FM Estimando tua condição de filho de
imigrantes — esse ser ambíguo e privilegiado, ao mesmo tempo
estrangeiro e nativo —, pode-se
ligá-la à condição essencial do poeta, vivência a partir de um duplo exílio, em
que a realidade será sempre observada sob dois enfoques: o dentro e o fora de
cada evidência. Querer viver simultaneamente nos dois mundos, o
factual e o onírico, esta seria a
obsessão central de Per Johns?
PJ É uma
síntese adequada do sentido profundo de minha trilogia, uma duplicidade
radical, de raiz. E chamar de obsessão esse duplo exílio não me parece fora de
propósito. Ele se esgalha em múltiplos aspectos. Acoplada à duplicidade ou
inerente a ela existe a estranheza de uma vida que se afasta de si mesma, que
se observa e se manipula de fora para dentro. Nesse sentido, o mundo
onírico é mais verdadeiro do que o factual, porque se reporta a raízes que o
mundo factual — vale dizer, construído — perdeu de vista. A cisão dos
personagens não é só dos personagens; é de nossa cultura coletiva. O que
distingue os personagens ficcionais das pessoas reais é
a consciência da cisão. O risco de ser chamado de louco.
FM Umas curiosidades soltas: a verossimilhança
é aspecto levado em conta? A intensidade se contrapõe à densidade? Há
abordagens de maior ou menor significado? Quais os truques para se deslocar a
fonte da confidência? Calma. A pergunta é outra. Até que ponto a dissecação de
um texto pela crítica correspondente à inquietude criativa?
PJ A
dissecação de um texto corresponde à vivissecção de um o organismo. Passa-se a
compreender como funciona o mecanismo, suas partes interligadas, mas mata-se
o significado. Sacrifica-se a vida, que é um dentro inextrincável.
Em outras palavras, a vida é sempre particular e
inapreensível. Nesse sentido, para ater-me a um exemplo que me é caro, eu
perguntaria: são verossímeis as aves de arribação? Explicam-se?
FM Defende Milan Kundera que um
romancista deve sistematicamente dessistematizar seu pensamento, dar um
pontapé na barricada que ele mesmo ergueu em torno de suas ideias. O que pensas a respeito?
PJ Um dos
personagens nodais de Navegante de opereta, o professor Frater
Taciturnus, é uma encarnação clara desse pensamento de Kundera. Ele está sempre
dando pontapés nas barricadas que o defendem de si mesmo, pondo-se solto no ar,
sem chão, fadado a recomeçar sempre. Como Sísifo. O narrador define o que ele
quer dizer, assim: “Em suma, joga-se fora a escada com que se subiu pergunta acima”.
Tenho muitas afinidades com Kundera. Tangenciamo-nos. A propósito, fui um dos
primeiros a mencioná-lo no Brasil, em artigo para o jornal O Globo,
em 05/11/78.
FM Ao conversarmos sobre uma menção a Stefan
Zweig, em entrevista que fiz ao poeta Donizete Galvão, me disseste: o
pior da guerra é que seus horrores são por assim dizer higienizados com a
traição das palavras, justamente a ferramenta de trabalho de quem precisa se
concentrar na poesia. Vivemos em uma
sociedade em que as palavras são traídas constantemente. Ao serem esvaziadas de
sentido, perdem por completo qualquer valor. Curiosamente esse esvaziamento de
sentido é compactuado por algumas tendências estéticas — quer pensemos na
poesia pura ou no Concretismo. Como restaurá-las?
PJ Acredito que
só seja possível com a restauração de um hábito que se vem perdendo, o da
leitura. Mas não dinâmica ou quando o ler é meramente
acessório. Ler, no sentido em que uso o termo, implica a redescoberta da
multiplicidade de cada palavra, não meramente etimológica, mas existencial. Um
reviver as palavras. Ocorre-me sempre como exemplo desta revivescência
necessária — que é lenta, e antes se conquista do que se apreende — o nome dos
lugares de um país como a Dinamarca. São os mesmos de priscas eras. Não foram modificados:
estão na raiz da língua. Cada nome de lugar — até certo ponto incompreensível
para um usuário do idioma atual — tem uma riqueza semântica que restaura o
significado do ato de ler, vale dizer, é um mergulho em estratos, por assim
dizer, paradoxalmente, indizíveis. Entendo que cada pessoa tem o seu próprio e
intransferível horizonte de leitura. Mas como restaurá-lo, não saberia
responder.
FM Algo intrigante: Beckett buscava o que ele
próprio chamava de desintegração completa, ou seja, nenhum eu, nenhum ter, nenhum ser. Já o João Cabral optou por uma poesia onde
o eu não falasse diretamente, mas sim através das coisas. Quaisquer que sejam as técnicas
empregadas, não acreditas que toda criação seja autobiográfica? Tais técnicas
aparentemente insólitas não te parecem apenas variações de uma afirmação
humanista, que surgem exatamente a contrapelo de uma banalização do ser humano?
PJ Transferiria
o que disse da leitura para a vida. Ao contrário de ter uma vida que é de
todos, urge que as pessoas tenham uma vida que é sua. É claro que isso só é
possível no nível onírico e não factual. Por trás das identidades factuais que
o cotidiano impõe é preciso que cada um descubra seus veios oníricos
diferenciados, e viva-os, aquém e além de todas as necessidades práticas.
Abre-se aí uma riqueza de perspectivas que é o contrário da banalização e do
tédio de estar-se a todo instante à procura de uma qualquer coisa exterior,
desprezando o manancial de si mesmo. Pelos mesmos motivos, deve-se entender
qualquer criação autêntica como necessariamente autobiográfica. A objetividade
é fruto de uma escolha.
FM Não escondo minha predileção, diante de tua
obra, por Navegante de
opereta (1998), por encontrar
ali o melhor retorno à ficção, no sentido de uma unidade entre lírica e
narrativa. Trata-se, portanto, de escrever não governado pelos ditames de um
gênero literário, mas sim pela fascinação que lhe desperta sua visão de mundo
através da escrita?
PJ Acredito
que toda minha obra se assenta em um tripé: a narrativa, a poesia e o ensaio.
Estão misturados, não podem ser separados. Os três estão sempre juntos, embora
haja predominância de um ou outro dependendo das circunstâncias. Por sua
própria natureza e por sua posição dentro da trilogia, o Navegante de
opereta é mais reflexivo e panorâmico. A característica do personagem
dúplice radica em uma unificação que, nem bem se impõe, e já se estilhaça de
novo em múltiplas imagens, onde se alternam veios ensaísticos, poéticos e
ficcionais, mas o fio da meada da urdidura é a baba de aranha, como vem
expresso na pequena quadra que sintetiza o personagem: De minha
baba/Vou tecendo os fios/Da teia dura e diáfana/Que em mim me emaranha.
FM A viagem interior rejeita toda cartografia
prévia. Não se realiza na racionalização, mas antes na identificação. O curso
seguido por uma persona dupla, na verdade uma conjunção entre
protagonista e antagonista, no decorrer desta tua trilogia, não é senão uma
afirmação da essencialidade da personalidade. Recorrendo a uma imagem tua, até
que ponto a conquista de uma voz própria é filha de um fracasso
luminoso?
PJ A viagem
interior é a única possível, no sentido de obedecer não só ao factual mas ao
onírico. De certo modo, a viagem interior que se dá do lado de fora na viagem
que se locomove, corresponde àquela procura jamais saciada da paisagem própria
e intransferível a que se referia Rilke, uma espécie de correlativo objetivo.
Mas temos de contentar-nos com aproximações, rastros, vestígios. O quanto basta
para manter viva e verdadeira a irrealidade do onírico diante da falsa
realidade do factual. Em suma, uma procura que se mostra verdadeira mercê dos
vestígios que semeia. E assim entenda-se que o fracasso é luminoso por
ser ao mesmo tempo um fracasso no âmbito factual e um sucesso no âmbito
onírico. Vem a ser a conquista da única voz possível, mas que corre um risco
permanente de se perder em um balbucio.
FM Observo com curiosidade a inclusão de um
desenho de Paul Valéry na capa de teu Navegante de opereta,
livro que traz em sua coda uma epígrafe de Clarice Lispector. Novamente a
paixão pela contradição? René Magritte refere-se à precisão de Valéry
lamentando que seja destituída de paixão. Ao contrário, a paixão de Lispector
não raro carece de precisão.
PJ A história
de minhas capas é curiosa. As de Cemitérios marinhos às vezes são
festivos e Navegante de opereta estão interligadas
pelo contraditório elo de Paul Valéry, no primeiro caso mercê de uma foto que
eu mesmo fiz em Sète, no magnífico cemitério marinho em que foi sepultado o
poeta. E no segundo, graças a um desenho do próprio Valéry, em que retrata
Zenon de costas para o mar e a vida. Mas não é uma ligação acidental. Tanto
em Cemitérios marinhos às vezes são festivos como em Navegante
de opereta insere-se como elemento absolutamente central o poema Le
cimetière marin, que é provavelmente único na obra de Valéry, por ser não
só autobiográfico como de certo modo passional. Ou por outra, por ser contra Valéry.
Simbolicamente é como se o próprio Valéry, talvez involuntariamente, estivesse
a ilustrar no desenho a veemência quase passional de um dos últimos versos do
poema: Le vent se lève!… Il faut tenter de vivre! E assim, na
visão do protagonista do Navegante de opereta, ensaiasse uma
espécie de mea culpa. Toda a trilogia é um embate entre precisão epaixão,
justificativa suficiente para a epígrafe aparentemente contraditória de Clarice
Lispector, na coda.
FM Recorto uma colocação tua: Acredito
que só há possibilidade de organicidade na fragmentação. Refiro-me então ao Kundera uma vez mais: os trechos fracos de uma
obra e sua essencialidade. Se pensamos em suspense, paixão, terror, imaginamos
alguém apreensivo, embevecido, assustado. Mas nenhum romance é inteiramente
isto ou aquilo. Seus trechos menores não viriam exatamente de uma falha de interpretação, incluindo aí
o equívoco da catalogação genérica?
PJ Para
entender que fragmentação significa mais do que uma coleção de fragmentos,
repetiria o que antes já disse. A ideia de que o romance abriga um universo em
que entram o ensaio, o poema e a narrativa propriamente dita. Um espelho da
vida. Nesse sentido, o fluxo de consciência, no Ulisses,
de Joyce, é antes um agrupamento de estilhaços do que uma narrativa, espécie
de instantaneísmo tradicional. E pois, se é que entendi a
pergunta corretamente, não existem trechos menores e maiores.
Existe um todo indestrutível, mas, se possível, vivo.
FM Em grande parte a rejeição do Surrealismo a
Jean Cocteau deu-se a partir do preconceito de Breton em relação à
homossexualidade. E havia um caráter judicioso incontestável na palavra de
Breton. Quando Cocteau diz que sem resistência não se pode fazer
nada é o mesmo raciocínio de João
Cabral ao defender a necessidade da rima por se tratar de um obstáculo.
Lembrei-me de Cocteau por uma afirmação dele de que a arte é um
sacerdócio terrível. Concordas?
PJ Parece-me
que a arte tem, de fato, algo do sacerdócio, no sentido de sua tentativa de
chegar ao fundo do poço do humano. Ad astra per aspera. Chafurdo
no desagradável ou naquilo que não é mencionado, para chegar à compreensão do
agradável, do belo, do ordenado, ou, que nome se queira dar, ao desejável. É um
obstáculo a ser superado, sem dúvida. E parece-me que é o que distingue a arte
feita de sangue e entranhas da arte de ouropéis. Em um caso, o espectador ou leitor
se esforça para participar, e é sempre desagradável esforçar-se, e no outro,
flana sem surpresas sobre um mar de obviedades.
FM Em entrevista concedida ao Ivan Junqueira,
mencionas que alguns grandes escritores brasileiros são mais
cultuados do que propriamente cultivados.
Concordo contigo acerca da enorme vitalidade de nossa literatura. Está claro que somos nosso próprio e único
problema. Em parte há o fato de que esta literatura deixou de ser
vista de forma interligada. Contudo, a
raiz dessa anulação de perspectiva me parece ser a instalação do que chamas
de colônias privilegiadas.
Na prosa, esta ação entre amigos fez com que fosse diluída a importância da
obra de autores como Cornélio Pena, Lúcio Cardoso, Aníbal Machado, Campos de
Carvalho. Já no verso, raramente percebemos a grandeza da obra de Emílio Moura,
Dante Milano ou Dora Ferreira da Silva. Quais os focos dessas colônias?
PJ Provavelmente
não é um fenômeno só brasileiro. É humano, somos gregários por natureza e, um
pouco, avestruzes. Juntar-se em colônias de donos da verdade é
sempre mais confortador do que aventurar-se na incerta batalha da dúvida. Uma
terra de ninguém. A tese certa de hoje desafia a nenhuma tese de sempre.
Perceber o quanto há de demoníaco na chamada realidade e na sucessão de
verdades, cronológicas e locais, é um convite ao desespero. E ao mesmo tempo,
paradoxalmente, a única possibilidade de redenção. Ilustra-o de forma
paradigmática uma obra-prima de todos os tempos: Medo e tremor, de
Soren Kierkegaard. É impossível sair de sua leitura como se era antes. Eu a
recomendo a todos aqueles que querem começar por salvar-se a si mesmos antes de
salvar o próximo.
[2000]
[Entrevista com Per Johns (Brasil, 1936), publicada em Invenção
do Brasil. São Paulo: Editora Descaminhos, 2013. http://www.amazon.com/Inven%C3%A7%C3%A3o-Brasil-entrevistas-Portuguese-Edition-ebook/dp/B00FTBMR24]
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