FM Concordo
quando afirmas que “a memória é também ela uma espécie de morte”. Penso em
Roberto Desnos, ao dizer que “o caráter fugitivo do amor é também o da morte”.
De uma maneira ou de outra, toda a intensidade do viver nos conduz por caminhos
irrepetíveis. E creio que Desnos referia-se a fugitivo neste sentido. Em
contraposição, vivemos em uma sociedade que tem adotado como método a
repetição. Como tens lidado com essa contradição?
PT A
memória é para mim uma espécie de rendição perante a inexistência do passado.
Charles Péguy, que, além de uma figura fascinante, foi um poeta que muito me
tocou em determinada fase da minha vida, e que hoje em dia é quase
completamente ignorado (ele foi, e é, o contrário do “politicamente correcto”),
disse qualquer coisa como isto: o presente é algo que quase não existe (de tão
instantâneo), situado entre o passado, que já não existe, e o futuro, que ainda
não existe. Ora, a memória é morte porque re-presenta o passado que, afinal, é
radicalmente nada. A repetição, que, como se diz, é um “tique” da sociedade em
que vivemos, é apenas uma re-produção, o que é consolador e dá segurança. Não
tenho nada contra ela.
FM Também
te referes ao “alargamento do sentido das palavras”, quando mencionas a
essencialidade de pô-las em jogo, em atrito. Nessa relação é que se vai
alcançar um sentido outro, não há dúvida. Recordo que René Magritte dizia que
“o que é preciso pintar é a imagem da semelhança”. Ao estabelecer esse jogo
amoroso entre as palavras, qual sentido buscas para tua existência?
PT O
sentido da existência do poeta, quando e na medida em que o é, consiste em dizer, em dizer mais,
em revelar, a si em primeiro lugar, e aos outros seguidamente, que coisas são as
coisas, e os sentimentos, e as relações entre umas e outros. O que no meu caso
pessoal é utilizado como instrumento de revelação, ou desvelação, é a
desesperada tentativa de passar os umbrais do dicionário e de dilatar o
conteúdo semântico das palavras pela exploração das suas outras dimensões
(nomeadamente sonoras, contextuais, históricas), desse modo procurando
transformá-las em linguagem, em linguagem tendencialmente plena.
FM Esse
dueto essencial em tua formação: a educação clássica e a descoberta do
Surrealismo, de que maneira poderíamos situá-lo em uma perspectiva portuguesa,
ou seja, remetes a uma educação clássica considerado a cultura de teu país, o
mesmo valendo para a presença do Surrealismo em Portugal?
PT Por
razões biográficas (e, reconheço-o hoje, de inclinação pessoal) li durante a
minha adolescência os clássicos portugueses (os outros vieram mais tarde) de um
modo bastante exaustivo para a idade que tinha. E foram esses os instrumentos
que me serviram para os meus pobres primeiros vagidos literários, até à
descoberta, súbita e global, da modernidade em geral e do surrealismo em
particular (falo, nessa altura, do retardado surrealismo português; o outro, as
fontes, vieram também mais tarde). E desde aí não mais abandonei o casamento em
mim entre, por um lado, a paixão da regra e, por outro, a paixão do
desregramento, casamento indissolúvel e na prática não dissolvido, apesar dos
mui variados avatares por que tem passado.
FM Suponho
que consideres complementares as atividades como poeta, crítico e tradutor.
Sendo as três tão intensas, se poderia pensar que alguma tenha te marcado a
vida acima das demais?
PT A
actividade de “crítico”, quase não a tive, não a tenho, e recuso activamente
qualquer vislumbre de vir a tê-la; não que, por princípio, tenha algo contra a
crítica, mas porque pura e simplesmente me conheço já o suficiente para recusar
esse chapéu, que definitivamente não me quadra. Mas, efectivamente, ser poeta e
tradutor são coisas para mim complementares, indissociáveis, e que viverão a
par na minha vida até ao fim. Nenhuma das duas actividades me marcou mais que a
outra, na exacta medida em que brotam ambas da mesma obscura necessidade de
descobrir ou de desvelar. Só que, na tradução, o que se procura descobrir e
desvelar não é o mesmo e total universo que a poesia persegue – mas, mais
humildemente, o universo do Outro, do Autor. Costumo dizer que a tradução é um
permanente (e transformante) exercício de humildade.
FM Começaste
a publicar teus poemas por conta própria. As edições do autor ainda são
predominantes em Portugal ou já se pode encontrar hoje um ambiente mais
propício para a publicação de poesia?
PT Desse
ponto de vista da edição de poesia, muita coisa mudou em Portugal desde que
comecei a publicar. As editoras dividem-se hoje, mais do que nunca, em muito
grandes e muito pequenas, e as grandes, de um modo geral, já nem sequer se dão
ao “luxo inútil” e dispendioso de publicar poesia, particularmente a poesia dos
jovens. Essa tarefa fica para os médios, pequenos e muito pequenos editores,
que muitas vezes – e é interessante notá-lo -, são eles mesmos poetas, ou
inspirados por poetas. Nos anos cinquenta, a rejeição da poesia por parte da
generalidade dos editores era a mesma, e havia menos pequenos editores para os
poetas. Daí que houvesse, mais do que hoje, penso eu, as “edições do autor”. A
diferença principal estará, a meu ver, entre os poetas-artesãos da edição nos
anos 50 e os poetas-pequenos-empresários da edição dos nossos dias.
FM Crês
possível distinguir, dentre aqueles poetas portugueses nascidos a partir dos
anos 50, alguns nomes que sugiram, confirmando ou renovando, algum aporte
substancioso às gerações anteriores?
PT Quando
se diz (disse-o Eugénio de Andrade) que o século XX é o “século de ouro” da
poesia portuguesa, subentende-se (ou subentendo eu) que a renovação da nossa
poesia não sofreu interrupções ao longo de todos esses anos e que o nível médio
de qualidade se manteve elevado. E entre os poetas que começaram a publicar na
primeira metade da década de 70 (quando, no dizer de Joaquim Manuel Magalhães,
surgiu uma “nova sensibilidade”) e depois disso, mesmo nos anos mais recentes,
há vários casos notáveis de reatamento, por um lado, e de reinvenção, por
outro, do “corpus” poético herdado das gerações anteriores.
FM Terias
algo a dizer no sentido de uma aproximação possível entre dois continentes,
América e Europa? De que maneira concebes essa relação entre novo e velho
mundo?
PT O
chamado “novo mundo” é para mim, na medida em que o conheço, objecto de
permanente fascínio, por caldear heranças culturais diversas, de modo diverso
de lugar para lugar, mas com resultados sempre surpreendentes para o homem do
“velho mundo”, que ao mesmo tempo nele se reconhece e nele se perde. Suponho
que algo de mais ou menos análogo se passa com o homem do continente americano
ao deparar com a Europa. Num sentido ou no outro, estamos perante aventuras que
é preciso generalizar e aprofundar.
[2002]
[Visite a página de Pedro
Tamen (Portugal, 1934) no Projeto
Editorial Banda Lusófona: www.jornaldepoesia.jor.br/BLBLpedrotamen01.htm.]
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