FM Entende o poeta e ensaísta colombiano Harold Alvarado Tenorio que deve
a crítica agir como “comentário e reflexão sobre um objeto artístico a partir
de sua própria linguagem”, concluindo que “para ser capaz de falar variadas
linguagens necessitamos de muito ócio, muita dedicação ao aprendizado dessas
tonalidades”. Você tem uma vida inteira dedicada ao exercício crítico. Como
defende tal exercício?
SA Em primeiro lugar, não me considero propriamente
um crítico, e sim (se isto não for imodéstia) um historiador da literatura.
Claro que há procedimentos críticos na análise de textos e, por outro lado, não
posso fazer história se trato de autores de hoje, o que tem ocorrido vez por
outra. A meu ver, existe a crítica que eu chamaria de normativa (que pretende orientar
o escritor) e a descritiva (que pretende orientar o leitor). Seriam os casos,
respectivamente, de Machado de Assis e Eugênio Gomes. Se há crítica no que
escrevo, estaria no segundo modelo.
FM Segundo sua própria observação, José Albano foi um desses poetas
impossíveis de ser inseridos em uma territorialidade estética única, não
podendo ser convocado a compor, com exclusividade, o quadro de nenhuma escola
literária de seu tempo. Isto acaso o situa em uma posição superior a todos os
seus pares? Seria correto dizer que José Albano é o primeiro grande poeta
cearense?
SA Para mim, a grandeza de José Albano está na
qualidade de sua poesia e não no fato de ele não poder ser enquadrado em uma
corrente estética (um dos raros escritores a quem chamo de gênio foi um puro
romântico: Victor Hugo). Aliás, a grandeza de José Albano (considerado por
Manuel Bandeira um “altíssimo poeta”) mostra a inanidade crítica de não me
lembra quem que afirmou, nos anos 20, que vale mais um poema ruim e modernista
do que um que seja bom e passadista. Ninguém mais passadista do que Albano. A
última pergunta não é fácil: eu diria que antes de Albano tivemos Juvenal
Galeno (cuja obra tem sido subestimada), Joaquim de Sousa e Lívio Barreto. Mas
Albano é, sem dúvida, um dos maiores poetas cearenses de todos os tempos.
FM Recentemente se publicou uma segunda edição (revista e ampliada) de
seu A padaria espiritual
e o Simbolismo no Ceará. Como
sabemos, o Simbolismo no Ceará possui uma característica singular, que é o fato
de haver antecedido o parnasianismo, isto sem falarmos no aspecto do mesmo
haver sido mais criador. Em teu livro observas que o Simbolismo no Ceará deu-se
simultâneo “ao movimento oriundo do Paraná”, ao mesmo tempo em que mostrando-se
independente deste. Quais os traços que diferenciam um do outro?
SA Ao afirmar que o Simbolismo cearense de Lopes
Filho e Lívio Barreto era independente do Simbolismo do sul do país, quis
significar que ele tinha raízes próprias, não sendo caudatário do grupo da Folha
Popular, como o de outros Estados, cuja origem está no Paraná. Mas há
traços distintivos nos nossos poetas, uma vez que neles a influência de poetas
portugueses (Antônio Nobre principalmente) foi bem maior do que em Cruz e Sousa
e seus seguidores. É interessante também o fato de a corrente aqui haver
surgido na mesma época do movimento no sul, o que raramente acontece, tendo
ocorrido apenas por volta de 1873, com o Positivismo da Academia Francesa de
Rocha Lima, Tomás Pompeu, Capistrano de Abreu e outros. Gostei de você ter mencionado
o fato de o Simbolismo cearense ter sido anterior ao nosso Parnasianismo. Esta
é uma de minhas poucas descobertas…
FM Houve um
retardamento histórico do Brasil no tocante ao cultivo da poesia moderna.
Enquanto ostentávamos o parnasianismo como uma novidade literária, países
europeus e hispano-americanos já envolviam-se diretamente com o Modernismo.
Apresentava-se então, entre nós, um quadro de subserviência total no tocante a
padrões literários já ultrapassados. Como esta situação iria influir no surgimento
do movimento modernista de 1922? Segundo observa Ivan Junqueira, verifica-se
neste uma primazia de um “nacionalismo exacerbado que tangencia o fascismo”.
Penso também em um outro grave equívoco: enquanto inúmeros poetas
hispano-americanos (tanto modernistas quanto vanguardistas) rejeitavam
veementemente o Futurismo de Marinetti, o Brasil o recebia de braços abertos, a
partir da exaltação que lhe fazia Oswald de Andrade.
SA Fala-se muito no retardamento histórico do
Modernismo no Brasil, mas ninguém se lembra de observar que o mesmo aconteceu
com outras correntes literárias. Tomando por base a França, de onde vinham as
ideias (inclusive algumas do Modernismo, com Apollinaire, Max Jacob, Tzara e
outros), veremos que o Romantismo, inaugurado no Brasil por Magalhães em 1836
(com os Suspiros poéticos e saudades), já existia em 1801 no Atala
de Chateaubriand, para não irmos à Alemanha, onde Goethe havia publicado o Werther
em 1774! O Parnasianismo, que se prenunciava vivamente nos Esmaltes e
camafeus (1852), de Gautier, e se implantou na França depois do Parnaso
contemporâneo (1866), desembocou aqui em 1878, com as Canções românticas,
de Alberto de Oliveira. O Simbolismo, que teve como precursor Baudelaire, com As
flores do mal (1857), no ano de Madame Bovary, de Flaubert, explodiu
com o manifesto de Moréas, em 1886, e no Brasil, apesar das notas precursoras
da década de 80, só se inaugura com o Missal e os Broquéis de
Cruz e Sousa, em 1893 (ano do Phantos, de Lopes Filho). Iria ficar como
uma corrente subterrânea, como diria Andrade Muricy, sem desbancar o
Parnasianismo. Mas é bom que se lembre que Os troféus, de Heredia, um
dos frutos mais radicais do Parnasianismo francês, foram editados lá nesse ano
de 1893, e com grande repercussão. Quanto ao Modernismo hispano-americano, era,
como disse Gilberto Mendonça Teles, uma “mistura de formas
parnasiano-simbolistas”, com predomínio destas últimas, acrescentemos nós. É
pelo menos o que se pode depreender da leitura dos versos de um Rubén Darío, de
um Santos Chocano ou de um Amado Nervo. Quanto ao fascismo contido no
nacionalismo de alguns modernistas da primeira hora, sabemos que Plínio Salgado
era do grupo Verde-Amarelo, e Affonso Romano de Sant’Anna já apontou o caráter
estado-novista (ou seja, fascista) do Martim Cererê, de Cassiano
Ricardo. O que faria contraponto com o comunismo de Oswald de Andrade e,
depois, Jorge Amado e Graciliano Ramos. No Ceará, tive oportunidade de apontar
notas integralistas na poesia de Sidney Neto, o que por sua vez contrastaria
com o comunismo de Jáder de Carvalho.
FM Só quero lembrar aqui que, do ponto de vista ideológico, como bem
recorda Wilson Martins, Oswald de Andrade não foi além de um “comunismo verbal”.
Mas gostaria de observar algo acerca do Modernismo hispano-americano. Em
primeiro lugar, diante do papel fundamental que desempenharam poetas como o
colombiano José Asunción Silva (1865-1896), o peruano José María Eguren
(1874-1942), o argentino Leopoldo Lugones (1874-1938), o uruguaio Julio Herrera
y Reissig (1875-1910), não se pode mencionar autores de menor importância, a
exemplo do peruano José Santos Chocano (1875-1935). Como assinala Octavio Paz,
os poetas modernistas foram além da linguagem criada por eles mesmos. Diz o
mexicano que os modernistas hispano-americanos (e também os espanhóis, segundo
ele) prepararam, “cada um à sua maneira, a subversão da vanguarda”. No tocante
a Rubén Darío (1867-1916), afirma ainda Octavio Paz que ocupa um lugar central,
sobretudo por tratar-se do “menos atual dos grandes modernistas”, concluindo
que o poeta nicaraguense não pode ser visto “como uma influência viva mas sim
[como] um termo de referência: um ponto de partida ou chegada, um limite que há
que se alcançar ou ultrapassar”. Entendo, como Octavio Paz, que o Modernismo
hispano-americano, por sinal surgido antes do Modernismo espanhol, embora seja
considerado um equivalente do Parnasianismo e do Simbolismo francês,
desempenhou um papel outro, ou seja, o de “nosso verdadeiro romantismo”, no
dizer do poeta mexicano. Uma leitura da obra dos poetas que menciono — e mais
os mexicanos José Juan Tablada (1871-1928) e Ramón López Velarde (1888-1925), e
o peruano César Vallejo (1892-1938) — mostrará que fazemos uma avaliação
inadequada do Modernismo hispano-americano, cuja dimensão poética supera o
equívoco de reduzi-lo a mera equivalência das escolas francesas. Como bem
lembra ainda Octavio Paz, o Modernismo hispano-americano “iniciou-se como uma
procura do ritmo verbal e culminou em uma visão do universo como ritmo”. Melhor
ainda sintetiza Jorge Rodríguez Padrón, ao definir que “a América Hispânica dá
à luz, com o Modernismo, a imagem de seu futuro enquanto que único espaço para
estabelecer sua identidade possível”. Apesar da extensa digressão, gostaria de
ouvir um pouco mais sua opinião acerca do “retardamento histórico” de nossa
cultura se relacionada com outros centros. A razão desse eterno retardamento
não teria a ver com o fato do Brasil, segundo Franklin de Oliveira, ser “uma
nação sem paideia, pátria que não construiu o protótipo do homem que a deve
guiar no futuro”? Ou seja, sem memória não há consciência histórica.
SA Ao citar Santos Chocano, evidentemente pensei
apenas na caracterização da corrente, do estilo de época, parecendo-me
irrelevante o fato de o poeta poder ser considerado menor do que os outros
citados. Dizia Paul Van Thieghem que “é lendo autores de menor envergadura, e
outros até completamente obscuros, que se descobre tudo o que é comum a eles e
aos maiores”. Mas, com relação ao “retardamento histórico” que geralmente
ocorria antes do Modernismo, penso que não serei eu quem vai encontrar
explicação para tal problema, ainda mais se lembrarmos que, do Rio para o
Ceará, houve atraso de trinta anos com relação ao Romantismo, menos com o
Realismo (A fome, de Rodolfo Teófilo, é de 1890), e de outros trinta
anos com o Parnasianismo, mas tanto o Positivismo da Academia Francesa (por
volta de 1873) quanto o Simbolismo da Padaria Espiritual foram simultâneos aqui
e no sul. Encontro explicação para estes dois fenômenos no intercâmbio que
havia mais entre Fortaleza e a Europa do que entre nossa capital e o Rio de Janeiro.
E os outros?
FM Uma das provas da grande agitação intelectual que se vivia no Brasil
dos anos 20 é justamente uma quantidade enorme de revistas literárias
publicadas em vários locais. No Ceará não tivemos propriamente uma revista, mas
houve uma notável repercussão a partir da publicação do suplemento Maracajá, do jornal O
Povo. Embora a Revista de
Antropofagia tivesse reproduzido
alguns artigos de Maracajá,
havia uma certa rivalidade entre ambas facções modernistas. Em seu livro O
Modernismo na poesia cearense há
referência a um incidente envolvendo um artigo de Antônio Garrido, por exemplo.
Quais as causas diretas dessa “rivalidade”? E quais relações mantinham os
diretores de Maracajá com
outras publicações da mesma época?
SA Não vejo propriamente rivalidade, mesmo entre
aspas, entre a Revista de Antropofagia, de São Paulo, e Maracajá,
de Fortaleza. Pelo contrário: acho incrível o pessoal haver concedido espaço à
gente do Ceará, o que não era usual. No que tange ao incidente, o que aconteceu
é que os paulistas não quiseram transcrever as críticas que Demócrito Rocha
fizera ao tipo de Modernismo deles. Sobre a repercussão do suplemento cearense,
O Povo registrou referências n’O Globo, do Rio, em maio de 1929,
e no Diário da Tarde, de Curitiba, em julho. Não me lembro de
outras, mas já é muito para um suplemento que teve apenas dois números.
FM Segundo Alfredo Bosi, o Simbolismo no Brasil viu-se obrigado a
conviver com um “longo período realista que o viu nascer e lhe sobreviveu”,
observando que se o mesmo tivesse conseguido “romper a crosta da literatura
oficial” […] “outro e mais precoce teria sido o nosso Modernismo, cujas
tendências para o primitivo e o inconsciente se orientaram numa linha próxima
das ramificações irracionalistas do Simbolismo europeu”. Por outro lado,
destaca Vera Lins que as tendências atribuídas ao Simbolismo europeu por Bosi
eram também características do Simbolismo brasileiro. O mesmo se poderia dizer
do Simbolismo no Ceará? Acaso teriam sido essas tendências “para o primitivo e
o inconsciente” que dificultaram uma ação maior do Simbolismo no âmbito da
literatura brasileira? Enlaço aqui com uma afirmação de Franklin de Oliveira de
que “o parnasianismo só obteve anacrônica permanência no Brasil porque, entre
nós, em sua época, os simbolistas não alcançaram a audiência que lhes era
devida”.
SA Não me parece que o Simbolismo brasileiro haja
tido as mesmas características do europeu; o nosso foi bem mais superficial.
Qual o poeta nosso que, além de Kilkerry (e nem sempre), ostentou um hermetismo
que lembrasse Mallarmé? No que toca à versificação, Andrade Muricy observou com
razão que ele não inovou: “Os sonetos de Cruz e Sousa mantêm a estrutura
métrica parnasiana”. Por sinal, num estudo publicado na Revista de Cultura
Vozes em 1977, ao falar de desarticulações rítmicas e fugas aos padrões
métricos, apontei casos em
Emiliano Pernetta , Alphonsus de Guimaraens, Silveira Neto,
Lívio Barreto e outros, mas notei que Cruz e Sousa e o próprio Kilkerry
(inovador na mensagem) seguiam rigorosamente a versificação clássica. No Ceará,
há “irregularidades” métricas em
Lopes Filho e em Lívio Barreto , mas seu Simbolismo é ainda menos
radical, porque bebido principalmente em Antônio Nobre , a
influência maior. Com relação à “anacrônica permanência” do Parnasianismo no
Brasil, temos um problema de aritmética: como foi dito na resposta anterior, Os
troféus, de Heredia, são de 1893, e as Poesias, de Bilac, de 1888,
anteriores portanto. O certo é que, como lembra Afrânio Coutinho, os movimentos
literários se imbricam; é falsa a noção de que, na França, iniciado o
Simbolismo, o Parnasianismo morreu. O livro precursor do Simbolismo na França
todos sabem que é As flores do mal, de Baudelaire, de 1857; se tomarmos
o ano dos Esmaltes e camafeus (1852), de Theóphile Gautier, como marco
precursor ou mesmo iniciador do Parnasianismo, dele para o livro de Heredia
(que não marca o fim da corrente), teremos 41 anos. No Brasil, de 1878, ano da
estreia de Alberto de Oliveira, para 1922 (ano da Semana de Arte Moderna),
temos 44 anos. Em suma: o anacronismo não nos parece tão chocante à luz da
aritmética.
FM Tanto Amadeu Amaral quanto Franklin de Oliveira sustentam a carência
de base filosófica em
nosso Modernismo , afirmando este último que o mesmo
limitou-se tão-somente a “romper com o passado”, em nada fundamentando essa
ruptura. Como situar esta observação dentro do panorama do Modernismo ocorrido
no Ceará?
SA O Modernismo do Ceará é fruto do movimento nascido
em São Paulo ,
e o que se disser de um vale para o outro. O que se queria mesmo era fazer algo
de diferente. Basta lembrar que, como observo no meu livro a que você se
refere, os modernistas daqui estavam em estreita aliança com os rapazes da “Antropofagia”,
mas apesar disse se diziam pertencentes ao “verde e amarelo”, quando, em São
Paulo, “antropófagos” e “verde-amarelistas” andavam às turras…
FM Também pediria uma avaliação sua acerca da revista Clã, que me parece um dos
marcos fundamentais da literatura brasileira, inclusive pela dilatada extensão
desta aventura. É possível traçarmos uma analogia de seu conteúdo editorial com
o de outras publicações da época, a exemplo da paranaense Joaquim e da carioca Orfeu?
SA Não tenho toda a coleção da revista Clã,
que teve trinta números (o último é o 29, mas houve um número zero antes do
número 1), mas, com base nos números que possuo e nas obras de vários do grupo
escrevi um capítulo de mais de 70 páginas sobre o grupo Clã em meu livro Literatura
cearense (1976). E, como tenho repetido exaustivamente, considero Clã
responsável pela implantação definitiva do Modernismo no Ceará nos anos 40. Se
Antonio Girão Barroso ostenta traços do primeiro Modernismo ao lado de poemas
concretos e Aluízio Medeiros tem notas surrealistas e chega quase ao poema
Práxis, Artur Eduardo Benevides, a princípio schmidtiano, tem a maior parte de
sua poesia na dicção da Geração de 45. Conheço inúmeros periódicos do
Modernismo brasileiro, mas não as que você cita.
FM Confesso aqui que também eu não conheci a publicação paranaense. Se a
ela fiz referência é porque a encontrei citada por Gilberto Mendonça Teles, em
seu Vanguarda europeia e
Modernismo brasileiro (12ª
edição, 1994), que curiosamente não faz menção à revista Clã. Quanto à carioca Orfeu, foi fundada em 1947, por Fernando Ferreira
de Loanda, Fred Pinheiro, Ledo Ivo e Bernardo Gersen — tendo abrigado
amplamente os nomes vinculados à Geração de 45. Seguindo em nossa conversa,
observo tanto quanto nos momentos iniciais da poesia de João Cabral e Ledo Ivo,
é possível identificar uma forte influência do Surrealismo na obra de Francisco
Carvalho e José Alcides Pinto. Em grande parte, graças à hegemonia do
Concretismo — “o prestígio e a influência patroladora dos [irmãos] Campos”,
segundo Gilberto Mendonça Teles —, não circulou entre nós o Surrealismo com a
mesma força com que ocorreu em outros centros latino-americanos. Dentro da
literatura cearense é possível identificar outras circunstâncias — penso em sua
referência ao Aluízio Medeiros — que possam ser vinculadas ao legado
surrealista?
SA No Ceará, que eu lembre, além dos três poetas
citados (Aluízio Medeiros, Francisco Carvalho e José Alcides Pinto), há
momentos que me parecem surrealistas em Artur Eduardo Benevides
quando diz, por exemplo, que a solidão, “fêmea marinha”, é “grande gato amarelo
comendo mil guitarras”. Talvez em Iranildo Sampaio também. E nem preciso falar de
você mesmo, uma vez que Assis Brasil, n’A poesia cearense no século XX,
fala explicitamente de sua “adesão ao Surrealismo”.
FM Seu nome encontra-se diretamente vinculado ao estudo crítico da
literatura cearense. Neste sentido, são de extrema importância, além daqueles
que aqui já citamos, livros como Dez ensaios de literatura cearense (1985) e Novos ensaios de literatura cearense (1992), onde encontramos avaliações relevantes da obra de Rachel de
Queiroz, Moreira Campos, José Alcides Pinto, Milton Dias e Francisco Carvalho.
São também de importância fundamental algumas edições de autores cearenses
organizadas por você, como é o caso recente de Poesia completa, de
Aluízio Medeiros (1996). Contudo, limitando o raio de ação de sua visão crítica
ao âmbito da literatura cearense, não acredita correr o risco da repetição ou —
o que seria ainda pior — do afrouxamento desta visão crítica, desgastando-a na
avaliação de obras de menor importância?
SA Você mencionou apenas escritores contemporâneos
(aos quais eu acrescentaria Otacílio Colares, Artur Eduardo Benevides, Linhares
Filho, Luciano Maia e Nilto Maciel, sem falar em Jáder de Carvalho e Edigar de
Alencar, todos estudados nesses livros), mas faço questão de acentuar que,
embora contemple volta e meia a obra de autores atuais, a minha preocupação
maior é com os escritores do passado, notadamente os pouco estudados. Na
verdade, meu objetivo tem sido uma revisão da nossa história literária. Mas,
apesar de considerar praticamente encerrado esse trabalho (meu próximo livro, a
ser publicado brevemente, é Para uma teoria do verso; além disso, estou
escrevendo uma biografia de Adolfo Caminha e há anos trabalho num livro sobre o
Parnasianismo brasileiro, tão pouco compreendido hoje quanto o Simbolismo antes
do trabalho de Muricy), penso haver dado minha contribuição ao estudo da
Literatura Cearense e me satisfaz o fato de haver revelado textos desconhecidos
de Joaquim de Sousa (notável poeta romântico), Paula Barros, Américo Facó e
outros. Mesmo havendo publicado alguma coisa em São Paulo , no Rio de
Janeiro e até em Portugal, contento-me em ser um escritor estadual, ou mesmo
municipal…
FM Ao referir-me tão-somente aos nomes arrolados na pergunta anterior,
não o fiz estabelecendo nenhum critério de valor — embora confesse minha
preferência por eles, e nunca pelos que você menciona a título de complemento
de minha lista, excetuando parcialmente a poesia de Edigar de Alencar e a prosa
de Nilto Maciel —, mas sim evitando cair num acúmulo exaustivo de nomes. Mas
voltando a seu interesse maior, o de resgate histórico de obras fundamentais
perdidas no tempo, caídas em esquecimento, recordo que Adolfo Caminha, em suas Cartas
literárias (1895), escrevia: “Nada de Simbolismo: Verlaine está proibido na
imprensa nacional. Um poeta de talento não pode escrever versos errados e papa
Verlaine (ó manes de Castilho!) ‘erra’ desgraçadamente.” Está claro que
mostrava sua simpatia em relação ao Simbolismo, ao mesmo tempo em que disparava
contra o triunfo da mediocridade. O que nos traria hoje, no sentido de uma
iluminação de nossa cultura literária, uma biografia de Adolfo Caminha?
SA Nem
sempre, nas Cartas literárias, Adolfo Caminha demonstra simpatia pelos
simbolistas, chegando mesmo a desejar que Artur Azevedo escreva uma obra nova,
que “fosse um exemplo, uma lição para essa mocidade que anda se iludindo com os
simbolismos de uma arte falsa e pobre, rebuscada em Verlaine” (p. 197). Quanto
à ideia de fazer uma biografia do autor de A normalista, é o caso de eu perguntar por que uma
biografia de Zola, ou de João do Rio, ou de Assis Chateaubriand, ou de
Garrincha, ou ainda de Noel Rosa ou de Orestes Barbosa. Creio que qualquer
pessoa que atinja a fama, seja na literatura, no jornalismo, no esporte ou na
música popular desperta o interesse do leitor para sua vida. Só no campo da
literatura brasileira, há várias biografias de Fagundes Varela, de Castro
Alves, de José de Alencar, de Machado de Assis e de Olavo Bilac. Penso que
Adolfo Caminha, que tem tido pelo menos dois romances reeditados ao longo dos
tempos (A normalista e Bom-crioulo), e cuja vida, apesar de relativamente
breve, tem lances algo dramáticos, está merecendo a homenagem de uma biografia,
naturalmente com alguns comentários a respeito de sua obra.
FM Você disse que o Parnasianismo brasileiro é “tão pouco compreendido
hoje quanto o Simbolismo antes do trabalho de Muricy”. Esta má compreensão
teria a ver com uma opulência vocabular sacrificando a própria expressão das ideias,
característica bastante peculiar ao Parnasianismo, chegando mesmo ao que
Franklin de Oliveira denomina de “promiscuidade retórica”? Ou acaso seria outra
a razão de sua errônea avaliação histórica?
SA Na verdade, há vários tipos de incompreensão. O
Parnasianismo desempenhou um papel de certa forma antipático: estética
dominante, como que abafou o aparecimento do Simbolismo que, mesmo dispondo de
revistas, não conseguiu impor-se. Mas aqui entra a primeira incompreensão: o
fato de os simbolistas não haverem atingido o público (enquanto Bilac era lido
e até decorado) prova que o Parnasianismo não foi aquela corrente impassível
que nem na França conseguiu ser sempre. Por outro lado, a culpa disso não cabe
aos parnasianos, mas aos próprios simbolistas que, com seu vocabulário cheio de
arcaísmos e neologismos, fecharam-se na famosa “torre de marfim”. Outra
incompreensão é a afirmação de que os chamados parnasianos, porque atingiram o
grande público, eram superficiais, pois como lembrou Alceu Amoroso Lima, Bilac
reuniu, “em torno de sua musa, um entusiasmo, ao mesmo tempo culto e popular,
só comparável, antes dele, ao de Gonçalves Dias e de Castro Alves e, depois
dele, a ninguém mais”. Outra incompreensão diz respeito a Alberto de Oliveira:
Sílvio Romero disse uma vez que ele era “o parnasiano em regra, extremado,
completo, radical”, e isso, que vale apenas para uma parte de sua volumosa
obra, é repetido até hoje, ainda agravado com a mania que os autores de livros
didáticos têm de reproduzir o famigerado “Vaso grego”, em que os hipérbatos me
parecem mais barrocos do que parnasianos. Leia “Alma em flor”, poema composto
de vários poemas menores, de versos trabalhados mas de emoção puramente
romântica, e se verá que não é correta a generalização. Isto eu demonstro em Apolo
versus Dionisos (1978), opúsculo de pouca repercussão, apesar de ter
merecido um comentário de Domingos Carvalho da Silva na Revista de poesia e
crítica, de Brasília. Diz-se que Alberto é só forma, sem lembrar, por
exemplo, “O pior dos males”: enquanto Vicente de Carvalho dizia que “só a leve
esperança, em toda a vida, / disfarça a pena de viver, mais nada”, Alberto de
Oliveira diz: “Ela é o pior dos males que há no mundo, / pois dentre os males é
o que mais engana”. Já se falou também na falta de originalidade do poeta, e eu
lembro o soneto “Ironia”, em que o poeta, ao falar de um vidro quebrado, diz
que ele “parece estar-se a rir de estar ferido”. Quanto a Raimundo Correia,
outro grande poeta (que forma, com Bilac e Alberto, a famosa “trindade” da
corrente), foi considerado plagiário (por causa do “Mal secreto”, bebido em
Metastásio e de “As pombas”, inspiradas em Gautier), mas tem sido poupado,
talvez pelo fato de Manuel Bandeira, secundando João Ribeiro, o considerar o
maior dos três, opinião não seguida por Ivan Junqueira que, a meu ver, incorre
em falha no julgamento que faz de Alberto de Oliveira. A verdade é que de
qualquer corrente estética (sem exceção) não é difícil sair catando momentos
mais infelizes para fundamentar argumentos equivocados.
FM Você tem uma teoria do verso a ser brevemente publicada. Até que ponto
ela contempla as diferenças entre prosa e poesia? Que lugar encontra em sua
teoria o poema em prosa, largamente cultivado pela modernidade?
SA A proposta do livro se encontra no próprio título:
Para uma teoria do verso. Assim, limito-me a falar exclusivamente do
verso, que já é um campo bastante vasto, deixando a prosa para quem queira
estudá-la. No que toca ao poema em prosa, tão praticado a partir de Baudelaire,
por mais poético que seja será sempre prosa, fora portanto de minhas cogitações
nesse livro. Gostaria de acrescentar que ainda aqui não me afasto da visão
histórica, pois estudo os versos dentro das correntes estéticas, ou estilos de
época, razão por que jamais uso a expressão versificação tradicional, tão comum
em trabalhos dessa natureza. É que, segundo demonstrou Péricles Eugênio da
Silva Ramos, a metrificação de nossos românticos (e dos poetas anteriores) era
a espanhola, em que se contava uma sílaba além da tônica final, o que, nos
versos compostos, dava resultados que os parnasianos não entendiam e por isso
consideravam simplesmente erro, o que, diga-se de passagem, tem tido
repercussões até hoje. Faço questão também de desfazer o equívoco de que foi
Mário Pederneiras quem primeiro fez verso livre no Brasil, quando o que ele
usava era a polimetria.
[2001]
[ Entrevista com Sânzio de Azevedo (Brasil, 1938), publicada em Invenção
do Brasil. São Paulo: Editora Descaminhos, 2013. http://www.amazon.com/Inven%C3%A7%C3%A3o-Brasil-entrevistas-Portuguese-Edition-ebook/dp/B00FTBMR24]
Nenhum comentário:
Postar um comentário