segunda-feira, 18 de agosto de 2014

RODRIGO PETRONIO | Crítica & ruína das mistificações



FM - Em uma afirmação essencialmente provocativa nos diz o venezuelano José Antonio Ramos Sucre que “os escritores se dividem em aborrecidos e amenos”, logo lembrando que “os primeiros recebem também o nome de clássicos”. É com este primeiro caso que te pegas em teu Transversal do tempo, ou seja, sequência de leituras críticas de alguns clássicos da literatura, a exemplo do que fez Calvino em Por que ler os clássicos (1991). Porém Calvino tinha a consciência de que “nenhum livro que fala de outro livro diz mais sobre o livro em questão”. Há aqui vários questionamentos implícitos, que vão do aborrecimento à necessidade da crítica, o que certamente nos leva primeiro a indagar por teu entendimento do que venha a ser um clássico da literatura. Assim começamos.

RP - Há um acontecimento envolvendo Paul Valéry e André Gide que eu acho bastante curioso. Ambos foram a uma conferência de um scholar sobre a Ilíada. Gide, que sempre nutriu uma grande reverência pelo poeta de Sète, vendo-o circunspeto ao seu lado, assim também ficou. Lá pelas tantas, quase uma hora de exposição, Valéry se vira para o amigo e pergunta: “Você por acaso conhece algum livro mais chato que a Ilíada?”, e retorna à sua compostura inicial, deixando Gide totalmente consternado e sem saber o que fazer. Creio que esse episódio anedótico, meio nonsense, ilustra de maneira interessante algumas das nossas possíveis relações com a literatura, as artes e o legado humano de modo geral. Nós podemos ter um interesse puramente intelectual por um resíduo arqueológico ou amar ferozmente a torção do corpo de uma mulher preservada pela lava calcificada do Vesúvio a ponto de podermos efetivamente ressuscitá-la, como ocorre com Arria Marcella na magnífica novela de Théophile Gautier. Cada uma dessas disposições psíquicas que nos levam a esses objetos que devolvemos à vida tem a sua beleza. Todas as maneiras de se aproximar do passado pressupõem algum tipo de civilidade, e a civilidade é um bem que nunca existe em demasia. Crer que essa aproximação deva seguir tais ou tais normas para servir a tais ou tais valores e ser assim mais ou menos vital é uma atitude que, por melhor que seja a sua intenção e finalidade, pode estreitar muito a nossa percepção da realidade e até a nossa inteligência. Todas as maneiras de abordar o passado são criticáveis, devem ser, como tudo. Mas acreditar que elas sejam excludentes é algo que só colabora para o benefício da exclusão e não do espírito. As únicas coisas decisivamente intoleráveis são os regimes de exclusão. Estes sim, e seus proponentes, deveriam ser dizimados e levar uma surra pública periodicamente. No mais, achar que há formas mais vivas e outras menos vivas de dialogar com a tradição é navegar em um romantismo pueril no qual eu felizmente não me aventuro mais há algum tempo. Agora, confesso que gostaria de saber em que contexto o nosso amigo Sucre dá essa definição. Porque dita assim, nesses termos, acho-a mais imbecil do que provocativa. Ela me é tão alheia que tenho dificuldade de começar a desenvolvê-la. Acho que na verdade a questão é bem diferente, muito mais complicada e triste. Dizer que os clássicos são amenos e enfadonhos pode ser um bom pretexto, uma estratégia das mais reacionárias, para conservar o espírito do tempo do jeito que está e nos deixar circulando hipnotizados dentro do circuito de porcaria que nos acomete todos os dias, cuja única finalidade é de fato abolir a história e nos deixar à deriva de todas as metamorfoses que o Vazio possa cumprir em um mundo de mercadorias e de coisas. O problema é que os clássicos acabaram sendo relegados a dois extremos: aos especialistas e à indigência. Assim é muito fácil criticar qualquer abordagem do passado como sendo uma operação sonífera de carbono 14 ou uma prática enciclopedista de diletantes. Mas isso é, antes de mais nada, triste. Porque demonstra que o debate civil, no sentido mais radical e profundo dessa palavra, e a esfera pública onde a literatura deveria entrar com toda a força, onde essas obras deveriam circular sem peias e sem adjetivações pernósticas, estão em falência, se é que já não estão ambos totalmente mortos. É por amor a essa tradição que você vê explanada nesse livro e a outras tradições que não entraram nele que eu faço algumas pontes, e venho tentando timidamente, via imprensa, inserir o debate de uma maneira que não soe como a legitimação de um acadêmico. Tampouco como o desbunde de um tropicalista ou de um ignorante, o que, cá entre nós, é a mesma coisa. Antes de mais nada, gostaria de compartilhar com os leitores a felicidade que sinto lendo esses livros. O Quixote, o Barão de Munchhausen e o Gargântua e Pantagruel estão entre os livros mais saborosos, divertidos, cômicos, maliciosos, malignos, anárquicos e festivos de quantos alguém já escreveu nessa existência. Não há proselitismo, muito menos erudição, que pague ou apague o frescor de suas páginas. E se for o caso, pro inferno com a erudição. Muito me assusta pensar que há gente que tema retroagir a esses tempos temendo não ter munição especializada para tanto. Esse discurso é muito ruim, porque esvazia as obras de sua própria essência, que consiste na sua condição irredutível, intraduzível e intransferível, que só se realiza no corpo a corpo que o leitor trava com ela. E aqui começamos a entrar na segunda parte da sua ótima pergunta, que é na verdade uma pergunta em leque. Não acho de nenhuma maneira que os livros sobre autores e sobre outros livros sejam meros entrepostos críticos que separem a obra do leitor. Se assim o cresse, não teria escrito e publicado esse livro. Essa é uma visão positivista, que pensa a obra como uma entidade fechada, unívoca, perfeita em si mesma, e que em grande parte é a responsável pela depauperação do nosso discurso crítico, que se encontra praticamente estropiado, em frangalhos. Na medida em que nós cindimos o texto criativo do texto historiográfico, filosófico, crítico e reflexivo, sob o pretexto fútil de que estes estão a serviço de um hipotético rigor científico (na maioria das vezes de um rigor mortis), estamos transformando a crítica em uma bula de remédio que deve ser prescrita a uma paciente, ao fim e ao cabo, moribunda, chamada literatura. Isso é um grande problema. No Brasil essa tradição é muito forte. Contribui também para fortalecer a burocracia do pensamento, e temos prosadores que fazem prosa, poetas que escrevem em versos e críticos que criticam. Uns ficam esperando que os outros cumpram o seu papel, o que obsta uma crítica em ação, algo realmente tático, ágil e fecundo do ponto de vista da arte e das ideias. Haja vista o número irrisório de poetas e ficcionistas que têm algo de razoável a dizer em termos de arte ou que tenham uma boa verve reflexiva sobre os aspectos técnicos de sua prática. Quanto à questão da obra, creio sinceramente que a obra tem um quê de ilusório. Não é possível definir exatamente o que ela venha a ser. Podemos muito bem dizer que as leituras que se somam a uma obra também fazem parte dela, e que o poema é muito mais do leitor que o leu diversas vezes do que do autor que o escreveu apenas uma, para lembrar a inversão engenhosa de Borges. Se formos computar e pesar bem pesado, a melhor literatura que se fez nos últimos vinte séculos é em grandíssima parte filosófica, exegética, historiográfica e sacramental (aquela circunscrita aos ritos religiosos, como o sermão, por exemplo), não necessariamente poética e ficcional. Além do quê, os limites entre a voz do autor e as vozes que ele incorpora à sua e das quais ele se serve são sempre muito tênues. Essa questão que você coloca, do distanciamento que o texto ensaístico promove entre a obra e o leitor, me lembra, muito a propósito por sinal, uma tirada de Montaigne, na qual ele se lamenta de sua época, dizendo que nela há muitos comentadores e poucos autores. Essa frase, porém, é de uma malícia inimaginável, e as edições anotadas dos Ensaios, por pior que sejam, não por ironia, têm rios de notas de rodapé indicando as fontes de onde o mestre francês tirou aquelas ideias para glosá-las à sua maneira, sem nem sequer ter a preocupação de camuflar a origem de seu pensamento pouco original, já que para sua época originalidade era ambição de loucos ou de idiotas. Lembremos também que o próprio Montaigne foi durante muito tempo tratado como um comentador dos antigos, não como um autor. Isso chegou até a gerar uma polêmica na Academia Francesa no século XVIII. Em outras palavras, essa ideia da literatura reflexiva como um arremedo da literatura propriamente dita é uma invenção recente, cujos estragos sentimos na pele. Se lermos Gourmont, Lezama, Calvino, Paz, Camus, Berlin, Eliot entre tantos e tantos outros mestres, percebemos que a vibração de seu pensamento atinge uma tal frequência e tais pontos de beleza quando se referem às obras em questão que é como se naquele instante efêmero e mágico eles as fizessem suas, e o seu desenvolvimento atinge aquela graça que é própria apenas à poesia em seus melhores momentos ou à melhor prosa de ficção. É claro que isso é com eles, estou engatinhando em tudo isso, e só posso pedir indulgência do leitor. Mas esse tipo de literatura me atrai e atrai muito. Minha grande ambição não é fazer do ensaio um instrumento extrínseco àquilo que ele enuncia, mas sim um campo de tensão onde se encene o drama da linguagem, das formas e do pensamento, com toda a autonomia a que eles têm direito.

FM - Aproveitando uma declarada predileção tua por Octavio Paz, antes mesmo de desdobrarmos alguns aspectos mencionados acima, recordo que o mexicano, em Corriente alterna, observou a respeito de uma função criadora da crítica: “inventa uma literatura (uma perspectiva, uma ordem) a partir das obras”. Como, neste sentido, te parece ser possível entender a prática da crítica no Brasil?

RP - É temeroso falar da crítica no Brasil. Corremos o risco de nos tornarmos uma caricatura, como José de Alencar, que se propôs a palmilhar e sintetizar milhões de quilômetros de incongruências. Essa acepção em que Paz, sempre agudo, toma a palavra crítica, é muito interessante. Está ligada ao conceito de Paideia, que é um conjunto de saberes que fundamentam a própria civilidade, não ao sentido escolar, sectário e cartorial que essa palavra desenvolveu entre nós, mas sim em oposição a método, e naquele sentido em que Nietzsche a concebe: um traçado errático de referências organizadas a partir do núcleo de consciência de quem organiza. Tendo isso em vista, creio que só possamos falar em crítica no Brasil dando nomes aos bois e falando de críticos brasileiros. Só falo de ideias específicas e de indivíduos concretos. Abomino generalidades e superestruturas. Elas são a fonte de toda a nossa escravidão.

FM - No entanto, se fala em crítica no Brasil, a ponto de haver uma aceitação irrefutável de certos nomes, decorrendo daí prejuízos imensos, a exemplo do descrédito promovido por Wilson Martins a respeito da obra de Jorge de Lima e da adjetivação de tardio aplicada por José Paulo Paes à presença do Surrealismo no Brasil. Que tal começarmos por estas ideias específicas e estes indivíduos concretos?

RP - Esse menosprezo à obra de Jorge de Lima é tão sem sustentação que vai acabar se voltando contra quem o propugna. Tendo em vista os rumos vagos, frouxos e afunilados que a poesia brasileira vem tomando de tempos para cá, com fantasmas que ficam tricoteando esse papo furado de poesia feita com sinal de menos e glosando, entre um e outro murmúrio hospitalar, mais alguns lugares-comuns sobre síntese e concisão poéticas, daqui algum tempo falar mal da explosão do Ser que o poeta de Invenção de Orfeu leva a cabo vai se tornar uma espécie de atestado de burrice assinado de próprio punho. Não precisamos nos preocupar em evidenciar o valor de sua poesia, evidente para qualquer um que entenda do assunto, por mais que tenha aspectos criticáveis e equívocos, o que também não podemos omitir. Wilson Martins é um homem que escreve muito e sobre muitas coisas. Essa exposição excessiva acaba comprometendo alguns dos seus juízos. Sua crítica a Guimarães Rosa chega a ser engraçada, pela veemência da voz de uma pessoa que se pronuncia contra valores elementares da arte literária do autor mineiro. Mas Wilson Martins não se reduz a isso. Seria errado também da nossa parte diminuir a importância do seu trabalho a esse ponto. Acompanho semanalmente a sua coluna no Globo e vou dizer uma coisa: talvez ele seja um dos poucos críticos brasileiros capazes de sustentar polêmicas instigantes no mais alto nível. Ele está entre os pouquíssimos que ainda exercitam isso que deveria ser a tarefa básica da crítica. Goste ou não goste ou esteja ele errado ou não, isso não importa. Há muito a verdade já não é mais uma questão fundamental para a inteligência - felizmente. Mas essa tomada de partido, isso sim é essencial, e ele o faz à sua maneira e com muitos fundamentos. Quantos no Brasil hoje em dia batem de frente com estruturas viciadas e corriolas literárias? Talvez dê para contar nos dedos. Por isso acho o seu trabalho importante. Oxalá mais críticos tivessem a hombridade de fazê-lo e estivessem duramente implicados naquilo que analisam, não fossem ventríloquos pelas bocas dos quais ecoa teoria importada da Europa e dos EUA ou bonecos de estopa que só sabem manipular alguns truques, blagues, engenhocas e jargões. Quanto ao José Paulo Paes, não sei exatamente o que dizer. Como poeta ele é bastante fraco. Sua poesia pode ser um bom instrumento pedagógico em cartilhas escolares, mas acho difícil levá-la a sério confrontando-a com outras tradições poéticas e com outros poetas. Por outro lado, ele foi um excelente, exímio tradutor, com um trabalho monumental, admirável sob vários aspectos. Seus prefácios e textos históricos sobre os autores traduzidos também são de muito boa cepa. O que acontece com Paes é algo parecido: ele acabou se tornando um crítico profissional, um analista de suplementos, um resenhista em tempo integral, com holerite e carteira assinada. Isso é complicado, porque as pessoas são falhas, embora busquem a arte justamente para deixarem de sê-lo. E ele não agiu apenas no nível da informação, mas da valoração. Essa burocracia crítica gera alguns problemas visíveis. Vemos Paes dizer que Laurence Sterne é um ótimo prosador e depois, em um outro texto de circunstância, dizer que tal autor é um ótimo prosador. Então lemos Sterne e o tal autor e percebemos que há algum erro terminológico, que há algo de equívoco em um dos dois - ou no autor do juízo. Em suma, é mais ou menos isso que acho desses intelectuais.

FM - Mencionas alguns nomes fortes na crítica, a exemplo de Lezama, Calvino, Paz, Camus, Berlin, Eliot, mas todos são igualmente criadores. A vibração do pensamento e a identificação com o instante mágico da criação estão aí em consonância. Como pensar em críticos que não tenham sido criadores, a exemplo de Harold Bloom ou Wilson Martins? O exercício crítico sente-se aí desfalcado de uma parcela que lhe é essencial?

RP - Talvez o que o poeta possa oferecer de específico é uma visão estrutural de sua arte, coisa que muitas vezes a um filósofo, historiador ou crítico literário pode escapar drasticamente e comprometer toda uma leitura. O poeta também pode executar aquela espécie de crítica em ação, fazer uma ponte entre a feitura, a confecção da obra, e sua leitura, eliminando o espaço que separa a ambas. Mas não acho de modo algum que isso seja um desfalque essencial. Décio Pignatari é um crítico e se crê poeta, e veja só a crítica que ele faz. Você quer algo mais risível do que um sujeito que tem a obra poética que ele tem usar seu voto público para votar em si mesmo como um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos? É aquela velha história: não precisamos de ficção nem de circo - já temos a realidade e os intelectuais. Acho que aqui estamos em um campo semelhante ao da primeira pergunta. O mundo de hoje comporta tudo, absolutamente tudo, menos um pensamento de exceção. Tudo é possível e válido como construção, e assim deve ser tomado, analisado, desmantelado e destruído, se for o caso. A única coisa inadmissível é partir da exclusão como premissa, tomar-se a si mesmo, sob qualquer hipótese ou premissa teórica, como o corolário de um processo, o centro de uma prática, o fim afunilado e último da história. Quem age assim pretende transformar todos ao seu redor em fantasmas que chegaram tarde demais ao banquete do conhecimento. E isso é álibi de falsários que devem ser aniquilados sumariamente.

FM - O Décio Pignatari é naturalmente um alvo fácil, pela debilidade de sua argumentação crítica. No entanto, tem considerável influência no meio acadêmico, a exemplo de outras carrancas de proa - Luís Costa Lima, João Alexandre Barbosa, Heloísa Buarque de Hollanda - que contribuem para minar uma perspectiva mais abrangente do espírito humano. Funcionam como estetas de uma taxonomia que resulta em esfacelamento de qualquer objeto de estudo. Como evitar essa espécie de vazamento de fogo no inferno?

RP - O grande problema que a crítica enfrenta hoje é uma progressiva disjunção entre as descrições e as práticas. É um problema estrutural, de consequências graves, porque de difícil diagnóstico. O que acontece é que a teoria da literatura e a crítica literária são coisas novas, estão a serviço da aferição de valor dos objetos da cultura em um mundo liberal, regulado pelo dinheiro. O crítico, por mais que tenha um papel de deduzir o valor das obras do espírito, no fundo acabou se tornando um leitor especial, um funcionário do saber, um intermediário burocrático, um entreposto comercial entre o leitor que compra e o escritor que vende. Até séculos atrás tínhamos algo bastante diferente: doutrinas de artes. Elas eram geralmente escritas a partir de códigos estabelecidos e visando tão somente o aprimoramento da prática artística e questões específicas e técnicas dessa atividade. Com a modernidade houve uma explosão dos referenciais, dos códigos e dos parâmetros, o que acabou exigindo uma atividade gigantesca do crítico, que muitas vezes sequer sonha com esse nível de debate. O bom crítico seria aquele que conseguisse se munir de conhecimento ideológico e histórico, para historiar as formas e os conceitos, de força retórica, sensibilidade aguda e entrega incondicional ao seu ofício. Na maioria das vezes essas facetas não vêm conjugadas, o que cria lacunas sérias no juízo que se produz. Essas lacunas tiveram que ser preenchidas por alguma coisa. E foram. Por quê? Por agregados teóricos que muitas vezes dão conta apenas da exterioridade do fenômeno artístico, evitam o seu coração e estão longe de constituir uma verdadeira filosofia da Forma. Então nos restou epistemologia, metodologia, hermenêutica, glossários, onomasiologia, semasiologia, estruturalismo, historicismo, semiótica, idealismo, pragmatismo, entre tantos e tantos outros resíduos discursivos de uma época menos complicada e provavelmente mais feliz. Muitas dessas vertentes se justificam nas mãos de um bom crítico, que as usa com o intuito único de fechar o círculo de sentido da obra e pô-la em seu devido lugar, a partir de um juízo crítico que a situe historicamente e, a despeito de todo o relativismo, consiga lhe fornecer um valor, na acepção mais profunda do termo, rigorosamente objetivo. Porque a base da crítica é a fundamentação do valor, e isso é uma coisa muitíssimo séria. É assustador ver como muitos críticos procedem como se tivessem tentando preencher o número de toques e de laudas que o seu editor exigiu ou como se estivessem redigindo uma petição em um cartório. Resumindo, o que vemos é uma disjunção progressiva e devastadora entre as descrições e as práticas, que deixaram de caminhar juntas. Temos um aparelho teórico, ideológico e burocrático descomunal muitas vezes mobilizado para endossar poemas (estou sendo indulgente) que não suportam uma crítica estrutural mínima de um poeta simplório que ainda não tenha sido contaminado pela logorreia. E estamos de volta ao núcleo de nosso problema: a positividade. Se você desmancha o conceito de literatura, e o faz apoiado em teorias, você faz da literatura uma serva daquilo que deveria estar a seu serviço e que deveria ser apenas uma de suas dimensões. É o mesmo estrago causado por quem a quer uma ciência. E o grande cancro aberto nessa dimensão do conhecimento é que, nesse caso, a teoria funciona como álibi, como fonte inesgotável de legitimidade que dá autoridade às tais obras e aos ditos poemas. Creio que seja desnecessário desenvolver aqui o lastro de significados da palavra autoridade. Não estou propondo uma volta às preceptivas e às doutrinas de arte do século XVII. De jeito nenhum, tanto porque seria impossível. Felizmente houve essa abertura e arrebentamos com essa visão mecânica das artes e do mundo. Mas quando um poema vira ornamento de teorias e o crítico aquele que prescreve suas possíveis interpretações à luz das teorias que o mesmo poema veicula e visa, então estamos inaugurando um suicídio simbólico coletivo. A própria fruição estética se torna uma atividade abstrata, como se comêssemos um fruto feito de enxofre, porque ela deixa de passar pelo gosto e pelo lado mais empírico da experiência artística: vai direto da obra às estruturas conceituais vazias que lhe engendraram e que o leitor inconsciente e automaticamente mobiliza, como um cão adestrado de Pavlov ao ouvir o som do sininho. Creio que isso tenha consequências nefastas para a cognição. E o pior de tudo é que o fazemos cheios de civilidade e assepsia, entre um sorriso e outro, e ainda recriminamos quem é mais contundente em suas críticas e crenças. Quanto aos antídotos, há alguns. Proponho que comecemos pondo em prática aquilo que Deleuze chama de empirismo radical. Todo campo de conceitos transcendental, ou seja, que esteja além ou aquém do valor imanente da obra, deve ser destruído. É uma superestrutura vazia de significado, só subsiste de maneira tautológica, apoiada em si mesma. Isso tem que ruir. O homem só conhece aquilo que ele faz, já dizia Vico. O saber teórico é descritivo, pode no máximo nos dar o desenho exterior de um processo e a consciência do Ser. Só quando nos imiscuímos nesse processo e o internalizamos como partícipes é que podemos ter de fato uma ciência do Ser, um conhecimento da essência mesma de um objeto ou de uma prática. Só então nasce aquele saber só de experiências feito, de que nos fala o maior poeta da língua portuguesa. Um exemplo: se eu já escrevi um soneto tão bom quanto os sonetos de Petrarca, Góngora, Quevedo e Mallarmé, uma elegia tão perfeita quanto as de Propércio e Rilke e uma terza rima da altitude da de Dante, então eu terei o direito de dizer que tais formas estão desgastadas e ultrapassadas, que o verso livre suplantou as formas fixas e representa uma libertação delas, que o verso morreu ou que a terza rima é um recurso exclusivamente medieval. Caso contrário, quem o fizer, deve ser tratado como merece: como um perfeito idiota. É no vácuo estrutural da arte poética que todas as ideologias e teorias perniciosas se alojam. Comecemos limpando o terreno e concentrando nosso foco na poesia como fato exclusivamente poético, à revelia dos sentidos políticos, ideológicos, sociais, filosóficos, morais ou éticos que ela por ventura possa conter. Acho esse um bom começo.

FM - Em entrevista que te fez para o Rascunho, Alfredo Fressia comenta a respeito da ausência de vozes latino-americanas entre teus interlocutores presentes em Transversal do Tempo. Embora não veja tal presença como indispensável, dá-me curiosidade indagar-te a respeito de dois casos em particular, o mexicano Octavio Paz e o cubano José Lezama Lima, de quem dizes ser leitor entusiasta. Antes recordemos uma preocupação tua em relação a Francis Ponge, quando temes que ele “seja lido como conceito e não como realização”, e que “sua arte vire receituário para escritores sem assunto preconizarem o silêncio sem terem dito ainda uma única palavra”. Não crês que o mesmo se passa com os dois poetas que menciono, considerando não mais o silêncio mas sim a analogia e o barroco - em um entendimento quando menos gratuito de convergências e impenetrabilidades?

RP - Você fez aí uma ótima conexão. Às vezes parece que entre nós ler os autores como conceito e não como realização é a própria regra, não a exceção. É aterrador ver como há pessoas que veem Décio Pignatari e James Joyce como irmãos espirituais. Há uma diferença gritante entre aqueles que se reivindicam pertencentes a um paideuma e os autores que o integram. Quem ainda não percebeu isso não entende absolutamente nada de nada de nenhum dos autores em questão e não entende absolutamente nada de nada de literatura. Deveria voltar aos bancos escolares. Da minha parte, confesso que nem sei como é possível seres tão diversos (os integrantes do paideuma e aqueles que o constroem) habitarem um mesmo planeta. Mas como essa aproximação se efetiva? Por intermédio de abstrações vazias: progressismo, capitalismo, vanguarda, radicalidade, invenção, ruptura, transgressão, e toda essa fauna taxonômica colhida na reflexão teórica de quinta categoria que corre por aí. São palavras que não dizem absolutamente nada, moedas sem efígie e cheques em branco que os sujeitos preenchem a seu bel-prazer sem ter que arcar com o ônus de rigorosamente conquistar o estágio artístico que defendem. Mas essas palavras têm sido o ópio com o qual os intelectuais vêm se drogando em público no último século. Aqui entra o empirismo radical para destruir esse castelo de cartas. A dificuldade é que os receptores da grande tradição da arte moderna, os grandes cabotinos brasileiros, criaram seus precursores de maneira bem estratégica, e cabe a alguns poucos tolos fazer o caminho inverso: convalidar essa armadilha que faz deles os descendentes em linha direta de uma tradição que, não fosse pela sua intervenção teórica desavergonhada, eles nunca chegariam sequer a representar a sombra da sombra da sombra, como dizia Hesíodo. Pois bem. Você sabe melhor do que eu que Lezama nunca falou nada de Neobarroco. O que ele fala é do Señor Barroco, personagem de um dos seus ensaios e protótipo de certas características criollas autóctones, específicas do homem americano e da cultura de ultramar. Entre outras, uma das principais características desse senhor seria a capacidade de estabelecer uma relação com o mundo que passasse sempre pelo crivo da sensualidade, quer na esfera prática quer na dimensão religiosa e intelectual. Isso geraria uma voracidade infinita de conhecimento e um gosto pelo excesso, ambos movidos pelo pacto faustico e pelo movimento luciferino de perquirição das causas, pelo transbordamento e pela mistura, aspectos que Lezama identifica nas fachadas das igrejas peruanas talhadas pelo índio Kondori, em um poeta como Gorostiza ou na erudição onívora que encontramos nos escritos de um autor como o Inca Garcilaso de la Vega. O fato é que a leitura que temos de Lezama Lima é aquela filtrada pelo movimento Neobarroso argentino, encabeçado pela figura de Nestor Perlonguer, e aclimatado ao Brasil pelas mãos do concretismo. Então todo o fundo ontológico e formal do grande poeta cubano foi transformado em reivindicação ideológica de uma estética que pretendia fazer da forma um conteúdo, e transformar o sensualismo mencionado acima em um prazer estéril de manipulação pura e simples de significantes, o que, com o tempo, transforma a arte poética em uma atividade afásica e reduz todo o mundo à condição de enunciado. Em último caso, temos uma arte pedante e um deslumbramento semiológico que não me parecem próprios ao autor de Paradiso e Dador. Não há maneiras mais ou menos certas de ler um autor, mas sim mais ou menos hegemônicas. As consequências que toda hegemonia acarreta para o debate em questão são bastante conhecidas. No caso, seria preciso fazer uma crítica dessas leituras e demonstrar seus equívocos. Assim estaríamos dando espaço à diversidade de vozes que a voz de Lezama contempla e apontando novos horizontes artísticos e conceituais, não afunilando ainda mais a sua compreensão em uma leitura que é muito mais uma apropriação do que uma leitura, com todos os inúmeros problemas que pesam sobre esta palavra. Já no que diz respeito a Octavio Paz, não saberia dizer ao certo. Há a excelente abordagem de Maria Esther Maciel, que me parece uma das melhores. É possível que acentuemos demais o lado do Paz envolvido com a linguística e com o estruturalismo, comentador de Lévi-Strauss, autor do Blanco e de alguns ensaios de Signos em Rotação, sobretudo aquele dedicado à análise do soneto em yx de Mallarmé. Talvez seja o caso de começarmos a olhar com mais atenção para um outro lado de sua obra, um lado que flerta com as teorias herméticas e com o pensamento mítico, com a libertinagem e com o ascetismo, a meu ver representado por alguns magníficos e impecáveis livros de poemas, comoLa Estación Violenta, pelos seus relatos sobre a Índia e seus ensaios sobre Sade e Ruben Darío, por Conjunções e Disjunções, pelo seu belíssimo livro sobre Sor Juana Inés de la Cruz e até mesmo pelo seu pequeno trabalho sobre Duchamp, onde ele ressalta os traços de um tipo de pensamento selvagem que está por trás da obra do artista francês. Seria até uma maneira de rever a mistificação que se criou ao seu redor.

FM - Há autores que se repetem a ponto de se tornarem previsíveis e outros que se renovam a cada livro com um frescor imenso. Não me parece que possam ser julgados como menores ou maiores por conta disto. Como lidas, em tua leitura de uma determinada poética, com esse tipo de oscilação?

RP - Você tem razão ao dizer que isso não compromete a qualidade. Isso é um registro de temperamento, além de ser uma opção artística. Podemos até distinguir dois tipos de autores, uns mais personalistas e outros que veem a arte da literatura como um verdadeiro baile de máscaras. Os românticos se firmaram em oposição àqueles que eles chamavam de clássicos, que seriam esses autores mais impessoais e menos preocupados em deixar a marca de sua individualidade nas obras. Mas o debate existe desde sempre, eu acho. Eu me identifico total e exclusivamente com os autores que tendem à variação, à mudança, às máscaras, à mediação racional e artificial do discurso. Mas admiro muitos artistas que por toda a vida escreveram e reescreveram um único livro, a ponto de se confundirem com a própria obra.

FM - Observemos um caso como o de Milan Kundera, em que ensaio e narrativa ficcional mesclam-se em um híbrido fascinante. Tens uma dupla estreia, na poesia e no ensaio. Como se põem em diálogo ambas realizações?

RP - O que posso dizer é que a poesia e o ensaio, junto com a narrativa breve (conto ou fábula) são os gêneros literários que me dão mais prazer e nos quais me sinto mais à vontade. Agora mesmo estou trabalhando em uma narrativa longa. Tanto que seu subtítulo é: uma rapsódia. Ela é feita de capítulos relativamente curtos, se passa em um nível fantástico e é muito veloz. Não sei se pode ser chamada de romance. Ultimamente tenho lido muita filosofia e poesia. Acho que essa estreia é algo natural. Sempre gostei muito desse tipo de literatura crítica e reflexiva, desde menino mesmo, mas me vejo em primeiro lugar como poeta. Na adolescência era um entusiasta de Sartre e Camus e isso também me levou a fazer a faculdade de Letras. A única coisa que não admito e que não faria nem com um revólver na cabeça é colocar o meu trabalho poético como uma espécie de causalidade natural da história da literatura que esboço nos ensaios. O dia que alguém vir esse tipo de coisa nos meus escritos gostaria de ser dura e impiedosamente criticado. Odeio com todas as minhas forças todo tipo de centralidade e teleologia. É óbvio que há algo entre eles e o que faço. Falo desses autores porque amo suas obras. Mas quem se coloca no topo de uma cadeia evolutiva e faz dos autores que glosa os precursores de si mesmo são eunucos que nunca criaram nada. Toda a crítica que venho empreendendo pode ser reduzida a uma crítica ao conceito de Evolução. Não posso pactuar com aquilo que detesto. Procuro sim fazer o seu avesso, destruir a ideia de evolução e demonstrar que as coisas não se superam - mas apenas se sucedem. É engraçado: dizem que as artes prenunciam o que ainda vai acontecer nos outros campos do conhecimento. Hoje em dia é o contrário: enquanto os físicos falam em tempo complexo e dizem que a matéria não existe, os artistas são darwinistas carolas e materialistas de carteirinha assinada. É o que sempre digo: antes tínhamos o beletrismo acadêmico, hoje temos o bom-mocismo de vanguarda. Não sei o que é pior.

[2003]

[Entrevista publicada na Agulha Revista de Cultura # 34 — Dezembro de 2003.]

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