FM Por onde
começas a criar? E não me refiro unicamente à primeira técnica empregada, mas
sim ao estalo inaugural, aquele momento mágico em que percebes que estás
criando.
VR São muitas
as espécies de estalo inaugural. Dou um exemplo, a partir do fato de que o sono
é, para mim, algo física e criativamente essencial (não me atrevo a brigar com
ele porque, se o fizer, saio perdendo): deito-me, cedo, exaurido, como quem não
quer nada, querendo, e no dia seguinte, de madrugada, sou “derrubado” por outro
qualquer, ou por fadinha que me fala macio, com ideia que necessito anotar
rapidamente, antes que ela vá posar em outro lugar. Não se trata de
psicografia; no entanto, saio do estado de dormência para a atividade como se
fosse chacoalhado.
Outro exemplo: ponho-me diante da
tela branquíssima, solto alguma tinta na paleta e — vupt! — eis que surge
alguma figura doida para se exibir. É só permitir.
E assim vai. Não é resposta
escapatória, no meu caso, dizer que começo pelo início.
Nem sempre sei onde encontrarei o
fio da meada. Há um segredo nisso: estar pronto. A disciplina do trabalho
possibilita isso.
Percebo que estou criando mesmo,
quando me dou conta de que achei algo novo.
FM Seria
aquela disciplina do deixar-se pronto, de alcançar esta condição de completa
doação, a ponto da criação se fazer por si só e a partir de ti, estou certo?
Mas como em muitos casos se verifica a intromissão benéfica de sugestões
oníricas, recordo uma observação de Pierre Mabille ao dizer que o sonho lhe é
fundamental em um duplo sentido: “iluminar ao mesmo tempo nossa verdadeira
realidade interior e também revelar aspectos novos de uma realidade exterior
mais ampla”. Também é assim que o vês?
VR O sono é
repouso operante. Poderia parar a resposta por aqui. Nem sequer falo em sonho
que é outra coisa, ainda que ligada àquele. O fato é que não costumo lembrar os
sonhos que tenho dormindo. Os especialistas dizem que as pessoas não vivem sem
sonhar; acredito. De minha parte, viajo em “sonhos” que construo acordadíssimo.
Treinei isso.
Quanto a chegar “a ponto de a
criação se fazer por si só”, tem-se aí evidente exagero. Não fico assistindo de
camarote. Vou à luta, armado com meus apetrechos. Olho muito para ver um pouco.
FM Em uma
entrevista, Francis Bacon declara: “Acho que a arte é uma obsessão pela vida e
afinal, como somos seres humanos, nossa maior obsessão somos nós mesmos.
Depois, possivelmente vem a obsessão pelos animais e, por fim, pelas paisagens.”
Em tua obra — em qualquer técnica — a figura humana se mostra sempre única, em
solilóquio, indicando uma obsessão maior pela reflexão interior e não pelo
conflito externo, a busca ou diálogo com o outro. Há uma razão para tanto?
VR Todas as
realizações pedem obsessão. Razão deve haver para isso, sim; ignoro exatamente
qual. Continuo a pesquisar; num dia qualquer hei de descobrir qual. Não me
ocupo demasiadamente com tal; a leitura que outros fazem — porque sem
compromisso ou com compromisso diferente — costuma ser muito mais reveladora.
Para se ver melhor, o lado de fora é mais conveniente. Não adianta minha
pretensão de querer passar algo adiante; o que conta é o resultado efetivo.
Quase não me entendo.
FM De quem o
artista é semelhante? Com quem afinal dialoga neste mundo? Ou acaso vive a
expensas de uma comodidade que não comunga com o sentido comum da realidade?
VR Os artistas
são figuras estranhíssimas tanto quanto animais voadores ou rabudos. Um artista
só é um pouco semelhante a um outro artista. Não sei se um artista consegue
conversar, dialogar, de verdade e enquanto tal, com alguém. Talvez seja um
pouco mais compreendido por outro artista, naquilo em que ambos se estranham.
Parece que fala, fala, com a convicção de que nunca é ouvido e não quer ser
ouvido. Quando alguém se propõe a tentar entendê-lo, vê nessa pessoa um prêmio,
alternativa para sair da situação de perene incompreensão ou um desgraçado que
quer destruir-lhe o segredo.
Não é cômodo deixar de comungar com
o sentido comum da realidade. Se facilita, para chegar a tal sentido, alcança
um gosto bom de deixar de ser artista ou menos artista. As pessoas
automatizam-se; o artista quando se automatiza torna-se mais pessoa, menos
artista. Coisa complicada.
FM Em um
contato múltiplo com a vida e sua constante emboscada de espantos — já o
disseste: “cada criação tem seu processo, mas, seja qual for, não há de
desprezar as casualidades” —, como foste dedilhando esse conjunto tão amplo de
técnicas que, em muitos casos, pode confundir-se com mero exibicionismo?
VR Há
criadores que podem ficar a vida inteira a escrever poemas ou um poema apenas,
como há quem só faça esculturas ou só gravuras ou só isto ou só aquilo.
Trabalhar com muitas técnicas é necessidade vital para mim; nunca pensei nisso
como exibicionismo, até porque sei que com meu procedimento talvez fique mais
distante de alcançar altura boa com alguma. A variedade de técnicas talvez seja
vício, defeito, da dispersão. Só sei que o que consigo dizer com bronze não
soará bem com o lápis ou com a tinta a óleo e vice-versa.
Não sei se é possível falar em
rotina como disciplina de trabalho. Sei que a rotina de trabalho permanente
leva a incursões diversas. Não imagine que eu precise gravar no metal
diariamente, ou mexer com a argila a toda hora. Isso não se dá (aliás, no
período de úmido inverno paulistano, costumo poupar minhas mãos do barro frio).
Diariamente, necessito, sim, ouvir, ler algo (mesmo que simples notícia de
jornal) ou rabiscar uma bobagem enquanto falo ao telefone ou respondo a uma
indagação feita por escrito. Coisas assim, que me levem, porque sou treinado
para ir.
A casualidade, ou melhor, o acaso é
companheiro a quem prezo muito. Dele tomo muito sem precisar pagar. Basta
sentir-lhe a presença. A tinta que escorre fora de lugar pode ser escolha dele;
a trinca revela-se relevo mais adequado; o quebrado, melhor que o inteiro. Só
pede para ser vislumbrado; não colabora com quem o ignora.
O acaso nem sempre é uma delícia:
meu corpo já fez um Ouriço no meu rim; aproveitei o mote e
modelei escultura.
FM A própria
fotografia do ouriço de teu rim já é uma delícia. O acaso seria então, para ti,
este grande “mestre do humor” a que se refere Max Ernst? Por outro lado, a
dispersão pode assumir um caráter curioso, de debandada de novas perspectivas.
Há aqueles artistas que se concentram tanto em uma técnica que acabam se
tornando enfadonhos, ao passo que nos dão a desconfiança de que poderiam ousar
muito mais se acaso se desdobrassem em novas buscas, o que pode muito bem
evocar novas técnicas.
VR Delícia
porque não foi de Você que o extraíram.
Não sei o que Max Ernst quis dizer
com “mestre de humor” ao atribuir essa função ao acaso. O fato é que o acaso
proporciona tanta coisa boa que fico inibido de não dar a ele o crédito devido.
Sou um cara dispersivo por natureza.
Isso tem um lado bom e outro ruim. Às vezes, partícipe de uma conversa, ouço
seu início e quando se chega lá pela metade pode-se interromper uma narrativa e
mudar de assunto que eu nem perceberei; estarei alhures, entretido com sei lá o
quê.
FM De que
maneira certa perspectiva totêmica que a crítica tem investigado na tua obra se
relaciona com os ex-votos? Qual o bailado de afinidades entre tuas
cabeças-ícones e equivalentes em diversas culturas antigas?
VR Posso estar
redondamente enganado, mas não sinto, não vejo, qualquer relação do meu
trabalho com ex-votos. Eticamente, diante de mim mesmo, vejo-me impedido de realizar
imagens servíveis à oração ou ao cumprimento de pactos com a divindade. Não sou
sequer noticiador disso. Se disser que pintei um “santo”, desconfie. O capeta
sempre presente não é o mesmo capeta da religiosidade. É certo, no entanto, que
se as minhas figuras beberam em algum recanto místico terá sido nas imagens de
altar. Nunca os ex-votos que, aliás, me dizem plasticamente muito pouco, ainda
que eu reconheça expressão notável em alguns exemplares desses objetos.
Vou também aos mitos e lembro que muitos
foram deuses até que substituídas as religiões em que se incorporavam. Aí já é
outra coisa.
Quanto às afinidades das minhas com
cabeças equivalentes em outras culturas antigas, diria que não sei, não.
FM E esta
outra coisa tem a ver com uma observação de Benjamin Péret, de que “se o mito
tem uma origem mágica, a religião que constitui o fundamento de todo misticismo
é a negação de toda magia, ou seja, de toda a poesia, e se esta chega a
expressar-se através da religião, é na medida em que implicitamente se lhe opõe”.
Ao lidar com este abismo entre mito e religião, a arte atende melhor ao assunto
do que se opta por ser cronista de uma margem ou outra, não crês?
VR O indagador
intelectualiza o simples. Traduzindo em miúdos, o místico e o mítico não se dão
bem; não se misturam; vivem às turras; debocham um do outro. A religião e a
criação são diferentes necessidades do homem. Conforta tê-las e nelas
apoiar-se. São fugas ou encontros que fazem bem à alma e ao espírito,
respectivamente. Não se substituem. Acredito nisso.
FM Imaginemos —
tendo por infinita a capacidade de imaginação de um artista — um futuro em que
aquilo que hoje chamamos de arte contemporânea nos identifique na cadeia
evolutiva da espécie. Quem te parece nos representaria bem neste início de novo
milênio?
VR Muitos que
nos representariam bem hoje, talvez sejam omitidos depois. Note que os
lembrados depois não seriam necessariamente aqueles mais presentes na mídia. A
História faz suas próprias escolhas e depende muito do ponto de vista adotado
pelo historiador, em cada pedaço de tempo. Numa perspectiva noticiosa poderia
ser fulano; numa perspectiva estética, beltrano. A perspectiva estética não tem
muito compromisso com o deixado para trás. Poderá ser valorizado o pioneirismo,
o escândalo, a feitura bem acabada, o que melhor atenda aos mercadores, tantas
coisas. Qualquer resposta seria tentativa de adivinhação. E eu não tenho
poderes divinatórios, graças a Deus.
FM Não
comentarias a obra — ou mesmo algum aspecto em particular, que te desperte
atenção — de nenhum de teus contemporâneos?
VR Poderia
comentar, mas prefiro evitar. O problema é que essa história de “contemporâneo”
é uma encrenca muita atrasada, velha, decrépita, vencida. O grande lance é
investir no pantemporâneo, que engloba o antes, o durante e o depois.
FM De que
maneira planejas ou refletes acerca do ambiente, público ou doméstico, que irá
acolher uma obra tua?
VR Geralmente
não planejo acerca do ambiente que irá acolher trabalho meu; costumo, sim,
identificar — por ocasião de uma exposição, por exemplo — o que não se
adequaria. Não produzo para chocar nem para não chocar; no entanto, muitos dos
meus trabalhos — reconheço — poderiam incomodar o olhador, se colocados sobre a
cabeceira da cama de uma criança, no seu quarto de dormir.
Já houve ocasião em que fiz trabalho
para aproveitar as possibilidades de certo ambiente, como se deu na minha
exposição na Galeria de Arte IBEU, no final de 2004. Ali o teto tinha uma
espécie de colmeia, com “n” recortes paralelos e retangulares de plástico
translúcido abaixo de luz fria. Tirei alguns módulos, medi-os e fiz alguns
desenhos sobre plástico translúcido, substitutivos, para aproveitar o que para
outros poderia ser um defeito. Havia também grandes janelas de vidro que traziam
para dentro do espaço os luminosos da rua; aproveitei para dispor desenhos,
sobre plástico transparente, que conversavam com eles, convidando-os à
interferência.
Quanto ao espaço público, se o
entendermos enquanto relacionado com logradouros públicos, diria que tem estado
praticamente fora de minhas cogitações, dado que meu trabalho, seja na
escultura, seja na gravura etc., não se afeiçoaria a eles, pela intimidade de
que quero impregná-los; são não afeitos a multidões. Questão de opção pessoal,
apenas. Só não digo que dessa água nunca beberei porque não me fecho a desafio;
ressalvo apenas que, para voltar-me ao espaço das ruas, necessitaria ter um
propósito.
FM
Aproveitaria ainda o tema para solicitar tua opinião acerca da perspectiva
praticamente única com que se conta hoje de veiculação de arte contemporânea em
âmbito internacional, que é o modelo bienal. Para o público em geral dá a
impressão que a arte enfrenta um grande impasse, que se repete à exaustão e já
não expressa nada de revelador ou sugestivo. O que pensas?
VR Ora, a arte
enfrenta mesmo um grande impasse. Para que negar? O fato é que há uma arte da
crise, feita para bienais. Já ouvi muitos colegas dizerem: “vou fazer algo para
a bienal”. Note: coisa datadíssima. E depois? Não há depois. Ou seja, “arte”
que nasce finada. O exibidor prepara-se para apresentar aquilo que,
instantaneamente, o colocaria no patamar dos gênios e o público, de sua parte,
temente, dispõe-se a não rechaçar para não passar por ignorante. Fica um vazio
igual tanto em que expõe como em quem faz de conta que reterá o exposto.
Toda generalização deve ser evitada.
Tome-se a indicação para a generalidade dos fatos.
FM Há dois
extensos e fundamentais estudos sobre tua obra, assinados por Mirian de
Carvalho e Péricles Prade, e que abrem volumes editados com grande esmero onde
se reproduzem inúmeras lâminas de fases e técnicas diversas. Este cuidado
editorial, de registro de uma obra e de sua crítica, é algo muito pouco frequente
entre artistas brasileiros, seja pela falta de empenho crítico e/ou editorial,
de perspectiva histórica em relação à produção artística, ou respaldado no
ardil de um imediatismo de mercado ao qual sucumbe a grande maioria dos
artistas de mídia, aqueles que são incensados hoje e desprezados amanhã de
forma programática. De que maneira acervo crítico e plástico referente à arte
produzida no Brasil poderia encontrar uma melhor perspectiva — e aqui não se
pode furtar a iniciativa institucional — de guarda, difusão, reflexão etc?
VR Cada
artista tem um modo de lidar com essas coisas. Muitos não se ocupam em
conservar ou documentar porque, a bem da verdade, estão mais preocupados em pôr
no mercado, o quanto antes, seus trabalhos, e não merecem censura por isso, já
que precisam sobreviver e não há mácula nisso. Pessoalmente, considero
fundamental manter comigo boa parte da produção para verificar se evoluem e
como. Sei de artistas de alta qualidade que vêem impossibilitada uma
documentação gráfica de seus trabalhos porque, infelizmente, retiveram pouco e
nem sequer sabem por onde circula o que produziu.
FM Ao escrever
sobre a mostra “Domínios e Dominações”, Péricles Prade anota algumas distâncias
estéticas de tua obra em relação a Goeldi e Grassmann. A tua concordância aqui
é preciosa, claro, mas, sobretudo, gostaria de saber das afinidades, as mais
íntimas, em ambos os casos comentadas.
VR Aprecio o
trabalho de Oswaldo Goeldi e de Marcelo Grassmann. Deste último até tenho
diversos desenhos e gravuras, mas a melhor homenagem que posso fazer-lhes é
seguir meu próprio curso. Aprecio, sobretudo, a técnica de um e de outro; por
outro lado, os assuntos do universo de cada um distanciam-se bastante do meu.
Quando constatar que o meu trabalho
tem o jeito do de outro cara, avise-me: estarei plagiando ou sendo plagiado. Do
plágio quero distância.
FM Bom, essa
busca de diálogo que envolve outras artes, no caso o poema, considerando que
protagonizas experiências editoriais em que obras tuas são lidas por
alguns poetas… Como lidar com essa aproximação entre duas linguagens que não
chegam a constituir um diálogo, mas sim apenas uma ilustração? Evidente que não
me refiro a teu caso em
específico. A intenção aqui é discutir até que ponto um
encontro entre dois artistas não se limita à glorificação de um pelo outro.
VR A
glorificação de um artista por outro é um problema relevante. Interessa a quem?
De verdade, a ninguém, nem a quem glorifica nem a quem é glorificado. Soa
falso.
Outra coisa é a parceria. O fato é
que alguém tem que dar a partida: se eu lhe propuser que escreva um poema que
funcione independentemente de uma pintura, com que se vai juntar, e se reporte
ao assunto daquela de modo a caminharem juntos, e Você aceita o convite é
porque isso também lhe interessou. Tenho livro em que o editor Raimundo Gadelha
convidou poetas que escolheu (limitei-me a fazer raras indicações — algumas
aceitas, outras não) a caminharem comigo (Intimidades transvistas);
outro em que a coordenadora Eunice Arruda (que eu nem conhecia antes do Intimidades)
convidou, segundo seus exclusivos critérios, 40 poetas a escreverem sobre
assunto de uma única pintura minha (Fui eu), observando-se que as
escolhas foram todas dela e a única presença que impus foi a da própria
coordenadora, que, escrupulosamente, pretendia ficar de fora do elenco
(acrescento que nem a pintura focalizada foi escolha minha, mas dela mesma); e
um terceiro ainda em que as escolhas foram minhas mesmo, pessoais, por uma
questão de afinidade (Xilogravuras, com poemas de Álvaro Alves de
Faria, Celso de Alencar, Eunice Arruda e Raquel Naveira), e indiquei em textos
miúdos as razões de meus convites. Há, claro, outras pessoas com quem
apreciarei fazer parcerias.
Se Você escreve um poema e propõe
que eu desenvolva gravura que se conjugue com aquele, atendo a um interesse
meu, se sigo junto.
Coisa diversa é a ilustração, que só
é escada para texto a que se junta (imagine um livro infantil sem ilustrações).
Pessoalmente, tenho muita dificuldade em ilustrar — por deficiência e falta de
gosto, mas eventualmente posso fazê-lo, com vontade, mesmo, para um amigo do
peito, sem que isso me violente. “Amizade é matéria de salvação” — lembrei-me
de Clarice Lispector. No entanto, reconheço que será feitura mais ou menos
guiada, com mais técnica do que criação.
Aprecio, por outro lado e muito, a
parceria. No momento estou tramando algo a ser desenvolvido por “n” mãos e que
se constituirá no seguinte: …ainda não posso falar. Só adianto que Você estará
nessa, como autor ou personagem e não terá escolha.
No limite, até esta entrevista é uma
parceria. Concedo-a para a sua glorificação. Você até poderá colocar, em seu
currículo, o privilégio que lhe concedo. Não precisa agradecer.
FM E
retornamos a Francis Bacon, ao dizer que “aquilo que faz um artista parecer
melhor do que outro é seu senso crítico mais apurado”, esclarecendo: “Pode ser
que não seja nem um pouco mais talentoso, mas o seu senso crítico é
simplesmente melhor”. Em teu caso, como consideras a relação entre talento e
senso crítico?
VR O senso
crítico do artista não tem qualquer relação com o sentido objetivamente
desenvolvido por um crítico. O senso crítico do artista costuma falhar muito,
porque voltado para seu próprio fazer. Alguns trabalhos que me parecem mais bem
resolvidos costumam passar em brancas nuvens — sem importância; outros, que
seriam não tão bem arranjados, surgem como mais expressivos aos olhos de quem
os examina.
O talento é uma dádiva, coisa que se
recebe independentemente de mérito, ou uma conquista resultante da
experimentação e do trabalho. Se duvida, verifique o que se dá com alguns
jogadores de futebol. Alguns teriam mais a produzir, diante do que
gratuitamente receberam, e morrem de preguiça. Outros receberam pouco e
superam-se, pela via do treino, da observação permanente e do trabalho. Quem
recebe muito, de graça, e vale-se do trabalho para conquistar mais vai se
destacar, com mais probabilidade, se produzir algo que faltava.
O senso crítico do artista talvez
diga com sua capacidade de preencher buracos.
Não sei se esse tanto recebido é
herança genética ou cultural. Sei que alguns partem, sem esforço ou aplicação,
do ponto em que outros chegam.
[2005]
[Entrevista com Valdir Rocha (Brasil, 1951), publicada em Invenção do Brasil. São Paulo: Editora
Descaminhos, 2013. http://www.amazon.com/Inven%C3%A7%C3%A3o-Brasil-entrevistas-Portuguese-Edition-ebook/dp/B00FTBMR24]
Nenhum comentário:
Postar um comentário