FM Onde se inicia o poeta Francisco Carvalho?
FC Mais ou menos por volta de 1942, com a publicação de um
folheto de cordel sobre a seca no Ceará. Nascido e criado no interior do
Estado, onde era marcante a influência dos cantadores de viola e dos chamados “poetas
de bancada”, era natural que começasse por onde comecei.
FM Henry Miller costumava se perguntar até que ponto valia a
pena levar uma vida de escritor, se ela exigia tantos e cruéis sacrifícios.
Para você, vale a pena?
FC Como Henry Miller, centenas de vezes me tenho perguntado se
vale a pena ser escritor, quando se sabe que a sociedade moderna caminha em
outras direções, ou porque a literatura já não lhe oferece respostas
convincentes às suas perplexidades, ou porque a sensibilidade do homem
contemporâneo está hoje inteiramente magnetizada pelos aspectos visuais da
existência. O verdadeiro espetáculo é a vida. A vida colorida e pulsante. A
vida em toda a sua plenitude selvagem. Por melhor que seja, a literatura não
passa de uma pálida metáfora da vida. O extraordinário progresso da tecnologia
no campo da eletrônica, privilegiando, sobretudo, o avanço da informática,
transformou o universo em um espetáculo sem precedentes. A aldeia global foi
convertida em uma verdadeira orgia pirotécnica, onde as invenções se sucedem em
ritmo de vertigem. A televisão, o videogame e o computador como que acordaram o
velho instinto de magia que bruxuleia milenarmente na alma do homem. Ninguém
resiste ao fascínio desses inventos maravilhosos. Já os mecanismos da
literatura são enfadonhamente conservadores. A verdade é que ninguém hoje se
sente estimulado a ler um volume compacto de ficção ou poesia quando sabe que a
alguns metros dos seus olhos, em alguma praia paradisíaca, deusas de carne e
osso exibem gloriosamente a sua nudez ensolarada — “bundas em flor” (Joaquim
Cardozo) e seios e dorsos e coxas que rivalizam com as formas mais ousadas e
sensuais da estatuária universal — em um espetáculo irresistível de
plasticidade e beleza. É difícil ser escritor em qualquer latitude. Mas essa
dificuldade terá de ser multiplicada por setenta vezes sete se se trata de ser
escritor em um país tropical, onde o sol funciona como uma espécie de
termômetro das nossas sensações. Esses são apenas alguns dos desafios que o
escritor tem de enfrentar. Mas o pior desafio talvez seja a falta de mercado
para o seu trabalho. O produtor literário é um dos poucos trabalhadores que não
recebem remuneração condigna. Isto acontece principalmente nos países
subdesenvolvidos, onde prevalece a velha deformação burguesa de se pensar que o
poeta e o romancista têm a obrigação de divertir a sociedade capitalista. É
profundamente irritante verificar que os praticantes de atividades subalternas
são regiamente pagos pela mesma sociedade que rejeita o escritor. Um bom
corredor e um bom saltador, primários que sejam intelectualmente, têm
assegurada a sua independência econômica pelo resto da vida. Qualquer
desportista mediano dos tempos modernos leva uma existência suntuosa e
nababesca, que nem Salomão, com todo o seu esplendor, jamais poderia ter sonhado.
Tudo isto para mostrar que o escritor, com as exceções que toda regra comporta,
é a escória da sociedade capitalista. Além disso, o escritor ainda sofre as
pressões da sociedade em que vive e é constantemente discriminado pela própria
classe. Tudo é cobrado ao escritor, desde o emprego correto dos pronomes até as
suas preferências ideológicas. Só a vocação justifica a existência do escritor.
Do contrário, é mandar tudo às favas, ser um anarquista bem sucedido, respeitar
as leis de Deus e as do Diabo, gerar filhos para povoar os vazios da pátria e,
no final de tudo, morrer “santamente” como um velho mendigo debruçado na
soleira da porta.
FM Há muitos anos você me disse uma frase que guardo-a comigo
até hoje: “O primeiro verso quem nos dá é Deus”. Lembro um verso do “Canto I”
de Altazor, de Vicente Huidobro, que
diz: “Deus, se tu existes é a mim que o deves”. E mais à frente, no mesmo
Canto: “Eu quero ser o pára-raios de Deus”. Qual a sua visão sobre a provável
onisciência do artista, da relação, enfim, entre o artista e Deus?
FC Deus ou o Acaso — sempre tive a impressão de que o primeiro
verso de um poema chega até nós através de uma energia cósmica. O mesmo já não
acontece com o restante do poema. O primeiro verso funciona como uma espécie de
núcleo da teia. Armado o núcleo, você tem de urdir pacientemente o resto da
malha significante. É verdade que algumas vezes acontece de sair o poema de um
jato, como se um impulso desconhecido nos levasse a descobrir cada uma das
palavras que haverão de funcionar no contexto da estrutura poética. É bastante conhecido
o episódio de Fernando Pessoa, que teria escrito de uma só vez os quarenta e
nove segmentos do longo poema O guardador de rebanhos, por sinal um dos mais
belos textos atribuídos ao heterônimo Alberto Caeiro. Mas fatos assim só
acontecem de raro em raro, de forma que serão sempre tratados como exceção. O
verso de Huidobro referido por você é produto de uma velha divergência
filosófica, envolvendo o cristianismo e o materialismo. Para o primeiro, o
homem é criação de Deus. Já para o segundo, Deus não passa de produto da
imaginação do homem. Clarice Lispector escreveu o seguinte: “Deus é uma criação
monstruosa. Eu tenho medo de Deus porque ele é total demais para o meu tamanho”.
Pelo visto, a autora de Perto do coração selvagem também acredita que Deus é
uma criação do homem. Deus é Deus. O homem é o homem, subproduto da História.
Ou seria o contrário, a História é que seria subproduto do homem? Isto me leva
à colocação polêmica de Ortega y Gasset, segundo a qual “o homem não tem
natureza, tem História”. Não existe onisciência no artista. O que existe no
artista é o desejo de ultrapassar a si mesmo, de superar-se, de triunfar de
suas próprias limitações. Se o artista acredita em Deus, deve conviver em
harmonia com essa possibilidade. Se não acredita, e se as suas convicções
filosóficas não lhe causam nenhuma espécie de incômodo, deve usufruir dessa
liberdade para esculpir o mais ousadamente possível a sua criação. Mas um
artista comprometido com a ideia da existência de Deus não será por isto mais
limitado do ponto de vista criador. Chego até mesmo a pensar que a ideia de
Deus pode alargar o horizonte de conflitos do artista, tornando-o mais fecundo
e mais sensível à natureza metafísica do universo. O importante é que o
artista, admita ou não a ideia da existência de Deus, seja um ser conflituoso,
um espírito dialético, constantemente trespassado de incertezas e dúvidas. Um
sujeito cercado de certezas por todos os lados jamais desejaria ser “o
pára-raios de Deus”. Deus também me causa medo. É que recebi na infância,
simultaneamente com a ideia de Deus presente em todas as coisas, a ubiquidade
operante, a noção de pecado e a noção de castigo. A noção de que o remorso
acompanharia o pecador pelo resto da vida. A noção de que a culpa teria de ser
expiada no fogo do inferno. O importante é que se creia em alguma coisa ou se
duvide de alguma coisa. Só a neutralidade é estéril. Como diria o poeta Murilo
Mendes, “se os deuses não existissem, como aprenderíamos a polemizar?”.
FM Em recente entrevista, o poeta norte-americano Lawrence
Ferlinghetti declarou que acredita que não haja mais nem poetas nem escritores
com talento nos Estados Unidos. E acrescentou: “Aqueles que escrevem deixaram
de ter convicções ou ideias militantes”. Para você, que já declarou em
entrevista anterior que ainda não saímos do Modernismo de 1922, o que lhe
parece esta poesia que temos atualmente? Para onde caminha a poesia que é feita
hoje no Brasil?
FC Espero que o Sr. Ferlinghetti saiba o que está dizendo.
Desconfio do simplismo das generalizações. As generalizações só funcionam bem
no contexto poemático. Acho que se um indivíduo vai à máquina de escrever e
passa algumas horas em luta feroz com o anjo ou o demônio da poesia, há de
estar forrado, necessariamente, de alguma convicção. Do contrário, mandaria
tudo às favas. Já quanto a essa história de ideias militantes, suponho que nem
mesmo o Sr. Ferlinghetti tem muita convicção a respeito do que vem a ser isto.
A poesia que se pratica atualmente no Brasil? Com as exceções que toda regra
comporta, não sinto nenhum constrangimento em responder que é uma poesia de
excelente nível. Existem, naturalmente, os equívocos entronizados pelos
críticos grupais. Mas estou certo de que o tempo se encarregará de colocar as
contrafações no seu devido lugar. Acredito, entretanto, que a qualidade dessa
poesia permanece estacionária. Todos os movimentos literários que se seguiram
ao Modernismo de 22 foram certamente importantes. Mas a verdade é que esses
movimentos acabariam se diluindo por falta de propostas convincentes e,
sobretudo, pela constatação de que os seus projetos de implantação de uma nova
realidade estética frustraram completamente as expectativas mais otimistas.
Chego a pensar que a poesia finissecular caminha inexoravelmente para o
discurso atípico, completamente despido de sentimento e de mediação estética.
Uma espécie de retórica programada para a sociedade capitalista — uma sociedade
que só acredita em valores tangíveis, como o lucro e a desintegração nuclear.
FM “Perde o rascunho do poema / perde a pauta de música / perde
a promissória / perde o vício do amor / perde o teu olho / mas não perde a tua
liberdade”. Eis um trecho do poema “Perde o teu olho”, do livro Rosa dos
Eventos. Eu gostaria que você me falasse um pouco do significado desta palavra
(liberdade) em sua vida.
FC Liberdade é uma bela metáfora que tem fascinado os poetas
através dos tempos. E continua a exercer o seu fascínio sobre os poetas da
idade moderna. Antes de mais nada, porque se trata de uma bela palavra, rica de
plasticidade e de sonoridade. E é sabido que os poetas são particularmente
sensíveis a essas qualidades. No poema “Perde o teu olho”, não falo
evidentemente da liberdade como a faculdade mecânica que leva o indivíduo a
deslocar-se de um lugar para outro. Falo da liberdade interior, da liberdade do
espírito, que sopra onde quer. Da liberdade de acreditar. Da liberdade de viver
e de morrer. Da liberdade de pensar e de não pensar. Da liberdade de amar e de
não amar. Da liberdade de escolher os caminhos da alma, ainda quando esses
caminhos não passem pelo reino encantado da felicidade dos outros, nem levem ao
paraíso imaginado pelos manipuladores do Poder Econômico. Liberdade de ser
diferente das outras pessoas, sem que esse fato possa ser considerado um gesto
de desaprovação aos seus atos. Liberdade de sonhar e de escrever poemas, sem
compromisso com o modo de pensar e de sentir das outras pessoas, mas apenas
fiel aos apelos de minha interioridade e da minha circunstância. Liberdade de
escrever poemas de amor ou poemas sociais, poemas líricos ou metafísicos, sem
ser incomodado pelos patrulhadores de ideias políticas ou de conceitos
estéticos, pelos “sargentos literários” que proliferam vertiginosamente no
tumultuário universo da literatura. É assim que entendo a liberdade, que tenho
procurado usufruir dela na minha existência absolutamente horizontal. Mas tenho
de reconhecer que a liberdade encarada nestes termos é pura utopia. Os homens
são os seus condicionamentos. São as marcas deixadas pelo remorso. São os
fragmentos da infância, com os seus devaneios e as suas deformações. O que se
aprende na infância transforma-se em verdade irremovível na vida adulta. Mas o
problema da liberdade apresenta várias outras implicações. A de natureza
econômica, por exemplo. Não pode existir liberdade sem independência econômica.
Jamais o empregado de um banco se atreveria a ironizar o patrão em um poema
satírico. O mais provável seria que escrevesse um poema de exaltação às
virtudes cívicas de seu chefe. De qualquer forma a liberdade, com todas as suas
limitações possíveis, ainda é algo por que se deve lutar com todas as flechas
do corpo e da alma, mesmo que essa luta possa eventualmente parecer sem
sentido; mesmo que nessa luta tenha de perder o rascunho do poema, a pauta da
música, a promissória, o vício do amor e o próprio olho. Que tudo isto leve a
breca, mas que a liberdade, mutilada nas asas ou na sua autonomia de vôo,
permaneça acorrentada ao destino do homem até a sua morte.
FM Lembro uma frase de Clarice Lispector, que dizia mais ou
menos assim: “um fragmento de espelho é suficiente para se ir com ele ao
deserto, meditar”. Não lhe parece que o homem esteja pagando um preço demasiado
caro por ter-se afastado de si mesmo e que deveríamos todos fazer um último
esforço para nos resgatarmos a nós mesmos? Acaso não estamos vivendo uma
espécie de Babel revisitada?
FC Sua pergunta daria combustível suficiente para desenvolver
um ensaio. A frase de Clarice Lispector a que você se refere, como tudo o que
saiu da pena privilegiada dessa escritora, está carregada de propósitos
metafísicos. É uma dessas frases magnéticas onde a poesia, apenas de relance,
mostra o dorso fustigado pelo mistério. Um fragmento de homem também é
suficiente para encetar a busca da unidade perdida. Não há como não concordar
com a colocação de que o homem está pagando um preço demasiado caro por ter-se
afastado de si mesmo. De fato, o homem se afasta de si mesmo na medida em que
se distancia de sua interioridade. Na medida em que renuncia à totalidade do
ser. O homem começou a corromper-se a partir do momento em que imaginou que a
sua libertação estava na posse e no domínio dos valores temporais. O homem é
esse fragmento de espelho de que nos fala Clarice Lispector. O homem
departamentalizou-se de acordo com as exigências da sociedade industrial. O homem
é o braço, a perna, o nariz, o tórax, as orelhas, os olhos. O homem já não é
mais o espelho a refletir o universo em sua totalidade. Cada fragmento do homem
é um pedaço do espelho, um reflexo mutilado da realidade. É isso mesmo. Estamos
em plena Babel revisitada. Concordo que sem uma postura individualista o homem
jamais se dará conta do vazio em que se acha mergulhado. Em certos momentos o
homem precisa de solidão para poder reencontrar a identidade perdida. A besta e
o homem em luta permanente no íntimo do homem. O lado sombrio do homem vai a
Sodoma e Gomorra. O lado iluminado do homem está sentado à direita de Deus. O
homem não conseguiu domar a besta com dois séculos de cristianismo. Nem jamais
o conseguirá. O homem, cadáver adiado que procria (Fernando Pessoa). O homem é
a sensualidade que se embriaga à hora da ceia. Uma argila fragmentária. O que
me espanta no homem é o seu hedonismo insaciável. Não bastassem os prazeres do
vinho e da sensualidade, ainda aspira à bem-aventurança eterna. O problema é que
nenhum dos pedaços do homem está em conflito consigo mesmo e com os outros.
Cada pedaço do homem ignora o outro pedaço. Os departamentos do homem são
labirintos sombrios. Cada pedaço do homem está morrendo à míngua de
solidariedade. O olho do homem não quer saber de seu braço nem de sua perna. O
coração do homem bate as horas da agonia, mas o resto do homem não escuta o som
nem o gemido de sua morte. Cada pedaço do homem só se interessa pelos seus
problemas específicos. A boca do homem não quer saber das lamentações das
vísceras. E assim vai o homem se dilacerando pela vida afora, como se não fosse
eterno. Como se não fosse preciso preservar o fragmento de espelho para ir com
ele meditar no deserto.
FM Ernesto Sábato defende que a arte, por ser mais integradora,
mais representativa da personalidade humana do que a ciência ou do que o melhor
tratado de filosofia, caberá a ela a difícil tarefa de resgatar o “pensamento
mágico”, desterrado pela sociedade em que vivemos, sociedade favorecida pela
super-valorização da razão pura, da ciência e da técnica.
FC O que se verifica é que a arte vem gradativamente perdendo
terreno no mundo moderno. Falo, principalmente, da arte literária, sem dúvida a
mais conservadora de todas as artes. Já as artes plásticas operam em um raio de
ação muito mais abrangente. O mesmo acontece com a música. A pintura moderna,
por exemplo, lança mão de técnicas as mais variadas e vai assim tentando
resgatar o “pensamento mágico”, que sempre foi uma espécie de pedra filosofal
da arte. Apesar de todas as suas limitações formais, apesar dos computadores e
dos video-games, que são os verdadeiros mágicos da era eletrônica em que
vivemos, acredito que a literatura não esgotou ainda todo o seu potencial de
magia e toda a sua capacidade de exploração das possibilidades lúdicas da alma
do homem. O que falta, na realidade, é talento e imaginação capazes de reverter
as estruturas da nossa produção literária, de forma a transformá-las em algo
que não seja apenas a sombra da realidade. Algo inusitado e vibrante que não
pareça mais um documento, rotineiro e linear, da nossa tradição lírica. Ainda
recentemente, em artigo publicado na revista Veja, o escritor Paulo Leminski
falava com desencanto sobre os rumos da ficção brasileira, que lhe parece
inteiramente comprometida com o realismo fotográfico, um realismo anêmico e bem
comportado, que não vai além do rigor do pormenor e da exatidão do desenho e da
cor. Dizia Paulo Leminski: “Dê a seu ficcionista favorito uma máquina
fotográfica e um manual de instruções. E nós vamos ficar livres de tantos
contos e romances que se querem literatura mas não passam de jornalismo
enfeitado com plumas e paetês do estilo mais em voga”. Concordo. Acho que a
imaginação é a grande saída para a literatura. Quer dizer, para resgatar o “pensamento
mágico”, banido pela sociedade capitalista em que vivemos. Nesse sentido, os
escritores de língua espanhola (Borges, García Márquez, Cortázar etc.) têm sido
incomparavelmente mais arrojados do que os escritores brasileiros. A ficção de
qualquer desses escritores continua a empolgar a imaginação das pessoas pela
sua extraordinária dimensão mágica, pela sua capacidade de metamorfosear a
realidade, enfim, pelo seu realismo fantástico. É nessa direção que devemos
caminhar se desejamos resgatar o “pensamento mágico”. Do contrário, a nossa
literatura acabará morrendo por falta de vitalidade e excesso de bom senso.
FM Publicar é ainda uma forma de ação ou é uma maneira de
dissolvê-la no anonimato da publicidade?
FC Não publicar é o anonimato. Publicar continua sendo de certa
forma o anonimato. Mas o livro publicado, por menor que seja a sua repercussão,
passa a ser do domínio público. O texto impresso ganha outra dimensão, além de
sugerir outros propósitos e outros significados. O tamanho do livro, a cor do
livro, a diagramação do texto, o desenho da capa, a arte gráfica — são detalhes
da maior importância, que fazem do livro um objeto estético, um referencial à
parte. Todo autor deve empenhar-se no sentido de publicar as suas produções
inéditas. Apesar da evidência de que não existe mercado para a literatura. Os
bons escritores deste país (é de pasmar) chegam a virar notícia quando
conseguem esgotar uma edição de três milheiros de exemplares. Não estou,
evidentemente, argumentando com as exceções. Apesar de tudo, o importante é
publicar. Não há vantagem alguma em ser um escritor póstumo.
[1984]
NOTA
O poeta cearense Francisco Carvalho (1927-2013) é uma das grandes vozes ainda
por ser resgatada em nossa tradição lírica. Com uma extensa e pautada por uma
densidade raramente encontrada entre seus pares, já nos anos 60 publicaria dois
livros fundamentais à poesia brasileira, Dimensão
das coisas (1966) e Memorial de Orfeu
(1969), títulos que foram curiosamente excluídos da edição de seus poemas
escolhidos, Memórias do espantalho
(2004). Aos dois iniciais se juntam outros de igual relevância poética, tais
como Os mortos azuis (1971), Pastoral dos dias maduros (1977) e Barca dos sentidos (1989). A rigor,
estes 5 títulos constituem todo um programa estético que ainda não encontrou
correspondente voz crítica para um diálogo necessário. Ilhado no Ceará, por
opção própria, declarou certa vez que “a literatura produzida no Nordeste, com
as devidas ressalvas, não tem a menor repercussão nos grandes centros de
efervescência cultural, de onde as elites mercadológicas e intelectuais ditam a
moda das roupas e dos poemas”. Ao visitar sua correspondência ou entrevistas à
imprensa local (material disperso e sem perspectiva de deixá-lo de ser), sempre
nos deliciamos com seus achados críticos, tais como este: “O bom poema não deve
ser confundido com uma orgia de palavras eruditas. A poesia pode resultar de
palavras banais, dessas coisas que estão à flor da pele do cotidiano. O poema
não precisa ficar o tempo todo bolinando a metafísica.”
[Entrevista com Francisco Carvalho (Brasil, 1927-2013), publicada em Invenção
do Brasil. São Paulo: Editora Descaminhos, 2013. http://www.amazon.com/Inven%C3%A7%C3%A3o-Brasil-entrevistas-Portuguese-Edition-ebook/dp/B00FTBMR24]
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