quarta-feira, 13 de agosto de 2014

ERNEST PEPÍN | Sobre surrealismo



FM | Tua primeira leitura de impacto foi Et les chiens se taisaient (Os cães estavam em silêncio), de Aimé Césaire. Este texto faz parte de Les armes miraculeuses (As armas miraculosas), de 1946. Qual a natureza do impacto?

EP | Foi um impacto enorme! Um amigo me deu este livro, que eu não conhecia. Foi uma descoberta que mudou a minha vida. Descubro os valores do combate dos negros no mundo e as condições dos mais, e também certo humanismo.

FM | O que sabes acerca da descoberta, nos anos 1980, do manuscrito de Et les chiens se taisaient?[1]

EP | Para mim é um evento considerável!  Ou seja, uma página de rebelião e de liberdade, mesclada com uma alta poesia! Uma bela petição do ser humano!

FM | Conheces um artigo de Aimé Césaire intitulado “Yvan Goll e André Breton: duas relações difíceis”?[2] O que sabes sobre todo este tema?

EP | Não conheço exatamente este artigo. Mas conheço bem as relações íntimas entre Césaire e Breton. Quando Breton descobriu, por acaso, a obra maior de Césaire, ao mesmo tempo descobriu uma poesia incandescente que falava de algo que ele nunca havia ouvido. Um sofrimento total e global abrindo as portas de uma reivindicação total! Césaire me confiou que nunca foi surrealista! Porém havia uma convergência entre as concepções. Libertação estética e libertação da vida.

FM | Porém o próprio Césaire falava de um “Surréalisme noir”. Em que sentido?

EP | Eu persisto e assino. Césaire me confidenciou um dia em que eu estava em sua casa: “Eu nunca fui um surrealista!”. Eu acho que a negritude, como o surrealismo, carregava uma revolta poderosa contra a ordem estabelecida e as falsificações da história. Além disso, ambos utilizavam livremente os dados subversivos da linguagem e do imaginário. Houve companheirismo, solidariedade, mas nunca afiliação nem filiação.

FM | Lautréamont foi outro ponto coincidente entre Césaire e Breton. Os dois tinham por ele a mais alta consideração, e o próprio Césaire observa que Lautréamont foi “o primeiro em compreender que a poesia começa com o excesso, a desmedida, as buscas consideradas proibidas no grande tam-tam cego, até a incompreensível chuva de estrelas”. (Tropiques # 6-7, fevereiro de 1943) Qual te parece tenha sido a repercussão da obra de Lautréamont no Caribe?

EP | Césaire plana muito alto, acima da consciência de sua época! Podemos dizer que houve um impacto do trabalho de Lautréamont no Caribe? Acho que não! No mundo restrito dos verdadeiros letrados, com certeza! Mas, além disso? Foi por meio de Césaire que Lautréamont teve impacto! Há um lado revolucionário em Lautréamont que só poderia fascinar os grandes criadores.

FM | Há um autor que imagino muito importante para ti que é Chester Himes, sobretudo porque além da poesia também tens cultivado a narrativa. Mas eu gostaria de saber de outros poetas caribenhos que foram fundamentais para a configuração de tua voz poética.

EP | Eu me considerava unicamente como poeta. Minhas raízes foram Aimé Césaire, Edouard Glissant, Saint-John Perse, mas também Pedro Mir, Nicolas Guillen, Anthony Phelps, Langston Hugues, Brathwaite etc. Tenho cultivado a narrativa de maneira ocasional (a primeira vez) e depois foi a necessidade de analisar, de ler, a complexidade de minha real condição de caribenho. A poesia é ma fibre majeure e minha maneira quase instintiva de viver o mundo.

FM | E a poesía de outros surrealistas franco-caribenhos, como Magloire-Saint-Aude e León-Gontran Damas, qual teu interesse por essa poesia?

EP | Eu acredito que a poesia, mesmo no romance, é naturalmente surrealista no Haiti. Isto é visto nas imagens e na prática da língua. O ritmo também. Chamo surrealismo uma forma de “jazz” da palavra que segue em rota livre em direção às surpresas da livre improvisação. Esta liberdade é essencial nesses autores. Por outro lado, Damas não me parece surrealizante. Ele é concreto demais! E à flor da pele também! Ele é mais inspirado pela música afro-americana! Damas é uma batida! É claro que todos me inspiraram!

FM | Qual a repercussão alcançada com a realização, em 2008, do Primeiro Congresso de Escritores no Caribe?

EP | O Primeiro Congresso de Escritores no Caribe foi ideia minha, uma proposta minha aceita pelo presidente da Região Guadalupe. Era um velho sonho que vinha desde o Congresso de Escritores Negros, em 1956, e também da Carifesta em Cuba, onde eu estava como convidado. A ideia foi desenvolver laços entre partes de uma literatura que é a mesma e que se ignora por razões políticas, linguísticas, econômicas. Mudar isso me parece capital! A repercussão foi grande com Derek Walcott como presidente de honra e a possibilidade de sentir a presença do espírito do Caribe.

FM | “Travessias de exílio / nos convocam / muito além dos alambrados do mar / as linhas da mão / dessangradas de dor para viver / e a terra como uma massa demasiado quente / para o paladar” (“Visões”).[3] Este poema é todo uma arte poética. O que anda buscando a poesia através da voz de Ernest Pepín?

EP | O que busca a minha voz? Gritar nossa singularidade no mundo e tornar conhecido um aspecto da condição humana e apresentar nossa beleza. A palavra nunca é minha palavra, mas sim a palavra do mundo confrontado com a surdez de pequenas diferenças que não existem. As ondas bailam e nos dão uma intuição do mar, porém não são o mar, mas é a poesia! É parte da palavra do universo! Um fogo da consciência!

FM | Há uma contribuição particular do Caribe à cultura em nosso continente que quero aqui destacar, com a publicação de revistas como L’Étudiant Noir, Trópiques e o movimento Négritud. Qual a tua compreensão das relações entre esses fatos e o Surrealismo?

EP | O Caribe é também o continente. É uma inflexão do novo mundo, uma experiência única na qual a escravidão desempenha um papel enorme e insuportável. As revistas são janelas abertas sobre a dominação e a ressurreição! O gouffre de uma desumanização e a altura ferida de uma re-humanização. E esta energia é possível senti-la culturalmente. O Surrealismo foi uma maneira de desfazer e refazer um mundo paralelo. Desde aqui a convergência das posturas! Embora o surrealismo pareça, para mim, superficial e intelectual. A negritude vem de um viver e de uma maneira de completar nosso mundo. Ou seja, continente e ilhas.

FM | Em que sentido o surrealismo te parece superficial e intelectual? E acaso percebes uma distinção entre o surrealismo europeu e sua aclimatação na América, com seus conflitos coloniais e sua urgência de definição de uma identidade cultural?

EP | Há muitos clichês e mal-entendidos sobre o surrealismo. Acho que houve conexões entre o surrealismo e a negritude, mas não identificações. Na negritude, há uma visão de mundo, uma percepção de mundo, que se queria negra. É sobre a palavra negro que é preciso se deter! Como experiência de uma alteridade que explode os cânones de toda estética ocidental, suas mentiras, seus discursos etc. Não se deve esquecer que Césaire e Damas, ao contrário de Senghor, são negros crioulos atormentados pelo tráfico, a partida, o retorno impossível! Eles bebem também desta experiência humana inédita! Eles têm que reconstruir tudo, inclusive a linguagem, o fundo e a forma. Eles estão na irrupção súbita e na confrontação mental com a barbárie. É, portanto, um imaginário de um sofrimento injusto que os leva rumo à desrazão. Qual poema escreveria um torturado em uma cela senão o silêncio ou a desmesura. O surrealismo ocidental não tem essa carga! A dinâmica ou a dinamite é outra porque a história é outra!

FM | Qual vigência ainda encontramos hoje relativa aos ecos de Légitime Défense e Tropiques?

EP | A juventude de hoje não conhece nem Légitime Défense nem Tropiques. No entanto, ela lançou seus gritos desarticulados (rap, reggae, dance-hall, slam), que são de fato uma denúncia e uma afirmação. Suas armas milagrosas são outras, mas o espírito de resistência permaneceu!

FM | Qual é a tua leitura da inexistência de um surrealismo anglo-caribenho?

EP | Acho que isso se deve à relação com a língua e com o contexto. A língua inglesa se volta para o concreto. Ela não se embaraça com um “barroco” qualquer, ou até mesmo com o surrealismo! A língua francesa, mais preocupada com sua forma estética tende a procurar os efeitos e, logo, o risco. As lutas dos caribenhos anglófonos são menos formais, mais diretas. E depois, talvez, haja, de um lado, um universo católico e, do outro, um universo protestante, mesmo que tudo isso não esteja intacto, mas sim atuando no nível do inconsciente!

FM | Fala-me um pouco da importância da radiodifusão da poesia. Parece que criaste um projeto pioneiro neste sentido. A ideia se fortaleceu como uma tradição ainda atuante?

EP | Sim, eu tinha um projeto neste sentido. Infelizmente não pude ir até o fim. A poesia está viva, mas ela não tem o impacto de antigamente. A música passou à frente. A imagem também! É preciso refletir sobre tudo isso!

FM | Esquecemos algo?

EP | Acho que nós mudamos de mundo. Os debates são outros e é urgente refundar a poesia e as poéticas. Para nós, caribenhos, latino-americanos confrontados com a mundialização, temos de tentar não somente nos dizer, mas também sentir as fraturas e as solidariedades de um mundo perigoso. A poesia não é mais um remédio. É o sinal de alarme e a criação de um contraveneno!

[2012]

[Entrevista com Ernest Pepín (Guadalupe, 1950), parcialmente em francês e espanhol. A tradução é de Floriano Martins (espanhol) e Milene Moraes (francês).]




[1] Et les chiens se taisaient (E os cães estavam em silêncio). Um texto com este título foi incluído na edição original de Les armes miraculeuses (1946). Posteriormente identificado como fragmento de uma tragédia, a íntegra de seu manuscrito, ou seja, da peça teatral completa, foi localizada décadas depois e hoje se encontra na Biblioteca St. Dié des Vosges, em acervo em nome de Yvan Goll.
[2] Título original: “Yvan Goll et André Breton: des relations difficiles”.
[3] No original: “Des traversées d’exil / nous appellent / par delà les barbelés de la mer / les lignes de la main / saignées d’une douleur à vivre / et la terre comme un beignet trop chaud / pour l’appétit” (“Visions”).

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