quinta-feira, 14 de agosto de 2014

MARIA JOÃO CANTINHO | Os abismos selvagens da escrita



FM | Em tua galeria de entranháveis identificações mencionas a Dostoievsky, Mann, Conrad, mas principalmente a Hesse e Borges. De que maneira hoje se pode detectar essa identificação, qual a singularidade do diálogo que tua narrativa consegue para si a partir da leitura desses autores? E por onde principia uma consciência estética em teus escritos? Como surge, enfim, a contista Maria João Cantinho?

MJC | Sim, de Hesse fui buscar a limpidez da prosa, de uma aparente simplicidade. Onde as questões metafísicas essenciais humanas aparecem em toda a sua pujança, como o tema do duplo, a busca do ideal e do conhecimento, de deus. Mas o que sempre me fascinou nele é justamente o modo como a prosa aparece depurada e despojada, entrelaçando admiravelmente forma e conteúdo. Essa proximidade encontro-a também, de forma notável, em Kafka, mas o caminho é outro, a ironia de Kafka é totalmente outra. Em Borges, o que me fascinou e me deixou a angústia bloomiana da influência, da qual dificilmente consegui libertar-me, foi o recurso inesgotável ao maravilhoso, a abertura para um universo místico e insuperável, a possibilidade de converter a literatura em acesso ao infinito, algo que nenhum outro escritor me permitiu ainda. Essa fusão entre onirismo, literatura e metafísica, toda a pujança desse movimento barroco que existe na literatura de Borges e que nos conduz ao mais profundo conhecimento do homem e do pensamento, o aspecto lúdico e subtil herdado por ele da literatura inglesa e a capacidade alegórica de representação que a sua literatura contém é o que considero o que de mais perfeito se faz e que está intimamente relacionado com a concepção de literatura que possuo: uma via para o conhecimento. A literatura é um compromisso com a vida. Tanto ético como estético. Claro que há nesta minha afirmação um anacronismo, se compararmos com o que se faz actualmente na literatura portuguesa, mas essa seria uma outra questão.
Quanto à última parte da questão: como é que surge a contista? É simples e respondo de alguma forma ironicamente: a partir de uma certa altura comecei a achar que também tinha alguma coisa a contar e que podia contar algumas histórias interessantes… pura pretensão… a necessidade foi-se tornando muito forte a partir do final da adolescência, a literatura confundia-se com a vida ou o inverso, como se a literatura fosse um plano da realidade que me mantém, justamente, em ligação com a vida. Não saberia estar de outro modo na vida, acho. Por isso, ao falar de consciência estética, torna-se obrigatório falar de condição existencial, já que não separo vida e literatura. Se o faço, isso não é senão artificial, para que possa viver o quotidiano.

FM | E na literatura portuguesa, em qual correlato se poderia pensar? Acaso um Manuel de Oliveira teria aí algum papel a ser destacado?

MJC | Sim, na literatura portuguesa, na minha opinião e sem querer ser injusta para ninguém, há autores e artistas plásticos que me marcaram intensamente, mas nunca caberia aí um Manuel de Oliveira, consagradíssimo na Europa, mas que me deixa inteiramente indiferente, a não ser unicamente nos primeiros filmes como Aniki Bobó, em que a realidade portuguesa se deixava captar por uma inocência e uma alegria que não existe nos filmes posteriores desse realizador. Não gosto do cinema que se toma como pose, onde a formalidade pura se transformou no único alimento do olhar… onde o cinema se toma como contemplação e tão só isso… de uma forma geral, seria de falar numa série de jovens realizadores portugueses que, ultimamente têm feito por alterar o modelo "oliveiriano" do cinema, retratando uma realidade mais próxima e viva, não sendo por isso menos meritório, mas o cinema novo português procura abandonar essa excessiva intelectualização do cinema e visa a comunicabilidade do cinema. Aí, torna-se possível falar de um correlato. O que faz a literatura senão contar uma história? Contando-a da melhor forma que o escritor sabe? Essa parece-me a questão essencial e remete para a questão da comunicabilidade da obra de arte: mais do que comunicar algo, ela comunica-se em si e a si própria como atitude.

FM | Mencionas a "angústia bloomiana", o que me leva a citar uma reflexão de Antonio Cícero: "a teoria da angústia da influência sofre do mesmo problema da psicanálise em que se baseia. Se alguém reconhece ter a angústia da influência, isso mostra que a teoria está certa; se o nega, é porque a denega, e se a denega, isso também mostra que a teoria está certa. Ora, esse tipo de imunidade à falsificação é, como mostrou o filósofo Karl Popper, característico das pseudociências." o que pensas a respeito?
MJC | É evidentemente um paradoxo inquietante, e de nada adianta ficar remetendo para as suas inúmeras consequências, que, de uma forma ou de outra, se tornam tão intimidatórias para o autor como para o crítico, que se vê assim impossibilitado de classificar o autor sem as tais "balizas referenciais". Imagino o que terá sido para os críticos da época lerem Ulysses de James Joyce…
No entanto, a questão epistemológica e crítica persiste e faz todo o sentido: porquê o medo de se expôr à falsificabilidade? Desse modo, ao temer expor-se à falsificabilidade, qualquer teoria acaba cedendo às suas próprias armadilhas, julgando encontrar a sua força num solipsismo estéril. Não creio que haja aí ingenuidade, ao proceder-se desse modo, mas uma obstinação dogmática, sabendo o dogmático que a teoria só pode resistir nesse fechamento. E todos sabemos como os dogmatismos são os mais extremados exemplos de "pseudo-ciências". Inúmeros são os exemplos dessas "pseudociências" - mostro aqui o meu total acordo com Popper -, a começar nos grandes sistemas filosóficos que impediam qualquer confronto crítico. Isso leva-me imediatamente a uma questão que me interessa directamente, incómoda, e que é a tendência natural das várias escolas da teoria da literatura se fecharem entre si e evitarem o diálogo, criando nos meios académicos e críticos uma separação artificial e dogmática. Como se não houvesse espaço para a mais completa diversidade na literatura…

FM | De que maneira, em Portugal, essa postura acadêmica interfere, por exemplo, na recepção de novas obras literárias?

MJC | Como sempre acontece, por muita abertura que haja, o academismo define cânones literários, o que dificulta a classificação de obras que não se encaixem no sistema dominante. Mas isso não é uma questão que apenas se refira à literatura, mas também em relação à arte e a formas de anticultura e contracultura isso ainda se aplica mais. A questão é a impotência que o crítico, educado a partir de cânones convencionais, sente diante daquilo que não compreende. Logo a seguir, surge uma outra questão: mesmo que ele se sinta tentado à disponibilidade para aceitar essa obra de arte ou literária ou outra qualquer, musical, por exemplo, como vai lidar com o que não conhece? Como vai identificar o que possui qualidade e o que não possui? Todas esses problemas são subjacentes à recepção da obra de arte em geral, daí que surja a mais intensa confusão entre o que é bom e contém essa dimensão de contracultura, subvertendo códigos e fundando novos (que nesse justo momento são imediatamente destruídos, como o diriam Walter Benjamin ou Baudelaire, que o novo e original deixam de o ser imediatamente no momento em que aparece) e o que é o mais puro oportunismo falsário, que se pretende como subversivo, não passando de pura gratuidade.
daí a maior das confusões, operada no meio académico actual, que erra no momento em que se pretende democrático. Do outro lado desse ecletismo acrítico, encontramos a atitude inversa, ainda pior (pois a democracia é corrigida naturalmente com a passagem do tempo sobre as obras), que é a exclusão de tudo o que não é clássico e não provém directamente do meio académico. Isso acontece sobretudo com a poesia portuguesa, mais do que com o romance, já que a mescla entre crítico de poesia e poeta é muito vulgar em Portugal e o crítico de poesia possui a legitimidade do academismo, na maior parte das vezes. A partir destas duas atitudes possíveis, é fácil prever o que acontece na recepção de novas obras literárias. Aceita-se com demasiada facilidade tudo o que é contracorrente, mesmo não se sabendo se isso vale grande coisa, o paradigma do vanguardismo é ainda muito forte na crítica literária (caberia uma reflexão séria sobre o que é a inovação), mas rejeita-se com demasiada facilidade o que discreta e solidamente se impõe na literatura.
Com isto, falo evidentemente dos grandes escritores como João Aguiar, João de Melo, Almeida Faria, Mário de Carvalho, Mário Cláudio, que tão facilmente são esquecidos por não se integrarem nem no gratuito nem no previamente estabelecido. Já para não falar das imensas escritoras mulheres (a ficção em Portugal é sobretudo domínio das mulheres) que possuímos e que são totalmente ignoradas ou lidas em círculos cultuais. São tantos os exemplos disso que não caberia aqui citá-los. E o problema que persiste, também, é essa esquizofrenia entre a consagração definitiva dos grandes autores e a aceitação imediata e acrítica de jovens escritores que, na maior parte das vezes, não possui essa qualidade que a todo o momento vemos sobrevalorizada pela crítica. Seria ainda muito importante falar num outro aspecto que cria a maior das confusões e que é o equívoco entre o mercado da literatura e a literatura em si, coisa que em muito se assemelha ao que se passa na questão da arte. São as grandes editoras, as que sabem fazer um bom marketing, que "fazem" os autores, questão que tende a sufocar cada vez mais a literatura.

FM | É interessante observar que já em 1965 o francês Jean Schuster dizia que "a finalidade imediata da publicidade é a destruição massiva, contínua e racional dos produtos pelos produtores, alienados esta segunda vez como consumidores", caberia discutir, a partir dessa ótica, o ardil a que são levados esses autores que se deixam fazer pelo marketing. Mas me interessa aqui evidenciar essa tradição de vozes feminina na ficção portuguesa. Como identificas essa tendência e quais os obstáculos encontrados por essas escritoras e que as deixam restringidas aos círculos cultuais, como dizes?

MJC | Não quero que haja qualquer conotação pró-feminista ou antichauvinista no que digo, pois a coisa é puramente factual. O que parece ter vindo a afirmar-se é essa vantagem que as vozes femininas têm conquistado na ficção portuguesa. Creio que a situação não pode apenas justificar-se pelo acesso ao meio literário, pois esse acesso é extensivo à poesia, igualmente. Mas, sobretudo com uma arte da paciência que o romance parece conter, um hábito, por excelência, feminino (hábito não meu, certamente), em que a escrita vale sobretudo pelo pormenor, pelo reescrever, por uma construção sistemática e hábil que exige a lentidão, um tempo de espera/gestação, se é que é possível falar assim. Nesse sentido, acho que não faz sentido de falar de uma escrita feminina ou distinguir masculino/feminino, pois essa discussão estéril já foi levada longe de mais, mas acho que é natural esse ritmo do romance e da ficção à mulher, enquanto que a poesia, mais descontínua (não obstante a presença do longo poema, como em alguns casos), revela essa impaciência masculina que se revela no dizer. Apesar disso e da forte presença da mulher portuguesa na ficção, não esquecer que as vozes dominantes do romance português são as masculinas, ainda. Cito dois para arrumar o assunto: José Saramago e Lobo Antunes…isso não significa, todavia, que o universo masculino tenda a abafar o universo feminino, creio que isso foi há muito ultrapassado. O que acaba por acontecer é que a escrita dessas mulheres, citando casos como Gabriela Llansol, Hélia Correia, Ana Teresa Pereira, Cristina Victória, é difícil, hermética, daí que o acesso seja restrito. O romance, não masculino, mas escrito por homens, tem um pendor mais realista e social, o acesso torna-se assim mais fácil ao leitor, à excepção, talvez, de um rui nunes. Por isso, há que distinguir esse cultualismo que se relaciona directamente com o carácter da obra de uma ou outra ambiguidade política e marginalizante. As mulheres atravessam um período muito bom, de repente todos os meios universitários e editoriais foram "tomados" por elas, em virtude da desproporção e isso não pode senão traduzir-se em vantagem, em todos os níveis. As escritoras que mais vendem, nesse modelo copiado dos eua e britânico, são ainda mulheres, ainda que essa não seja literatura. Mas não defendo a sua extinção, como muito boa gente. Não acho mal que uma margarida rebelo pinto facture milhões e reedite continuamente, acho que isso é óptimo (sobretudo para ela e para idênticos modelos mediáticos) e não diminui em nada a qualidade da literatura portuguesa. Creio que os bons escritores não seriam mais lidos se ela deixasse de publicar, acho que eles continuariam a não ser lidos, tão só isso. E não acho que ser lido em círculos cultuais seja demérito…

FM | E como tens sido considerada dentro deste universo? O fato de seres mulher implica em algum obstáculo, na sociedade portuguesa, à recepção de teu trabalho, incluindo a intensa atividade jornalística que vens realizado?

MJC | Não creio que ser mulher seja impeditivo, nesse sentido em que muitas vezes se coloca a questão. Acho que fui discretamente, mas muito bem recebida, por duas razões. O meu primeiro livro foi divulgado em círculos restritos, pelo facto de a editora não estar consolidada no mercado, um pouco marginalizada até. Como nunca havia pensado em publicar, o livro foi para mim um pouco uma surpresa, não cheguei a procurar editoras, mas nasceu de um convite do editor. Creio que o facto de ser uma editora pequena foi um dos obstáculos à divulgação do livro, num ano em que os livros publicados eram muito bons e foram muito bem lançados pelas editoras que os haviam editado. Apesar disso, furei o "bloqueio" que havia e a obra chegou muito bem onde devia chegar, chamando a atenção de críticos cuja opinião me é extremamente importante e que muito contribuiu para o reconhecimento das fragilidades de uma primeira obra. O livro foi alvo de atenção apaixonada, por parte de leitores que me escreviam, intensamente impressionados, o que me tocou particularmente. Porque, mais importante do que chegar ao mercado, é chegar ao leitor e tocá-lo, essa a função da literatura, por muito que ouça alguns escritores dizerem que não escrevem para o leitor. Sem querer ser simplista, escreve-se porquê e para quem?…é evidente que uma coisa é escrever a pensar naquele que nos vai ler, o que nunca me parece válido, a não ser aplicado ao jornalismo e à escrita de carácter informativo, outra é transformar a literatura num acontecimento da linguagem, um transfiguração do real e, ao mesmo tempo, um lugar de fundação do real.
Por outro lado, posso dizer que devi, em grande parte, o "furo do bloqueio" pelo facto de (algumas pessoas ligadas ao jornalismo não gostam de ouvir dizer isto e acham que as coisas não devem ser misturadas e eu própria acho que elas não devem ser misturadas), paralelamente ter iniciado e desenvolvido uma actividade ligada ao jornalismo, escrevendo em publicações como a Crítica, revista on-line, tal como a Storm Magazine, onde trabalho agora, bem como em publicações como a revista livros e o jornal de poesia Hablar/Falar de Poesia. Digo que isso ajudou a "furar o bloqueio", mas não que me consolide nenhuma carreira literária, porque disso só o tempo falará e, por enquanto, não tenho muitos livros publicados, como sabes. Conto fazê-lo, futuramente…por outro, a actividade jornalística intensa, como dizes, é também impeditiva, pela dispersão que causa. Tenho um romance empatado porque não páro de escrever recensões e ensaios. Por último, é-me difícil dizer se fui melhor recebida aqui ou ali. Creio que uma certa popularidade resulta da segunda, mas isso também se traduz num acréscimo de responsabilidade, como bem sabes…tens os olhos postos em ti, de cada vez que sai algo. Se fizeres disparate, ficas mais exposto, claro. E o inverso também vale.

FM | Observei algumas críticas a respeito de teu livro de estréia, A garça (2001), e ali encontro menções ao fantástico, a contos infantis ou fábulas metafísicas, ou seja, um emaranhado de conceitos que em nada ajudam a compreender a poética de um autor. Decerto tens tua própria idéia de abrangência estética deste livro. Poderias nos falar a respeito?

MJC | O conto fantástico, em Portugal, é visto como uma modalidade literária ultrapassada. Ouvi um crítico dizer isso há algum tempo. Há excelentes contistas fantásticos, lembro dois ou três mais conhecidos, sem querer cometer injustiças, como Mário de Carvalho, Hélia Correia e Ana Teresa Pereira. Houve sempre uma resistência, por exemplo, à introdução do fantástico, fosse o gótico ou o surrealista. Tende a predominar uma literatura de pendor mais realista, de forte tradição herdada do neo-realismo, com um pendor social bem acentuado, também em virtude da experiência social e política em que vivemos durante tanto tempo. Primeiro uma literatura mais amarfanhada e castrada pela censura e depois mais livre, mas ainda arreigada a esses modelos. Actualmente, creio que, mesmo os jovens autores, à excepção de Cristina Victória, se encontram ligados a esse "realismo", termo que utilizo cuidadosamente para designar essa mescla de correntes pós-modernas que existem, que vão desde um realismo mágico (como por exemplo em José Luís Peixoto), a um romance de carácter desencantado e cínico. Já sem falar num realismo social despojado, que se destrói por autofagia, reduzindo a literatura a esquemas e tipos de análises sociológicas e antropológicas desinteressantes. Com isto, dizia-te que quando se aborda o fantástico, as categorias ou cânones de avaliação se tornam bem confusos (talvez pelo próprio fantástico português ser confuso e ter assimilado vários autores, misturando-os indiferenciadamente…).
Quanto a essa recensão de que falas, e que acho a melhor de todas, creio que a de Rui Magalhães, ela é a mais justa para com a minha obra, onde me senti mais reconhecida. Creio que ela se confunde com uma análise hermenêutica que é mais alargada do que uma simples análise literária. O que pode tornar-se difícil aos olhos de um leitor vulgar que fica indeciso se deve ou não ler uma coisa tão complexa. No entanto, não creio ser capaz de definir melhor a garça do que o próprio crítico o fez. Posso é explicitar como se cruzam os vários caminhos e, sobretudo, falar de um acento melancólico que o próprio crítico compreendeu e bem. Como o livro reúne vários contos que foram escritos ao longo da minha vida (e que lhe empresta uma certa heterogeneidade que pode ser vista como uma das fragilidades do livro), o tom oscila entre vários registos que foram importantes, marcando as minhas experiências literárias e vivenciais, já que não consigo separar vida e arte, tenho uma grande dificuldade em fazer essa distinção, levantando-me mesmo um problema de coerência. Jamais fui capaz de escrever um conto e sair para ir beber uns copos a seguir. Mergulho num estado de densidade existencial que me complica a vida… e me torna incompatível com ela. Como todas essas fases constituíram um tecido de maturação existencial, de formação, é difícil dizer que o livro não seja uma "obra de formação". Creio que todas essas personagens que aí habitam, nesse espaço ou escuridão literária, são uma espécie de fantasmas que lutaram pela sua libertação. Daí que o registo vá desde o conto infantil, porque muito influenciado por autores que me dominaram ainda a adolescência e ainda hoje me impressionam, como Rudyard Kipling, Conrad, Jack London, entre muitos outros, estabelecendo passagens com o mundo da minha infância, com essa aura incrível de uma infância passada em áfrica, entre as caçadas do meu pai, as fugas de casa e a minha paixão intensa por um mundo onde a leitura, o silêncio e a escuta solitária se transformaram em aspectos fundamentais. A minha obsessão por aves e por cavalos também vem daí, penso que muita coisa é facilmente explicável, mesmo que a presença não seja senão fantasmática. Mais tarde, a influência forte de Hesse, Poe, Blake, Chesterton, Borges, Calvino, de Walter Benjamin e de Platão, de Nietzsche, haveriam de tecer o "pano de fundo" de outros contos, aí claramente tomando o aspecto de "fábula metafísica", como nos contos "a garça", "o animal que sonhou ser deus", "uma estranha aventura", "o pintor chinês" e o final "requiem para uma pequena garça", esse condensando a mais estranha de todas as fábulas. Se estiveres com atenção, verás ainda, não apenas a literatura, mas a forte influência do cinema e da pintura. Kurosawa, num certo período da minha vida foi uma doença do olhar, juntamente com, Bergman, e Wenders, entre outros. Creio que os ambientes e o modo como procuro situar as personagens obedecem claramente (mesmo que inconscientemente) à lógica do cinema, numa procura de, pela economia das palavras, fazer ressaltar as imagens, dando à imagem uma força que as palavras e a literatura muitas vezes obscurecem.
A par dessa obsessão claramente remetendo para a infância, há o outro aspecto que se prende com uma dificuldade. Como fazer com que as questões metafísicas ali estivessem sem que as personagens se tornassem insuportáveis de ouvir? Como falar de deus, da origem da linguagem, das palavras e das imagens, da morte, da liberdade, sem que uma engraçada personagem aparecesse por ali a desafiar o leitor? Foi assim que nasceu o primeiro conto, "a garça", que acabou por dar o título ao livro. A garça é personagem, mas é simultaneamente a autora/actriz, a dramatis persona que me faltava para encaixar o puzzlle, fazendo encadear os contos uns nos outros, dar-lhes uma continuidade que lhes é conferida pelo questionamento filosófico, que aparece nas suas múltiplas formas, desdobrando-se. Ela não se deve ao acaso, creio hoje, mas nasceu da necessidade de resolver um problema e por essa mesma razão, a sua morte aparece no final do livro, a fechar o círculo. Dizer mais do que isto, complicar com as heranças e as correntes estético/literárias que pulsam na obra é estragar o prazer da sua leitura, pois o que me motivou sempre a escrever foi esse questionamento filosófico, a escrita como processo de auto-conhecimento, numa aprendizagem por vezes muito dolorosa da vida. Isso transparece em alguns contos, o medo do crescimento, a obsessão do tornar-se sempre um outro, a metamorfose como reconhecimento da passagem do tempo e a ameaça do devir constante, o envelhecimento e a descoberta de uma sabedoria interior que é ofuscada pelas aparências…bem, mas isto já não é literatura e sim filosofia…houve um crítico que disse (e muito bem) que eu usava a literatura como um expediente para a filosofia. Tenho de ter cuidado com isso, certamente…

FM | Como tens publicado também um livro de poemas, indago se tua relação com o conto e a poesia está mediada por alguma circunstância hierárquica?

MJC | Hierarquicamente, a coisa é simples. Considero que, na prosa, sou claramente superior à poesia. Na poesia ainda estou muito presa a coisas que detesto em outros poetas e foi uma experiência difícil, a publicação do livro. O facto de ser crítica de poesia dá-me uma consciência muito lúcida do fazer poético. Sou uma leitora apaixonadíssima de poesia, sobretudo dos contemporâneos. Além de que muitos dos meus melhores amigos são excelentes poetas, daí que eu sinta claramente essa desvantagem na pele. Como um amigo poeta disse, este é um livro inspirado e sincero, mas é de fazer a questão: o que é isso na poesia? No entanto, gosto de escrever poesia, é uma das facetas da minha obra que, provavelmente, não repetirei de forma tão ingénua. Digo isto pelo seguinte: o livro recebeu uma menção honrosa de um prémio nacional. Daí que o salto para a publicação tivesse sido dado logo no momento da divulgação dos prémios. Acho que devia ter sido mais trabalhado, devia ter esperado mais pela decantação dos poemas. É um facto que me precipitei. Gostaria de repetir a experiência de um outro modo, sem precipitações. A poesia é uma ars moriendi, por excelência. Não há que ter pressa. Há que saber esperar, muito mais do que no conto, quase sempre escritos de rajada, num ritmo insano, perseguindo ideias como um caçador seguindo o rastro da presa. São ritmos inteiramente diferentes e sei que ainda não atingi essa arte da paciência tão necessária à poesia.

FM | Abro ao acaso (gosto de fazê-lo) uma página do livro De segunda a um ano, de John Cage, e ali encontro: "a má política produz boa arte. Mas para que serve a boa arte?" creio que a resposta nos leva a qual tipo de relação um artista mantém com o próprio tempo. De que maneira tua experiência de vida é determinante no que escreves e como se dão as relações entre arte e política em Portugal neste princípio de século?

MJC | Essa deliciosa frase suscita um paradoxo que permanece como uma sombra de indecisão sobre a arte em geral e sobre a literatura em particular. O tema do compromisso ético, ainda que esteticamente pouco recomendável nos dias que correm, é-me caro. Posso comprovar o que Cage disse, recorrendo à literatura portuguesa e, em especial, à poesia portuguesa, nos duros anos do regime fascista. Sabes, certamente, que a excelente poesia portuguesa nasceu dessa necessidade de romper o círculo da censura, criando a possibilidade da multiplicidade de poéticas tão diferenciadas, que resultavam do esforço de um "querer dizer" o que não podia ser dito. Assim como autores portugueses como Saramago, Cardoso Pires, etc., dando conta de um painel político sufocado e decadente. Já não quero falar, obviamente dos casos poéticos extremos de compromisso como Paul Celan e tantos outros. Nenhum artista é indiferente ao seu tempo, acho, mesmo que o pareça, mesmo que ao lermos muitas obras, hoje em dia, elas nos pareçam absolutamente descomprometidas, "irresponsáveis", sobretudo no caso dos autores mais jovens. Mesmo que nos pareçam alheios, há uma relação directa, não com a política, mas com a época. Nos dias que correm, em Portugal, vemos precisamente uma tendência para um cinismo na literatura dos jovens, contrariamente aos autores mais velhos (que também não deixam de o ser, à sua maneira, mas sentem-se mais responsáveis), que se traduz numa literatura que muitas vezes resvala para o facilitismo. Viver em democracia traz uma certa desresponsabilização política e a atestá-lo, estão as elevadíssimas taxas de absentismo. Não é necessário fazer da literatura, como o fazia claramente o neo-realismo português e a poesia da década de 70, um instrumento de crítica contundente da sociedade e dos valores. Cai-se, por reacção, na atitude típica do pós-moderno e epígonos, a atitude do "tanto faz", da sobrevalorização do mediático e da imagem, das imagens de sucesso e bem-estar, tão propagadas pelos media, procura-se a todo instante expurgar a dor, a melancolia, o mal-estar (citando um ensaísta português que admiro imensamente, João Barrento), remetendo-a para o domínio das patologias mentais. Todavia, a escrita é na maioria dos casos e também no meu, uma forma de responsabilização, não directamente política, mas ética. O meu livro foi criticado justamente por isso e tal fez-me rir. Foi criticado por se encontrar cheio de boas-intenções, ou seja, por um questionamento filosófico dos valores que lhe é intrínseco. Logo a seguir, sai a recensão de Rui Magalhães, a dizer exactamente o contrário: que o meu livro não era um livro de boas-intenções, mas justamente o inverso. É, e eu concordo inteiramente, uma escrita habitada por uma preocupação existencial constante, o que não faz dele um livro de boas-intenções. É uma obra desencantada e melancólica, o primeiro conto começa com um homem à beira de suicidar-se, que procura firmar-se numa réstea de esperança. A questão é justamente a de saber se ela é possível e se a linguagem cumpre ou não o desígnio da salvação.

[2002]

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