sábado, 9 de agosto de 2014

VALDIR ROCHA | Os vasos incomunicantes



FM Por onde começas a criar? E não me refiro unicamente à primeira técnica empregada, mas sim ao estalo inaugural, aquele momento mágico em que percebes que estás criando.

VR São muitas as espécies de estalo inaugural. Dou um exemplo, a partir do fato de que o sono é, para mim, algo física e criativamente essencial (não me atrevo a brigar com ele porque, se o fizer, saio perdendo): deito-me, cedo, exaurido, como quem não quer nada, querendo, e no dia seguinte, de madrugada, sou “derrubado” por outro qualquer, ou por fadinha que me fala macio, com ideia que necessito anotar rapidamente, antes que ela vá posar em outro lugar. Não se trata de psicografia; no entanto, saio do estado de dormência para a atividade como se fosse chacoalhado.
Outro exemplo: ponho-me diante da tela branquíssima, solto alguma tinta na paleta e — vupt! — eis que surge alguma figura doida para se exibir. É só permitir.
E assim vai. Não é resposta escapatória, no meu caso, dizer que começo pelo início.
Nem sempre sei onde encontrarei o fio da meada. Há um segredo nisso: estar pronto. A disciplina do trabalho possibilita isso.
Percebo que estou criando mesmo, quando me dou conta de que achei algo novo.

FM Seria aquela disciplina do deixar-se pronto, de alcançar esta condição de completa doação, a ponto da criação se fazer por si só e a partir de ti, estou certo? Mas como em muitos casos se verifica a intromissão benéfica de sugestões oníricas, recordo uma observação de Pierre Mabille ao dizer que o sonho lhe é fundamental em um duplo sentido: “iluminar ao mesmo tempo nossa verdadeira realidade interior e também revelar aspectos novos de uma realidade exterior mais ampla”. Também é assim que o vês?

VR O sono é repouso operante. Poderia parar a resposta por aqui. Nem sequer falo em sonho que é outra coisa, ainda que ligada àquele. O fato é que não costumo lembrar os sonhos que tenho dormindo. Os especialistas dizem que as pessoas não vivem sem sonhar; acredito. De minha parte, viajo em “sonhos” que construo acordadíssimo. Treinei isso.
Quanto a chegar “a ponto de a criação se fazer por si só”, tem-se aí evidente exagero. Não fico assistindo de camarote. Vou à luta, armado com meus apetrechos. Olho muito para ver um pouco.

FM Em uma entrevista, Francis Bacon declara: “Acho que a arte é uma obsessão pela vida e afinal, como somos seres humanos, nossa maior obsessão somos nós mesmos. Depois, possivelmente vem a obsessão pelos animais e, por fim, pelas paisagens.” Em tua obra — em qualquer técnica — a figura humana se mostra sempre única, em solilóquio, indicando uma obsessão maior pela reflexão interior e não pelo conflito externo, a busca ou diálogo com o outro. Há uma razão para tanto?

VR Todas as realizações pedem obsessão. Razão deve haver para isso, sim; ignoro exatamente qual. Continuo a pesquisar; num dia qualquer hei de descobrir qual. Não me ocupo demasiadamente com tal; a leitura que outros fazem — porque sem compromisso ou com compromisso diferente — costuma ser muito mais reveladora. Para se ver melhor, o lado de fora é mais conveniente. Não adianta minha pretensão de querer passar algo adiante; o que conta é o resultado efetivo. Quase não me entendo.

FM De quem o artista é semelhante? Com quem afinal dialoga neste mundo? Ou acaso vive a expensas de uma comodidade que não comunga com o sentido comum da realidade?

VR Os artistas são figuras estranhíssimas tanto quanto animais voadores ou rabudos. Um artista só é um pouco semelhante a um outro artista. Não sei se um artista consegue conversar, dialogar, de verdade e enquanto tal, com alguém. Talvez seja um pouco mais compreendido por outro artista, naquilo em que ambos se estranham. Parece que fala, fala, com a convicção de que nunca é ouvido e não quer ser ouvido. Quando alguém se propõe a tentar entendê-lo, vê nessa pessoa um prêmio, alternativa para sair da situação de perene incompreensão ou um desgraçado que quer destruir-lhe o segredo.
Não é cômodo deixar de comungar com o sentido comum da realidade. Se facilita, para chegar a tal sentido, alcança um gosto bom de deixar de ser artista ou menos artista. As pessoas automatizam-se; o artista quando se automatiza torna-se mais pessoa, menos artista. Coisa complicada.

FM Em um contato múltiplo com a vida e sua constante emboscada de espantos — já o disseste: “cada criação tem seu processo, mas, seja qual for, não há de desprezar as casualidades” —, como foste dedilhando esse conjunto tão amplo de técnicas que, em muitos casos, pode confundir-se com mero exibicionismo?

VR Há criadores que podem ficar a vida inteira a escrever poemas ou um poema apenas, como há quem só faça esculturas ou só gravuras ou só isto ou só aquilo. Trabalhar com muitas técnicas é necessidade vital para mim; nunca pensei nisso como exibicionismo, até porque sei que com meu procedimento talvez fique mais distante de alcançar altura boa com alguma. A variedade de técnicas talvez seja vício, defeito, da dispersão. Só sei que o que consigo dizer com bronze não soará bem com o lápis ou com a tinta a óleo e vice-versa.
Não sei se é possível falar em rotina como disciplina de trabalho. Sei que a rotina de trabalho permanente leva a incursões diversas. Não imagine que eu precise gravar no metal diariamente, ou mexer com a argila a toda hora. Isso não se dá (aliás, no período de úmido inverno paulistano, costumo poupar minhas mãos do barro frio). Diariamente, necessito, sim, ouvir, ler algo (mesmo que simples notícia de jornal) ou rabiscar uma bobagem enquanto falo ao telefone ou respondo a uma indagação feita por escrito. Coisas assim, que me levem, porque sou treinado para ir.
A casualidade, ou melhor, o acaso é companheiro a quem prezo muito. Dele tomo muito sem precisar pagar. Basta sentir-lhe a presença. A tinta que escorre fora de lugar pode ser escolha dele; a trinca revela-se relevo mais adequado; o quebrado, melhor que o inteiro. Só pede para ser vislumbrado; não colabora com quem o ignora.
O acaso nem sempre é uma delícia: meu corpo já fez um Ouriço no meu rim; aproveitei o mote e modelei escultura.

FM A própria fotografia do ouriço de teu rim já é uma delícia. O acaso seria então, para ti, este grande “mestre do humor” a que se refere Max Ernst? Por outro lado, a dispersão pode assumir um caráter curioso, de debandada de novas perspectivas. Há aqueles artistas que se concentram tanto em uma técnica que acabam se tornando enfadonhos, ao passo que nos dão a desconfiança de que poderiam ousar muito mais se acaso se desdobrassem em novas buscas, o que pode muito bem evocar novas técnicas.

VR Delícia porque não foi de Você que o extraíram.
Não sei o que Max Ernst quis dizer com “mestre de humor” ao atribuir essa função ao acaso. O fato é que o acaso proporciona tanta coisa boa que fico inibido de não dar a ele o crédito devido.
Sou um cara dispersivo por natureza. Isso tem um lado bom e outro ruim. Às vezes, partícipe de uma conversa, ouço seu início e quando se chega lá pela metade pode-se interromper uma narrativa e mudar de assunto que eu nem perceberei; estarei alhures, entretido com sei lá o quê.

FM De que maneira certa perspectiva totêmica que a crítica tem investigado na tua obra se relaciona com os ex-votos? Qual o bailado de afinidades entre tuas cabeças-ícones e equivalentes em diversas culturas antigas?

VR Posso estar redondamente enganado, mas não sinto, não vejo, qualquer relação do meu trabalho com ex-votos. Eticamente, diante de mim mesmo, vejo-me impedido de realizar imagens servíveis à oração ou ao cumprimento de pactos com a divindade. Não sou sequer noticiador disso. Se disser que pintei um “santo”, desconfie. O capeta sempre presente não é o mesmo capeta da religiosidade. É certo, no entanto, que se as minhas figuras beberam em algum recanto místico terá sido nas imagens de altar. Nunca os ex-votos que, aliás, me dizem plasticamente muito pouco, ainda que eu reconheça expressão notável em alguns exemplares desses objetos.
Vou também aos mitos e lembro que muitos foram deuses até que substituídas as religiões em que se incorporavam. Aí já é outra coisa.
Quanto às afinidades das minhas com cabeças equivalentes em outras culturas antigas, diria que não sei, não.

FM E esta outra coisa tem a ver com uma observação de Benjamin Péret, de que “se o mito tem uma origem mágica, a religião que constitui o fundamento de todo misticismo é a negação de toda magia, ou seja, de toda a poesia, e se esta chega a expressar-se através da religião, é na medida em que implicitamente se lhe opõe”. Ao lidar com este abismo entre mito e religião, a arte atende melhor ao assunto do que se opta por ser cronista de uma margem ou outra, não crês?

VR O indagador intelectualiza o simples. Traduzindo em miúdos, o místico e o mítico não se dão bem; não se misturam; vivem às turras; debocham um do outro. A religião e a criação são diferentes necessidades do homem. Conforta tê-las e nelas apoiar-se. São fugas ou encontros que fazem bem à alma e ao espírito, respectivamente. Não se substituem. Acredito nisso.

FM Imaginemos — tendo por infinita a capacidade de imaginação de um artista — um futuro em que aquilo que hoje chamamos de arte contemporânea nos identifique na cadeia evolutiva da espécie. Quem te parece nos representaria bem neste início de novo milênio?

VR Muitos que nos representariam bem hoje, talvez sejam omitidos depois. Note que os lembrados depois não seriam necessariamente aqueles mais presentes na mídia. A História faz suas próprias escolhas e depende muito do ponto de vista adotado pelo historiador, em cada pedaço de tempo. Numa perspectiva noticiosa poderia ser fulano; numa perspectiva estética, beltrano. A perspectiva estética não tem muito compromisso com o deixado para trás. Poderá ser valorizado o pioneirismo, o escândalo, a feitura bem acabada, o que melhor atenda aos mercadores, tantas coisas. Qualquer resposta seria tentativa de adivinhação. E eu não tenho poderes divinatórios, graças a Deus.

FM Não comentarias a obra — ou mesmo algum aspecto em particular, que te desperte atenção — de nenhum de teus contemporâneos?

VR Poderia comentar, mas prefiro evitar. O problema é que essa história de “contemporâneo” é uma encrenca muita atrasada, velha, decrépita, vencida. O grande lance é investir no pantemporâneo, que engloba o antes, o durante e o depois.

FM De que maneira planejas ou refletes acerca do ambiente, público ou doméstico, que irá acolher uma obra tua?

VR Geralmente não planejo acerca do ambiente que irá acolher trabalho meu; costumo, sim, identificar — por ocasião de uma exposição, por exemplo — o que não se adequaria. Não produzo para chocar nem para não chocar; no entanto, muitos dos meus trabalhos — reconheço — poderiam incomodar o olhador, se colocados sobre a cabeceira da cama de uma criança, no seu quarto de dormir.
Já houve ocasião em que fiz trabalho para aproveitar as possibilidades de certo ambiente, como se deu na minha exposição na Galeria de Arte IBEU, no final de 2004. Ali o teto tinha uma espécie de colmeia, com “n” recortes paralelos e retangulares de plástico translúcido abaixo de luz fria. Tirei alguns módulos, medi-os e fiz alguns desenhos sobre plástico translúcido, substitutivos, para aproveitar o que para outros poderia ser um defeito. Havia também grandes janelas de vidro que traziam para dentro do espaço os luminosos da rua; aproveitei para dispor desenhos, sobre plástico transparente, que conversavam com eles, convidando-os à interferência.
Quanto ao espaço público, se o entendermos enquanto relacionado com logradouros públicos, diria que tem estado praticamente fora de minhas cogitações, dado que meu trabalho, seja na escultura, seja na gravura etc., não se afeiçoaria a eles, pela intimidade de que quero impregná-los; são não afeitos a multidões. Questão de opção pessoal, apenas. Só não digo que dessa água nunca beberei porque não me fecho a desafio; ressalvo apenas que, para voltar-me ao espaço das ruas, necessitaria ter um propósito.

FM Aproveitaria ainda o tema para solicitar tua opinião acerca da perspectiva praticamente única com que se conta hoje de veiculação de arte contemporânea em âmbito internacional, que é o modelo bienal. Para o público em geral dá a impressão que a arte enfrenta um grande impasse, que se repete à exaustão e já não expressa nada de revelador ou sugestivo. O que pensas?

VR Ora, a arte enfrenta mesmo um grande impasse. Para que negar? O fato é que há uma arte da crise, feita para bienais. Já ouvi muitos colegas dizerem: “vou fazer algo para a bienal”. Note: coisa datadíssima. E depois? Não há depois. Ou seja, “arte” que nasce finada. O exibidor prepara-se para apresentar aquilo que, instantaneamente, o colocaria no patamar dos gênios e o público, de sua parte, temente, dispõe-se a não rechaçar para não passar por ignorante. Fica um vazio igual tanto em que expõe como em quem faz de conta que reterá o exposto.
Toda generalização deve ser evitada. Tome-se a indicação para a generalidade dos fatos.

FM Há dois extensos e fundamentais estudos sobre tua obra, assinados por Mirian de Carvalho e Péricles Prade, e que abrem volumes editados com grande esmero onde se reproduzem inúmeras lâminas de fases e técnicas diversas. Este cuidado editorial, de registro de uma obra e de sua crítica, é algo muito pouco frequente entre artistas brasileiros, seja pela falta de empenho crítico e/ou editorial, de perspectiva histórica em relação à produção artística, ou respaldado no ardil de um imediatismo de mercado ao qual sucumbe a grande maioria dos artistas de mídia, aqueles que são incensados hoje e desprezados amanhã de forma programática. De que maneira acervo crítico e plástico referente à arte produzida no Brasil poderia encontrar uma melhor perspectiva — e aqui não se pode furtar a iniciativa institucional — de guarda, difusão, reflexão etc?

VR Cada artista tem um modo de lidar com essas coisas. Muitos não se ocupam em conservar ou documentar porque, a bem da verdade, estão mais preocupados em pôr no mercado, o quanto antes, seus trabalhos, e não merecem censura por isso, já que precisam sobreviver e não há mácula nisso. Pessoalmente, considero fundamental manter comigo boa parte da produção para verificar se evoluem e como. Sei de artistas de alta qualidade que vêem impossibilitada uma documentação gráfica de seus trabalhos porque, infelizmente, retiveram pouco e nem sequer sabem por onde circula o que produziu.

FM Ao escrever sobre a mostra “Domínios e Dominações”, Péricles Prade anota algumas distâncias estéticas de tua obra em relação a Goeldi e Grassmann. A tua concordância aqui é preciosa, claro, mas, sobretudo, gostaria de saber das afinidades, as mais íntimas, em ambos os casos comentadas.

VR Aprecio o trabalho de Oswaldo Goeldi e de Marcelo Grassmann. Deste último até tenho diversos desenhos e gravuras, mas a melhor homenagem que posso fazer-lhes é seguir meu próprio curso. Aprecio, sobretudo, a técnica de um e de outro; por outro lado, os assuntos do universo de cada um distanciam-se bastante do meu.
Quando constatar que o meu trabalho tem o jeito do de outro cara, avise-me: estarei plagiando ou sendo plagiado. Do plágio quero distância.

FM Bom, essa busca de diálogo que envolve outras artes, no caso o poema, considerando que protagonizas experiências editoriais em que obras tuas são lidas por alguns poetas… Como lidar com essa aproximação entre duas linguagens que não chegam a constituir um diálogo, mas sim apenas uma ilustração? Evidente que não me refiro a teu caso em específico. A intenção aqui é discutir até que ponto um encontro entre dois artistas não se limita à glorificação de um pelo outro.

VR A glorificação de um artista por outro é um problema relevante. Interessa a quem? De verdade, a ninguém, nem a quem glorifica nem a quem é glorificado. Soa falso.
Outra coisa é a parceria. O fato é que alguém tem que dar a partida: se eu lhe propuser que escreva um poema que funcione independentemente de uma pintura, com que se vai juntar, e se reporte ao assunto daquela de modo a caminharem juntos, e Você aceita o convite é porque isso também lhe interessou. Tenho livro em que o editor Raimundo Gadelha convidou poetas que escolheu (limitei-me a fazer raras indicações — algumas aceitas, outras não) a caminharem comigo (Intimidades transvistas); outro em que a coordenadora Eunice Arruda (que eu nem conhecia antes do Intimidades) convidou, segundo seus exclusivos critérios, 40 poetas a escreverem sobre assunto de uma única pintura minha (Fui eu), observando-se que as escolhas foram todas dela e a única presença que impus foi a da própria coordenadora, que, escrupulosamente, pretendia ficar de fora do elenco (acrescento que nem a pintura focalizada foi escolha minha, mas dela mesma); e um terceiro ainda em que as escolhas foram minhas mesmo, pessoais, por uma questão de afinidade (Xilogravuras, com poemas de Álvaro Alves de Faria, Celso de Alencar, Eunice Arruda e Raquel Naveira), e indiquei em textos miúdos as razões de meus convites. Há, claro, outras pessoas com quem apreciarei fazer parcerias.
Se Você escreve um poema e propõe que eu desenvolva gravura que se conjugue com aquele, atendo a um interesse meu, se sigo junto.
Coisa diversa é a ilustração, que só é escada para texto a que se junta (imagine um livro infantil sem ilustrações). Pessoalmente, tenho muita dificuldade em ilustrar — por deficiência e falta de gosto, mas eventualmente posso fazê-lo, com vontade, mesmo, para um amigo do peito, sem que isso me violente. “Amizade é matéria de salvação” — lembrei-me de Clarice Lispector. No entanto, reconheço que será feitura mais ou menos guiada, com mais técnica do que criação.
Aprecio, por outro lado e muito, a parceria. No momento estou tramando algo a ser desenvolvido por “n” mãos e que se constituirá no seguinte: …ainda não posso falar. Só adianto que Você estará nessa, como autor ou personagem e não terá escolha.
No limite, até esta entrevista é uma parceria. Concedo-a para a sua glorificação. Você até poderá colocar, em seu currículo, o privilégio que lhe concedo. Não precisa agradecer.

FM E retornamos a Francis Bacon, ao dizer que “aquilo que faz um artista parecer melhor do que outro é seu senso crítico mais apurado”, esclarecendo: “Pode ser que não seja nem um pouco mais talentoso, mas o seu senso crítico é simplesmente melhor”. Em teu caso, como consideras a relação entre talento e senso crítico?

VR O senso crítico do artista não tem qualquer relação com o sentido objetivamente desenvolvido por um crítico. O senso crítico do artista costuma falhar muito, porque voltado para seu próprio fazer. Alguns trabalhos que me parecem mais bem resolvidos costumam passar em brancas nuvens — sem importância; outros, que seriam não tão bem arranjados, surgem como mais expressivos aos olhos de quem os examina.
O talento é uma dádiva, coisa que se recebe independentemente de mérito, ou uma conquista resultante da experimentação e do trabalho. Se duvida, verifique o que se dá com alguns jogadores de futebol. Alguns teriam mais a produzir, diante do que gratuitamente receberam, e morrem de preguiça. Outros receberam pouco e superam-se, pela via do treino, da observação permanente e do trabalho. Quem recebe muito, de graça, e vale-se do trabalho para conquistar mais vai se destacar, com mais probabilidade, se produzir algo que faltava.
O senso crítico do artista talvez diga com sua capacidade de preencher buracos.
Não sei se esse tanto recebido é herança genética ou cultural. Sei que alguns partem, sem esforço ou aplicação, do ponto em que outros chegam.

[2005]

[Entrevista com Valdir Rocha (Brasil, 1951), publicada em Invenção do Brasil. São Paulo: Editora Descaminhos, 2013. http://www.amazon.com/Inven%C3%A7%C3%A3o-Brasil-entrevistas-Portuguese-Edition-ebook/dp/B00FTBMR24]

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