FM | Tua primeira leitura de impacto foi Et les chiens se taisaient (Os cães estavam em silêncio), de Aimé
Césaire. Este texto faz parte de Les
armes miraculeuses (As armas miraculosas),
de 1946. Qual a natureza do impacto?
EP | Foi um impacto enorme! Um amigo me deu este livro,
que eu não conhecia. Foi uma descoberta que mudou a minha vida. Descubro os
valores do combate dos negros no mundo e as condições dos mais, e também certo
humanismo.
FM | O que sabes acerca da descoberta, nos anos
1980, do manuscrito de Et les chiens se
taisaient?[1]
EP | Para mim é um evento considerável! Ou seja, uma página de rebelião e de
liberdade, mesclada com uma alta poesia! Uma bela petição do ser humano!
FM | Conheces um artigo de Aimé Césaire intitulado “Yvan
Goll e André Breton: duas relações difíceis”?[2]
O que sabes sobre todo este tema?
EP | Não conheço exatamente este artigo. Mas conheço bem
as relações íntimas entre Césaire e Breton. Quando Breton descobriu, por acaso,
a obra maior de Césaire, ao mesmo tempo descobriu uma poesia incandescente que
falava de algo que ele nunca havia ouvido. Um sofrimento total e global abrindo
as portas de uma reivindicação total! Césaire me confiou que nunca foi surrealista!
Porém havia uma convergência entre as concepções. Libertação estética e libertação
da vida.
FM | Porém o próprio Césaire falava de um “Surréalisme
noir”. Em que sentido?
EP | Eu persisto e assino. Césaire me confidenciou um
dia em que eu estava em sua casa: “Eu nunca fui um surrealista!”. Eu acho que a
negritude, como o surrealismo, carregava uma revolta poderosa contra a ordem
estabelecida e as falsificações da história. Além disso, ambos utilizavam livremente
os dados subversivos da linguagem e do imaginário. Houve companheirismo,
solidariedade, mas nunca afiliação nem filiação.
FM | Lautréamont foi outro ponto coincidente entre
Césaire e Breton. Os dois tinham por ele a mais alta consideração, e o próprio
Césaire observa que Lautréamont foi “o primeiro em compreender que a poesia
começa com o excesso, a desmedida, as buscas consideradas proibidas no grande
tam-tam cego, até a incompreensível chuva de estrelas”. (Tropiques # 6-7, fevereiro de 1943) Qual te parece tenha sido a
repercussão da obra de Lautréamont no Caribe?
EP | Césaire plana muito alto, acima da consciência de
sua época! Podemos dizer que houve um impacto do trabalho de Lautréamont no
Caribe? Acho que não! No mundo restrito dos verdadeiros letrados, com certeza!
Mas, além disso? Foi por meio de Césaire que Lautréamont teve impacto! Há um
lado revolucionário em Lautréamont que só poderia fascinar os grandes criadores.
FM | Há um autor que imagino muito importante para ti
que é Chester Himes, sobretudo porque além da poesia também tens cultivado a
narrativa. Mas eu gostaria de saber de outros poetas caribenhos que foram
fundamentais para a configuração de tua voz poética.
EP | Eu me considerava unicamente como poeta. Minhas
raízes foram Aimé Césaire, Edouard Glissant, Saint-John Perse, mas também Pedro
Mir, Nicolas Guillen, Anthony Phelps, Langston Hugues, Brathwaite etc. Tenho
cultivado a narrativa de maneira ocasional (a primeira vez) e depois foi a
necessidade de analisar, de ler, a complexidade de minha real condição de caribenho.
A poesia é ma fibre majeure e minha
maneira quase instintiva de viver o mundo.
FM | E a poesía de outros surrealistas
franco-caribenhos, como Magloire-Saint-Aude e León-Gontran Damas, qual teu
interesse por essa poesia?
EP | Eu acredito que a poesia, mesmo no romance, é
naturalmente surrealista no Haiti. Isto é visto nas imagens e na prática da
língua. O ritmo também. Chamo surrealismo uma forma de “jazz” da palavra que
segue em rota livre em direção às surpresas da livre improvisação. Esta
liberdade é essencial nesses autores. Por outro lado, Damas não me parece surrealizante. Ele é concreto demais! E
à flor da pele também! Ele é mais inspirado pela música afro-americana! Damas é
uma batida! É claro que todos me inspiraram!
FM | Qual a repercussão alcançada com a realização, em
2008, do Primeiro Congresso de Escritores no Caribe?
EP | O Primeiro Congresso de Escritores no Caribe foi
ideia minha, uma proposta minha aceita pelo presidente da Região Guadalupe. Era
um velho sonho que vinha desde o Congresso de Escritores Negros, em 1956, e
também da Carifesta em Cuba, onde eu estava como convidado. A ideia foi
desenvolver laços entre partes de uma literatura que é a mesma e que se ignora
por razões políticas, linguísticas, econômicas. Mudar isso me parece capital! A
repercussão foi grande com Derek Walcott como presidente de honra e a
possibilidade de sentir a presença do espírito do Caribe.
FM | “Travessias de exílio / nos convocam / muito além
dos alambrados do mar / as linhas da mão / dessangradas de dor para viver / e a
terra como uma massa demasiado quente / para o paladar” (“Visões”).[3]
Este poema é todo uma arte poética. O que anda buscando a poesia através da voz
de Ernest Pepín?
EP | O que busca a minha voz? Gritar nossa singularidade
no mundo e tornar conhecido um aspecto da condição humana e apresentar nossa
beleza. A palavra nunca é minha palavra, mas sim a palavra do mundo confrontado
com a surdez de pequenas diferenças que não existem. As ondas bailam e nos dão
uma intuição do mar, porém não são o mar, mas é a poesia! É parte da palavra do
universo! Um fogo da consciência!
FM | Há uma contribuição particular do Caribe à cultura
em nosso continente que quero aqui destacar, com a publicação de revistas como L’Étudiant Noir, Trópiques e o movimento Négritud.
Qual a tua compreensão das relações entre esses fatos e o Surrealismo?
EP | O Caribe é também o continente. É uma inflexão do novo mundo, uma experiência única na
qual a escravidão desempenha um papel enorme e insuportável. As revistas são
janelas abertas sobre a dominação e a ressurreição! O gouffre de uma desumanização e a altura ferida de uma re-humanização.
E esta energia é possível senti-la culturalmente. O Surrealismo foi uma maneira
de desfazer e refazer um mundo paralelo. Desde aqui a convergência das
posturas! Embora o surrealismo pareça, para mim, superficial e intelectual. A negritude vem de um viver e de uma
maneira de completar nosso mundo. Ou seja, continente e ilhas.
FM | Em que sentido o surrealismo te parece superficial
e intelectual? E acaso percebes uma distinção entre o surrealismo europeu e sua
aclimatação na América, com seus conflitos coloniais e sua urgência de
definição de uma identidade cultural?
EP | Há muitos clichês e mal-entendidos sobre o
surrealismo. Acho que houve conexões entre o surrealismo e a negritude, mas não
identificações. Na negritude, há uma visão de mundo, uma percepção de mundo,
que se queria negra. É sobre a palavra negro que é preciso se deter! Como
experiência de uma alteridade que explode os cânones de toda estética
ocidental, suas mentiras, seus discursos etc. Não se deve esquecer que Césaire
e Damas, ao contrário de Senghor, são negros crioulos atormentados pelo tráfico,
a partida, o retorno impossível! Eles bebem também desta experiência humana
inédita! Eles têm que reconstruir tudo, inclusive a linguagem, o fundo e a
forma. Eles estão na irrupção súbita e na confrontação mental com a barbárie.
É, portanto, um imaginário de um sofrimento injusto que os leva rumo à desrazão.
Qual poema escreveria um torturado em uma cela senão o silêncio ou a desmesura.
O surrealismo ocidental não tem essa carga! A dinâmica ou a dinamite é outra
porque a história é outra!
FM | Qual vigência ainda encontramos hoje relativa aos
ecos de Légitime Défense e Tropiques?
EP | A juventude de hoje não conhece nem Légitime Défense nem Tropiques. No entanto, ela lançou seus
gritos desarticulados (rap, reggae, dance-hall, slam), que são de fato uma
denúncia e uma afirmação. Suas armas milagrosas são outras, mas o espírito de
resistência permaneceu!
FM | Qual é a tua leitura da inexistência de um
surrealismo anglo-caribenho?
EP | Acho que isso se deve à relação com a língua e com
o contexto. A língua inglesa se volta para o concreto. Ela não se embaraça com
um “barroco” qualquer, ou até mesmo com o surrealismo! A língua francesa, mais
preocupada com sua forma estética tende a procurar os efeitos e, logo, o risco.
As lutas dos caribenhos anglófonos são menos formais, mais diretas. E depois,
talvez, haja, de um lado, um universo católico e, do outro, um universo
protestante, mesmo que tudo isso não esteja intacto, mas sim atuando no nível
do inconsciente!
FM | Fala-me um pouco da importância da radiodifusão da
poesia. Parece que criaste um projeto pioneiro neste sentido. A ideia se fortaleceu
como uma tradição ainda atuante?
EP | Sim, eu tinha um projeto neste sentido.
Infelizmente não pude ir até o fim. A poesia está viva, mas ela não tem o impacto
de antigamente. A música passou à frente. A imagem também! É preciso refletir
sobre tudo isso!
FM | Esquecemos algo?
EP | Acho que nós mudamos de mundo. Os debates são
outros e é urgente refundar a poesia e as poéticas. Para nós, caribenhos,
latino-americanos confrontados com a mundialização, temos de tentar não somente
nos dizer, mas também sentir as fraturas e as solidariedades de um mundo
perigoso. A poesia não é mais um remédio. É o sinal de alarme e a criação de um
contraveneno!
[2012]
[Entrevista com Ernest Pepín (Guadalupe, 1950), parcialmente em francês e espanhol. A tradução é de Floriano
Martins (espanhol) e Milene Moraes (francês).]
[1] Et les chiens se taisaient (E os cães estavam em silêncio). Um texto com este título foi
incluído na edição original de Les
armes miraculeuses (1946). Posteriormente identificado como
fragmento de uma tragédia, a íntegra de seu manuscrito, ou seja, da peça
teatral completa, foi localizada décadas depois e hoje se encontra na
Biblioteca St. Dié des Vosges, em acervo em nome de Yvan Goll.
[2]
Título original: “Yvan Goll et André Breton: des relations difficiles”.
[3] No
original: “Des traversées d’exil / nous appellent / par delà les barbelés de la
mer / les lignes de la main / saignées d’une douleur à vivre / et la terre
comme un beignet trop chaud / pour l’appétit” (“Visions”).
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