quinta-feira, 21 de agosto de 2014

PEDRO TAMEN | Uma breve conversa



FM Concordo quando afirmas que “a memória é também ela uma espécie de morte”. Penso em Roberto Desnos, ao dizer que “o caráter fugitivo do amor é também o da morte”. De uma maneira ou de outra, toda a intensidade do viver nos conduz por caminhos irrepetíveis. E creio que Desnos referia-se a fugitivo neste sentido. Em contraposição, vivemos em uma sociedade que tem adotado como método a repetição. Como tens lidado com essa contradição?

PT A memória é para mim uma espécie de rendição perante a inexistência do passado. Charles Péguy, que, além de uma figura fascinante, foi um poeta que muito me tocou em determinada fase da minha vida, e que hoje em dia é quase completamente ignorado (ele foi, e é, o contrário do “politicamente correcto”), disse qualquer coisa como isto: o presente é algo que quase não existe (de tão instantâneo), situado entre o passado, que já não existe, e o futuro, que ainda não existe. Ora, a memória é morte porque re-presenta o passado que, afinal, é radicalmente nada. A repetição, que, como se diz, é um “tique” da sociedade em que vivemos, é apenas uma re-produção, o que é consolador e dá segurança. Não tenho nada contra ela.

FM Também te referes ao “alargamento do sentido das palavras”, quando mencionas a essencialidade de pô-las em jogo, em atrito. Nessa relação é que se vai alcançar um sentido outro, não há dúvida. Recordo que René Magritte dizia que “o que é preciso pintar é a imagem da semelhança”. Ao estabelecer esse jogo amoroso entre as palavras, qual sentido buscas para tua existência?

PT O sentido da existência do poeta, quando e na medida em que o é, consiste em dizer, em dizer mais, em revelar, a si em primeiro lugar, e aos outros seguidamente, que coisas são as coisas, e os sentimentos, e as relações entre umas e outros. O que no meu caso pessoal é utilizado como instrumento de revelação, ou desvelação, é a desesperada tentativa de passar os umbrais do dicionário e de dilatar o conteúdo semântico das palavras pela exploração das suas outras dimensões (nomeadamente sonoras, contextuais, históricas), desse modo procurando transformá-las em linguagem, em linguagem tendencialmente plena.

FM Esse dueto essencial em tua formação: a educação clássica e a descoberta do Surrealismo, de que maneira poderíamos situá-lo em uma perspectiva portuguesa, ou seja, remetes a uma educação clássica considerado a cultura de teu país, o mesmo valendo para a presença do Surrealismo em Portugal?

PT Por razões biográficas (e, reconheço-o hoje, de inclinação pessoal) li durante a minha adolescência os clássicos portugueses (os outros vieram mais tarde) de um modo bastante exaustivo para a idade que tinha. E foram esses os instrumentos que me serviram para os meus pobres primeiros vagidos literários, até à descoberta, súbita e global, da modernidade em geral e do surrealismo em particular (falo, nessa altura, do retardado surrealismo português; o outro, as fontes, vieram também mais tarde). E desde aí não mais abandonei o casamento em mim entre, por um lado, a paixão da regra e, por outro, a paixão do desregramento, casamento indissolúvel e na prática não dissolvido, apesar dos mui variados avatares por que tem passado.

FM Suponho que consideres complementares as atividades como poeta, crítico e tradutor. Sendo as três tão intensas, se poderia pensar que alguma tenha te marcado a vida acima das demais?

PT A actividade de “crítico”, quase não a tive, não a tenho, e recuso activamente qualquer vislumbre de vir a tê-la; não que, por princípio, tenha algo contra a crítica, mas porque pura e simplesmente me conheço já o suficiente para recusar esse chapéu, que definitivamente não me quadra. Mas, efectivamente, ser poeta e tradutor são coisas para mim complementares, indissociáveis, e que viverão a par na minha vida até ao fim. Nenhuma das duas actividades me marcou mais que a outra, na exacta medida em que brotam ambas da mesma obscura necessidade de descobrir ou de desvelar. Só que, na tradução, o que se procura descobrir e desvelar não é o mesmo e total universo que a poesia persegue – mas, mais humildemente, o universo do Outro, do Autor. Costumo dizer que a tradução é um permanente (e transformante) exercício de humildade.

FM Começaste a publicar teus poemas por conta própria. As edições do autor ainda são predominantes em Portugal ou já se pode encontrar hoje um ambiente mais propício para a publicação de poesia?

PT Desse ponto de vista da edição de poesia, muita coisa mudou em Portugal desde que comecei a publicar. As editoras dividem-se hoje, mais do que nunca, em muito grandes e muito pequenas, e as grandes, de um modo geral, já nem sequer se dão ao “luxo inútil” e dispendioso de publicar poesia, particularmente a poesia dos jovens. Essa tarefa fica para os médios, pequenos e muito pequenos editores, que muitas vezes – e é interessante notá-lo -, são eles mesmos poetas, ou inspirados por poetas. Nos anos cinquenta, a rejeição da poesia por parte da generalidade dos editores era a mesma, e havia menos pequenos editores para os poetas. Daí que houvesse, mais do que hoje, penso eu, as “edições do autor”. A diferença principal estará, a meu ver, entre os poetas-artesãos da edição nos anos 50 e os poetas-pequenos-empresários da edição dos nossos dias.

FM Crês possível distinguir, dentre aqueles poetas portugueses nascidos a partir dos anos 50, alguns nomes que sugiram, confirmando ou renovando, algum aporte substancioso às gerações anteriores?

PT Quando se diz (disse-o Eugénio de Andrade) que o século XX é o “século de ouro” da poesia portuguesa, subentende-se (ou subentendo eu) que a renovação da nossa poesia não sofreu interrupções ao longo de todos esses anos e que o nível médio de qualidade se manteve elevado. E entre os poetas que começaram a publicar na primeira metade da década de 70 (quando, no dizer de Joaquim Manuel Magalhães, surgiu uma “nova sensibilidade”) e depois disso, mesmo nos anos mais recentes, há vários casos notáveis de reatamento, por um lado, e de reinvenção, por outro, do “corpus” poético herdado das gerações anteriores.

FM Terias algo a dizer no sentido de uma aproximação possível entre dois continentes, América e Europa? De que maneira concebes essa relação entre novo e velho mundo?

PT O chamado “novo mundo” é para mim, na medida em que o conheço, objecto de permanente fascínio, por caldear heranças culturais diversas, de modo diverso de lugar para lugar, mas com resultados sempre surpreendentes para o homem do “velho mundo”, que ao mesmo tempo nele se reconhece e nele se perde. Suponho que algo de mais ou menos análogo se passa com o homem do continente americano ao deparar com a Europa. Num sentido ou no outro, estamos perante aventuras que é preciso generalizar e aprofundar.

[2002]


[Visite a página de Pedro Tamen (Portugal, 1934) no Projeto Editorial Banda Lusófona: www.jornaldepoesia.jor.br/BLBLpedrotamen01.htm.]

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