coisas “banais”,
por isso contornava as pessoas e as coisas com a ponta do dedo indicador.
Meu pai,
sempre teve muito talento para poesia, sempre foi um matuto diferente. Era
costume dele chegar do roçado e ler para a gente. Dele herdei o amor pela
poesia, mas o desenho é algo que surgiu espontaneamente, apesar de meu irmão
mais velho também ser desenhista.
FM | Em
2001, a
Rede Globo produz uma adaptação de teu folheto de cordel A quenga e o
delegado, para uma série que então produzia intitulada “Brava Gente”. Qual
repercussão isto significou em tua carreira?
KV |
Foi um acontecimento bacana, que me ajudou bastante. Já havia feito vinhetas
Plim-Plim para a Globo e tinha trabalhos publicados nos catálogos dos
principais festivais de desenho do mundo. Porém na Literatura de Cordel foi o
primeiro grande vôo da minha carreira de poeta popular.
FM |
Vens trabalhando com cada vez maior incidência em uma linguagem de quadrinhos.
O Brasil é um grande consumidor de gibis importados. Como observas as variações
atuais deste mercado em relação aos quadrinhos que são produzidos internamente?
KV | O
Brasil tem uma grande história na arte dos quadrinhos. Tivemos e temos
desenhistas geniais, muitos dos quais nunca conseguiram viver dignamente da sua
arte. Considero quadrinho brasileiro todo aquele que tem alguma relação com o
pensamento, a arte, a cultura, a essência, o modo de ser da gente. Esses
artistas que desenham super-heróis para o mercado americano, quase sempre
americanizando o próprio nome para ser aceito, não produzem quadrinhos
brasileiros. São artistas que são forçados a agir e a pensar como um cidadão
estadunidense.
O quadrinho
que produzo, goste ou não goste, é um capítulo à parte. Não tenho nenhuma
pretensão de competir com os comics e
os mangás, quero fazer algo
diferente, algo que verdadeiramente dialogue com o rico universo da cultura
brasileira e da América Latina. Sou autor de uma das mais bem sucedidas
histórias em quadrinhos do mundo. O meu álbum Lampião... Era o trabalho do tempo atrás da besta da vida já ganhou
doze prêmios importantes e já vendeu quase 600 mil exemplares.
FM | Há
uma diferença técnica que separa o gibi e o livro em quadrinhos? Indago isto em
função de que, quando ganhas o prêmio HQ Mix 1998, a referência da
premiação é feita ao que chamam de “melhor graphic novel nacional”. Como
inserir aí o trabalho de um Maurício de Souza?
KV |
Uma novela gráfica, ou Graphic novel (termo criado pelo genial
quadrinhista Will Aisner) é aquela história mais longa, uma história de fôlego,
que requer mais empenho e pesquisa. Já o gibi geralmente tem periodicidade
mensal e não possui todo esse rigor em sua produção.
O Maurício é
um autor genial. O mundo inteiro percebeu isso. Todos os seus personagens
possuem realmente uma personalidade, algo que os personagens Disney não têm.
Veja como exemplo o Mickey Mouse. O Mickey começou a fazer sucesso numa época
que não existia quadrinho direcionado ao público infantil. O Mickey não é nada.
Qual é a personalidade dele mesmo? Até hoje não descobri.
O Pateta é um
cachorro, o Pluto é um cachorro, o pateta é humanizado e fala e o Pluto não.
FM | Eu não diria exatamente isto.
Mickey é um personagem ardilosamente não resolvido, como se fosse inicialmente
pensado com outros fins que não o de simples personagem de tiras de jornal.
Estás generalizando a criação do Walt Disney baseado apenas em um ou dois
personagens. Há personalidade no Tio Patinhas, no Donald, na Maga Patológica,
na Madame Mim e outros. E isto se nós seguirmos falando apenas de gibis, porque
a genialidade do Disney tem um sentido mais amplo. Por outro lado, pensando em
outros criadores, personagens como Rango, Mafalda e Fradim jamais foram criados
especificamente para público infantil. Inclusive acho que os personagens do
Maurício de Souza transcendem essas limitações. Quando ele cria algo
específico, que são os equivalentes para um público adolescente, para mim ele
amofina a dimensão mágica dos personagens originais. Tua referência ao Will
Aisner me leva a indagar quais os teus criadores ou, se for o caso, quais os
personagens de quadrinhos que destacarias, e quais as tuas afinidades com eles?
KV | No momento não tenho uma grande
afinidade com os personagens de quadrinhos feitos com periodicidade mensal,
gosto mais dos álbuns que se resolvem numa única publicação, assim como as
novelas gráficas. Mas curto muito a Blanche Epifany, dos franceses Jacques Lob e Georges Pichard que traz uma
bem resolvida historia erótica sobre uma pobre orfã adolescente que – andrajosa
e faminta – é sempre vítima de homens maduros tarados que querem se aproveitar
de sua beleza estonteante e sua pureza virginal. Gosto muito da Turma do Pererê, do Ziraldo e d’Os Piratas do Tietê, do Laerte Coutinho.
Sou colecionador das obras do italiano Milo Manara e do galego Miguelanxo
Prado.
FM | A
atuação do Ministério da Educação parece ser mais efetiva no que diz respeito
ao apoio dado à circulação de obras de cartunistas, quadrinistas etc. Estás de
acordo?
KV |
Isso é uma decisão muito recente. Até bem pouco tempo havia um grande
preconceito com as HQ’s. Na opinião de muitos, quadrinhos era uma coisa
pervertida ou completamente idiota. Como falar isso de uma arte que consegue
aliar a literatura com as artes plásticas, e que é tão importante para história
da humanidade quanto o cinema?
Foi o trabalho
de grandes estudiosos como Álvaro de Moya, Sônia Bibe Luyten, Sidney Gusman que
mudou parte desse pensamento. Simplesmente os educadores brasileiros começaram
a perceber que os quadrinhos e a Literatura de Cordel são poderosas ferramentas
para o despertar de novos leitores. Leitores esses que uma vez envolvidos com o
mundo da leitura não se limitam apenas a esses dois gêneros literários.
FM | Tens
quadrinhos que são adaptações de obras de Cervantes ou Victor Hugo, ao lado de
outros que retratam personagens já existentes, como no caso do Lampião e agora
preparas um dedicado ao Padre Cícero. Não te atrai a idéia de criar um
personagem próprio?
KV |
Tenho uma penca de personagens engavetados que jamais ganharam o merecido
destaque: Curuca, Das Chagas, Negativo, Compadre Zé são algumas dessas figuras
que rabisquei desde a infância. No álbum A
moça que namorou o bode, em parceria com meu irmão, Arievaldo Viana
(escolhido pela associação brasileira de imprensa e associação nacional de
cartunistas como a melhor publicação de 2003) nós trazemos uma gama de
personagens próprios.
FM | No
que vens trabalhando agora?
KV |
Estou me preparando para verter para os quadrinhos um roteiro sobre Padre
Cícero do escritor Floriano Martins e tocar a publicação de alguns livros que
já estão bem adiantados.
[2012]
NOTA
Klévisson Viana (Ceará, 1972) é poeta cordelista,
gravador, cartunista e editor. É autor e ilustrador de mais de 100 folhetos de
cordel, muitos dos quais adaptados para quadrinhos, televisão e teatro. Um de seus
livros, A mala do folheteiro, teve
edição francesa. Como cartunista, além do trabalho para a imprensa no Ceará e a
ilustração de dezenas de livros de outros autores, trabalhos seus foram
publicados em países como Turquia, Itália, Bélgica e Holanda. Seu álbum em quadrinhos Lampião …
era o cavalo do tempo atrás da besta da vida recebeu o prêmio HQ Mix 1998
na categoria Melhor Graphic Novel Nacional e vem sendo adotado como recurso
paradidático em escolas públicas em vários estados brasileiros. Atualmente trabalha
em um novo álbum, dedicado ao Padre Cícero. Abraxas
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