FM | Camille Goemans tinha
consigo uma máxima: “Às vezes é melhor preferir os fabricantes de versos aos
poetas. A poesia está em outro lugar.” Talvez fosse melhor preferir os traficantes
de versos, neste caso. Há certo fervor de aforismos no Surrealismo, não há dúvida,
são costumeiramente sentenciosos. Mas aqui inicio nosso diálogo indagando como
a poesia se revela em Allan Graubard.
AG | A poesia veio
primeiramente, por volta dos 14 anos. Ávido leitor, fervor utópico, desejo
adolescente, um protesto e uma revolta de suporte abrem o caminho. Ligação com
o jazz (como fã e pianista), experimentos com alucinógenos, e tempo, tempo
histórico, pulsam em sintonia com minhas paixões. Vejo um através do outro, um
no outro. E o mundo ao meu redor ressoa numa linguagem livre de restrições.
Mas onde o lirismo,
irradiado pelo amor, uma vez bastou como alavanca de transformação – e um meio
pelo qual julgar meus esforços –, volto-me agora para o mundo para arrancar da
realidade a dança viva de luz e sombra.
Talvez seja por esta razão
que eu procuro a presença física do poético agora no teatro – tanto quanto
procuro na página ou na rua.
FM | Quais as contribuições,
positivas e negativas, em termos de difusão do Surrealismo nos Estados Unidos,
da presença de Salvador Dalí & André Breton, neste país? Antípodas, até que
ponto?
AG | O Surrealismo chega aos
EUA por várias rotas, e há boa razão para considerar todas elas. Dalí torna-se
um clown; faz seu próprio marketing com grande sucesso. Breton sustenta
sua posição como juiz de um grupo em exílio. Ele e seus amigos tornam-se a outra
voz; a voz da poesia que evita a moda pela crítica e o kitsch pela
inspiração, especialmente da América Nativa e Negra. Sim, Dalí e Breton são
antípodas. Politicamente, é claro, a diferença é enorme: Dalí torna-se algo
como um monarquista, um admirador de Franco; Breton escreve sua Ode a
Fourier e Arcano 17. Eles projetam, sobre o gráfico, máximas que, em
outras circunstâncias, poderiam racionalizar o combate.
A confusão frequenta o
Surrealismo nos EUA. Quando você procurar, você encontrará aquilo que procura.
FM | Quais as tuas
identificações com o Surrealismo e qual a sua atualidade? Não estou interessado
em um manual de princípios atuantes do Surrealismo, mas certamente ainda
podemos contar com este movimento essencialmente empenhado, no dizer de Jacques
Sénelier, em “desmoralizar”. Podemos?
AG | Desmoralização é uma
maneira de ser/estar no mundo que nossas ações prefiguram e induzem. Poetas têm
sempre insistido em estar na frente da percepção geral. Não posso considerar
que o peso da modernidade tenha mudado alguma coisa aqui. É menos uma questão
que um reconhecimento. Nunca acreditei que o Surrealismo tenha um caráter
imperial. Leva-se um século de revoluções fracassadas, marés de sangue, para
aliviar qualquer chagrin ligado a uma preferência por revolta.
FM | Ivsic é um poeta de
minha predileção, e penso que uma obra como Le Roi Gordogane (1956) deva
significar muito para a tua própria poesia e tua relação com o teatro.
Considerando que este é um poeta inteiramente desconhecido no Brasil, peço que
me fales um pouco acerca de tuas afinidades com ele.[1]
AG | Radovan Ivsic é uma
presença significante na história do Surrealismo pós-Segunda Guerra. Em 1954,
ele é forçado a deixar sua terra natal, a Croácia, por causa de uma recusa em
se adaptar aos policiamentos culturais do Estado. Realismo socialista, devemos
lembrar, era um mecanismo oficial para suprimir opiniões heterodoxas ou
oposições. A independência era impossível. E Ivsic tem falado e escrito pungentemente
sobre este período em sua vida.
Chega a Paris e conhece
Péret, que encontra em seu novo amigo uma validação de sua crítica do
socialismo dentro da órbita soviética. Péret apresenta Ivsic a Breton, e Ivsic
colabora em todas as atividades do grupo surrealista até a dissolução final
vários anos após a morte de Breton. Em 1959, ele trabalha com Jean Benoit na
peça memorável, Execution of the Testament of the Marquis de Sade, cujas
implicações são ainda provocativas, 47 anos depois. Toyen encontra em Ivsic um
colega excepcional, e com Annie le Brun, George Goldfayn e outros, eles formam Maintenant,
para impulsionar uma presença coletiva como eles achassem melhor. Por volta de
1975, somos informados de suas publicações, e encontramos nelas a afirmação de
uma necessidade – para sustentar a outra voz, a contracultura corrente que
sempre nos atraiu para o Surrealismo.
Radovan Ivsic, é claro,
continua com Annie le Brun em seu flat em Paris. Ambos os escritores
tiveram suas obras publicadas nesse mesmo ano pela Gallimard, tais como peças e
poemas de Ivsic (que ele mesmo traduziu do original croata), e os poemas de
Annie le Brun.
É também a partir de
Radovan Ivsic que venho a entender algo dos Balcãs, e a visitar Croácia e
Bósnia Herzegovina com alguma frequência. Em 2002, eu realizo minha própria peça
em Dubrovnik, For Alejandra. Nada disto teria acontecido não fosse meu
encontro com Radovan Ivsic e nossa colaboração em sua peça, King Gordogan.
Relembro uma caminhada que
fiz com Caroline, minha esposa, em Hvar, uma ilha que Ivsic conhecia bem. Nós nos
deslocamos até uma pequena enseada distante quatro ou cinco quilômetros. Era
uma brilhante e quente manhã de junho. Muros de pedra rústicos, desgastados, às
vezes andrajosamente construídos, marcavam lotes de terras que devem datar de
uma era anterior. Você pode ver várias ilhas pequenas ou grandes lá e a costa é
cortante e brutal. Senti, naquela paisagem e no clarão do sol, algo semelhante
ao que senti com King Gordogan. A peça carrega um sentido de lugar; este
mundo rochoso para um rei selvagem que mata a todos por causa de seu dinheiro,
e depois ataca as árvores!
Radovan Ivsic desenha seus
personagens rapidamente. Ele lhes permite evoluir. Ele é um dramaturgo. Ele
entende o teatro em termos de teatro. Algo de sua poesia é parcimonioso, mas
igualmente movente.
Um importante historiador e
crítico cultural croata, Slobodan Novak, aponta King Gordogan como a
realização mais bem acabada de Ivsic; a mais importante peça croata escrita
durante e desde a Segunda Grande Guerra.
Imagino que seja verdade.
Quando adaptei a tradução
britânica da peça, que Roger Cardinal fez para o Congresso Mundial do PEN em
1993, realizado naquele ano numa Dubrovnik sitiada, encontrei um análogo no
inglês americano para o pulsar da ação. Ivsic ficou satisfeito depois que nós
resolvemos suas preocupações, e quando a peça inteira expressava um ritmo
contínuo.
O Centro Croata do PEN
publicou minha adaptação, que também projetei e compus. Ivsic forneceu uma
imagem para a capa (uma das máscaras do personagem que Toyen construiu para a
première anterior, na França), e Annie le Brun, Zvonimir Mrkonjic e eu,
anexamos vários textos ao material impresso, com uma apreciação adicional escrita
por John Graham.
A companhia que produziu a
peça, Rorschach, e o diretor Andrew Frank, reuniram um forte elenco e alugaram
um bom teatro no Soho. Eles também encontraram uma assessora de impressa da Hungria
para fazer com que a crítica do New York Times comentasse o espetáculo –
um comentário maravilhoso, a propósito, que apareceu no dia em que Ivsic e Le
Brun chegaram a NY. Assim, nas últimas cinco apresentações o teatro estava
lotado. E depois o dinheiro corria solto. C’est tout. E levamos a
produção até o final.
Ironicamente o bastante,
quando ofereci a peça a Samuel French (editor-chefe nos Estados Unidos de peças
para a indústria do teatro), o editor achou a obra bastante “europeia”, o humor
bastante “negro”. Ele duvidava que as plateias americanas fossem corresponder.
Ele estava errado. A plateia sorria e ficava horrorizada, geralmente ao mesmo
tempo. King Gordogan tem uma grande parte de farsa nela.
Você deveria também saber
que Ivsic não escreveu Gordogan como uma peça surrealista. “Como
você pode escrever uma peça surrealista?” – ele me perguntaria. “Seja
surrealista ou não… você deve descobrir isto na peça, não em alguma ideia sobre
ela.”
Agora um tradutor
brasileiro deveria transpor King Gordogan para o português, para que
vocês no Brasil possam apreciá-lo.
FM | Estiveste juntamente com
Philip Lamantia no Grupo Surrealista de Chicago. O afastamento de ambos se deu
pela mesma razão?
AG | Nunca soube que Philip
tivesse cortado suas relações com os Rosemonts. Assim não posso dizer que ele
alguma vez fez isso, e não acho que ele faria. Philip estava sempre informado
de quem passava manteiga em seu pão. Ele tinha um sentido preciso sobre
tudo que envolvia ser publicado do jeito que ele desejava.
Deixei o grupo Arsenal
em 1977 em meio ao “caso Dauben”, e suas repercussões: a expulsão que Rosemont
fez de Jack Dauben (coeditor de Arsenal) do grupo, e de Thom Burns,
entre outros – revela uma sórdida necessidade de controlar. Sem diálogo, sem
futuro.
Nós nos re-formamos em São
Francisco: aqueles de nós que já estavam lá e os de Chicago que mudaram para a
cidade ou que faziam visitas prolongadas. Um ano mais tarde, para expressar
nossa cisão, escrevemos um panfleto chamado Arsenal 4 com o signo da
putrefação alquímica como estandarte. E então surgiu o Grupo Surrealista (com a
exposição Harvest of Evil), colaborações extensivas, encontros locais e
nacionais, e um pouco mais tarde o Grupo Hydra. Philip não estava entre nós.
Também, para ser preciso,
quando aqueles de nós em São Francisco nos aliamos ao Grupo de Chicago, nós o
fizemos pelo modo daquilo que tomou lugar entre nós em São Francisco. Arsenal
era o meio.
FM | Como observas essas
recriminações feitas ao Lamantia por ser, ao mesmo tempo, surrealista e
católico?
AG | Em relação ao surto
final de Philip com o Catolicismo: não seria importante dizer nada sobre isto
se Lamantia tivesse feito suas profissões de fé na solidão ou na igreja. Sua
poesia religiosa, publicada em vários jornais literários, fala pela poesia.
Você não pode ser um Católico e um surrealista. Você não pode se ajoelhar
diante de Maria a não ser para cuspir rum em seus olhos e murmurar cantos mayas
para incitar ao jogo de cartas amanhã à noite. Você não pode encontrar o
maravilhoso enquanto se ajoelha para um deus meramente imaginário.
Esta não era a única
aproximação de Lamantia com o Catolicismo. Seu livro Exstasis tem certo
esplendor a este respeito.
Lamantia foi um
surrealista, um hermetista, um místico e um crente várias vezes em sua vida.
Lamento que ele tenha sido atacado por uma severa depressão durante sua última
década. Eu o vi em sua derradeira leitura em New York, no St. Mark’s no Bowery;
deve ter sido em 1999. Depois, fomos para uma taberna próxima para comer algo:
Philip Lamantia, Laurence Weisberg, Ted Joans, outros poucos, e eu.
FM | Mas Lamantia afastou-se
do Grupo de Chicago, não? Em entrevista a Thomas Rain Crowe, Lamantia observa o
seguinte: “O primeiro poeta que conheci foi Allen Ginsberg, e logo, através
dele, outros como Kerouac, que conheci em 1950, quando eu tinha 20 anos. Ele
era mais velho – uns cinco anos mais velho, eu acho. Mas os Beats nunca
pensaram de si mesmos como ‘hip’ nos primeiros anos, antes que On the Road
tornasse Kerouac famoso e toda a cena estivesse mudada. De fato, a coisa toda
de Kerouac era sobre a presença ‘beatífica’ no mundo. Isto é diferente
de ‘beatitudes’ tal como são encontradas na Bíblia. É mais o esotérico.
Sobre a abertura para o divino.” No Brasil, o principal aglutinador do
Surrealismo, Sérgio Lima, jamais aceitou a Beat Generation, o que acabou
influindo na cisão com dois outros nomes fundamentais, Roberto Piva e Claudio
Willer. Como era, nos Estados Unidos, a convivência entre estas duas forças?
AG | O Surrealismo inspirou
os Beats, e não apenas através de Lamantia. Há Charles Henri Ford, editor da
revista View, quem primeiro publicou Lamantia na idade de 16 anos. E há
outros. O ponto é que Ford e Lamantia são de uma geração anterior aos Beats.
Agora, não conheço
particularidades da crítica de Lima do movimento Beat, porém é importante
entender que os surrealistas nos Estados Unidos desde a minha geração também
encontraram no movimento Beat um panorama confuso e místico que não nos inspirou.
Nós nos voltamos para outros lugares. O maior texto de Lamantia neste assunto, Poetic
Matters, é agudamente claro. As exceções que ele percebe – aqueles que
perseguiam a poesia como uma “paixão”, não como uma “carreira” – foram também
importantes para nós: Gregory Corso, Bob Kaufman, Daniel Moore.
Assim, ao menos neste
sentido, simpatizo com a crítica de Sérgio Lima.
FM | Em um texto teu sobre
Ron Sakolsky, encontramos a seguinte nota final: “Quando Sakolsky, de maneira
não crítica, cita Rosemont – ‘O Surrealismo continua a florescer do único jeito
que pode: fora de e contra todos os paradigmas dominantes’ – ele
sugere que Rosemont & Cia. apoiam esse vetor. É claro, Sakolsky continua a
clamar por uma ‘atitude não sectária’, mas apenas no que concerne ao
Surrealismo e ao anarquismo. Será que Sakolsky nunca perguntará para si mesmo
se os surrealistas de Chicago promovem ou não seu próprio tipo sectário de
Surrealismo, e por que tantos surrealistas inicialmente ligados a eles, acabam
encontrando seu caminho em outro lugar?” Eu queria que me falasses um pouco
mais a respeito desse sectarismo que mencionas.
AG | Os Rosemonts eram
sectários. Eles exercitavam sua autoridade no grupo como uma medida do
sectarismo. E por um tempo isto pareceu apropriado. Uma coisa era criar obras
que poderiam ser chamadas de surrealistas, outra era monopolizar nossos
recursos só fazendo isso, e outra totalmente diferente era estabelecer um grupo
que diferenciava a si mesmo daquelas sombrias associações de poetas e
esquerdistas que pareciam disponíveis a esta ou àquela situação. Com a
Exposição Mundial Surrealista de 1976 em Chicago, todavia, isto mudou. Pois, em
vários pontos, a exposição foi um fracasso. Não ajudou a estabelecer uma
Internacional Surrealista; revelou pontos críticos de discórdia e
desengajamento entre os grupos participantes. Também pode ter sido a faísca que
precipitou o grupo na crise que o “caso Dauben” representava. Mais
simplesmente, se você discordasse de Rosemont em sua visão do grupo e suas
possibilidades, o caminho a seguir e como chegar lá, e publicasse o argumento,
fazia pouco avanço.
FM | Este tema nos leva
diretamente para uma outra restrição tua, no que diz respeito às antologias. Não
cabe questionar este tipo de livro pela oferta estratificada de determinado
assunto. Eu mesmo já disse em uma antologia que organizei que essa aventura não
passa de uma viagem pelo universo das sugestões. Contudo, há que estar atento
para o tipo de viagem que nos sugere o organizador de uma antologia. Evidente
que quando estamos diante de uma antologia das vozes femininas do Surrealismo,
tendo por agravante que tal antologia tenha sido realizada por uma surrealista,
isto nos parece um tipo de segregação, não há dúvida, o que não poderia ser
aceito dentro do espírito originário do Surrealismo. Já me dirás algo a respeito.
Entretanto, pensando em um caso como o da expulsão de Jack Dauben do Grupo
Surrealista de Chicago, que, a rigor, está aparentado com os julgamentos
levados a termo pelo grupo francês, com a corte de Breton e sua inclinação
judicial, não estaria lá atrás, na raiz do Surrealismo, a justificativa – porém
não a sua aceitação – deste tipo de comportamento de Penelope Rosemont?
AG | A imensa questão que
você levanta aqui é importante, mas não acho que minha resposta irá nos levar
muito longe ao evitar o tipo de comportamento que você descreve. Como um grupo
poético-revolucionário resiste neste mundo sem sofrer as mesmas tensões que
corrompem nossa humanidade por causa do mundo?
Deixarei isto como uma
questão para aqueles dispostos a arriscar fazendo melhor, ou pior, que seus
ancestrais quando numa busca comparável.
FM | Eu tenho observado que
os surrealistas no Canadá inglês são completamente alheios à outra parte do
país, de expressão francesa. Alguns se referem a John Ashbery – é o caso de
Kevin Connolly –, Stuart Ross fala em “The New York poets” etc., ou seja,
sempre buscam uma aproximação com os Estados Unidos. Contudo, é bastante
curioso que uma antologia – Surreal Estate (13 Canadian poets under the
influence) (2004) – não mencione nem o Surrealismo que se destaca em Quebec
ou mesmo o Grupo de Chicago. Tudo isto que destaco é para indagar se tens
conhecimento do International Bureau of Recordist Investigation.
AG | Acaso e métodos
automáticos podem revelar fenômenos surpreendentes. Estou mais compelido por
estados de risco que têm um aspecto consciente do qual o automatismo não tem
necessidade. Não é a arquitetura de um sonho, mas uma arquitetura que sonha
você sonhando-a porque de fato você não está sonhando, mas sonhando sonhar um
sonho diferentemente do sonhador que sonha. Há muitas maneiras de corporificar
uma sensibilidade onírica. E não há garantias em lugar nenhum.
Então, sim, eu conheço um
pouco sobre o Bureau of Recordist Investigation, mas estou também pouco
compelido a conhecer um pouco mais.
FM | Por qual razão? Relações
atuais com o Surrealismo, em vários países, apresentam alguns aspectos pouco
substanciosos. Ortodoxias, venerações, má compreensão acerca da escritura
automática – confundindo-a com um maneirismo estilístico –, as conexões com
este âmbito tão precário do que se convencionou chamar de “arte contemporânea”
etc. Como se verificam estes aspectos hoje nos Estados Unidos?
AG | Presto alguma atenção,
em sua maior parte, ao que se passa nos Estados Unidos em termos de
Surrealismo, mas não muito. Os vários grupos que têm surgido simplesmente não
mexem comigo. Agora e outrora espero surpreender a mim mesmo ao ler as páginas
da Web deles ou coisa semelhante, mas é só isso. De todo jeito, odeio olhar
para arte na Web, e não gosto de ler na Web. Mas você está também correto aqui:
o Surrealismo deve evoluir ou tornar-se algo menor.
Tenho mencionado a confusão
nos Estados Unidos sobre o Surrealismo. Os grupos surrealistas nos Estados
Unidos fazem muito para esclarecer para mim essa confusão? Não. Na verdade,
esta não é uma decisão sobre um título (e sobre quem pode ou não usá-lo) e não
tem nada a ver com um legado de grandes obras ou genuflexões à ortodoxia. Tem
algo a ver com provocação e um tipo de revolta poética que compele. E isto faz
retornar àqueles de nós que nos consideramos criadores, a nossas criações, e a
como vivemos no mundo. Por que somos nós – você e eu – atraídos pelo
Surrealismo? Esta não é de jeito algum uma questão tão estúpida. Porque, se não
reconsideramos esta questão de novo e de novo, se falhamos ao manter uma
percepção crítica do que aceitamos como surrealista e do que conhecemos como
Surrealismo, então por que nos preocuparmos com o jogo? É uma questão de vida e
morte, não é?
FM | Não tenho dúvidas.
Contudo, vivemos em um mundo no qual este tipo de sensibilidade foi anulado
quase que em sua totalidade. Fala-me um pouco da exposição Harvest of Evil
e do grupo Hydra.
AG | Harvest of Evil (Colheita
do Mal) se realizou em 1983 na Galeria Timothy Johnson, TiRoJo, em
Columbus, Ohio: nossa primeira exposição como um grupo pós-Arsenal. Ela
nos leva a uma conferência nacional em São Francisco, onde estabelecemos um mecanismo
para a atividade coletiva em quatro cidades: New York, Los Angeles, São
Francisco e Columbus. Incluímos no grupo todos aqueles que se separaram dos
Rosemonts, e outros amigos com quem tínhamos anteriormente colaborado. O título
da exposição se refere ao Halloween, à colheita de outono, e nosso vínculo com
as culturas pré-judaico-cristãs.
Harvest of Evil é modestamente
internacional, com contribuições de Eugenio Granell e Mario Cesariny e amigos.
Marie Wilson, Nanos Valaoritis, Clarence John Laughlin e Schlechter Duvall também
contribuem. Alice Farley faz a performance de The Crime of Order, uma
das partes de sua obra para dança-teatro, Atomic Thief in the Circus of Crime, que estava em cartaz em New York.
Incluímos artefatos e obras dos Nativos da América e de artistas locais naïves
e outsiders.
Outros participantes além
dos que já foram mencionados são Jack Dauben, Thom Burns, Terri Engles, Mi Sook
Kim, Wayne Kral, Chas Krider, Steve Lock, Richard Waara, Brooke e Janine Rothwell,
Tom Burghardt, Laurence Weisberg, Jim Pattison, David Coulter, Byron Baker, sem
dúvida alguns outros que esqueci, e eu.
O Grupo Hydra se reúne em
1985, resultado de nossa segunda exposição em São Francisco, os irascíveis Magnetos
do Chifre Polar. E, em 1986, lançamos o grupo em New York na exposição Secret
Face of Scandal. Ocorre ao mesmo tempo em que trabalhamos com Yo e Sako
Yoshitome, José Ramón Sánchez, e John Graham (que desempenha um papel de pivô).
O Grupo Hydra é um esforço,
muito como Maintenant, de evitar o autoritarismo, enquanto abastece os
esforços coletivos com imediato significado pessoal. A exposição Secret Face
of Scandal começa para nós como uma investigação no autoescândalo dentro do
contexto social do escândalo, tudo tão facilmente engarrafado como perfume.
Depois Hydra dissipa-se
quando entramos nos anos 1990.
FM | Peço também que
menciones tuas afinidades com Lawrence Morris, tuas buscas em relação ao teatro
e a consciência do lugar para onde caminha tua poesia. Teatro e música, este
seria o ponto em comum? Esqueçamos o Surrealismo. De qual maneira tens encontrado
a “presença física do poético” no teatro?
AG | Inicialmente, há a
transformação, a transição súbita, da página ao palco; a localização do conflito
que o poema habita, mas num corpo com esta voz neste
espaço quadrimensional. Por um longo período, também, eu não me considerava a
mim mesmo como um dramaturgo. Eu era um poeta escrevendo para o teatro. Agora
essa diferença é sem sentido. Entendo como o anterior influencia o último e vice-versa,
e para a intensificação de ambos.
A chave aqui não é
confundir poesia com teatro, ou teatro com poesia. Uma revela o outro nos
termos específicos para seu uso. Um grande poema pode gerar um roteiro ou uma
cena ruins; uma grande cena pode também ser feita em silêncio.
Deixe-me colocar isto deste
jeito: escrevi minha primeira peça em New York para determinar apenas quão bem
eu poderia comunicar ações, intenções e emoções diretamente sem abrir mão da
alegria que encontrei ao escrever poemas alusivos, metamórficos, convulsivos.
Não me preocupava tanto com diálogo comum quanto o faço agora. Mas também sabia
que a peça deve comunicar diretamente, também com diálogo comum. Essa era a
aposta. E ainda, em parte, é a aposta.
Eu estava também
privilegiado para colaborar com a companhia de Alice Farley como dramaturgo e
consultor por muitos anos. Uma experiência excepcional se, por nenhuma outra
razão que na dança-teatro, a dança-teatro dela, tudo é feito em silêncio ou
para a música. Não há palavras.
E para um poeta encontrar
em silêncio um meio de cativar o poético dentro do corpo do dançarino, e
como esse corpo ressoa dentro do arco de uma performance inteira, é algo grande.
Lawrence D. “Butch” Morris,
eu o conheci primeiro em 1975, em Berkeley, como um brilhante trompetista e
contraparte para o saxofonista mais jovem, David Murray. Começamos a colaborar
em New York em 1981, quando Morris me pediu para fazer uma performance em seu
espetáculo Music for Poets em um pequeno teatro no centro da cidade.
Morris regia um septeto, e Caroline e eu líamos poemas de meu livro, Ascent
of Sublime Love. Lembro-me daquela noite perfeitamente e os ensaios que a
precederam. Porque aquilo que ouvi daquele septeto não era jazz ou música
moderna orquestral, porém alguma mediação entre os dois, sem ecos de Berg e
Webern.
Morris estava pronto para
algo; uma forma de música fazendo retornar o compositor até o pódio do regente.
E não temos cessado de explorar as paisagens que Conduction, como Mr.
Morris a chama, nos tem servido. A partir dessa primeira performance vem Modette,
talvez melhor descrita como uma ópera, pelo menos exteriormente, uma boa
parte de escritura crítica e poética sobre Conduction e suas
implicações, e outras performances colaborativas. Mesmo hoje, esta tarde, estou
falando com Morris sobre a fase vindoura de sua nova agenda, New Music
Observatory, e escrevendo a descrição do programa para ela.
Conduction é a única nova ideia que
tenho encontrado no fazer musical ao longo das duas últimas décadas que
atravessa o divisor entre música composta e improvisada, e numa maneira
contínua e de princípios. Sua excitação é palpável; suas possibilidades sempre
reais, e sempre presentes.
FM | Em uma entrevista,
Philip Lamantia menciona Will Alexander como um dos surrealistas de sua
admiração. Até que ponto o consideras um surrealista?
AG | Will Alexander é um
amigo e colaborador. Nós lemos juntos no Beyond Baroque em Los Angeles, o
principal local para poesia e literatura na cidade, em dezembro de 2004, na
abertura do lançamento do livro de Laurence Weisberg. Meses depois Will me convidou
de novo ao Beyond Baroque para participar numa discussão sobre Surrealismo que
duraria vários dias, na qual eu também li minha obra: um caso curiosamente
difuso. Nenhum outro poeta que participou tinha até então estado envolvido em
um grupo surrealista embora eles expressassem afinidades com o movimento.
Quando eu estiver de volta a Los Angeles em janeiro de 2007, Will e eu provavelmente
leremos juntos. E, de fato, ele acaba de me enviar seu novo romance Sunrise in
Armageddon, para que eu revise. Recebi-o na última semana… Em
breves palavras: Will é uma presença excepcional na poesia americana. Sua
principal inspiração emana diretamente de várias fontes: Lamantia, Césaire, Bob
Kaufman, Wilson Harris. Seu primeiro principal livro, Asia Haiti,
foi indicado para o National Book Award. Aos meus olhos, esta é a sua obra mais
importante, e uma obra de importância dentro da cena literária americana mesmo
se Will sustenta sua posição nas margens como um “outsider”. A obra de Will
Alexander é um abandono bastante radical das normas comuns para que ele seja
aceito completamente. Sua voz é dele e só dele. Will escreve num padrão prodigioso,
e sua arte é por vezes maravilhosa. Ao mesmo tempo minha admiração é moderada
pelo fato de que sua obra, em geral, não mexe comigo tanto quanto deveria, ou
tanto quando eu espero que iria me comover. Em comparação com outros poetas em
que posso pensar, Will Alexander carrega certa opacidade em relação ao amor.
Para Lamantia, Césaire, Moro, Molina, Pizarnik, Gascoyne etc., a paixão e a
compaixão em que o amor se enraíza são claramente termos permanentes. Esta pode
ser uma crítica menor de minha parte… Escrevo “pode ser” porque, quando tudo
está dito e feito, quando a raiva exaure e a linguagem busca um corpo no qual
viver, o desejo de amar e ser amado permanece e inspira. Seguramente o amor
louco e o amor sublime, e mais precisamente, o amor humano, uma sensibilidade, uma relação que se sustenta
para além da definição, é o que me move mais. E não acredito que Will Alexander
discordaria aqui de mim sobre o que o move mais. Mas, sim, Will Alexander é
próximo do Surrealismo. No entanto, eu hesitaria em chamá-lo de surrealista.
FM | Esquecemos algo?
AG | Que tal alguma pimenta
vermelha para espirrar e uma garrafa cara de suco de uva?
FM | Sim, com uma rede
repleta de olhos gritando: mais luz, mais luz!
[2006]
NOTA
Allan Graubard (Estados Unidos, 1953). Ligado
essencialmente à poesia e ao teatro, possui expressiva afinidade com o
Surrealismo, onde atua também como músico e compositor. Sua obra poética inclui
livros como Glimpses from a Fleeing
Window (1992) e Fragments from Nomad
Days (1999). Para o teatro, se destacam produções como The One in the Other (1998),
For Alejandra (2002), e The Wind’s
Skeleton (2005), esta última em colaboração com a coreógrafa Alice Farley.
Entrevista publicada originalmente em Agulha
Revista de Cultura # 50 - Março de 2006. Tradução de
Eclair Antonio Almeida Filho.
[1] Posteriormente à realização desta
entrevista Eclair Antonio Almeida Filho publica sua tradução de Poesia reunida, de Radovan Ivsic. São
Paulo: Editora Lumme, 2013. Também traduziu Le Roi Gordogane, embora ainda permaneça inédita.
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