quarta-feira, 13 de agosto de 2014

ALLAN GRAUBARD | Sobre surrealismo



FM | Camille Goemans tinha consigo uma máxima: “Às vezes é melhor preferir os fabricantes de versos aos poetas. A poesia está em outro lugar.” Talvez fosse melhor preferir os traficantes de versos, neste caso. Há certo fervor de aforismos no Surrealismo, não há dúvida, são costumeiramente sentenciosos. Mas aqui inicio nosso diálogo indagando como a poesia se revela em Allan Graubard.

AG | A poesia veio primeiramente, por volta dos 14 anos. Ávido leitor, fervor utópico, desejo adolescente, um protesto e uma revolta de suporte abrem o caminho. Ligação com o jazz (como fã e pianista), experimentos com alucinógenos, e tempo, tempo histórico, pulsam em sintonia com minhas paixões. Vejo um através do outro, um no outro. E o mundo ao meu redor ressoa numa linguagem livre de restrições.
Mas onde o lirismo, irradiado pelo amor, uma vez bastou como alavanca de transformação – e um meio pelo qual julgar meus esforços –, volto-me agora para o mundo para arrancar da realidade a dança viva de luz e sombra.
Talvez seja por esta razão que eu procuro a presença física do poético agora no teatro – tanto quanto procuro na página ou na rua.

FM | Quais as contribuições, positivas e negativas, em termos de difusão do Surrealismo nos Estados Unidos, da presença de Salvador Dalí & André Breton, neste país? Antípodas, até que ponto?

AG | O Surrealismo chega aos EUA por várias rotas, e há boa razão para considerar todas elas. Dalí torna-se um clown; faz seu próprio marketing com grande sucesso. Breton sustenta sua posição como juiz de um grupo em exílio. Ele e seus amigos tornam-se a outra voz; a voz da poesia que evita a moda pela crítica e o kitsch pela inspiração, especialmente da América Nativa e Negra. Sim, Dalí e Breton são antípodas. Politicamente, é claro, a diferença é enorme: Dalí torna-se algo como um monarquista, um admirador de Franco; Breton escreve sua Ode a Fourier e Arcano 17. Eles projetam, sobre o gráfico, máximas que, em outras circunstâncias, poderiam racionalizar o combate.
A confusão frequenta o Surrealismo nos EUA. Quando você procurar, você encontrará aquilo que procura.

FM | Quais as tuas identificações com o Surrealismo e qual a sua atualidade? Não estou interessado em um manual de princípios atuantes do Surrealismo, mas certamente ainda podemos contar com este movimento essencialmente empenhado, no dizer de Jacques Sénelier, em “desmoralizar”. Podemos?

AG | Desmoralização é uma maneira de ser/estar no mundo que nossas ações prefiguram e induzem. Poetas têm sempre insistido em estar na frente da percepção geral. Não posso considerar que o peso da modernidade tenha mudado alguma coisa aqui. É menos uma questão que um reconhecimento. Nunca acreditei que o Surrealismo tenha um caráter imperial. Leva-se um século de revoluções fracassadas, marés de sangue, para aliviar qualquer chagrin ligado a uma preferência por revolta.

FM | Ivsic é um poeta de minha predileção, e penso que uma obra como Le Roi Gordogane (1956) deva significar muito para a tua própria poesia e tua relação com o teatro. Considerando que este é um poeta inteiramente desconhecido no Brasil, peço que me fales um pouco acerca de tuas afinidades com ele.[1]

AG | Radovan Ivsic é uma presença significante na história do Surrealismo pós-Segunda Guerra. Em 1954, ele é forçado a deixar sua terra natal, a Croácia, por causa de uma recusa em se adaptar aos policiamentos culturais do Estado. Realismo socialista, devemos lembrar, era um mecanismo oficial para suprimir opiniões heterodoxas ou oposições. A independência era impossível. E Ivsic tem falado e escrito pungentemente sobre este período em sua vida.
Chega a Paris e conhece Péret, que encontra em seu novo amigo uma validação de sua crítica do socialismo dentro da órbita soviética. Péret apresenta Ivsic a Breton, e Ivsic colabora em todas as atividades do grupo surrealista até a dissolução final vários anos após a morte de Breton. Em 1959, ele trabalha com Jean Benoit na peça memorável, Execution of the Testament of the Marquis de Sade, cujas implicações são ainda provocativas, 47 anos depois. Toyen encontra em Ivsic um colega excepcional, e com Annie le Brun, George Goldfayn e outros, eles formam Maintenant, para impulsionar uma presença coletiva como eles achassem melhor. Por volta de 1975, somos informados de suas publicações, e encontramos nelas a afirmação de uma necessidade – para sustentar a outra voz, a contracultura corrente que sempre nos atraiu para o Surrealismo.
Radovan Ivsic, é claro, continua com Annie le Brun em seu flat em Paris. Ambos os escritores tiveram suas obras publicadas nesse mesmo ano pela Gallimard, tais como peças e poemas de Ivsic (que ele mesmo traduziu do original croata), e os poemas de Annie le Brun.
É também a partir de Radovan Ivsic que venho a entender algo dos Balcãs, e a visitar Croácia e Bósnia Herzegovina com alguma frequência. Em 2002, eu realizo minha própria peça em Dubrovnik, For Alejandra. Nada disto teria acontecido não fosse meu encontro com Radovan Ivsic e nossa colaboração em sua peça, King Gordogan.
Relembro uma caminhada que fiz com Caroline, minha esposa, em Hvar, uma ilha que Ivsic conhecia bem. Nós nos deslocamos até uma pequena enseada distante quatro ou cinco quilômetros. Era uma brilhante e quente manhã de junho. Muros de pedra rústicos, desgastados, às vezes andrajosamente construídos, marcavam lotes de terras que devem datar de uma era anterior. Você pode ver várias ilhas pequenas ou grandes lá e a costa é cortante e brutal. Senti, naquela paisagem e no clarão do sol, algo semelhante ao que senti com King Gordogan. A peça carrega um sentido de lugar; este mundo rochoso para um rei selvagem que mata a todos por causa de seu dinheiro, e depois ataca as árvores!
Radovan Ivsic desenha seus personagens rapidamente. Ele lhes permite evoluir. Ele é um dramaturgo. Ele entende o teatro em termos de teatro. Algo de sua poesia é parcimonioso, mas igualmente movente.
Um importante historiador e crítico cultural croata, Slobodan Novak, aponta King Gordogan como a realização mais bem acabada de Ivsic; a mais importante peça croata escrita durante e desde a Segunda Grande Guerra.
Imagino que seja verdade.
Quando adaptei a tradução britânica da peça, que Roger Cardinal fez para o Congresso Mundial do PEN em 1993, realizado naquele ano numa Dubrovnik sitiada, encontrei um análogo no inglês americano para o pulsar da ação. Ivsic ficou satisfeito depois que nós resolvemos suas preocupações, e quando a peça inteira expressava um ritmo contínuo.
O Centro Croata do PEN publicou minha adaptação, que também projetei e compus. Ivsic forneceu uma imagem para a capa (uma das máscaras do personagem que Toyen construiu para a première anterior, na França), e Annie le Brun, Zvonimir Mrkonjic e eu, anexamos vários textos ao material impresso, com uma apreciação adicional escrita por John Graham.
A companhia que produziu a peça, Rorschach, e o diretor Andrew Frank, reuniram um forte elenco e alugaram um bom teatro no Soho. Eles também encontraram uma assessora de impressa da Hungria para fazer com que a crítica do New York Times comentasse o espetáculo – um comentário maravilhoso, a propósito, que apareceu no dia em que Ivsic e Le Brun chegaram a NY. Assim, nas últimas cinco apresentações o teatro estava lotado. E depois o dinheiro corria solto. C’est tout. E levamos a produção até o final.
Ironicamente o bastante, quando ofereci a peça a Samuel French (editor-chefe nos Estados Unidos de peças para a indústria do teatro), o editor achou a obra bastante “europeia”, o humor bastante “negro”. Ele duvidava que as plateias americanas fossem corresponder. Ele estava errado. A plateia sorria e ficava horrorizada, geralmente ao mesmo tempo. King Gordogan tem uma grande parte de farsa nela.
Você deveria também saber que Ivsic não escreveu Gordogan como uma peça surrealista. “Como você pode escrever uma peça surrealista?” – ele me perguntaria. “Seja surrealista ou não… você deve descobrir isto na peça, não em alguma ideia sobre ela.”
Agora um tradutor brasileiro deveria transpor King Gordogan para o português, para que vocês no Brasil possam apreciá-lo.

FM | Estiveste juntamente com Philip Lamantia no Grupo Surrealista de Chicago. O afastamento de ambos se deu pela mesma razão?

AG | Nunca soube que Philip tivesse cortado suas relações com os Rosemonts. Assim não posso dizer que ele alguma vez fez isso, e não acho que ele faria. Philip estava sempre informado de quem passava manteiga em seu pão. Ele tinha um sentido preciso sobre tudo que envolvia ser publicado do jeito que ele desejava.
Deixei o grupo Arsenal em 1977 em meio ao “caso Dauben”, e suas repercussões: a expulsão que Rosemont fez de Jack Dauben (coeditor de Arsenal) do grupo, e de Thom Burns, entre outros – revela uma sórdida necessidade de controlar. Sem diálogo, sem futuro.
Nós nos re-formamos em São Francisco: aqueles de nós que já estavam lá e os de Chicago que mudaram para a cidade ou que faziam visitas prolongadas. Um ano mais tarde, para expressar nossa cisão, escrevemos um panfleto chamado Arsenal 4 com o signo da putrefação alquímica como estandarte. E então surgiu o Grupo Surrealista (com a exposição Harvest of Evil), colaborações extensivas, encontros locais e nacionais, e um pouco mais tarde o Grupo Hydra. Philip não estava entre nós.
Também, para ser preciso, quando aqueles de nós em São Francisco nos aliamos ao Grupo de Chicago, nós o fizemos pelo modo daquilo que tomou lugar entre nós em São Francisco. Arsenal era o meio.

FM | Como observas essas recriminações feitas ao Lamantia por ser, ao mesmo tempo, surrealista e católico?

AG | Em relação ao surto final de Philip com o Catolicismo: não seria importante dizer nada sobre isto se Lamantia tivesse feito suas profissões de fé na solidão ou na igreja. Sua poesia religiosa, publicada em vários jornais literários, fala pela poesia. Você não pode ser um Católico e um surrealista. Você não pode se ajoelhar diante de Maria a não ser para cuspir rum em seus olhos e murmurar cantos mayas para incitar ao jogo de cartas amanhã à noite. Você não pode encontrar o maravilhoso enquanto se ajoelha para um deus meramente imaginário.
Esta não era a única aproximação de Lamantia com o Catolicismo. Seu livro Exstasis tem certo esplendor a este respeito.
Lamantia foi um surrealista, um hermetista, um místico e um crente várias vezes em sua vida. Lamento que ele tenha sido atacado por uma severa depressão durante sua última década. Eu o vi em sua derradeira leitura em New York, no St. Mark’s no Bowery; deve ter sido em 1999. Depois, fomos para uma taberna próxima para comer algo: Philip Lamantia, Laurence Weisberg, Ted Joans, outros poucos, e eu.

FM | Mas Lamantia afastou-se do Grupo de Chicago, não? Em entrevista a Thomas Rain Crowe, Lamantia observa o seguinte: “O primeiro poeta que conheci foi Allen Ginsberg, e logo, através dele, outros como Kerouac, que conheci em 1950, quando eu tinha 20 anos. Ele era mais velho – uns cinco anos mais velho, eu acho. Mas os Beats nunca pensaram de si mesmos como ‘hip’ nos primeiros anos, antes que On the Road tornasse Kerouac famoso e toda a cena estivesse mudada. De fato, a coisa toda de Kerouac era sobre a presença ‘beatífica’ no mundo. Isto é diferente de ‘beatitudes’ tal como são encontradas na Bíblia. É mais o esotérico. Sobre a abertura para o divino.” No Brasil, o principal aglutinador do Surrealismo, Sérgio Lima, jamais aceitou a Beat Generation, o que acabou influindo na cisão com dois outros nomes fundamentais, Roberto Piva e Claudio Willer. Como era, nos Estados Unidos, a convivência entre estas duas forças?

AG | O Surrealismo inspirou os Beats, e não apenas através de Lamantia. Há Charles Henri Ford, editor da revista View, quem primeiro publicou Lamantia na idade de 16 anos. E há outros. O ponto é que Ford e Lamantia são de uma geração anterior aos Beats.
Agora, não conheço particularidades da crítica de Lima do movimento Beat, porém é importante entender que os surrealistas nos Estados Unidos desde a minha geração também encontraram no movimento Beat um panorama confuso e místico que não nos inspirou. Nós nos voltamos para outros lugares. O maior texto de Lamantia neste assunto, Poetic Matters, é agudamente claro. As exceções que ele percebe – aqueles que perseguiam a poesia como uma “paixão”, não como uma “carreira” – foram também importantes para nós: Gregory Corso, Bob Kaufman, Daniel Moore.
Assim, ao menos neste sentido, simpatizo com a crítica de Sérgio Lima.

FM | Em um texto teu sobre Ron Sakolsky, encontramos a seguinte nota final: “Quando Sakolsky, de maneira não crítica, cita Rosemont – ‘O Surrealismo continua a florescer do único jeito que pode: fora de e contra todos os paradigmas dominantes’ – ele sugere que Rosemont & Cia. apoiam esse vetor. É claro, Sakolsky continua a clamar por uma ‘atitude não sectária’, mas apenas no que concerne ao Surrealismo e ao anarquismo. Será que Sakolsky nunca perguntará para si mesmo se os surrealistas de Chicago promovem ou não seu próprio tipo sectário de Surrealismo, e por que tantos surrealistas inicialmente ligados a eles, acabam encontrando seu caminho em outro lugar?” Eu queria que me falasses um pouco mais a respeito desse sectarismo que mencionas.

AG | Os Rosemonts eram sectários. Eles exercitavam sua autoridade no grupo como uma medida do sectarismo. E por um tempo isto pareceu apropriado. Uma coisa era criar obras que poderiam ser chamadas de surrealistas, outra era monopolizar nossos recursos só fazendo isso, e outra totalmente diferente era estabelecer um grupo que diferenciava a si mesmo daquelas sombrias associações de poetas e esquerdistas que pareciam disponíveis a esta ou àquela situação. Com a Exposição Mundial Surrealista de 1976 em Chicago, todavia, isto mudou. Pois, em vários pontos, a exposição foi um fracasso. Não ajudou a estabelecer uma Internacional Surrealista; revelou pontos críticos de discórdia e desengajamento entre os grupos participantes. Também pode ter sido a faísca que precipitou o grupo na crise que o “caso Dauben” representava. Mais simplesmente, se você discordasse de Rosemont em sua visão do grupo e suas possibilidades, o caminho a seguir e como chegar lá, e publicasse o argumento, fazia pouco avanço.

FM | Este tema nos leva diretamente para uma outra restrição tua, no que diz respeito às antologias. Não cabe questionar este tipo de livro pela oferta estratificada de determinado assunto. Eu mesmo já disse em uma antologia que organizei que essa aventura não passa de uma viagem pelo universo das sugestões. Contudo, há que estar atento para o tipo de viagem que nos sugere o organizador de uma antologia. Evidente que quando estamos diante de uma antologia das vozes femininas do Surrealismo, tendo por agravante que tal antologia tenha sido realizada por uma surrealista, isto nos parece um tipo de segregação, não há dúvida, o que não poderia ser aceito dentro do espírito originário do Surrealismo. Já me dirás algo a respeito. Entretanto, pensando em um caso como o da expulsão de Jack Dauben do Grupo Surrealista de Chicago, que, a rigor, está aparentado com os julgamentos levados a termo pelo grupo francês, com a corte de Breton e sua inclinação judicial, não estaria lá atrás, na raiz do Surrealismo, a justificativa – porém não a sua aceitação – deste tipo de comportamento de Penelope Rosemont?

AG | A imensa questão que você levanta aqui é importante, mas não acho que minha resposta irá nos levar muito longe ao evitar o tipo de comportamento que você descreve. Como um grupo poético-revolucionário resiste neste mundo sem sofrer as mesmas tensões que corrompem nossa humanidade por causa do mundo?
Deixarei isto como uma questão para aqueles dispostos a arriscar fazendo melhor, ou pior, que seus ancestrais quando numa busca comparável.

FM | Eu tenho observado que os surrealistas no Canadá inglês são completamente alheios à outra parte do país, de expressão francesa. Alguns se referem a John Ashbery – é o caso de Kevin Connolly –, Stuart Ross fala em “The New York poets” etc., ou seja, sempre buscam uma aproximação com os Estados Unidos. Contudo, é bastante curioso que uma antologia – Surreal Estate (13 Canadian poets under the influence) (2004) – não mencione nem o Surrealismo que se destaca em Quebec ou mesmo o Grupo de Chicago. Tudo isto que destaco é para indagar se tens conhecimento do International Bureau of Recordist Investigation.

AG | Acaso e métodos automáticos podem revelar fenômenos surpreendentes. Estou mais compelido por estados de risco que têm um aspecto consciente do qual o automatismo não tem necessidade. Não é a arquitetura de um sonho, mas uma arquitetura que sonha você sonhando-a porque de fato você não está sonhando, mas sonhando sonhar um sonho diferentemente do sonhador que sonha. Há muitas maneiras de corporificar uma sensibilidade onírica. E não há garantias em lugar nenhum.
Então, sim, eu conheço um pouco sobre o Bureau of Recordist Investigation, mas estou também pouco compelido a conhecer um pouco mais.

FM | Por qual razão? Relações atuais com o Surrealismo, em vários países, apresentam alguns aspectos pouco substanciosos. Ortodoxias, venerações, má compreensão acerca da escritura automática – confundindo-a com um maneirismo estilístico –, as conexões com este âmbito tão precário do que se convencionou chamar de “arte contemporânea” etc. Como se verificam estes aspectos hoje nos Estados Unidos?

AG | Presto alguma atenção, em sua maior parte, ao que se passa nos Estados Unidos em termos de Surrealismo, mas não muito. Os vários grupos que têm surgido simplesmente não mexem comigo. Agora e outrora espero surpreender a mim mesmo ao ler as páginas da Web deles ou coisa semelhante, mas é só isso. De todo jeito, odeio olhar para arte na Web, e não gosto de ler na Web. Mas você está também correto aqui: o Surrealismo deve evoluir ou tornar-se algo menor.
Tenho mencionado a confusão nos Estados Unidos sobre o Surrealismo. Os grupos surrealistas nos Estados Unidos fazem muito para esclarecer para mim essa confusão? Não. Na verdade, esta não é uma decisão sobre um título (e sobre quem pode ou não usá-lo) e não tem nada a ver com um legado de grandes obras ou genuflexões à ortodoxia. Tem algo a ver com provocação e um tipo de revolta poética que compele. E isto faz retornar àqueles de nós que nos consideramos criadores, a nossas criações, e a como vivemos no mundo. Por que somos nós – você e eu – atraídos pelo Surrealismo? Esta não é de jeito algum uma questão tão estúpida. Porque, se não reconsideramos esta questão de novo e de novo, se falhamos ao manter uma percepção crítica do que aceitamos como surrealista e do que conhecemos como Surrealismo, então por que nos preocuparmos com o jogo? É uma questão de vida e morte, não é?

FM | Não tenho dúvidas. Contudo, vivemos em um mundo no qual este tipo de sensibilidade foi anulado quase que em sua totalidade. Fala-me um pouco da exposição Harvest of Evil e do grupo Hydra.

AG | Harvest of Evil (Colheita do Mal) se realizou em 1983 na Galeria Timothy Johnson, TiRoJo, em Columbus, Ohio: nossa primeira exposição como um grupo pós-Arsenal. Ela nos leva a uma conferência nacional em São Francisco, onde estabelecemos um mecanismo para a atividade coletiva em quatro cidades: New York, Los Angeles, São Francisco e Columbus. Incluímos no grupo todos aqueles que se separaram dos Rosemonts, e outros amigos com quem tínhamos anteriormente colaborado. O título da exposição se refere ao Halloween, à colheita de outono, e nosso vínculo com as culturas pré-judaico-cristãs.
Harvest of Evil é modestamente internacional, com contribuições de Eugenio Granell e Mario Cesariny e amigos. Marie Wilson, Nanos Valaoritis, Clarence John Laughlin e Schlechter Duvall também contribuem. Alice Farley faz a performance de The Crime of Order, uma das partes de sua obra para dança-teatro, Atomic Thief in the Circus of Crime, que estava em cartaz em New York. Incluímos artefatos e obras dos Nativos da América e de artistas locais naïves e outsiders.
Outros participantes além dos que já foram mencionados são Jack Dauben, Thom Burns, Terri Engles, Mi Sook Kim, Wayne Kral, Chas Krider, Steve Lock, Richard Waara, Brooke e Janine Rothwell, Tom Burghardt, Laurence Weisberg, Jim Pattison, David Coulter, Byron Baker, sem dúvida alguns outros que esqueci, e eu.
O Grupo Hydra se reúne em 1985, resultado de nossa segunda exposição em São Francisco, os irascíveis Magnetos do Chifre Polar. E, em 1986, lançamos o grupo em New York na exposição Secret Face of Scandal. Ocorre ao mesmo tempo em que trabalhamos com Yo e Sako Yoshitome, José Ramón Sánchez, e John Graham (que desempenha um papel de pivô).
O Grupo Hydra é um esforço, muito como Maintenant, de evitar o autoritarismo, enquanto abastece os esforços coletivos com imediato significado pessoal. A exposição Secret Face of Scandal começa para nós como uma investigação no autoescândalo dentro do contexto social do escândalo, tudo tão facilmente engarrafado como perfume.
Depois Hydra dissipa-se quando entramos nos anos 1990.

FM | Peço também que menciones tuas afinidades com Lawrence Morris, tuas buscas em relação ao teatro e a consciência do lugar para onde caminha tua poesia. Teatro e música, este seria o ponto em comum? Esqueçamos o Surrealismo. De qual maneira tens encontrado a “presença física do poético” no teatro?

AG | Inicialmente, há a transformação, a transição súbita, da página ao palco; a localização do conflito que o poema habita, mas num corpo com esta voz neste espaço quadrimensional. Por um longo período, também, eu não me considerava a mim mesmo como um dramaturgo. Eu era um poeta escrevendo para o teatro. Agora essa diferença é sem sentido. Entendo como o anterior influencia o último e vice-versa, e para a intensificação de ambos.
A chave aqui não é confundir poesia com teatro, ou teatro com poesia. Uma revela o outro nos termos específicos para seu uso. Um grande poema pode gerar um roteiro ou uma cena ruins; uma grande cena pode também ser feita em silêncio.
Deixe-me colocar isto deste jeito: escrevi minha primeira peça em New York para determinar apenas quão bem eu poderia comunicar ações, intenções e emoções diretamente sem abrir mão da alegria que encontrei ao escrever poemas alusivos, metamórficos, convulsivos. Não me preocupava tanto com diálogo comum quanto o faço agora. Mas também sabia que a peça deve comunicar diretamente, também com diálogo comum. Essa era a aposta. E ainda, em parte, é a aposta.
Eu estava também privilegiado para colaborar com a companhia de Alice Farley como dramaturgo e consultor por muitos anos. Uma experiência excepcional se, por nenhuma outra razão que na dança-teatro, a dança-teatro dela, tudo é feito em silêncio ou para a música. Não há palavras.
E para um poeta encontrar em silêncio um meio de cativar o poético dentro do corpo do dançarino, e como esse corpo ressoa dentro do arco de uma performance inteira, é algo grande.
Lawrence D. “Butch” Morris, eu o conheci primeiro em 1975, em Berkeley, como um brilhante trompetista e contraparte para o saxofonista mais jovem, David Murray. Começamos a colaborar em New York em 1981, quando Morris me pediu para fazer uma performance em seu espetáculo Music for Poets em um pequeno teatro no centro da cidade. Morris regia um septeto, e Caroline e eu líamos poemas de meu livro, Ascent of Sublime Love. Lembro-me daquela noite perfeitamente e os ensaios que a precederam. Porque aquilo que ouvi daquele septeto não era jazz ou música moderna orquestral, porém alguma mediação entre os dois, sem ecos de Berg e Webern.
Morris estava pronto para algo; uma forma de música fazendo retornar o compositor até o pódio do regente. E não temos cessado de explorar as paisagens que Conduction, como Mr. Morris a chama, nos tem servido. A partir dessa primeira performance vem Modette, talvez melhor descrita como uma ópera, pelo menos exteriormente, uma boa parte de escritura crítica e poética sobre Conduction e suas implicações, e outras performances colaborativas. Mesmo hoje, esta tarde, estou falando com Morris sobre a fase vindoura de sua nova agenda, New Music Observatory, e escrevendo a descrição do programa para ela.
Conduction é a única nova ideia que tenho encontrado no fazer musical ao longo das duas últimas décadas que atravessa o divisor entre música composta e improvisada, e numa maneira contínua e de princípios. Sua excitação é palpável; suas possibilidades sempre reais, e sempre presentes.

FM | Em uma entrevista, Philip Lamantia menciona Will Alexander como um dos surrealistas de sua admiração. Até que ponto o consideras um surrealista?

AG | Will Alexander é um amigo e colaborador. Nós lemos juntos no Beyond Baroque em Los Angeles, o principal local para poesia e literatura na cidade, em dezembro de 2004, na abertura do lançamento do livro de Laurence Weisberg. Meses depois Will me convidou de novo ao Beyond Baroque para participar numa discussão sobre Surrealismo que duraria vários dias, na qual eu também li minha obra: um caso curiosamente difuso. Nenhum outro poeta que participou tinha até então estado envolvido em um grupo surrealista embora eles expressassem afinidades com o movimento. Quando eu estiver de volta a Los Angeles em janeiro de 2007, Will e eu provavelmente leremos juntos. E, de fato, ele acaba de me enviar seu novo romance Sunrise in Armageddon, para que eu revise. Recebi-o na última semana… Em breves palavras: Will é uma presença excepcional na poesia americana. Sua principal inspiração emana diretamente de várias fontes: Lamantia, Césaire, Bob Kaufman, Wilson Harris. Seu primeiro principal livro, Asia Haiti, foi indicado para o National Book Award. Aos meus olhos, esta é a sua obra mais importante, e uma obra de importância dentro da cena literária americana mesmo se Will sustenta sua posição nas margens como um “outsider”. A obra de Will Alexander é um abandono bastante radical das normas comuns para que ele seja aceito completamente. Sua voz é dele e só dele. Will escreve num padrão prodigioso, e sua arte é por vezes maravilhosa. Ao mesmo tempo minha admiração é moderada pelo fato de que sua obra, em geral, não mexe comigo tanto quanto deveria, ou tanto quando eu espero que iria me comover. Em comparação com outros poetas em que posso pensar, Will Alexander carrega certa opacidade em relação ao amor. Para Lamantia, Césaire, Moro, Molina, Pizarnik, Gascoyne etc., a paixão e a compaixão em que o amor se enraíza são claramente termos permanentes. Esta pode ser uma crítica menor de minha parte… Escrevo “pode ser” porque, quando tudo está dito e feito, quando a raiva exaure e a linguagem busca um corpo no qual viver, o desejo de amar e ser amado permanece e inspira. Seguramente o amor louco e o amor sublime, e mais precisamente, o amor humano, uma sensibilidade, uma relação que se sustenta para além da definição, é o que me move mais. E não acredito que Will Alexander discordaria aqui de mim sobre o que o move mais. Mas, sim, Will Alexander é próximo do Surrealismo. No entanto, eu hesitaria em chamá-lo de surrealista.

FM | Esquecemos algo?

AG | Que tal alguma pimenta vermelha para espirrar e uma garrafa cara de suco de uva?

FM | Sim, com uma rede repleta de olhos gritando: mais luz, mais luz!

[2006]

NOTA
Allan Graubard (Estados Unidos, 1953). Ligado essencialmente à poesia e ao teatro, possui expressiva afinidade com o Surrealismo, onde atua também como músico e compositor. Sua obra poética inclui livros como Glimpses from a Fleeing Window (1992) e Fragments from Nomad Days (1999). Para o teatro, se destacam produções como The One in the Other (1998), For Alejandra (2002), e The Wind’s Skeleton (2005), esta última em colaboração com a coreógrafa Alice Farley. Entrevista publicada originalmente em Agulha Revista de Cultura # 50 - Março de 2006. Tradução de Eclair Antonio Almeida Filho.




[1] Posteriormente à realização desta entrevista Eclair Antonio Almeida Filho publica sua tradução de Poesia reunida, de Radovan Ivsic. São Paulo: Editora Lumme, 2013. Também traduziu Le Roi Gordogane, embora ainda permaneça inédita.

Nenhum comentário:

Postar um comentário