FM
- Iniciemos nosso diálogo recorrendo a esta observação de Antonio
Carlos Secchin de que a tua poesia se define por uma "poética do
corte", que incide em "uma espécie de dilaceramento da matéria,
fendida em sua inteireza até esvair-se na morte". Acerta o crítico? O que
busca a poesia através de Álvaro Alves de Faria?
AAF -
As palavras de Antonio Carlos Secchin sobre minha poesia não explicam estes
livros que tenho publicado em Portugal. Ele se refere, sim - e eu concordo e
muito - aos outros poemas, outros livros. Mas isso não significa que eu escreva
dois tipos de poesia. Não. O que ocorre é que esta questão de Portugal, em mim,
é uma coisa profundamente sentimental e existencial também. Você poderá ver no
meu Trajetória poética - Poesia reunida, os 20 poemas quase
líricos e algumas canções para Coimbra e Poemas portugueses.
É outra paisagem poética. É outra coisa inclusive na minha vida de poeta.
De ser humano também. Neste caso de Sete anos de pastor, o novo
livro, a maior parte dos poemas foi feita em torno da lírica de Camões.
Poucos poemas fogem disso mas, de alguma maneira, têm ligação entre si nas
palavras, no texto invisível. Basta dizer que o livro começou a ser escrito, há
perto de três anos, tendo por base o famoso soneto de Camões, cujo primeiro
verso dá o título a este meu novo livro. Escrevi, então, poemas para Raquel,
Lia, Jacob e Labão. A seguir, 16 poemas para uma certa Rainha, entre eles
alguns sonetos metrificados. Fiz questão até das rimas. Há também uma parte
dedicada a Inês de Castro, apenas dois sonetos, em que exploro especialmente o
tratamento na segunda pessoa do plural e na segunda pessoa do singular. É
importante dizer isso porque essa linguagem percorre praticamente todo o livro
que tem a primeira parte chamada "Descobrimentos", na qual sinalizo o
rumo de minha poesia. O primeiro poema tem seis pequenos versos. É assim:
Há um momento certo
para se escrever um poema.
Uma hora certa.
Um dia certo para se escrever um poema.
Uma vida
inteira.
A
seguir, também sinalizando para esse rumo, um poema que tem o título “Carta
poema ao amigo Carlos Felipe Moisés”:
Escrevo amigo
em tom de despedida:
na falta de alguma coisa importante
para fazer
devo matar-me no final da tarde
ao anoitecer para ser mais exato.
..........
Fecharei a casa como se fosse viajar
apagarei a luz da sala
e lerei os poemas líricos de Camões
para não me afligir.
Não sei morrer
sem me debater entre os móveis.
Quer
dizer, eu estou me despedindo da Poesia Brasileira, graças a Deus. Quero
distância de muita gente. Quero estar longe. A distância pode ser a do Oceano
Atlântico. Estes poemas de Portugal não cabem naquelas palavras generosas do
poeta Antonio Carlos Secchin. Estes poemas são outra coisa. Claro que na minha
vida li muitas vezes toda a lírica de Camões. Mas desta vez busquei nessa
poesia um refúgio diante dos destroços e das ruínas que vejo por aqui na Poesia
Brasileira. Fui buscar na poesia portuguesa o que me falta aqui, incluindo
nisso até mesmo o relacionamento humano entre as pessoas. Cansei de tanta
leviandade. Em certo momento é preciso mesmo se fechar no quarto e apagar a
luz. Trancar as janelas. Incendiar a casa. É preciso se salvar.
FM
- Dentro desta perspectiva outra, de que maneira então se mostra tua voz
poética, onde ela se distingue do guia, considerando que vai além do
palimpsesto?
AAF
- Minha voz poética, para utilizar a expressão que você usou, se mostra da
mesma maneira. No fundo, a poesia existe. A forma do poema é que pode mudar,
neste caso particular de minha poesia em Portugal. E muda por um motivo
bastante simples: é que em Portugal a poesia é levada a sério. Dificilmente se
vê as leviandades às quais estamos aqui acostumados neste pobre país. Ao
escrever estes poemas me imagino distante de todas as vulgaridades que a mim,
pelo menos, atingem de maneira fatal. Sinceramente, cansei de tantas coisas
ridículas devidamente amparadas por uma mídia que prima pela desonestidade e
pela mentira. Mas voltando à poesia, que é o que interessa, de fato - se é que
compreendi - rasga-se o pergaminho e procura-se outro. Apaga-se a palavra que
nos habita e procura-se outra. E isso vale também para a vida. Minha voz
poética se distingue na medida em que a gente procura se libertar desta
angústia nacional no que diz respeito à Poesia e mergulha de cabeça nas formas
poéticas verdadeiras que ainda existem. É preciso encontrá-las para que,
afinal, não morra a poesia. Os poemas de Portugal são sempre um outro clima.
São sempre um novo achado. São e serão sempre uma nova tentativa de redescobrir
a poesia possível. Você poderá me perguntar se, neste caso, eu não estaria
negando minha própria obra. Eu responderia que não. Pelo contrário, estou, sim,
revigorando essa obra, com as palavras novas, achados poéticos consistentes, a
construção do poema com novas ferramentas, o olhar cada vez mais agudo, a faca
do poema cada vez mais cortante, cortando o pulso, esvaindo a vida, se preciso
for. O que não dá mais para encarar é esta bandalha brasileira. Fui buscar em
Portugal a poesia que perdi aqui. Neste país infeliz se perde tudo, a começar
pelo próprio orgulho, se é que cabe esse termo, essa palavra. Fui buscar em
Portugal o que aqui foi completamente destruído pelos vândalos da mediocridade,
por essa “poesia” inventada nos suplementos culturais mentirosos, salvo algumas
exceções que são poucas, pouquíssimas. Diria, meu caro amigo poeta Floriano
Martins, que dentro desta perspectiva outra, a minha voz poética se encontra em
Portugal, onde me deixo ficar, me deixo viver.
FM
- Como se relaciona, a teu ver, estas duas tradições líricas, Brasil e
Portugal? Há acaso um caminho com que se possa perceber? E quais as distinções
valiosas?
AAF
- As distinções valiosas são todas. As duas tradições líricas Brasil e Portugal
não existem mais. A tradição lírica brasileira na poesia morreu, foi
assassinada. A tradição lírica de Portugal continua portuguesa, continua séria.
Não se pode debochar das coisas, e estou falando de poesia, de poema, da
palavra esculpida e lapidada para a elaboração do poema. As relações podem
ocorrer - ocorrem, na verdade - de maneira até pessoal. A lírica fui buscar em
Camões, lá no fundo de Portugal. Fui buscar em Camões o que me faltava. Minha
Geração - quase toda - consultou nos anos 60 os poemas de Fernando Pessoa e de
Rilke. Estava lá, pelo menos para muitos de nós, a sinalização da poesia. Rilke
talvez bastasse. Fernando Pessoa também, especialmente Álvaro de Campos para
alguns, Alberto Caeiro para outros. Claro que, no fundo, estou simplificando as
coisas. Essa Geração 60 foi tomando seus rumos dentro da poesia brasileira.
Hoje restam poucos. Entre eles, eu. E nem sei se felizmente ou infelizmente.
Essa é uma Geração que muitos escrevem com G maiúsculo feita quase só de
vaidades lastimáveis. São poucos entre os poucos que há, que de fato estão
preocupados com a Poesia. O que parece estar valendo é a política literária da
sordidez. Isso a mim não importa. Não importará nunca. Fugi disso e fui parar
em Portugal. Busquei na poesia portuguesa minha própria salvação poética. Não
digo que lá seja tudo um mar de rosas. Não. Não é. Mas pelo que tenho visto e
sentido, estamos ainda muito distantes da seriedade no trato da poesia.
Ocorre-me,
neste instante, um poema deste Sete Anos de Pastor. Não sei
exatamente porque me ocorre. Coloco-o aqui para talvez explicar melhor o que
ainda existe de sentimento poético:
Que
me sinta assim morrer antes da primavera
como
se a querer sentir o que não sinto
como
se a sentir o que não tenho e que não me dera
a
dizer da verdade o que de certo apenas minto.
Diante
desta minha veemência é possível que se pense que eu perdi totalmente o respeito
pelos grandes poetas do Brasil. Não perdi, não. Muito pelo contrário quero
ouvi-los sempre, quero estar sempre com Manuel Bandeira, com Cecília Meireles,
com Eurides Fontela (que foi assassinada por todos nós), com Hilda Hilst (que
foi também morta por todos nós), com Drummond, com Ferreira Gullar, com os de
agora como Marco Lucchesi, com o Alexei Bueno, com a Astrid Cabral, com a Neide
Archanjo, o Carlos Felipe Moisés, o Roberto Piva, a Eunice Arruda e alguns
outros. Poucos. Quero estar sempre com Álvares de Azevedo, com Augusto dos
Anjos, e tantos outros poetas deste país que devem merecer respeito. Estou
cansado de ver ainda discussões sobre o que apregoou João Cabral de Melo Neto,
para quem o poema não devia conter emoção alguma. Eu quero, sinceramente, que
João Cabral de Melo Neto vá para a puta que pariu. Não me interessa esse tipo
de discussão, essa ladainha que se idolatra sempre nos chamados suplementos
culturais deste país. Aqui até compositores de música popular que beiram à
mediocridade são chamados de poetas. Não me interessa nada disso. Como poeta,
estou no exílio. Minha poesia está em Portugal. Não tenho bilhete de volta. Nem
me interessa ter. Morro por aqui mesmo, com a poesia que fui buscar em outra
terra. As líricas brasileira e portuguesa não se relacionam mais. Simplesmente
porque a Poesia de Portugal prima pela seriedade, enquanto a poesia do Brasil é
violentada todos os dias por alguns facínoras com trânsito livre na mídia
cultural mentirosa. E nisso pode-se perceber as distinções valiosas a que você
se refere na sua pergunta. Essas distinções são fundamentais para viver. São
fundamentais para a Poesia. São fundamentais para que se possa ainda respirar o
ar possível. Para fugir da asfixia.
FM
- Desconfio que tamanho ressentimento não te fará bem algum. É o tipo de
sentimento que costuma cegar qualquer um. Por exemplo, gostaria que falasses de
algo que parece quando menos curioso: há edições de poetas brasileiros em
Portugal - em boa parte levada a termo pela Quasi Edições - e também se verifica
o contrário, neste caso valendo referência à Escrituras Editora. No entanto,
mesmo considerando a publicação de livros lá e cá, essas duas tradições seguem
alheias a si mesmas. O que provoca e mantém este alheamento?
AAF
- Você utilizou a palavra ressentimento para situar melhor o que lhe disse
anteriormente. A palavra é correta. Se não me fará bem, pouco me importa. É
preciso no entanto saber se não me fará bem como pessoa ou como poeta. Como
pessoa é possível. Como poeta, não. Cansei, meu caro Floriano, das leviandades
reinantes, destes suplementos culturais (salvo as raras exceções) feito só de
cartas marcadas. A cultura não precisa disso. A cultura tem de fugir disso.
Vivemos num tempo, infelizmente, em que só vale o que é leviano. Só vale o que
não se sustenta diante de uma crítica séria. É preciso deixar claro, no
entanto, que não estou generalizando. Sou até uma pessoa comedida nisso. Não
quero generalizar. Mas fazer literatura em São Paulo ou no Rio de Janeiro, para
citar apenas esses dois lugares, é correr um risco desnecessário pela falta de
honestidade daqueles que lidam com a mídia cultural. Aí entra certamente o
ressentimento. Mas veja bem, eu até que tenho o meu espaço. Por mim, não
reclamaria de nada. Ocorre, porém, que as coisas estão sendo levadas para a
mentira pura e simples, deslavada. Felizmente ainda existe o processo
histórico. Há uma história sendo escrita. Não se poderá fugir dela. O
ressentimento existe sim, meu amigo. É minha forma de reagir. Sou uma pessoa
passional. Nada tenho de razoável. E minha forma de reagir, além de articular
palavras até mesmo ofensivas, é fugir para a Poesia de Portugal. Enquanto tiver
tempo para isso. Talvez regresse. É possível, porque as coisas não são
definitivas, recorrendo a uma frase feita. Talvez regresse à minha base. E sei
que essa volta será dolorosa.
Respondendo
ainda por meio da própria poesia de Sete anos de pastor, deixo aqui
alguns trechos do poema “Flautista”, que me explica bem:
Só
fui ser poeta aos 60 anos
quando
todos os poemas
já
estavam escritos
e
poesia não havia mais.
Tocador
de flauta
sopro
árias inúteis
dos
que não sabem tocar.
.........
Só
fui ser poeta aos 60 anos
quando
eu já não sabia viver
como
se fosse preciso viver
para
ser poeta.
Então
descobri o mar
Mas
era tarde.
Sempre
me disseram
que
a poesia era sacerdócio
por
isso sempre andei
com
uma extrema-unção no bolso.
Quanto
a dizer que as tradições se mantêm alheias concordo, mas não sei se com tanta
extensão assim. Há muitos poetas brasileiros publicados lá, como você mencionou.
Mas a recíproca não chega a ser verdadeira em relação a poetas portugueses
aqui. O que se tem aqui de poesia portuguesa é muito pouco. Vejo com entusiasmo
a iniciativa da Escrituras em publicar aqui os poetas de lá. E que ocorra o
mesmo quanto à Quasi, que tem dado grande contribuição nisso que estamos
falando. Ou nisso que estamos a falar. Mas é preciso dizer à Quasi que no
Brasil não existe apenas Manoel de Barros. Seja como for, qualquer coisa que se
faça nessa área tem de ser aplaudida. Eu espero mais de Portugal em relação ao
Brasil do que do Brasil em relação a Portugal. Aqui reina a vulgaridade,
infelizmente. E nem todos são vulgares.
FM
- Na resposta anterior mencionaste alguns poetas brasileiros que consideras de
boa linha, digamos, e de distintas gerações. Poderias fazer o mesmo em relação
à poesia portuguesa?
AAF
- Mencionei alguns nomes que me vieram à cabeça. Claro que há outros. Muitos
outros. Felizmente há. A poesia brasileira é rica, quando escrita por gente
séria. Em relação à poesia portuguesa cito também os nomes que me vêm à cabeça
neste instante, como Antero, como Eugênio de Andrade, Mário Cesariny, Herberto
Helder, Al Berto, Mário de Sá-Carneiro, Sofia de Mello Breyner Andresen, Albano
Martins, Régio, Florbela, José Gomes Ferreira, Antonio Nobre, Cesário, Nuno
Júdice, Helder Macedo, Gomes Leal e muitos, muitos outros. Repito, muito
outros. E muitos outros também em relação à poesia do Brasil. Não quero que
fique a impressão de que nada presta. Não é isso. Eu me refiro ao que ocorre
agora neste país de tantas angústias, de tantas mentiras. E num país onde quase
só existe mentira, a literatura não deixaria de ser atingida.
FM
- Minha preocupação era outra, ou seja, a de provocar uma correlação entre as
duas tradições, sondar, por exemplo, de que maneira poetas como Manuel Gusmão,
Luís Miguel Nava, Rosa Alice Branco, poderiam corresponder a vozes
contemporâneas da poesia brasileira etc. Quais seriam aqueles poetas que
consideras mais substanciosos atualmente em Portugal e que espécie seria
possível observar entre eles e alguns brasileiros?
AAF
- Você cita especialmente três poetas que não mencionei, Manuel Gusmão, Luis
Miguel Nava e Rosa Alice Branco. Gusmão é considerado um dos mais importantes
poetas de Portugal, além de ensaísta que escreve sobre Poesia. Você sabe disso
melhor do que eu. Ele que diz ser preciso sentir a dor muito profundamente para
se conhecer o significado da alegria. Acho que essas palavras me cabem. Já Luis
Miguel Nava me é especial, principalmente por ter levado a vida às últimas
conseqüências, até terminar assassinado em Bruxelas, em 1995. Sua poesia me
toca profundamente, por essa paixão que consome, que arrasta, que talvez
enlouqueça. Aqui lembro de meu amigo Roberto Piva. Talvez seja ele um dos
maiores, certamente o maior poeta de Portugal dos anos 80. Ele que queria ser
entendido somente por aqueles “de quem o coração for de roldana/ do poço que
lhes desce na memória”. Creio que também a mim cabem esses versos. A mim tudo
cabe. Me cabem todos os versos escritos em Portugal. Quanto a Rosa Maria
Branco, ela lançou aqui no Brasil, em São Paulo, pela Escrituras, uma seleção
de poemas, Soletrar o dia, obra prefaciada por você. O livro tem
uma declaração: “Nossos agradecimentos especiais a Floriano Martins, por seu
grande empenho em estreitar os laços culturais entre Brasil e Portugal”. Assim,
estou falando com a pessoa certa. Não cheguei a conhecer Rosa Alice Branco
pessoalmente, embora tenha vindo lançar seu livro aqui em São Paulo. Falamos
por telefone. Fiz com ela uma entrevista. Ela diz num poema o que também me
serve: “Parece simples/ a simplicidade que vem das coisas/ e nos encontra o
meio do caminho”. Mas além dos três nomes que você mencionou, poderia citar
também Maria Tereza Horta (“O oceano/ por entre o oceano”), David Mourão
Ferreira, Luíza Neto Jorge, Ruy Belo, Antonio Ramos Rosa, Vasco Graça Moura,
Ana Marques Gastão, Egito Gonçalves. Poderia citar outros, como citaria outros
brasileiros. Mas não os 175 milhões de poetas do país. Sua pergunta, no entanto,
nada tem a ver com isto que estou dizendo. Acho mesmo que nada tem a ver com
nada. Você pergunta a que vozes brasileiras corresponderiam os três poeta que
você citou. Não sei bem como lhe responder. A poesia ocorre. Toda a poesia,
seja ela de onde for, sempre terá uma correspondência. A poesia tem seus
entrelaçamentos. Toda a poesia, desde que seja ligada à vida do homem, da
mulher, das crianças, dos bichos, das plantas, das pedras, do desespero, do
grito. Toda poesia ligada à vida. Isso eu encontro muito em Portugal, uma
poesia que não se envergonha de ser humana. Você também me pergunta que poeta
considero mais substancioso em Portugal. Respondo que hoje é Eugênio de
Andrade. Seria, ao meu ver, uma espécie de Carlos Drummond de Andrade, de João
Cabral de Melo Neto, de Bandeira, de Ferreira Gullar, por sua importância na
poesia portuguesa. A figura de Eugênio de Andrade é uma figura de poeta. Se é
que isso exista. Eu o conheci no Porto a dizer poemas no Teatro do Campo
Alegre. Impressionou-me sua voz, seu andar. O olhar. As palavras de uma poesia
que merece o respeito de todos. Lá está um poeta. Um homem poeta: “Trabalho com
a frágil e amarga/ matéria do ar/ e sei uma canção para enganar a morte/ e
assim errando vou a caminho do mar”. Levou-me às lágrimas. Por que não dizer?
Um poeta inteiro, acima de qualquer suspeita. Troquei com ele algumas palavras,
mais até para ouvi-lo de perto. Fazia muito tempo que eu não via um poeta,
embora, naquela oportunidade eu estivesse ao lado de Ferreira Gullar. Fazia muito
tempo que eu não via um poeta com o absoluto significado da poesia. Um poeta de
Portugal, feito de poemas que não sei dizer, porque apenas sinto e com esses
poemas de Eugênio consigo imaginar que existe poesia no mundo, até mesmo em meu
país de valores invertidos, de tantas mentiras em tudo.
FM
- Alguns traços comuns no que diz respeito à tua geração?
AAF
- Minha geração talvez não exista. É preciso dizer, no entanto, que não sou uma
sumidade em conhecimento da poesia portuguesa. Publico lá um livro a cada ano e
meio. Apenas isso. Sou conhecido lá por 19 pessoas, incluindo meus familiares.
Nada além disso. Mas isso me basta. Por exemplo, neste exato instante eu me
pergunto: Nesta porra do país onde estará Bruno Tolentino que, com Roberto
Piva, forma o que de melhor produziram os anos 60 na poesia do Brasil. Os
melhores de minha geração feita de tantas vaidades. O que existe de fato nessa
geração são pessoas lembradas por atitudes, não por poemas. Quem publicará
Bruno Tolentino, Astrid Cabral, Adriano Espínola neste país de facínoras? Em
certos casos, aqui, basta ser medíocre. Não precisa mais. É necessário dizer
sempre que existem as exceções. É preciso dizer também que em Portugal sou
publicado por duas editoras pequeníssimas, a Alma Azul, de Coimbra, e agora a
Palimage (A imagem e a Palavra) de Viseu. Nada além disso. Sou apenas um
aprendiz em Portugal. Vou lá colher a poesia que alguém já disse ser
necessária. Pensando em Portugal a Poesia chega a ser novamente um prazer. Em
relação a este livro Sete anos de Pastor, mergulhei em Camões. Fui
buscar em Camões o que me falta. Me dá prazer, por exemplo, escrever poemas
assim:
Do
pedido póstumo pudera em pedra partir
para
os pátios perdidos nas preces das palavras
a
paz que se padece à parte do passo que pára
o
punhal que pungente pune o pranto.
Quer
dizer: busco em Portugal o prazer de escrever o poema que não consigo mais
aqui. Sei que a poesia é uma coisa pessoal, quando escrita. Eu poderia escrever
dentro de mim sem me deixar envolver por tudo isto que estou dizendo nesta
entrevista. Mas, às vezes, não é possível. Portugal é uma porta. Uma paisagem
existencial. Uma paisagem poética. Nessa paisagem me deixo estar. Como já
disse, para me salvar. Sinto prazer, para citar mais um exemplo, de começar um
soneto assim:
Se
partistes de vós assim sozinha
sem
que eu pudesse em mim mudar a sina
deixai
então viver na morte minha
a
dor que em mim começa e em vós termina.
FM
- O que te leva a Portugal?
AAF
- Tenho ido em busca de mim, se é possível entender. Em busca da minha poesia
ainda possível. Talvez em busca da vida que me resta. É preciso dizer que sou
filho de pais portugueses. Minha mãe, Lucília, de Anadia, meu pai, Álvaro, de
Angola. Dei razão à escritora Graça Capinha, da Universidade de Coimbra, quando
escreveu sobre os poemas dedicados a Coimbra. Ela disse tratar-se de um
mergulho na memória da memória. É assim mesmo. Me vejo procurar por dentro. Me
vejo diante de mim, a olhar-me na possibilidade do olhar ainda possível. Busco
minha própria reminiscência. Busco em Portugal a poesia que não encontro mais
aqui, sempre ressaltando as exceções que existem. Nem todos são levianos. Até
na minha geração há pessoas sérias, poetas que entendem esse ofício de escrever
poesia. E eu digo “até” porque nesta minha geração - que às vezes escrevo com G
maiúsculo - muita gente produz muito discurso e pouca poesia. O que vale mesmo
é a chamada política literária. Essa coisa sórdida que não leva a lugar nenhum.
Não gosto nem sou de políticas sórdidas. Essa coisa menor de muitos conchavos e
acenos gratuitos.
Se
você me permitir, volto a utilizar um trecho do poema “Decisão”, deste Sete
Anos de Pastor. Acredito que explique melhor:
Deixei
de falar
e
pensar
não
penso mais.
Deixei
de escrever
também
deixei de ouvir.
deixei de ouvir.
Para
mim
as
palavras
morreram
definitivamente.
definitivamente.
No
entanto
conservo
o olhar
e
permaneço
diante
do oceano
a
me observar
partindo
de mim
todos
os dias
não
sei exatamente
para
onde.
Sempre
que volto
trago
pérolas
que
devolvo
imediatamente
ao mar.
Então
voltando à sua pergunta sobre o que estou indo eu fazer em Portugal, volto a
responder que tenho ido em busca de me tentar salvar. Isso vale para a poesia e
para muitas outras coisas que certamente não cabem numa entrevista sobre
literatura. Tenho ido em busca de mim. Vou buscar-me onde me deixei. Vou em
busca do ar para respirar. A Portugal me apresento como poeta brasileiro. Se é
que sou de fato poeta brasileiro. Sinceramente, tenho alguma dúvida.
Apresento-me a Portugal como sou. Um poeta à procura da poesia. De Portugal pretendo
apenas a poesia. Pretendo vestir-me de poesia. De Portugal pretendo-me apenas
ser. Quem sabe renascer?
FM
- E como é que tua poesia é recebida em Portugal?
AAF
- Há críticas generosas a meu respeito. A bem da verdade, não saio por lá
distribuindo livros para a imprensa. Sou bastante tímido para fazer isso. Não
faço, não faria lá. Mas já fui entrevistado em Portugal algumas vezes para
falar de minha poesia e de poesia brasileira. Minha maior aproximação é com a
Oficina de Poesia dirigida por Graça Capinha, com poetas da Universidade de
Coimbra. Lá, sim, falo sobre poesia em geral, e particularmente discuto minha
própria produção. Sinto nessa Oficina em Coimbra um grande interesse por tudo.
Há um detalhe que me chama atenção, que se refere, no que me diz respeito, a
certa elaboração do poema que me parece não existir em Portugal. Aquela
elaboração lidando com as palavras e tirando da palavra todos os sentidos que
elas podem oferecer. Por exemplo: Estive na Oficina de Poesia em 2002, quando
levei alguns exemplares de meu livro A Palavra Áspera, publicado
pela Íbis Libris, no Rio de Janeiro. Os universitários poetas se debruçaram em
poemas, fazendo anotações, discutindo sua construção. Poemas como este que tem
o título “Poesia”:
Árida
palavra
na
aridez
da
palavra árida.
Árido
poema
na
aridez
do
poema ávido.
A
poesia árida
na
aridez
da
poesia grávida.
Árida
poesia
na
aridez
da
palavra grave.
Esse
pequeno poema andou de mão em mão. Soube depois que foi discutido
exaustivamente, especialmente no que se refere ao uso da palavra dentro do
poema que afinal fala da própria poesia.
Outro
exemplo do que chamou muita atenção foi um pequeníssimo poema feito com apenas
quatro palavras, chamado “Destino”:
Meus
sapatos
caminham
sobressaltos.
Neste Sete
Anos de Pastor tenho outro pequeno poema na parte “Descobrimentos” que
segue essa mesma linha que tanto chama a atenção, pelo menos no que diz
respeito a Coimbra, entre os poetas que conheço. Acredito que seja ainda uma
parte a explorar na poesia portuguesa. Chama-se “Poente”:
O
sol morre
e
faz
a
noite
ser.
Há
também os poemas que se constroem especialmente com o som das palavras, sem
esquecer o próprio poema. Isso eu senti de maneira intensa na leitura que fiz
em 1998 no Terceiro Encontro Internacional de Poetas, apresentando um poema
chamado “Eldorado dos Carajás”, que não faz parte de nenhum livro meu, mas está
em algumas publicações portuguesas. O início do poema é assim:
A
foice fere a faca
corta
a faca corta a face
e
tece
a
terra
ferida
fenda infinita
a
foice cala fundo
a
selva a planta
a
foice finca
finais
finados
a
febre a fibra
a
foice afunda o fogo
a
terra
o
homem ferido
a
semente
o
semeio
a
foice força
arranca
o fim da fúria
a
terra sepulcro
a
bala a faca o sangue
a
boca a sede a ruga
a
fala
a
falha o filho a folha
a
foice
pálida
morte.
FM
- Além da obra de criação, tens uma expressiva contribuição à cultura
brasileira através da atividade jornalística e da organização de algumas
antologias e livros com entrevistas. O que planejas agora para Portugal?
Buscarás um desdobramento deste mesmo ambiente, de realização de entrevistas,
antologias, ou acaso tens alguma outra coisa em mente?
AAF
- Não planejo nada em Portugal com respeito ao trabalho que faço aqui. Você diz
que minha contribuição no Jornalismo foi expressiva. Agradeço. Mas isso é
verdade. Passei a vida inteira escrevendo sobre livros e escritores e poetas
brasileiros. A vida inteira. Como jornalista dei espaço para todo mundo. Até
para os concretistas que não podem ouvir meu nome. Mas a recíproca é
absolutamente verdadeira. Até eles tiveram no suplemento cultural Jornal
de Domingo, que eu criei no Diário de S. Paulo, o espaço que
desejaram. Nunca fechei a porta para ninguém. Nunca fui filho-da-puta com
ninguém. Talvez seja por esse motivo que por duas vezes recebi o Prêmio Jabuti
como crítico literário. Não sei, no entanto, o que isso me significa hoje. Meu
livro Trajetória Poética - Poesia reunida, recebeu o prêmio da
Associação Paulista de Críticos de Arte como o melhor livro de poesia de 2003.
E daí? Penei para publicá-lo. Penei muito. E consegui graças ao patrocínio de
amigos. Eu tenho a impressão de viver num país de loucos, onde minha própria
loucura não cabe mais. Quanto à organização de antologias, que você lembra,
troquei um livro meu, pessoal, em favor de uma antologia de poesia
contemporânea brasileira em Portugal. Só arrumei desafetos. Organizei com o
Carlos Felipe Moisés a antologia da tal geração 60 de poetas de São Paulo. Mais
desafetos. Então o que é que afinal vale a pena? Absolutamente nada, quando se
vive entre feras. De forma que não tenho plano qualquer em relação a Portugal,
senão cativar ainda mais meus 19 leitores e alguns amigos para conversar sobre
coisas banais. Como estamos conversando agora. É preciso se aproximar dos bons
poetas e fugir dos que fazem da poesia uma afirmação pessoal da mediocridade,
amplamente amparada pelos suplementos culturais deste país. Não dá mais, meu
amigo Floriano Martins, para conviver com tudo isso. Tantos poetas com livros
da melhor poesia suplicam, por exemplo, uma pequena nota nesses suplementos.
Nada conseguem. Mas os facínoras conseguem com facilidade. Faz alguns anos, um
dos facínoras projetou umas letrinhas coloridas na parede de um prédio aqui em
São Paulo, dizendo tratar-se de poesia. A Folha de S. Paulo publicou
até foto colorida na primeira página. Isso me envergonha. Não dá para conviver
com isso. É muita mentira. É fascismo puro. E isso ocorre também na
universidade. Que país é este em que tentamos viver?
FM
- Defendes então que a saída seja mesmo o aeroporto?
AAF
- Em relação à Poesia acredito não existir outra alternativa. Pelo menos para
mim. É quase deixar tudo de lado. Partir para outra. Diante do que me aflige,
fui buscar na poesia de Portugal, especialmente em Camões, a saída que se faz
necessária. Vejo em Camões essa Poesia feita como Poesia. A minha fonte secou
por estas plagas tropicais, neste país de tanta violência. Não quero ter dupla
nacionalidade na Poesia. Quero apenas ser poeta. Livre até mesmo de mim. Mas
principalmente livre desse escárnio em que se transformou a poesia brasileira,
aviltada sempre, manipulada de maneira vergonhosa por alguns indivíduos que não
têm noção do que estão fazendo. Mas o que mais dói é a irresponsabilidade dessa
chamada mídia cultural, esse comportamento inconseqüente, louvando grupinhos
que não sabem absolutamente nada de nada. E isso ocorre também com a prosa.
Basta ver o que tem saído por aí. E tudo com espaço garantido nos tais
suplementos. Tudo acertado. Este é mesmo o país do conchavo descarado. A saída
é mesmo o aeroporto. Como se dizia no tempo da ditadura, o último apague a luz.
Mas de lá para cá as coisas não mudaram muito. Os tais suplementos, com as
raras exceções de sempre, trabalham ainda com o AI-5 debaixo do braço. Certa
vez o poeta Ferreira Gullar reclamou comigo a falta de poemas nos suplementos
culturais brasileiros que ainda existem. Gullar falou também das distorções que
se cometem nessas publicações. Disse-me, então, que muitos suplementos são
editados sem consciência do que se está fazendo. Ferreira Gullar me disse estar
cansado, por exemplo, de ler textos sobre Baudelaire escritos por pessoas que
nunca leram um único verso de Baudelaire. Falou-me que essa leviandade e essa
ignorância são uma das marcas da época em que vivemos. Como não concordar com o
poeta? Mas eu não acredito que seja somente leviandade e ignorância. Não. Há
também o componente da má fé. O componente da mentira.
FM
- Esta mentalidade tacanha, mesquinha, virulenta, não é um traço recente da
casta intelectual brasileira, embora tenha piorado a olhos nus. De onde vem
este caipirismo, que não deixa de ser reflexo de um complexo do colonizado, e
como acreditas que este quadro possa vir a se reverter?
AAF
- A casta intelectual brasileira é mesquinha. É também ridícula. É preciso fugir
dessa gente. Muitos agora no poder vivem das traições de todos os dias. Tudo em
nome do poder. Isso é outra decepção que se fez em grande amargura. Por vinte
anos ouvi um discurso, ajudei nesse discurso, acreditei nesse discurso. Mas
agora vejo que não era bem assim. O que vale é trair os próprios ideais, se é
que um dia de fato existiram. Não tenho simpatia por Stálin. Tenho medo de
Stálin. Tenho medo da mentira. A mentira é uma das coisas que mais me ferem
como ser humano. Este é o país em que tudo apodrece, a poesia, as pessoas, a
literatura, a política, a palavra, o jornalismo, a universidade. Quando eu
acreditava na vida, foi preso cinco vezes pelo Dops por falar poemas no Viaduto
do Chá. Eu pensava que ia salvar o mundo falando poesia para as pessoas. Eu
acreditava nisso. Com 20 anos a gente acredita em tudo. Mas depois vem a vida.
Ela se mostra e mostra também uma face amarga. Uma faca amarga. Mostra a boca
amarga. Mas depois vem o depois e outro depois. E de depois em depois a gente
caminha, fazendo o possível para se equilibrar sempre na corda bamba, dentro do
grande espetáculo brasileiro. E o espetáculo brasileiro continua com seus
personagens. Não há como reverter isso. A casta é forte. Seja como for, é
preciso caminhar. Mesmo sem poesia é preciso caminhar.
FM
- Além deste Sete Anos de Pastor - que tem na capa a figura do
Pastor dos Autos de Gil Vicente - o que já tens em Portugal?
AAF
- A Editora Alma Azul, de Coimbra, publicou dois livros meus, que são 20
poemas quase líricos e algumas canções para Coimbra (1999), prefaciado
pela minha querida Graça Capinha, que sempre apresenta meus livros lá, e Poemas
Portugueses (2002), com prefácio de meu amigo querido Carlos Felipe
Moisés. Essa mesma editora publicou uma antologia que organizei chamada Brasil
2000 - Antologia de Poesia Brasileira Contemporânea. Participo em Portugal
de alguns livros de poesia, como Literatura Portuguesa e Brasileira (Porto,
2000), organização de João Almino e Arnaldo Saraiva; Nove Poetas
Brasileiros (Coimbra, 2000), organização de Elsa Ligeiro; Antologia
de Poetas Brasileiros (Lisboa, 2000), organização de Mariazinha
Congílio; Poesia Mundo/3 (Porto, 2001), organização de Maria Irene
Ramalho de Souza Santos; Antologia de Poetas Paulistas (Lisboa,
2001),organização de Mariazinha Congílio; Poetas revisitam Pessoa (Lisboa,
2003), organização de João Alves das Neves; Revista Oficina de Poesia (Coimbra,
2004), organização de Graça Capinha. Também participei de alguns eventos
culturais em Portugal, dos quais destaco o Terceiro Encontro Internacional de
Poetas, promovido pelo Grupo de Estudos Anglo-Americanos da Faculdade de Letras
da Universidade de Coimbra, em 1998, e do Congresso Portugal-Brasil 2000 -
Literatura Portuguesa e Brasileira, na Universidade do Porto, em 2000, nas comemorações
dos 500 Anos do Descobrimento.
FM
- Querido poeta, deixo aqui a tribuna livre para o que mais queiras comentar,
desde já desejando a tua felicidade plena nesta nova etapa de tua vida.
AAF
- Meu caro Floriano Martins, poeta amigo que aprendi a admirar e que descobri
há tão pouco tempo. E tudo, meu amigo, é tão pouco tempo. Gostaria muito que os
poetas brasileiros fossem como você é. Gostaria que tivessem sua generosidade,
tivessem eles as palavras que encontrei nos seus livros. Tivessem eles essa Poesia
que é a sua Poesia. E vendo esses seus poemas é que, no fim de tudo, posso
descobrir que nem tudo está perdido. Desculpe-me por estas palavras a seu
respeito, que sei não desejar na entrevista que está fazendo comigo. Mas este
espaço me pertence e dele quero fazer uso para uma coisa boa, como é preciso
ser em todas as coisas. De forma que esta tribuna livre que você me oferece no
final desta entrevista seja, sim, uma palavra de enaltecimento à Poesia que,
apesar de tudo, ainda se produz neste país. Que seja a poesia brasileira como é
a sua, meu amigo, que siga esse caminho, essas ruas árduas da existência, que
se faça e se elabore em nome da beleza, em nome da palavra, em nome da possível
alegria de viver, que a poesia merece, sempre haverá de merecer.
[2005]
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