FM Piva,
anarquia ou anarquismo?
RP Anarquia.
Desordem total, sabotagem em regra, insubmissão absoluta. Como diz Léo Ferré, a
anarquia é a crítica desesperada, o desespero da solidão. Anarquia é a negação
de toda e qualquer autoridade, venha ela de onde vier.
FM Nós
vivemos aqui com um nós na garganta. O que fazer?
RP Acredito
com Nietzsche, na reaparição gradual do espírito dionisíaco no mundo
contemporâneo. Apesar da caretice generalizada desta década de 80, eu acredito
na grande explosão de Dionisus, deus do vinho, deus das bacanais, deus da
ecologia e orixá da vegetação. Aqui em São Paulo a polícia fechou uma sauna gay
de garotos da periferia e chamou os pais dos garotos na delegacia para
humilhá-los e então liberá-los. Foi só a sauna reabrir, e lá estavam todos os
garotos outra vez desafiando a autoridade policial, paterna e moral.
William Blake dizia que o desejo que se deixa
reprimir não era um desejo suficientemente forte. Debaixo dessa casca dormem
com um olho aberto todos os deuses pagãos. O golpe de estado erótico virá e
então será a guerra profetizada por Freud no seu livro Totem
& Tabu.
FM O
poeta surrealista negro Aimé Césaire, em um poema, diz: “Salve pássaros que
abrem com bicadas o verdadeiro ventre do pântano”. Você acha que ele se refere
à nossa época e aos poetas?
RP Claro.
O poeta é o que implode o verdadeiro ventre do pântano. Pode ser também o outsider, o louco, o adolescente revoltado, os bruxos, os
amantes fora-da-lei, os anárquicos, os drogados, os desordeiros, os visionários
etc. Me lembro agora de um verso também de Césaire, onde ele diz: “bárbaro eu a
serpente escarradora”. O título deste poema é Bárbaro. Ele termina numa orgia de sangue onde afirma
querer “atirar aos cães a carne aveludada de seu tórax”. Toda a poesia
verdadeira rima com revolta, amor e liberdade.
FM E
o bom-mocismo na atual poesia brasileira?
RP Artaud
afirmava que a poesia é exercício muscular. Jack Kerouac falava que os músculos
contêm a essência. A poesia é anterior às palavras. Grande parte da poesia
atual brasileira (e não só brasileira) não quer correr risco algum, tem medo do
perigo. Então assistimos a volta à poesia de gabinete, onde até a cor de sua
escrivaninha os poetas contam nas entrevistas. É uma poesia domada pelo
racionalismo cartesiano. Uma poesia de trinta anos atrás que se apoiava na
indústria, dançou com o modelo industrial nesta época pós-industrial de
biotecnologia e energia solar.
FM Caminhamos
para uma sociedade policial?
RP O
monopólio da informação e dos midia nacionais
favorece a subordinação administrativa no seu papel de controle social, de
burocratização do Mundo, segundo a palavra de Max Weber. A imagem do Estado
policial popularizado pelo esquerdismo é retomada com mais variantes pelos
ecologistas que sublinham não o seu caráter violento, mas a sua vontade de
normalização. Trata-se menos de uma repressão franca e policial do que de uma
opressão insidiosa caracterizada pelo domínio do conjunto dos comportamentos.
As grandes vítimas desse tipo de normalização, no nosso tempo, foram:
Fassbinder, Mishima e Pasolini. Pasolini dizia que o mundo caminhava no sentido
de adotar os valores e comportamentos da classe média. Ele foi assassinado por
um garoto michê marginal integrado, isto é, um garoto sub-proletário porém com
todos os valores da classe média na cabeça. Daqueles que querem uma moto para
colocar na garupa uma garota ornamental. Jim Morrison falava nos anos 60 que
quem tem o poder da mídia tem o poder da mente. Zé Celso cansou de dizer que a
mídia impõe a mensagem. Daí o consumo imposto pelos mídia de alimentos-sucata,
de comportamentos-sucata de 50 anos atrás etc.
FM Qual
a sua atividade no momento?
RP Erotizar
e contemplar a árvore de qualidade colérica de que fala Jacob Böehme.
FM Quando
você caminha pelas ruas de São Paulo o que mais chama sua atenção?
RP Os
anões tagarelas, a enfermidade Silêncio, o Controle Central, os macacos não
regenerados e os sobreviventes.
FM Qual
a sua profecia para este final de década?
RP É
o princípio do fim. Talvez garotos suburbanos com corpos pintados e máscaras de
folhas espalhem um saudável terror com suas garras de leopardo envenenadas.
Depois entrarão em cena os acadêmicos da morte, imitações supersônicas e
agentes biológicos de inanição. Tudo sob um luminoso em néon escrito DIREITO. Em seguida o Apodrecimento Saturniano Vermelho
fará sua aparição num cortejo de macacos de TV e bactérias.
[1986]
NOTA
O poeta
Roberto Piva (Brasil, 1937) tem aquela que talvez seja a obra poética mais
incomum no âmbito de uma tradição lírica brasileira. Desde 1961, quando surge
com a plaquete Ode a Fernando Pessoa, por um total de 20 anos seus
livros circulam quase que clandestinamente, considerando sua precária
distribuição, sobretudo fora da cidade de São Paulo. Em 1985 finalmente se
publica uma antologia de sua poesia, porém logo em seguida ele fica por 12 anos
sem publicar livros, ressurgindo apenas em 1997 com Ciclones.
Somente agora no início deste século a Editora Globo, em um brilhante trabalho
de Alcir Pécora, vem publicando as obras reunidas de Roberto Piva, em um
planejamento editorial que prevê três volumes, dos quais acaba de sair o
segundo. A entrevista que aqui recuperamos foi feita em 1986, tendo sua
publicação original no SLMG # 1038 (Minas Gerais, 30/08/1986).
Houve algo duplamente atípico na ocasião: em primeiro lugar, Piva perdeu as
minhas perguntas e como eu também havia ficado sem uma cópia das mesmas, ele
tratou de reescrevê-las de acordo com o que lhe restava na memória, o que torna
o texto a seguir praticamente uma auto-entrevista. Em segundo lugar, embora a
edição da mesma tenha ficado graficamente bem resolvida, incluindo uma mostra
de poemas, a direção do Suplemento resolveu censurar algumas
passagens, o que acabou resultando no meu afastamento após cinco anos de
intensa colaboração com aquele órgão. O contratempo acabou nos deixando de tal
forma desgostosos que nem mesmo guardamos exemplar da referida edição. Somente
este mês, enquanto buscava outros papéis, é que localizei uma fotocópia da
entrevista que, mesmo considerando os cortes violentos, é documento válido e
ajuda a consolidar a força deste brilhante poeta que é Roberto Piva. Abraxas
Nenhum comentário:
Postar um comentário