quinta-feira, 14 de agosto de 2014

MICHEL ROURE | Absolutamente clandestino



FM Creio que podemos começar este nosso diálogo a partir de um belo poema teu sobre a morte de René Char. Há ali uma imagem muito rica que trata do “balbucio em um ramo de túmulos”. Char foi um poeta que sempre se pôs diante do vazio de maneira provocativa. Ele mesmo dizia: “a poesia se incorpora ao tempo e o absorve”. Porém uma coisa é a poesia e outra é o poeta. Deste personagem acaso é possível dizer o mesmo, que ele se incorpora ao tempo e o absorve?

MR René Char… Começarei por te falar dele a partir deste estranho enterro sobre o qual o poema de que falas se fixou, “que ele incorporou para si e absorveu”. Estranho no fato de que ele se desenrolava sobre vários níveis, como vários enterros da mesma pessoa: um enterro de província e de Provença como já vi tantos em minha cidade, a começar pelo enterro de meu pai, quase aquele de um camponês como Char conheceu tanto e nomeou em seus poemas; em segundo lugar o enterro de um poeta pelos que o tinham conhecido de perto, seja como pessoa, seja palavra a palavra, na lentidão renovada da leitura, que não termina jamais: aqueles lá tinham seus ritos minúsculos e secretos, suas conivências silenciosas. Eles podiam se permitir ser cegos uns para os outros, e mudos. Eles eram corpos tais como o grande Masaccio pôde enfim torná-los presentes. O terceiro enterro era bastante sinistro, aquele de uma personalidade que tinha enfim aceitado ser reconhecida: os fotógrafos saltitavam por toda parte, se insinuavam sem respeito entre os túmulos a toda velocidade para roubar o melhor ângulo: eles são os macacos de meu poema, os que cobrem de merda por horror do tempo e da morte. O conjunto desenha o acontecimento estendido e contraditório pelo qual, nós todos que estávamos presentes naquele dia, entregávamos René Char, homem e poeta, a esse balbucio, a esse trabalho do tempo do qual não sabemos o que ele fará dele: Odisseia onde se conduz por terra com ele o leito de Ulisses, do qual tu sabes que ele não podia ser removido. A morte entrega Char ao balbucio, ele que era o contrário do balbucio, mas ela o carrega também, por rios subterrâneos, até esse pequeno cemitério da vila de Viens (mas também “viens”, o convite a vir), tão próximo do terreno de pouso de pára-quedas clandestino, onde a Resistência recebia parte de suas armas; esse pequeno cemitério onde, dizem, ele teria amado ir, onde ele não pôde ir terminar - ou começar. O balbucio vem de Paul Celan, assim como a forma desse poema: o balbucio é o risco que espreita os poetas, e que cada um à sua maneira busca evitar. Balbucio de grandíssima certeza, quando o poeta frequenta muito sua própria estátua, se atém muito perto da filosofia, como isso pôde acontecer com Char. Balbucio de grande incerteza, onde ele pode soçobrar, onde é preciso que ele corra esse risco de soçobrar, onde a poesia passa por esse momento de não ser mais quase nada.
A conjunção, no poema, de todos esses enterros, desenha uma travessia de metáforas contraditórias.
Eu queria devolver René Char à sua fragilidade, que não é aparente.
A incorporação de momentos tornados pura densidade, pela qual ele é o único a continuar Rimbaud.
O sentido do golpe de martelo, com todos os perigos da quebra.
O empilhamento de brilhos, que pega, ou não pega.
A recusa da poesia como um jogo inconsequente que deixaríamos às crianças no pátio.
Não temer, ao relê-lo sem parar, depois ao abandoná-lo, opô-lo a si mesmo.
Perfeitamente de pé na neve, as armas na mão. Um velho resistente disse a um amigo: “Para mim, René era um bom matador”.
Para terminar, há, em “Seuls demeurent”, um poema sobre o qual volto com frequência: ”Le loriot” (Verdilhão), portando a data de 3 de setembro de 1939, primeiro dia da guerra - Char não data quase nunca - “O verdilhão entrou na capital da aurora”: o verdilhão é pássaro que migra no fim de agosto, início de setembro, ele inscreve de antemão a invasão de Paris, o fim definitivo do mundo, mas há esta espada que fecha o leito, e, neste fim, um começo. O conhecimento preciso dos pássaros incorpora para si a percepção lúcida do momento histórico, e o poema torna-se balanceamento do tempo.

    FM E tu, poeta, como te sentes aqui, em nosso tempo?

   MR Dizer como me sinto aqui, neste tempo, é dizer talvez que não há mais aqui nem há mais tempo, e que o eu vê substituir a si por tantas identidades de empréstimo calculadas com a maior precisão, a maior eficácia. Com quais armas resistir, é a questão que colocava Pasolini: “Onde estão as armas?” Tenho o sentimento, terrível, de uma fuga dos corpos, de seu desmembramento pela mercadoria e pela imagem, da destruição das línguas sem as quais não existem corpos, e um sentimento de que a simples racionalidade sem aliados não nos bastará. Vejo, com certeza, uma invenção; percebo, nesse tempo, um surgimento, e um novo, capaz de não consagrar o passado à perda; mas de fazer alguma coisa dele, mas a destruição acelerada do mundo exige de nós tal velocidade, e, no mesmo instante, esta lentidão, que resiste, o que Pasolini chamava de “uma força do passado”.

FM Eu penso em tua origem, muito próxima do cinema. Fala-me um pouco de tudo isto, tua infância, a morte de teu pai, o cinema, os livros que te foram presenteados pela avó…

MR É curioso, e perfeitamente justo, que tua questão reúna a morte de meu pai e o cinema. Como escreveu para si mesmo o crítico de cinema Serge Daney, eu sou um “cinéfilho” - neologismo a partir de cinéfilo - um filho do cinema ao menos da mesma forma que filho de meu pai ausente, ou desaparecido, alguém que partiu em busca de seu pai, ou de um pai, nas imagens.
Meu pai morreu no dia 21 de janeiro de 1953, aos trinta e um anos, do mal de Hodjkins. Como escrevi em uma “biografia fantasma”: “Minha mãe o carrega, enrolado num lençol de hospital, de táxi até a vila. Sua morte suspende acima de mim a bola de fogo da infância, que eu olho ainda hoje se apagar.”
Mas antes disso, o café-hotel-restaurante de meus pais, a casa da infância, quase meu próprio corpo, serve, ao menos duas vezes por semana, de cinema. Quando um filme é proibido para mim (e se eu não me insinuo pela pequena porta lateral que dava na escada de serviço e os quartos com a cumplicidade dos espectadores) ouço de minha cama o som. O cinema, como reservatório inesgotável, rutilante, incompreensível, de cenas sempre mudas no sentido em que a fala não trabalhou para analisá-las, precede em mim a leitura. Hoje ainda, o cinema tem uma boa extensão de antemão, e a luz da escritura se esforça a todo instante de recobrar a luz das imagens em movimento. As duas, separadamente, e uma em embate com a outra, são móveis. Lá está para mim o que o cineasta Joseph Von Sternberg denomina em suas memórias de a aventura da luz. Meus primeiros livros, esses livros oferecidos por pessoas que, como minha avó ou meus tios, conheciam o preço e a fragilidade da leitura e dos livros, porque eles tinha tido pouquíssimo tempo a lhes dar, meus primeiros livros, é ainda através do cinema que eu os leio: histórias de corsários e de piratas, depois “As grandes esperanças” de Dickens, que leio como que através dos filmes ingleses… As imagens e a leitura, frequentemente tão próxima da voz alta ouvida na cama, cedem umas diante das outras, se reforçam, ou permanecem separadas, reduzidas à insônia, reduzidas ao mais pesado dos sonos.
Devo acrescentar que a morte de meu pai, minha fuga dessa morte, também no cinema, puderam conduzir a uma terrível indiferença, a um entorpecimento da sensibilidade, a uma recusa da realidade.

FM Penso na magia do cinema que foi transformada em um espetáculo comercial, como tudo em nossa vida. Vale dizer da magia o mesmo que dizia Buñuel do cinema, que “é uma arma maravilhosa e perigosa se manejada por um espírito livre”?

MR O cinema, arma maravilhosa e perigosa nas mãos de um espírito livre… Ficaria tentado a dizer que o cinema é perigoso e maravilhoso em todas as mãos. Essa relação estreita, da qual acabo de falar, entre o cinema e a palavra (oral ou escrita) que o persegue, que deve persegui-lo para não ser possuído por ele, mas que deve quase considerar a posse como uma passagem forçada, como um momento (no sentido de um momentum, de um equilíbrio provisório e instável de forças), encontra sua justificação e seus meios nesses espíritos livres que são os grandíssimos cineastas (mas também graças a esse espírito livre, de origem desconhecida, presente em ti quando da visão única de tal ou tal filme, e para ela apenas: não o deixe se perder…): sempre mais estreitamente ligadas, em cada um de seus filmes, a magia e a colocação em dificuldade da magia, a suspensão da magia, que, sem fim, obriga a falar, deveria obrigar a escrever.
Da mesma maneira que o espetáculo comercial - integrando as técnicas numéricas, não apenas as técnicas de fabricação de uma realidade virtual, porém, ao mesmo tempo, as técnicas de fabricação de identidades comerciais de substituição - tornou essa magia muito mais perigosa. A descentralização da essência humana encontra na numeração uma saída terrificante. Contra esse perigo, as armas da racionalidade, as armas forjadas pelas Luzes não bastam. É preciso associar a isso essa “linguagem da realidade”, segundo Pasolini, em que trabalham os grandes cineastas, um discurso crítico de responsabilidades e poderes aumentados, e a poesia que toma seus riscos ao ficar mais próxima das imagens. A relação que entretêm o cinema de Pasolini, seu discurso crítico e sua poesia abre um caminho. Estreito, inimitável: unicamente feito de tradução.

FM O cinema, o romance, o teatro… e a poesia, o poema, esta passagem da rotina para uma confrontação entre sonho e realidade, ou entre vida e verdade, ou entre memória e eternidade… Como te descobres poeta?

MR Descubro-me poeta, justamente, quando a “famosa golada de veneno” da qual fala Rimbaud, e que não é nada mais que a própria realidade, absorvida numa dose tão alta que é preciso, creio, proibir, se pudermos, qualquer outra substância, regurgita nesse tempo variável de que necessitou sua destilação corporal. Um outro corpo se forma ao lado do meu, tão improvável, tão intemperante que tudo está para recomeçar: o “lance”, como diria Mallarmé, está para se jogar novamente, mas esse não é um lance de dado. É quase um lance de força. Daí, talvez, a “clandestinidade”, a publicação rara ou ausente. A todo instante, o silêncio ou o desabamento, ou o muito cheio, são possíveis. Mais que de uma “obra”, trata-se de uma tonalidade evolutiva, de um movimento sem volta que não impede a reescritura nem o repeneiramento. Não conheço o que chamam de “as felicidades de escritura”, mas a felicidade física de ter escrito, e de ter que - mas naquelas circunstâncias outras - recomeçar.

FM Conheces bem a influência da lírica francesa em todo o mundo. Esta compreensão, cria algum tipo de esnobismo em relação a teu caráter? Há uma correspondência atual entre a influência histórica e a qualidade do que se produz na França em termos de poesia?

MR A poesia francesa teve uma grande influência no mundo, diria, de Rimbaud até Char e Ponge, e Michaux incluso, e, sobretudo, o surrealismo, mas várias razões me impedem de tirar disso o menor orgulho, o menor esnobismo, a menor segurança.
A influência sobre mim dos poetas estrangeiros, e dos romancistas estrangeiros, é imensa. Ler e traduzir, ler ao traduzir é para mim essencial.
O ponto de vista segundo o qual a poesia francesa, e só ela, operou uma ruptura decisiva denota um orgulho desmedido, um fetichismo atordoante, que persiste aqui, e restringe (leitura e escritura) o campo dos possíveis.
A obsessão da novidade (melhor: do fazer novo), o formalismo, a imitação dos grandes nomes da poesia norte-americana, a mania de se resguardar das armadilhas da poesia por meio de noções tomadas emprestadas da filosofia heideggeriana ou das ciências da linguagem, por meio de regras matemáticas, o caráter invasor da metafísica, etc… mas também a persistência do bem-escrever-poético-tradicional-bem-dominado… me desagradam numa grande parte da poesia francesa contemporânea, assim como os grandes acertos de contas periódicos contra tal grande nome que opõem a tal outro: Char contra Ponge, por exemplo. Esse fechamento ao mundo, essa recusa da fecundidade das contradições, desencorajam aqueles que, no estrangeiro, pedem apenas para conhecer sem pré-conceitos, e aqueles que, como eu, descobrem ao acaso das revistas e das antologias tantas experimentações, tantas experiências individuais formando como que um laboratório subterrâneo, uma imensa alternativa secreta onde cada nome pede para ser tomado isoladamente para formar uma constelação, ou várias, com outros.
Devo ser tanto mais modesto quanto a leitura do que se produz hoje na França não é essencial para mim, em parte pelas razões que já disse. A tensão do estrangeiro na própria frase que a outra língua traz é mais central. Tenho uma grande admiração por todos os poetas franceses tradutores, e eles são numerosos.
Em suma, fico tentado a dizer, com o risco de te decepcionar, que para abrir meu caminho mantenho-me afastado de certas problemáticas que desenham a poesia aqui, e que, com o risco de ser injusto, a poesia francesa contemporânea não saberia ter a influência que ela teve.

FM Suponho que tua entrada no Partido Comunista francês, nos anos 70, tem a ver com um desejo defensível de liberdade, porém há ali também o tema do fanatismo que caracterizaria as ações programáticas do comunismo. Tua saída do partido tem a ver com a morte de Pasolini, com a descoberta de outro mundo graças às tuas viagens ao Panamá e à Nicarágua, ou tem acaso outra razão?

MR É uma das grandes contradições, se não a contradição de minha vida: ter sido membro do partido comunista mais incapaz de uma tradução política que já existiu na Europa, do partido comunista mais lento a reconhecer a monstruosidade estalinista, enquanto jamais deixei de ter os olhos voltados para o surgimento, o jorrar inesgotável da história alhures, ávido por novas formas que poderia tomar um poder político do povo… Não imaginava nada fora de um partido de massa, de um experimentador coletivo. Encontrei nele, paradoxalmente, os meios de criticá-lo, depois de deixá-lo, esforçando-me de não esquecer nada da pura canalhice, da contorção jesuítica, da cegueira diante da força e do crime, do espírito de seita, mas também da real fraternidade, e das pessoas de todos os meios, que não teria podido encontrar em outro lugar senão lá. Por meio dele segurei o fio dessas revoluções sucessivas que fazem a singularidade desse país. Puxando esse fio ao extremo, mas sem rompê-lo, fui conduzido, ou reconduzido, ao Partido Comunista Italiano, à relação desconfortável que tinha Pasolini com ele, ao cinema popular italiano, a Gramsci, a Walter Benjamin, depois, com um lamento inconsolável, a Mandelstam e a Chalamov, como a parte mais profunda dessa história. Não foi a morte de Pasolini que me distanciou, mas a Polônia, o Afeganistão, o que eu soube de tal e tal vida partida, que tinha dado muito. A descoberta do mundo, de outros mundos políticos, Portugal, Chile, Nicarágua, a intimidade quase imediata, mesmo que fosse ilusória, com todo acontecimento - a famosa golada de veneno, sob outras formas, ou as mesmas? - desfazendo o mundo para refazê-lo, desempenharam também um papel. Permanece uma tensão, uma revolta, uma espera do que pode surgir da história, bem como do subterrâneo há muito tempo desprezado por Narciso, onde sozinha, antes que seja tarde demais, a poesia pode atingir.

FM Falas em desvios da imprensa internacional. Eu creio que a todo momento temos que refazer o mundo dissolvido pela imprensa, nacional e internacional. Como se pode falar desses desvios em termos de imprensa francesa?

MR Como a imprensa, a imprensa francesa em particular, contribui para desfazer esse mundo que ela deveria contribuir a fazer, para nos ajudar a fazer e até mesmo - por que não sonhar? - a refazer? Estou longe de ser um especialista dos problemas da imprensa do meu país, simplesmente um leitor cotidiano, particularmente do Monde (Mundo), mas posso fazer as seguintes constatações: a imprensa, até mesmo um jornal dito de referência como Le Monde corre na traseira da televisão sem esperança de alcançá-la: o sensacional instantâneo, a enquête exclusiva visando dar um “golpe” político, o clichê de estilo, a personificação sem medida, a particularidade tendo lugar de singularidade, a submissão às ideias mais potentes, fazem a lei. A independência financeira (fazer tudo para não pertencer a um grupo de imprensa multinacional) não garante nada: a lógica de empresa tendo os mesmos interesses que outras empresas, quer dizer, a satisfação dos acionários, faz finalmente a lei, e o grupo vai se tornar cada vez maior para escapar de outros, absorvendo outros títulos. O funcionamento da célula dirigente é cada vez mais opaco. Os laços dos dirigentes da redação com outros grupos são visíveis para quem quiser conhecê-los. Há na França uma centena de intelectuais, em particular, que defendem as mesmas ideias, trocam entre si serviços e cumprimentos, e que chamam de intelectuais, não mais de referência, mas de reverência. A concorrência com os jornais gratuitos, suportes de publicidade, não concilia nada. O desaparecimento de um tecido militante tradicional quase aniquilou a imprensa de opinião, e nenhuma estrutura associativa de leitores, nenhum tecido social de tipo novo que permita ler, comentar em conjunto a imprensa, criar a democracia a partir da interpretação coletiva, portanto, que permita “refazer o mundo” a partir da mundialização, veio à luz de maneira durável, mesmo se as tentativas são numerosas, repetidas e promissoras, na Internet por exemplo. Le Monde Diplomatique é, para mim, o que melhor corresponde ao que espero da imprensa: esse título faz parte do grupo Le Monde, mas soube nele conquistar sua independência editorial. Privilegia análise de fundo, e seus leitores dialogam com ele de maneira crítica.
O acontecimento, qualquer que seja, que instantaneamente se produz no outro extremo do mundo, em ti mesmo, deverá encontrar pela linguagem sua luz mais profunda: a imprensa, aqui, seria um dos meios de se alcançar esse caroço dialético feito de presente e de passado do qual fala Walter Benjamin. Nesta nova relação, a reconstruir a cada vez, entre o próximo e o distante, intimidade e historicidade, no reverso da imagem dominante que nos extirpa de nós mesmos e nos torna mudos, a poesia encontra - ou não - seu lugar.

FM “O que permanece sempre o mesmo é o medo do conhecimento amoroso, o medo de viver, o profundo e imbecil terror de Eros, que conduz à mortificação.” Isto dizia Pasolini que, já em 1948, foi expulso do partido. Porém a vida em nosso tempo foi mudada por outros aspectos, outros fantasmas, que mantêm o mesmo ardil, sobretudo em relação ao conhecimento amoroso…

MR Não há conhecimento do corpo, logo não há conhecimento do mundo - Spinoza diz que nosso corpo é o mais difícil de se conhecer - sem o conhecimento amoroso. Gramsci já, e Walter Benjamin, em vários fragmentos inéditos, sublinham as manifestações mórbidas inevitáveis às quais leva a manutenção das mulheres sob dominação: o terror imbecil do Eros é uma delas. Um dos espectros mais retorcidos e astutos, a pornografia, dissimula o corpo amoroso ao exibir seus pedaços, muda o conhecimento amoroso - “essa forma de intimidade que é mais que um casamento”, como dizes para a tradução, mas por toda parte encontramos a tradução - na ginástica odiosa que esgota a fazer “tudo” ver. A pornografia, no sentido amplo do termo, como desaparecimento do conhecimento dos corpos uns pelos outros em sua exibição técnica, tem um grande futuro. Ela própria substitui muito eficazmente o conhecimento amoroso, e, melhor ainda que a censura, o mata ao macaqueá-lo. Vai se tornar difícil de não olhá-la de frente, e será necessário perturbar seu jogo, e, lá também, como o dizes, “refazer um mundo dissolvido”.

FM Tua relação com a poesia hispano-americana tem variações muito amplas, que vão da leitura à tradução, esta forma de intimidade que é mais que um casamento. Traduzir Roberto Juarroz ao mesmo tempo que Luis Alberto Crespo é como penetrar em mistérios distintos por entradas ainda mais distintas. Fala-me um pouco desta tua experiência.

MR De fato, essa forma de leitura em que os dois textos, as duas línguas, estão já um em frente do outro e en regard do outro, e se refazem um ao outro, eu a conheci no liceu com o latim e o grego, e apenas tive que reencontrar esse prazer, primeiro com o italiano, Montale, Pasolini, Ungaretti, depois com Lezama, Juarroz, Luis Alberto Crespo. Por fim, com a poesia inglesa e americana. Essa metáfora amorosa da tua pergunta, “penetrar em mistérios distintos por entradas distintas” e tua observação sobre “aprender tua língua para desfazer toda a minha poesia” porque “nós somos, quem sabe, penhores da língua”, dizem bem o que é a tradução, e talvez o que seja a poesia. O corpo do poema é de todos os objetos de linguagem aquele que recebeu a estrutura mais marcada, aquele que palavra a palavra atou com o maior número de palavra o maior número de laços na maior velocidade: talvez ele saiba que está consagrado a ser transportado, valha o que valer, pela memória, mesmo posto em peças por ela e reduzido a seu incipit ou a um ritmo isolado, a partir do qual se quererá - é o contrário exatamente da pornografia - voltar ao corpo inteiro do poema, inesgotavelmente. Talvez ele saiba que está consagrado a passar em um outro corpo - uma outra língua - e que lhe será preciso opor essa resistência bravia sem a qual a transformação dos dois corpos um no outro não poderia acontecer. Aconteceu-me de reencontrar, anos depois em um dos meus textos aos poucos a sombra de uma frase de Juarroz, que tinha muito tempo viajado até lá, através de leitura e traduções repetidas. No dia mesmo de meu retorno à França, o puro-sangue árabe de Luis Alberto Crespo se deslizou até a minha orelha: abri os olhos, estava na estação de Avignon, procurando as palavras, nomeando-o já confusamente collecteur des ombres (coletor das sombras).

FM És mais ou menos um clandestino absoluto [risos]… Poesia e clandestinidade, um bom assunto, não? Crês que a imaginação seja uma forma de clandestinidade?

MR O título, cômico, de “clandestin absolu” (clandestino absoluto) (mais ou menos absoluto) e os risos, salutares, me obrigam a um esforço de lucidez. Sou clandestino no sentido em que eu não publiquei nenhum livro, nunca com provas corrigidas, jamais fiz objeto de artigos ou de leituras por um ato, jamais fiz objeto de traduções, jamais participei de colóquios (dos quais o objeto seria, por exemplo “poesia e clandestinidade”). Li às vezes, com outros, diante de um público restrito, umas vinte pessoas. Juan Luis Delmont traduziu rapidamente em espanhol, em outubro, os poemas ainda manuscrito que eu escolhera para o XII Festival de Poesia de Caracas, para o qual fui apenas convidado em razão de nossa tradução de Santos Lopez. Essa entrevista é a primeira da minha vida.
Enquanto contista e professor, sou um profissional da leitura em voz alta. Isso não me impediu, quando de minha intervenção em Caracas, de perder um texto que eu tinha nas mãos, ou de não achar mais a ordem na qual eu queria ler meus poemas. Eu estava, em minha opinião, muito longe da performance, a anos-luz de Jaramillo Escobar ou de Reynaldo Jimenez, que têm, ambos, em direções diferentes, pensado e musicalmente executado a performance. Por causa disso me ative, para mim, a uma grande fragilidade, a um não-profissionalismo roçando o amadorismo.
A parte mais consciente desta - relativa: publiquei às vezes em revistas, de preferência confidenciais - clandestinidade, se atém justamente a essa fragilidade do poema, não digo da poesia, pois é uma palavra, como a palavra poeta, da qual mantenho distância: o poema é frágil no sentido em que este aperto de mão do qual fala Paul Celan alcança, quando alcança, muito dificilmente, seu leitor ou ouvinte: um caminho subterrâneo ao fim do qual restam apenas algumas palavras entregues ao trabalho da memória, postas em perigo de ser mal compreendidas em razão do próprio mito da poesia e do poeta. A luta pela forma, pela duração através da solidão da forma, é uma luta com e contra a memória. Nada está garantido na chegada. A profusão barroca o sabe, como o haikai o sabe. Pois o poema luta com os milhares de outros, pois “eu” não é “um outro” como dizia Rimbaud, mas milhares de outros: o mundo inteiro, nele, resiste.
Acrescento que o clandestino, aquele que, escondido com outros, refaz incansavelmente um mundo desfeito, do qual ele contém, como nenhum outro os pedaços nele, algumas vezes mais fortes que ele, o clandestino não deseja o salário ilusório da imortalidade, mas sim sair da sombra, de repente, totalmente inteiro, um sobrevivente como outros e que teve necessidade da sombra para se encontrar e sobreviver.
A imaginação é uma forma de clandestinidade no sentido em que ela elabora em segredo seu próprio logos, e surge no tempo que ela escolheu: todos os formalismos não poderão mudar nada nela, mesmo se o exercício muscular regular e o conhecimento teórico permitem numa certa medida estar pronta para acolhê-la, até mesmo ir contra ela, a suportá-la em todos os sentidos do termo.
A imaginação é clandestina enquanto ela é esse caroço descentrado em que você não tem livre acesso. As palavras de Blanchot sobre a filosofia podem ser transpostas para cá: “É preciso se levantar cedo para isso, é preciso vigiar com uma vigilância que vigia a noite e até mesmo não se deixar tentar pela outra noite. É preciso enfim falar perigosamente e perigosamente guardar o silêncio, rompendo-o totalmente.”

FM Pasolini falava de cinema de poesia. dizia que o cinema tem que construir seu próprio mito. Me parece que tu concebes um vínculo muito forte entre poesia e cinema. Até que ponto a poesia aprendeu com o cinema e construiu seu próprio mito? O que pensas do emprego das técnicas de montagem do cinema aplicadas à poesia, ao poema?

MR Como o cinema, o poema foi por muito tempo uma arte popular, uma técnica de improvisação estreitamente ligada às circunstâncias da vida; como o cinema, consiste ainda fundamentalmente em colocar uma câmera diante da realidade. Pasolini falava do cinema como linguagem da realidade. A narração vem só depois. Todos os dois têm em comum também, eu o digo em desordem, um efeito obsessivo, ainda que parcelar e imprevisível, sobre a memória: lembramo-nos de versos, de gestos de atores, de planos, de uma luz, de um ritmo. Como o cinema, o poema é tributário do número daqueles que o fazem: o cinema necessita de um coletivo sem o qual o filme não existe, e esse coletivo impede com frequência também que o filme exista, segundo sua configuração econômica, as relações de poder, o peso dos produtores etc.… O poema, eu disse acima, luta com esses milhares de “eu” que a linguagem contém, que são igualmente “outros”. Como o filme, o poema deve construir essa aparência de maestria, de captura do mundo, do espectador ou do leitor, essa fascinação demiúrgica, para melhor destruí-la no momento da verdadeira, breve, memorável captura. Giorgio Bassani escreve: “Se, nos versos que escrevia, eu queria acolher a nova realidade que se impunha ao meu espírito, toda a nova realidade de mim mesmo e do mundo, então eu devia lutar sem piedade, sem a menor fraqueza, face a face com a natureza, contra o paraíso confinado do gosto e da cultura, contra o fácil paraíso dos primeiros afetos, para colocar inevitavelmente sobre fundo de idílio! Lacerar uma pele delicada, detestar o que eu mais amava; tratava de um risco necessário. É apenas sentindo a vida me abandonar que eu podia me autorizar a pousar sobre ela, sobre o palco do mundo, um olhar sereno, de artista, como se fazia antigamente.”
Acrescento que um grande número dos meus poemas foi escrito, às vezes anos depois, a partir de sequência de filmes ou de documentários. Como o poema, o cinema é um objeto ruim para a crítica: muita “arte” em um, muita ilusão, produzida industrialmente, no outro. Reescrevendo as imagens de cinema, o poema embaralha os limites entre arte erudita e arte popular, ele se mostra capaz, como o cinema, de aceder às citações instantâneas e imediatamente reconhecíveis de uma memória coletiva.
Quanto às técnicas de montagem comuns ao filme e ao poema, elas não se reduzem ao “cut-up”, de pedaços emprestados e de citações, visão muito estreita e mecânica da montagem: o próprio verso é uma técnica de montagem, assim como o branco; encontramos no poema tanto a montagem paralela quanto a montagem alternada, para não falar da montagem de atrações eisensteinianas. As alternâncias das apólices de caracteres, quando ela não se reduz a uma simples acumulação vanguardista, é também uma técnica de montagem: o outro laço estreito com o cinema está também na densidade extraordinária das operações simultâneas que se fazem entre os planos do filme como no interior de cada frase do poema. Duas escolas da imperfeição, absolutamente necessária, absolutamente clandestina, que rói a perfeição (esse mito do cinema, o acesso direto ao mundo, esse mito da poesia, o acesso direto ao inconsciente), apertando-a.  

[2006]

NOTA
Michel Roure (França, 1946) é uma dessas pessoas tomadas por uma alegria contagiante. Seu afinado senso de humor intelectual encontra-se plenamente conjugado com um prazer pela vida, resultando em uma figura cada vez mais rara: a do intelectual divertido e encantador. Em suas anotações autobiográficas encontramos uma infância marcada pelo cinema. Os pais tinham um Café-Hotel-Restaurante que também funcionava como cinema e esta foi sua inconfundível escola. Mesmo seu amor pela literatura, sua afinidade com René Char ou Trakl e a música de Mahler ou Schubert, entranham-se nos roteiros de John Ford, Godard, Ronoir, Pasolini, aventuras que irradiam imagens desconcertantes com que tece seus poemas. Nessas mesmas anotações refere-se ao nosso encontro em um hotel em Caracas, em 2005, dizendo que ali conheceu, “entre reuniões, um homem sério que constantemente ri e esconde a antropofagia debaixo de uma boina”. Na verdade, ríamos os dois, como se fosse um encontro entre dois espelhos. A poesia de Michel estava sobretudo em seu riso solto, por ali se dava o mais entregue contato com o mundo. Por ali a expressão de seu diálogo com o cinema, com a poesia hispano-americana - que o levaria a traduzir José Lezama Lima, Luis Alberto Crespo e Roberto Juarroz -, as viagens e mergulhos no jazz, tudo o que foi mesclando com as volumosas páginas ainda inéditas de Tribulum, ou le temps hours de lui e Le corps en fuite, onde reúne sua poesia escrita desde 1969. Esta entrevista nossa a planejamos desde o encontro venezuelano, mas somente nos últimos meses conseguimos concretizá-la. Nenhuma nota de apresentação faria jus a ela, de maneira que o melhor é nos dedicarmos às palavras deste notável poeta. Não sem antes dizer que originalmente esta conversa se deu em francês e espanhol, sendo posteriormente traduzida por Eclair Antonio Almeida Filho. Abraxas

[Entrevista publicada na Agulha Revista de Cultura # 52 — Julho de 2006.]

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