FM - Em uma afirmação essencialmente provocativa nos
diz o venezuelano José Antonio Ramos Sucre que “os escritores se dividem em aborrecidos
e amenos”, logo lembrando que “os primeiros recebem também o nome de clássicos”.
É com este primeiro caso que te pegas em teu Transversal do tempo, ou seja,
sequência de leituras críticas de alguns clássicos da literatura, a exemplo do que
fez Calvino em Por que ler os clássicos (1991). Porém Calvino tinha a consciência
de que “nenhum livro que fala de outro livro diz mais sobre o livro em questão”.
Há aqui vários questionamentos implícitos, que vão do aborrecimento à necessidade
da crítica, o que certamente nos leva primeiro a indagar por teu entendimento do
que venha a ser um clássico da literatura. Assim começamos.
RP - Há um acontecimento envolvendo Paul Valéry e André
Gide que eu acho bastante curioso. Ambos foram a uma conferência de um scholar
sobre a Ilíada. Gide, que sempre nutriu uma grande reverência pelo poeta
de Sète, vendo-o circunspeto ao seu lado, assim também ficou. Lá pelas tantas, quase
uma hora de exposição, Valéry se vira para o amigo e pergunta: “Você por acaso conhece
algum livro mais chato que a Ilíada?”, e retorna à sua compostura inicial,
deixando Gide totalmente consternado e sem saber o que fazer. Creio que esse episódio
anedótico, meio nonsense, ilustra de maneira interessante algumas das nossas
possíveis relações com a literatura, as artes e o legado humano de modo geral. Nós
podemos ter um interesse puramente intelectual por um resíduo arqueológico ou amar
ferozmente a torção do corpo de uma mulher preservada pela lava calcificada do Vesúvio
a ponto de podermos efetivamente ressuscitá-la, como ocorre com Arria Marcella na
magnífica novela de Théophile Gautier. Cada uma dessas disposições psíquicas que
nos levam a esses objetos que devolvemos à vida tem a sua beleza. Todas as maneiras
de se aproximar do passado pressupõem algum tipo de civilidade, e a civilidade é
um bem que nunca existe em demasia. Crer que essa aproximação deva seguir tais ou
tais normas para servir a tais ou tais valores e ser assim mais ou menos vital é
uma atitude que, por melhor que seja a sua intenção e finalidade, pode estreitar
muito a nossa percepção da realidade e até a nossa inteligência. Todas as maneiras
de abordar o passado são criticáveis, devem ser, como tudo. Mas acreditar que elas
sejam excludentes é algo que só colabora para o benefício da exclusão e não do espírito.
As únicas coisas decisivamente intoleráveis são os regimes de exclusão. Estes sim,
e seus proponentes, deveriam ser dizimados e levar uma surra pública periodicamente.
No mais, achar que há formas mais vivas e outras menos vivas de dialogar com a tradição
é navegar em um romantismo pueril no qual eu felizmente não me aventuro mais há
algum tempo. Agora, confesso que gostaria de saber em que contexto o nosso amigo
Sucre dá essa definição. Porque dita assim, nesses termos, acho-a mais imbecil do
que provocativa. Ela me é tão alheia que tenho dificuldade de começar a desenvolvê-la.
Acho que na verdade a questão é bem diferente, muito mais complicada e triste. Dizer
que os clássicos são amenos e enfadonhos pode ser um bom pretexto, uma estratégia
das mais reacionárias, para conservar o espírito do tempo do jeito que está e nos
deixar circulando hipnotizados dentro do circuito de porcaria que nos acomete todos
os dias, cuja única finalidade é de fato abolir a história e nos deixar à deriva
de todas as metamorfoses que o Vazio possa cumprir em um mundo de mercadorias e
de coisas. O problema é que os clássicos acabaram sendo relegados a dois extremos:
aos especialistas e à indigência. Assim é muito fácil criticar qualquer abordagem
do passado como sendo uma operação sonífera de carbono 14 ou uma prática enciclopedista
de diletantes. Mas isso é, antes de mais nada, triste. Porque demonstra que o debate
civil, no sentido mais radical e profundo dessa palavra, e a esfera pública onde
a literatura deveria entrar com toda a força, onde essas obras deveriam circular
sem peias e sem adjetivações pernósticas, estão em falência, se é que já não estão
ambos totalmente mortos. É por amor a essa tradição que você vê explanada nesse
livro e a outras tradições que não entraram nele que eu faço algumas pontes, e venho
tentando timidamente, via imprensa, inserir o debate de uma maneira que não soe
como a legitimação de um acadêmico. Tampouco como o desbunde de um tropicalista
ou de um ignorante, o que, cá entre nós, é a mesma coisa. Antes de mais nada, gostaria
de compartilhar com os leitores a felicidade que sinto lendo esses livros. O Quixote,
o Barão de Munchhausen e o Gargântua e Pantagruel estão entre os livros
mais saborosos, divertidos, cômicos, maliciosos, malignos, anárquicos e festivos
de quantos alguém já escreveu nessa existência. Não há proselitismo, muito menos
erudição, que pague ou apague o frescor de suas páginas. E se for o caso, pro inferno
com a erudição. Muito me assusta pensar que há gente que tema retroagir a esses
tempos temendo não ter munição especializada para tanto. Esse discurso é muito ruim,
porque esvazia as obras de sua própria essência, que consiste na sua condição irredutível,
intraduzível e intransferível, que só se realiza no corpo a corpo que o leitor trava
com ela. E aqui começamos a entrar na segunda parte da sua ótima pergunta, que é
na verdade uma pergunta em leque. Não acho de nenhuma maneira que os livros sobre
autores e sobre outros livros sejam meros entrepostos críticos que separem a obra
do leitor. Se assim o cresse, não teria escrito e publicado esse livro. Essa é uma
visão positivista, que pensa a obra como uma entidade fechada, unívoca, perfeita
em si mesma, e que em grande parte é a responsável pela depauperação do nosso discurso
crítico, que se encontra praticamente estropiado, em frangalhos. Na medida em que
nós cindimos o texto criativo do texto historiográfico, filosófico, crítico e reflexivo,
sob o pretexto fútil de que estes estão a serviço de um hipotético rigor científico
(na maioria das vezes de um rigor mortis), estamos transformando a crítica
em uma bula de remédio que deve ser prescrita a uma paciente, ao fim e ao cabo,
moribunda, chamada literatura. Isso é um grande problema. No Brasil essa tradição
é muito forte. Contribui também para fortalecer a burocracia do pensamento, e temos
prosadores que fazem prosa, poetas que escrevem em versos e críticos que criticam.
Uns ficam esperando que os outros cumpram o seu papel, o que obsta uma crítica em
ação, algo realmente tático, ágil e fecundo do ponto de vista da arte e das ideias.
Haja vista o número irrisório de poetas e ficcionistas que têm algo de razoável
a dizer em termos de arte ou que tenham uma boa verve reflexiva sobre os aspectos
técnicos de sua prática. Quanto à questão da obra, creio sinceramente que a
obra tem um quê de ilusório. Não é possível definir exatamente o que ela venha a
ser. Podemos muito bem dizer que as leituras que se somam a uma obra também fazem
parte dela, e que o poema é muito mais do leitor que o leu diversas vezes do que
do autor que o escreveu apenas uma, para lembrar a inversão engenhosa de Borges.
Se formos computar e pesar bem pesado, a melhor literatura que se fez nos últimos
vinte séculos é em grandíssima parte filosófica, exegética, historiográfica e sacramental
(aquela circunscrita aos ritos religiosos, como o sermão, por exemplo), não necessariamente
poética e ficcional. Além do quê, os limites entre a voz do autor e as vozes que
ele incorpora à sua e das quais ele se serve são sempre muito tênues. Essa questão
que você coloca, do distanciamento que o texto ensaístico promove entre a obra e
o leitor, me lembra, muito a propósito por sinal, uma tirada de Montaigne, na qual
ele se lamenta de sua época, dizendo que nela há muitos comentadores e poucos autores.
Essa frase, porém, é de uma malícia inimaginável, e as edições anotadas dos Ensaios,
por pior que sejam, não por ironia, têm rios de notas de rodapé indicando as fontes
de onde o mestre francês tirou aquelas ideias para glosá-las à sua maneira, sem
nem sequer ter a preocupação de camuflar a origem de seu pensamento pouco original,
já que para sua época originalidade era ambição de loucos ou de idiotas. Lembremos
também que o próprio Montaigne foi durante muito tempo tratado como um comentador
dos antigos, não como um autor. Isso chegou até a gerar uma polêmica na Academia
Francesa no século XVIII. Em outras palavras, essa ideia da literatura reflexiva
como um arremedo da literatura propriamente dita é uma invenção recente, cujos estragos
sentimos na pele. Se lermos Gourmont, Lezama, Calvino, Paz, Camus, Berlin, Eliot
entre tantos e tantos outros mestres, percebemos que a vibração de seu pensamento
atinge uma tal frequência e tais pontos de beleza quando se referem às obras em
questão que é como se naquele instante efêmero e mágico eles as fizessem suas,
e o seu desenvolvimento atinge aquela graça que é própria apenas à poesia em seus
melhores momentos ou à melhor prosa de ficção. É claro que isso é com eles,
estou engatinhando em tudo isso, e só posso pedir indulgência do leitor. Mas esse
tipo de literatura me atrai e atrai muito. Minha grande ambição não é fazer do ensaio
um instrumento extrínseco àquilo que ele enuncia, mas sim um campo de tensão onde
se encene o drama da linguagem, das formas e do pensamento, com toda a autonomia
a que eles têm direito.
FM - Aproveitando uma declarada predileção tua por Octavio
Paz, antes mesmo de desdobrarmos alguns aspectos mencionados acima, recordo que
o mexicano, em Corriente alterna, observou a respeito de uma função criadora
da crítica: “inventa uma literatura (uma perspectiva, uma ordem) a partir das obras”.
Como, neste sentido, te parece ser possível entender a prática da crítica no Brasil?
RP - É temeroso falar da crítica no Brasil. Corremos
o risco de nos tornarmos uma caricatura, como José de Alencar, que se propôs a palmilhar
e sintetizar milhões de quilômetros de incongruências. Essa acepção em que Paz,
sempre agudo, toma a palavra crítica, é muito interessante. Está ligada ao conceito
de Paideia, que é um conjunto de saberes que fundamentam a própria civilidade, não
ao sentido escolar, sectário e cartorial que essa palavra desenvolveu entre nós,
mas sim em oposição a método, e naquele sentido em que Nietzsche a concebe: um traçado
errático de referências organizadas a partir do núcleo de consciência de quem organiza.
Tendo isso em vista, creio que só possamos falar em crítica no Brasil dando nomes
aos bois e falando de críticos brasileiros. Só falo de ideias específicas e de indivíduos
concretos. Abomino generalidades e superestruturas. Elas são a fonte de toda a nossa
escravidão.
FM - No entanto, se fala em crítica no Brasil, a ponto
de haver uma aceitação irrefutável de certos nomes, decorrendo daí prejuízos imensos,
a exemplo do descrédito promovido por Wilson Martins a respeito da obra de Jorge
de Lima e da adjetivação de tardio aplicada por José Paulo Paes à presença do Surrealismo
no Brasil. Que tal começarmos por estas ideias específicas e estes indivíduos concretos?
RP - Esse menosprezo à obra de Jorge de Lima é tão sem
sustentação que vai acabar se voltando contra quem o propugna. Tendo em vista os
rumos vagos, frouxos e afunilados que a poesia brasileira vem tomando de tempos
para cá, com fantasmas que ficam tricoteando esse papo furado de poesia feita com
sinal de menos e glosando, entre um e outro murmúrio hospitalar, mais alguns lugares-comuns
sobre síntese e concisão poéticas, daqui algum tempo falar mal da explosão do Ser
que o poeta de Invenção de Orfeu leva a cabo vai se tornar uma espécie de
atestado de burrice assinado de próprio punho. Não precisamos nos preocupar em evidenciar
o valor de sua poesia, evidente para qualquer um que entenda do assunto, por mais
que tenha aspectos criticáveis e equívocos, o que também não podemos omitir. Wilson
Martins é um homem que escreve muito e sobre muitas coisas. Essa exposição excessiva
acaba comprometendo alguns dos seus juízos. Sua crítica a Guimarães Rosa chega a
ser engraçada, pela veemência da voz de uma pessoa que se pronuncia contra valores
elementares da arte literária do autor mineiro. Mas Wilson Martins não se reduz
a isso. Seria errado também da nossa parte diminuir a importância do seu trabalho
a esse ponto. Acompanho semanalmente a sua coluna no Globo e vou dizer uma
coisa: talvez ele seja um dos poucos críticos brasileiros capazes de sustentar polêmicas
instigantes no mais alto nível. Ele está entre os pouquíssimos que ainda exercitam
isso que deveria ser a tarefa básica da crítica. Goste ou não goste ou esteja ele
errado ou não, isso não importa. Há muito a verdade já não é mais uma questão fundamental
para a inteligência - felizmente. Mas essa tomada de partido, isso sim é essencial,
e ele o faz à sua maneira e com muitos fundamentos. Quantos no Brasil hoje em dia
batem de frente com estruturas viciadas e corriolas literárias? Talvez dê para contar
nos dedos. Por isso acho o seu trabalho importante. Oxalá mais críticos tivessem
a hombridade de fazê-lo e estivessem duramente implicados naquilo que analisam,
não fossem ventríloquos pelas bocas dos quais ecoa teoria importada da Europa e
dos EUA ou bonecos de estopa que só sabem manipular alguns truques, blagues, engenhocas
e jargões. Quanto ao José Paulo Paes, não sei exatamente o que dizer. Como poeta
ele é bastante fraco. Sua poesia pode ser um bom instrumento pedagógico em cartilhas
escolares, mas acho difícil levá-la a sério confrontando-a com outras tradições
poéticas e com outros poetas. Por outro lado, ele foi um excelente, exímio tradutor,
com um trabalho monumental, admirável sob vários aspectos. Seus prefácios e textos
históricos sobre os autores traduzidos também são de muito boa cepa. O que acontece
com Paes é algo parecido: ele acabou se tornando um crítico profissional, um analista
de suplementos, um resenhista em tempo integral, com holerite e carteira assinada.
Isso é complicado, porque as pessoas são falhas, embora busquem a arte justamente
para deixarem de sê-lo. E ele não agiu apenas no nível da informação, mas da valoração.
Essa burocracia crítica gera alguns problemas visíveis. Vemos Paes dizer que Laurence
Sterne é um ótimo prosador e depois, em um outro texto de circunstância, dizer que
tal autor é um ótimo prosador. Então lemos Sterne e o tal autor e percebemos que
há algum erro terminológico, que há algo de equívoco em um dos dois - ou no autor
do juízo. Em suma, é mais ou menos isso que acho desses intelectuais.
FM - Mencionas alguns nomes fortes na crítica, a exemplo
de Lezama, Calvino, Paz, Camus, Berlin, Eliot, mas todos são igualmente criadores.
A vibração do pensamento e a identificação com o instante mágico da criação estão
aí em consonância. Como pensar em críticos que não tenham sido criadores, a exemplo
de Harold Bloom ou Wilson Martins? O exercício crítico sente-se aí desfalcado de
uma parcela que lhe é essencial?
RP - Talvez o que o poeta possa oferecer de específico
é uma visão estrutural de sua arte, coisa que muitas vezes a um filósofo, historiador
ou crítico literário pode escapar drasticamente e comprometer toda uma leitura.
O poeta também pode executar aquela espécie de crítica em ação, fazer uma ponte
entre a feitura, a confecção da obra, e sua leitura, eliminando o espaço que separa
a ambas. Mas não acho de modo algum que isso seja um desfalque essencial. Décio
Pignatari é um crítico e se crê poeta, e veja só a crítica que ele faz. Você quer
algo mais risível do que um sujeito que tem a obra poética que ele tem usar seu
voto público para votar em si mesmo como um dos maiores poetas brasileiros de todos
os tempos? É aquela velha história: não precisamos de ficção nem de circo - já temos
a realidade e os intelectuais. Acho que aqui estamos em um campo semelhante ao da
primeira pergunta. O mundo de hoje comporta tudo, absolutamente tudo, menos um pensamento
de exceção. Tudo é possível e válido como construção, e assim deve ser tomado, analisado,
desmantelado e destruído, se for o caso. A única coisa inadmissível é partir da
exclusão como premissa, tomar-se a si mesmo, sob qualquer hipótese ou premissa teórica,
como o corolário de um processo, o centro de uma prática, o fim afunilado e último
da história. Quem age assim pretende transformar todos ao seu redor em fantasmas
que chegaram tarde demais ao banquete do conhecimento. E isso é álibi de falsários
que devem ser aniquilados sumariamente.
FM - O Décio Pignatari é naturalmente um alvo fácil,
pela debilidade de sua argumentação crítica. No entanto, tem considerável influência
no meio acadêmico, a exemplo de outras carrancas de proa - Luís Costa Lima, João
Alexandre Barbosa, Heloísa Buarque de Hollanda - que contribuem para minar uma perspectiva
mais abrangente do espírito humano. Funcionam como estetas de uma taxonomia que
resulta em esfacelamento de qualquer objeto de estudo. Como evitar essa espécie
de vazamento de fogo no inferno?
RP - O grande problema que a crítica enfrenta hoje é
uma progressiva disjunção entre as descrições e as práticas. É um problema estrutural,
de consequências graves, porque de difícil diagnóstico. O que acontece é que a teoria
da literatura e a crítica literária são coisas novas, estão a serviço da aferição
de valor dos objetos da cultura em um mundo liberal, regulado pelo dinheiro. O crítico,
por mais que tenha um papel de deduzir o valor das obras do espírito, no fundo acabou
se tornando um leitor especial, um funcionário do saber, um intermediário burocrático,
um entreposto comercial entre o leitor que compra e o escritor que vende. Até séculos
atrás tínhamos algo bastante diferente: doutrinas de artes. Elas eram geralmente
escritas a partir de códigos estabelecidos e visando tão somente o aprimoramento
da prática artística e questões específicas e técnicas dessa atividade. Com a modernidade
houve uma explosão dos referenciais, dos códigos e dos parâmetros, o que acabou
exigindo uma atividade gigantesca do crítico, que muitas vezes sequer sonha com
esse nível de debate. O bom crítico seria aquele que conseguisse se munir de conhecimento
ideológico e histórico, para historiar as formas e os conceitos, de força retórica,
sensibilidade aguda e entrega incondicional ao seu ofício. Na maioria das vezes
essas facetas não vêm conjugadas, o que cria lacunas sérias no juízo que se produz.
Essas lacunas tiveram que ser preenchidas por alguma coisa. E foram. Por quê? Por
agregados teóricos que muitas vezes dão conta apenas da exterioridade do fenômeno
artístico, evitam o seu coração e estão longe de constituir uma verdadeira filosofia
da Forma. Então nos restou epistemologia, metodologia, hermenêutica, glossários,
onomasiologia, semasiologia, estruturalismo, historicismo, semiótica, idealismo,
pragmatismo, entre tantos e tantos outros resíduos discursivos de uma época menos
complicada e provavelmente mais feliz. Muitas dessas vertentes se justificam nas
mãos de um bom crítico, que as usa com o intuito único de fechar o círculo de sentido
da obra e pô-la em seu devido lugar, a partir de um juízo crítico que a situe historicamente
e, a despeito de todo o relativismo, consiga lhe fornecer um valor, na acepção
mais profunda do termo, rigorosamente objetivo. Porque a base da crítica é a fundamentação
do valor, e isso é uma coisa muitíssimo séria. É assustador ver como muitos críticos
procedem como se tivessem tentando preencher o número de toques e de laudas que
o seu editor exigiu ou como se estivessem redigindo uma petição em um cartório.
Resumindo, o que vemos é uma disjunção progressiva e devastadora entre as descrições
e as práticas, que deixaram de caminhar juntas. Temos um aparelho teórico, ideológico
e burocrático descomunal muitas vezes mobilizado para endossar poemas (estou sendo
indulgente) que não suportam uma crítica estrutural mínima de um poeta simplório
que ainda não tenha sido contaminado pela logorreia. E estamos de volta ao núcleo
de nosso problema: a positividade. Se você desmancha o conceito de literatura, e
o faz apoiado em teorias, você faz da literatura uma serva daquilo que deveria estar
a seu serviço e que deveria ser apenas uma de suas dimensões. É o mesmo estrago
causado por quem a quer uma ciência. E o grande cancro aberto nessa dimensão do
conhecimento é que, nesse caso, a teoria funciona como álibi, como fonte inesgotável
de legitimidade que dá autoridade às tais obras e aos ditos poemas. Creio
que seja desnecessário desenvolver aqui o lastro de significados da palavra autoridade.
Não estou propondo uma volta às preceptivas e às doutrinas de arte do século XVII.
De jeito nenhum, tanto porque seria impossível. Felizmente houve essa abertura e
arrebentamos com essa visão mecânica das artes e do mundo. Mas quando um poema vira
ornamento de teorias e o crítico aquele que prescreve suas possíveis interpretações
à luz das teorias que o mesmo poema veicula e visa, então estamos inaugurando um
suicídio simbólico coletivo. A própria fruição estética se torna uma atividade abstrata,
como se comêssemos um fruto feito de enxofre, porque ela deixa de passar pelo gosto
e pelo lado mais empírico da experiência artística: vai direto da obra às estruturas
conceituais vazias que lhe engendraram e que o leitor inconsciente e automaticamente
mobiliza, como um cão adestrado de Pavlov ao ouvir o som do sininho. Creio que isso
tenha consequências nefastas para a cognição. E o pior de tudo é que o fazemos cheios
de civilidade e assepsia, entre um sorriso e outro, e ainda recriminamos quem é
mais contundente em suas críticas e crenças. Quanto aos antídotos, há alguns. Proponho
que comecemos pondo em prática aquilo que Deleuze chama de empirismo radical. Todo
campo de conceitos transcendental, ou seja, que esteja além ou aquém do valor imanente
da obra, deve ser destruído. É uma superestrutura vazia de significado, só subsiste
de maneira tautológica, apoiada em si mesma. Isso tem que ruir. O homem só conhece
aquilo que ele faz, já dizia Vico. O saber teórico é descritivo, pode no máximo
nos dar o desenho exterior de um processo e a consciência do Ser. Só quando nos
imiscuímos nesse processo e o internalizamos como partícipes é que podemos ter de
fato uma ciência do Ser, um conhecimento da essência mesma de um objeto ou de uma
prática. Só então nasce aquele saber só de experiências feito, de que nos fala o
maior poeta da língua portuguesa. Um exemplo: se eu já escrevi um soneto tão bom
quanto os sonetos de Petrarca, Góngora, Quevedo e Mallarmé, uma elegia tão perfeita
quanto as de Propércio e Rilke e uma terza rima da altitude da de
Dante, só então eu terei o direito de dizer que tais formas estão desgastadas
e ultrapassadas, que o verso livre suplantou as formas fixas e representa uma libertação
delas, que o verso morreu ou que a terza rima é um recurso exclusivamente
medieval. Caso contrário, quem o fizer, deve ser tratado como merece: como um perfeito
idiota. É no vácuo estrutural da arte poética que todas as ideologias e teorias
perniciosas se alojam. Comecemos limpando o terreno e concentrando nosso foco na
poesia como fato exclusivamente poético, à revelia dos sentidos políticos,
ideológicos, sociais, filosóficos, morais ou éticos que ela por ventura possa conter.
Acho esse um bom começo.
FM - Em entrevista que te fez para o Rascunho,
Alfredo Fressia comenta a respeito da ausência de vozes latino-americanas entre
teus interlocutores presentes em Transversal do Tempo. Embora não veja tal
presença como indispensável, dá-me curiosidade indagar-te a respeito de dois casos
em particular, o mexicano Octavio Paz e o cubano José Lezama Lima, de quem dizes
ser leitor entusiasta. Antes recordemos uma preocupação tua em relação a Francis
Ponge, quando temes que ele “seja lido como conceito e não como realização”, e que
“sua arte vire receituário para escritores sem assunto preconizarem o silêncio sem
terem dito ainda uma única palavra”. Não crês que o mesmo se passa com os dois poetas
que menciono, considerando não mais o silêncio mas sim a analogia e o barroco -
em um entendimento quando menos gratuito de convergências e impenetrabilidades?
RP - Você fez aí uma ótima conexão. Às vezes parece
que entre nós ler os autores como conceito e não como realização é a própria regra,
não a exceção. É aterrador ver como há pessoas que veem Décio Pignatari e James
Joyce como irmãos espirituais. Há uma diferença gritante entre aqueles que se reivindicam
pertencentes a um paideuma e os autores que o integram. Quem ainda não percebeu
isso não entende absolutamente nada de nada de nenhum dos autores em questão e não
entende absolutamente nada de nada de literatura. Deveria voltar aos bancos escolares.
Da minha parte, confesso que nem sei como é possível seres tão diversos (os integrantes
do paideuma e aqueles que o constroem) habitarem um mesmo planeta. Mas como essa
aproximação se efetiva? Por intermédio de abstrações vazias: progressismo, capitalismo,
vanguarda, radicalidade, invenção, ruptura, transgressão, e toda essa fauna taxonômica
colhida na reflexão teórica de quinta categoria que corre por aí. São palavras que
não dizem absolutamente nada, moedas sem efígie e cheques em branco que os sujeitos
preenchem a seu bel-prazer sem ter que arcar com o ônus de rigorosamente conquistar
o estágio artístico que defendem. Mas essas palavras têm sido o ópio com o qual
os intelectuais vêm se drogando em público no último século. Aqui entra o empirismo
radical para destruir esse castelo de cartas. A dificuldade é que os receptores
da grande tradição da arte moderna, os grandes cabotinos brasileiros, criaram seus
precursores de maneira bem estratégica, e cabe a alguns poucos tolos fazer o caminho
inverso: convalidar essa armadilha que faz deles os descendentes em linha direta
de uma tradição que, não fosse pela sua intervenção teórica desavergonhada, eles
nunca chegariam sequer a representar a sombra da sombra da sombra, como dizia Hesíodo.
Pois bem. Você sabe melhor do que eu que Lezama nunca falou nada de Neobarroco.
O que ele fala é do Señor Barroco, personagem de um dos seus ensaios e protótipo
de certas características criollas autóctones, específicas do homem americano
e da cultura de ultramar. Entre outras, uma das principais características desse
senhor seria a capacidade de estabelecer uma relação com o mundo que passasse sempre
pelo crivo da sensualidade, quer na esfera prática quer na dimensão religiosa e
intelectual. Isso geraria uma voracidade infinita de conhecimento e um gosto pelo
excesso, ambos movidos pelo pacto faustico e pelo movimento luciferino de perquirição
das causas, pelo transbordamento e pela mistura, aspectos que Lezama identifica
nas fachadas das igrejas peruanas talhadas pelo índio Kondori, em um poeta como
Gorostiza ou na erudição onívora que encontramos nos escritos de um autor como o
Inca Garcilaso de la Vega. O fato é que a leitura que temos de Lezama Lima é aquela
filtrada pelo movimento Neobarroso argentino, encabeçado pela figura de Nestor Perlonguer,
e aclimatado ao Brasil pelas mãos do concretismo. Então todo o fundo ontológico
e formal do grande poeta cubano foi transformado em reivindicação ideológica de
uma estética que pretendia fazer da forma um conteúdo, e transformar o sensualismo
mencionado acima em um prazer estéril de manipulação pura e simples de significantes,
o que, com o tempo, transforma a arte poética em uma atividade afásica e reduz todo
o mundo à condição de enunciado. Em último caso, temos uma arte pedante e um deslumbramento
semiológico que não me parecem próprios ao autor de Paradiso e Dador.
Não há maneiras mais ou menos certas de ler um autor, mas sim mais ou menos hegemônicas.
As consequências que toda hegemonia acarreta para o debate em questão são bastante
conhecidas. No caso, seria preciso fazer uma crítica dessas leituras e demonstrar
seus equívocos. Assim estaríamos dando espaço à diversidade de vozes que a voz de
Lezama contempla e apontando novos horizontes artísticos e conceituais, não afunilando
ainda mais a sua compreensão em uma leitura que é muito mais uma apropriação do
que uma leitura, com todos os inúmeros problemas que pesam sobre esta palavra. Já
no que diz respeito a Octavio Paz, não saberia dizer ao certo. Há a excelente abordagem
de Maria Esther Maciel, que me parece uma das melhores. É possível que acentuemos
demais o lado do Paz envolvido com a linguística e com o estruturalismo, comentador
de Lévi-Strauss, autor do Blanco e de alguns ensaios de Signos em Rotação,
sobretudo aquele dedicado à análise do soneto em yx de Mallarmé. Talvez seja o caso
de começarmos a olhar com mais atenção para um outro lado de sua obra, um lado que
flerta com as teorias herméticas e com o pensamento mítico, com a libertinagem e
com o ascetismo, a meu ver representado por alguns magníficos e impecáveis livros
de poemas, comoLa Estación Violenta, pelos seus relatos sobre a Índia e seus
ensaios sobre Sade e Ruben Darío, por Conjunções e Disjunções, pelo seu belíssimo
livro sobre Sor Juana Inés de la Cruz e até mesmo pelo seu pequeno trabalho sobre
Duchamp, onde ele ressalta os traços de um tipo de pensamento selvagem que está
por trás da obra do artista francês. Seria até uma maneira de rever a mistificação
que se criou ao seu redor.
FM - Há autores que se repetem a ponto de se tornarem
previsíveis e outros que se renovam a cada livro com um frescor imenso. Não me parece
que possam ser julgados como menores ou maiores por conta disto. Como lidas, em
tua leitura de uma determinada poética, com esse tipo de oscilação?
RP - Você tem razão ao dizer que isso não compromete
a qualidade. Isso é um registro de temperamento, além de ser uma opção artística.
Podemos até distinguir dois tipos de autores, uns mais personalistas e outros que
veem a arte da literatura como um verdadeiro baile de máscaras. Os românticos se
firmaram em oposição àqueles que eles chamavam de clássicos, que seriam esses autores
mais impessoais e menos preocupados em deixar a marca de sua individualidade nas
obras. Mas o debate existe desde sempre, eu acho. Eu me identifico total e exclusivamente
com os autores que tendem à variação, à mudança, às máscaras, à mediação racional
e artificial do discurso. Mas admiro muitos artistas que por toda a vida escreveram
e reescreveram um único livro, a ponto de se confundirem com a própria obra.
FM - Observemos um caso como o de Milan Kundera, em
que ensaio e narrativa ficcional mesclam-se em um híbrido fascinante. Tens uma dupla
estreia, na poesia e no ensaio. Como se põem em diálogo ambas realizações?
RP - O que posso dizer é que a poesia e o ensaio, junto
com a narrativa breve (conto ou fábula) são os gêneros literários que me dão mais
prazer e nos quais me sinto mais à vontade. Agora mesmo estou trabalhando em uma
narrativa longa. Tanto que seu subtítulo é: uma rapsódia. Ela é feita de capítulos
relativamente curtos, se passa em um nível fantástico e é muito veloz. Não sei se
pode ser chamada de romance. Ultimamente tenho lido muita filosofia e poesia. Acho
que essa estreia é algo natural. Sempre gostei muito desse tipo de literatura crítica
e reflexiva, desde menino mesmo, mas me vejo em primeiro lugar como poeta. Na adolescência
era um entusiasta de Sartre e Camus e isso também me levou a fazer a faculdade de
Letras. A única coisa que não admito e que não faria nem com um revólver na cabeça
é colocar o meu trabalho poético como uma espécie de causalidade natural da história
da literatura que esboço nos ensaios. O dia que alguém vir esse tipo de coisa nos
meus escritos gostaria de ser dura e impiedosamente criticado. Odeio com todas as
minhas forças todo tipo de centralidade e teleologia. É óbvio que há algo entre
eles e o que faço. Falo desses autores porque amo suas obras. Mas quem se coloca
no topo de uma cadeia evolutiva e faz dos autores que glosa os precursores de si
mesmo são eunucos que nunca criaram nada. Toda a crítica que venho empreendendo
pode ser reduzida a uma crítica ao conceito de Evolução. Não posso pactuar com aquilo
que detesto. Procuro sim fazer o seu avesso, destruir a ideia de evolução e demonstrar
que as coisas não se superam - mas apenas se sucedem. É engraçado: dizem que as
artes prenunciam o que ainda vai acontecer nos outros campos do conhecimento. Hoje
em dia é o contrário: enquanto os físicos falam em tempo complexo e dizem que a
matéria não existe, os artistas são darwinistas carolas e materialistas de carteirinha
assinada. É o que sempre digo: antes tínhamos o beletrismo acadêmico, hoje temos
o bom-mocismo de vanguarda. Não sei o que é pior.
[2003]
[Entrevista publicada na Agulha Revista de Cultura # 34 — Dezembro
de 2003.]
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