quinta-feira, 14 de agosto de 2014

MANUEL GUSMÃO | Um breve encontro



FM – Em entrevista a Ana Marques Gastão, comentas a respeito das diversas vozes que se podem perceber em tua poética, vozes que ora são imaginárias, citações reais, deformadas etc., o que acaba dando uma valiosa carga teatral a muitos poemas. O que está por trás disso tudo? O que busca a poesia através de Manuel Gusmão?

MG – São vozes ou por vezes apenas entoações, citações de outros poemas ou de romances, às vezes de personagens de um filme, mas podem também ser frases de cartas que recebi ou coisas que me disseram, ou certos jeitos quotidianos da língua. Trata-se de responder a essas vozes outras, de dar a entender como uma voz singular se faz ou pode fazer a partir das “palavras dos outros”. Nenhum de nós inventa a língua em que escreve, podemos reconfigurá-la um pouco, podemos construir alguns possíveis novos dessa língua, mas no limite a invenção só é possível porque a língua já existe. Aquilo que para muitos aparece como uma condenação, para mim é como se fosse uma condição de possibilidade, a generalidade e a socialidade da língua são aquilo mesmo que torna possível o fazer da singularização e da individuação. Trata-se também da descoberta e da invenção de uma coralidade que, mesmo se mínima, é uma hipótese de vitória sobre o silêncio imposto, de não deixar que a solidão, entretanto necessária, se feche por completo sobre nós e nos congele, de dar voz ao que em nós e fora de nós não fala. Por outro lado, trata-se também de uma tentativa de mudar de registo discursivo ou rítmico no interior de um livro ou mesmo dentro de um só poema, de acolher a heterogeneidade daquilo de que sou feito, a alteridade sem a qual só abraçamos o ar demasiado puro e elevado. Na nossa câmara mais íntima, quando fazemos silêncio para poder escrever, então aí, podemos ainda escutar esses murmúrios em que outros falam, assim como cintilam e vibram as imagens e os rumores do mundo.

FM – De que maneira a escritura, em 1998, do libreto da ópera Os dias levantados se insere dentro de tua obra poética, e o que volta a significar agora quando o publicas em separado da peça musical de António Pinho Vargas?

MG – Sobretudo agora quando me autorizei a publicá-lo autonomamente e com alterações, julgo que não posso rejeitá-lo, ou seja, estou disposto a pagar o preço por assiná-lo. A dificuldade e a diferença vêm de que este livro começou por ter um “programa” desde o início – era para ser sobre o 25 de Abril, sublinho o “sobre”, e para servir uma sua realização outra, pela música e num palco. Diria que é um livro que mostra ou dá a ver coisas que nos outros livros de poemas são mais oblíquas, menos directas, o que é no fundo admitir que há traços ou formas de fazer que são comuns. Por exemplo: a coralidade; a ostensão aqui explicitada das citações das vozes de outros; a afirmação de uma posição política na história que não é demagogia, mas é experiência vital, história da vida que tenho vivido e passionalidade ideo-verbal e ético-política. Mas há também o lado da construção, da arquitectura ou da composição do poema. Aí, admito que o libreto é um poema dramático mais perto de visar uma cantata ou uma ópera por quadros ou sequências. As acções são sobretudo conflito de vozes. A partir de certa altura, praticamente desde um dos quadros do Iº Acto, vai-se citando as transformações ou as glosas, por poetas do século XX (Jorge de Sena, Ruy Belo, Fiama Hasse Pais Brandão, Luiza Neto Jorge e Gastão Cruz), de um verso de Sá de Miranda (séc. XVI) que só será citado já para o fim (no “Êxodo”). Por um lado, imagino a recitação ou a citação repetida como uma espécie de repetição da origem, que regressa no tempo; por outro lado, que o verso originário só apareça quase no fim, pode significar que a origem ainda está à nossa frente, ou por vir. Por outro lado, a recitação do verso através dos seus ecos é homenagem à poesia e põe esse verso a costurar os tempos. Com estes procedimentos vários, julgo que no libreto procuro maneiras para praticar a deslinearização do tempo histórico, a constelação das várias formas do tempo – uma das minhas obsessões, que vou buscar como herança  a Walter Benjamin.

FM - Como se deu então o diálogo entre músico e poeta, e até que ponto crês interessante para a poesia essa aproximação de outras áreas da criação artística?

MG - Quando o compositor me convidou – não nos conhecíamos pessoalmente - fiquei efectivamente surpreendido. Embora sempre me tenha interessado por outras artes e até tenha trabalhado sobre formas de encontro concertante ou dissonante entre elas, nunca tinha pensado escrever sequer para teatro, quanto mais para uma ópera. Por outro lado, o convite implicava escrever em direcção a uma realização outra, diferente daquela que se processa na leitura, mesmo em voz alta, e escrever “sobre” algo que era à partida político e muito menos consensual do que pode parecer. Quando me decidi a aceitar, disse ao António Pinho Vargas que não escreveria nem um texto de propaganda nem exclusivamente celebratório, assim como também não poderia nunca escrever uma coisa neutra e consensual, porque a data é daquelas que são simultaneamente história colectiva e história pessoal de quem activamente as viveu. Desde o princípio ficou claro que ele utilizaria o meu texto como a música lhe fosse ditando, assim como eu ficaria livre de o editar de forma autónoma. O texto foi sendo escrito em diálogo com o compositor e depois também com o encenador, Lukas Hemleb, que trabalha sobretudo em França. Esse diálogo que foi exigente interessou-me muito por várias razões. Desde logo porque foi efectivamente um diálogo entre diferentes, colaborando. Eu ia escrevendo cenas ou blocos de texto e obtinha quase imediatamente a reacção de um ou dois leitores, que faziam perguntas, comentários e sugestões. Depois, porque eu tinha de escrever tendo à partida ou no horizonte algumas restrições ou constrições no plano da produção: por exemplo, o número de solistas ou o número de membros do coro. Para além disso, aquilo que o António sugeria poderia levar-me a encontrar ou inventar soluções em que não tinha pensado ou que tinha pensado de outra maneira. Enquanto experiência de um diálogo que contamina ou move quem dialoga, de um trabalho de escrita que se desenrola integrando já uma escuta, foi para mim uma experiência muito interessante em si mesma e que de alguma forma se projectou no livro Teatros do tempo que eu também já começara a escrever. Por outro lado, a minha “preparação” para o libreto levou-me a ouvir outras peças musicais do António Pinho Vargas ( iincluindo a sua 1ª ópera, “Èdipo, tragédia do saber”, com texto de Pedro Paixão) e outras óperas contemporâneas que ele me sugeriu.

FM – Em tua participação em uma mesa-redonda na Associação Abril em Maio (janeiro de 2004), em Lisboa, defendes que é necessário criar uma consciência política em âmbito artístico, «se não quisermos que a arte se dilua naquilo que é dominante na sociedade». Não crês que essa diluição já esteja presente ao ponto de tornar esta tua defesa, que é também a minha, mais utópica do que a possamos imaginar?

MG – Não sei se disse mesmo assim. Lembro-me que nesse momento estava a referir uma passagem do epílogo do ensaio de Walter Benjamin, “A obra de arte na era da reproductibilidade técnica”. Nessa passagem, ele estabelece uma relação entre o fascismo e a esteticização da política que segundo ele culminaria na guerra.  Benjamin diz que a humanidade se tornou de tal forma estranha ou estrangeira a si própria que se dá em espectáculo a si mesma e é capaz de viver a sua própria destruição como um prazer estético de primeira grandeza. E termina dizendo que a resposta dos comunistas é a politização da arte. Eu procurava entender o que ele escreve na sua circunstância e recolocar o problema, hoje, em que a espectacularização da política e da própria vida privada atingiu, juntamente com o crescimento das “indústrias culturais”, uma exasperação enorme. E daí partia para a consideração de que sem perder de vista a defesa da independência relativa da arte (que justamente hoje está ameaçada) cujo esquecimento por quem quer revolucionar o estado das coisas pode conduzir ao desastre e, simultaneamente, sem a tomar como uma autonomização absoluta, abre-se um espaço para trazer à consciência política e estética a percepção da politicidade da arte e trabalhar por uma cultura ao mesmo tempo de resistência e de alternativa. Trata-se de compreender, por exemplo, que a massificação do acesso a certos bens culturais não é necessariamente uma democratização e que se trata de intervir não tanto na criação (esse é um problema em larga medida de opção do artista) mas nas formas de produção, circulação e consumo culturais. A dissolução da arte no mercado ou a neutralização da sua dimensão crítica e inventora de novos possíveis, é hoje uma tendência dominante, de acordo, mas isso não torna necessariamente utópica a intervenção pela arte.  É certamente mais difícil; obriga a pensar como, onde, de que maneira, com quem e para quém. Por outro lado as utopias são nas suas  próprias formulações, contingentes, históricas, mesmo que não tenham disso consciência. Se concebermos o utópico como aquilo que resiste à tentativa de ocupação total do espaço, se reagirmos ao uso da palavra “utópico” para acusar e desarmar toda a tentativa de busca de um outro possível, numa estratégia de cancelamento ou estreitamento de qualquer horizonte diferente para as nossas sociedades, então, eu poderia aceitar essa dimensão utópica daquilo que me move, mas insistindo na sua determinação histórica.

FM – E qual contribuição têm dado, seja em busca de solução ou na permissão de agravamento, os próprios artistas, poetas, intelectuais?

MG – Para além de julgar que é importante procurar pensar a história do problema, digamos assim, até para perceber melhor a sua configuração presente, posso falar do que tenho perto de mim. Acho que posso dizer que uma grande parte dos intelectuais portugueses desejaram e acompanharam, participando de formas muito diversas, o fluxo pelo menos inicial da revolução portuguesa, entre Abril de 1974 e o verão de 1975. Depois, nos longos anos que vêm até hoje, dividiram-se, confrontaram-se, desistiram ou regressaram a casa, tal como aconteceu com outras camadas sociais intermédias. É evidente que abriu há umas décadas atrás uma espécie de caça aos intelectuais. Não creio que seja um fenómeno redutível a uma compra e venda, antes se trata de algo mais complexo, onde se usou e usa o quantum satis de discriminação e, ao mesmo tempo se recorre em larga escala à sedução. Isto em determinadas circunstâncias sociais e culturais marcadas pelo crescimento rápido das indústrias e de um mercado cultural que se rege não apenas por regras económicas, mas também por determinados valores simbólicos e ideológicos. 

FM – Mas se poderia acaso dizer, de uma maneira geral, que esta camada social, artistas e intelectuais, esteja hoje como que acomodada a esse avançado processo de atomização, sendo raro manifestar-se em «defesa da independência relativa da arte»? Em havendo, isto viria unicamente do fascínio exercido pelos meios de comunicação de massa?

MG – Eu não tenho a certeza se há uma acomodação da maioria. É possível que sim, mas num quadro que a médio prazo e seguramente a longo prazo é de grande mutabilidade. Nos movimentos contra a globalização capitalista e recentemente contra a guerra houve e há uma participação sensível de intelectuais. A proletarização crescente daquilo que podemos designar por profissões intelectuais e que excede largamente os artistas e os intelectuais, enquanto porta-vozes tradicionais, comporta fenómenos  de grande diferenciação interna da camada, de desemprego ou sub-emprego, de perda de controlo sobre o seu trabalho e de estreitamento ou compressão  da sua independência relativa. Entretanto, não estamos apenas perante o fascínio exercido pelos grandes meios de comunicação de massa; acontece também que as novas tecnologias permitem formas de trabalho e de associação em micro-empresas que geram uma experiência virtual, que não é apenas uma ilusão, de independência e de universalidade, na qual o cosmopolitismo esquece o internacionalismo. Ora esse esquecimento esquece também que, em períodos ou conjunturas de relativo bem estar, grande número de intelectuais integra os 2/3 que vivem sobre um terço de excluídos nas sociedades do mundo capitalista mais desenvolvido, que por sua vez assenta o seu “desenvolvimento” na sobre-exploração dos outros mundos e na exportação das mais violentas desigualdades.  

FM – Retornando à tua poética, onde está bem clara a relação com o tempo, indagaria agora por sua relação com o corpo, ou seja, que gradação de sexualidade da escrita se poderia evocar ao tentar compreender esta poesia?

MG – De algum modo a poesia na sua enorme diferença em relação a si mesma sempre foi uma forma de inscrição perdida do corpo amoroso, do “amor realizado de um desejo que permanece desejo” como escreveu René Char. Aquilo que escrevo imagino-o em certa medida como uma espécie de extensão não-orgânica do corpo-a-corpo amoroso, pelo qual procuro estar próximo do coração da terra, uma narrativa interrompida e recomeçada dos corpos que me tatuaram, uma narrativa que acumula feridas e queimaduras e procura reinventar, para sobreviver, aquela inenarrável perda da consciência que nos liberta de nós e que só julgamos conhecer nesse corpo-a-corpo. O Eros prolongado no corpo da linguagem ou, melhor no corpo-a-corpo com a linguagem, é uma maneira de querer a alegria, de imaginar a morte como a condição de uma alegria feroz, de aprender e aceitar que “só pode queimar quem aceita ser queimado”. E então as coisas confundem-se muito. A experiência do amor que julgamos receber da vida e que em larga medida seria muda sem a poesia, a arte, vem-me por exemplo não só daqueles corpos-músicos que amei e me amaram como da definição da alegria por Spinoza, ou da fabulosa frase de Catherine Earnshaw no inesquecível Monte dos Vendavais,  de Emily Brontë: “I am Heathcliff”. De certa maneira gostaria que a poesia pudesse ser um dar voz à experiência que a frase final de um poema de Rimbaud, “Being beauteous” inventa: “Oh! nos os sont revêtus dun nouveau corps amoureux”.

FM – E como te sentes integrado a uma tradição lírica portuguesa?

MG – Deixa-me começar por dizer que não partilho da ideia de que a poesia acabou, nem mesmo da versão reduzida de que o lirismo estaria exausto, ou teria chegado ao fim. È mais um decreto, proclamado no quadro da ideologia dos fins, e no máximo poderá ter o valor de sintoma de um mal-estar na cultura sobretudo em algumas sociedades contemporâneas desenvolvidas. Julgo, por outro lado, que é mais interessante admitir que há várias tradições e não apenas uma ou, então, falar de uma tradição plural e heterogénea, que comporta diversas genealogias que, aliás se podem cruzar. No meu caso, gosto de imaginar que aquilo que faço procura manter unidos gestos e processos de linhagens diferentes: por um lado, a obsessão com a construção de cada livro, o rigor da composição verbal que não deixe o lírico ronronar e creio ter andado a aprender, por exemplo, com poetas como Carlos de Oliveira; por outro lado, não desistir da veemência, da imagem alucinada, como ela sopra lá para os lados de Herberto Helder e, entretanto, trazer a estas duas genealogias a heterogeneidade de registos e níveis discursivos, como a podemos encontrar de modos muito diversos e de forma particularmente intensa numa poeta como Luiza Neto Jorge. É difícil falar disto, sem parecer pretensioso ou sem ter a sensação de que me perco entre espectros, então, que sejam eles ao menos os daqueles que prefiro. Apenas, diria mais que me fascina a possibilidade de encontrar para hoje as formas ou as entoações da poesia narrativa. E ainda, esta tensão de procurar manter unidas - nunca sei bem como – duas exigências: não deixar de me manter perto do coração selvagem do que é da terra e ao mesmo tempo não faltar à resposta que, por tomar a palavra, devo àqueles que da sua própria voz são expropriados. Saber que vimos de muito longe, que somos animais longos no tempo, imaginar que há qualquer coisa em frente à minha espera mas que me vem de Hölderlin, do 1º romantismo alemão, o romantismo de Jena, de Rimbaud, e que é uma promessa e, ao mesmo tempo, não me despedir nunca por completo daqueles que me trazem a depuração de uma oficina onde pode soprar uma fúria rigorosa, Mallarmé, Cesário Verde, Ponge, João Cabral de Melo Neto, Carlos de Oliveira. Aqui já comecei a alucinar, portanto é melhor calar-me.  

[2004]

Manuel Gusmão (Portugal, 1945). Poeta. Autor de livros como Mapas / O Assombro a Sombra (1996), Teatros do Tempo (2001) e Os Dias Levantados (2002). Entrevista publicada na Agulha Revista de Cultura # 39 — Junho de 2004.

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