quinta-feira, 14 de agosto de 2014

MANUEL ANTÓNIO PINA | Ares e esgares do silêncio



FM – Em 1992, preparas tua primeira versão de uma poesia reunida, sob o título: Algo parecido com isto da mesma substância. Tem-se aí um indicativo da ironia que pontua tua poética. Em 2001, já em uma segunda versão, suprimes o título, dando ao livro apenas o título: Poesia reunida. Considerando o título de um livro de 1999: Nenhuma palavra e nenhuma lembrança, percebe-se um acentuado reforço da ironia. A qual substância te referes e de que maneira ela propicia a ti um reencontro com a inocência original?

MAP – Tenho sempre muita dificuldade em falar sobre a minha poesia. E, por maioria de razão, em responder sobre a substância (o que quer que isso seja) dela. Provavelmente escrevo poesia para procurar saber disso mesmo. O título Algo parecido com isto da mesma substância chegou-me, se me lembro bem, de Nicolau de Cusa. A minha ideia era a de que tudo aquilo, os poemas que até então tinha escrito, e os que continuo a escrever, eram só aproximações, tentativas de tocar algo irremediavelmente distante, talvez de tão elementar e de tão perto, imagens de qualquer coisa inominável tentando falar no meio de tanta memória. Porque (escrevi-o uma vez num poema), é o infalável que fala, ou tenta desesperadamente falar, na poesia; pelo menos na minha. A “inocência original”, dizes tu. Sim. E o silêncio original. Porque temos (eu tenho) a cabeça e o coração cheios de vozes. Escrevemos decerto com a memória, mas também contra ela. Em busca de uma improvável voz inicial. Mas como esquecer? E como nos calaremos? Sem que palavras? Há, dir-me-ás, em tudo isto uma grande e melancólica ansiedade da influência. Há sim, até onde posso sabê-lo. Daí a ironia. Mas não passamos a vida (e a literatura) à procura do nosso rosto, ou de algo parecido com ele? No meu próximo livro, que deverá sair em Outubro, incluí uma espécie de “arte poética” que talvez responda melhor do que eu à tua questão: “(Arte poética) Vai, poema, procura / a voz literal / que desoculta fala / sob tanta literatura. // Se a escutares, porém, tapa os ouvidos, / porque pela primeira vez estás sozinho. / Regressa então, se puderes, pelo caminho / das interpretações e dos sentidos. // Mas não olhes para trás, não olhes para trás, / ou jamais te perderás; / e teu canto, insensato, será feito / só de melancolia e de despeito. // E de discórdia. E todavia / sob tanto passado insepulto / o que encontraste senão tumulto, / senão de novo ressentimento e ironia?”
E ainda as duas primeiras estrofes de outro poema do mesmo livro, intitulado “Os mortos”: “(Os mortoS) Eu sei, é preciso esquecer, / desenterrar os nossos mortos e voltar a enterrá-los, / os nossos mortos anseiam por morrer / e só a nossa dor pode matá-los. // Tanta memória! O frenesim / escuro das suas palavras comendo-me a boca, / a minha voz numerosa e rouca / de todos eles desprendendo-se de mim! / (…)”
Como vês, muito do que escrevo tenta justamente responder a coisas como as que perguntas…

FM – René Daumal considerava o conhecimento como uma experiência total do ser. De que maneira se tocam esses aparentemente dois extremos que são a inocência e o conhecimento? O que isto teria a ver com aquela idéia do Mauricio Blanchot que entrelaça literatura e ilusão?

MAP – Esses extremos tocam-se, diria Heidegger, como os cumes das montanhas distantes, isto é, digo eu, no fundo da terra e do ser. “Saber é esquecer/ e esta é a sabedoria/ e o esquecimento”, escrevi eu uma vez. A literatura é a ilusão de que esquecer é possível. Mas estamos condenados à memória, não é? Porque, se calhar, é isso o que somos: memória.

FM – Mas de que maneira, em tua poesia, lidas com a ideia de um mundo possível?

MAP – Permite-me que te responda, de novo, com um poema do meu próximo livro (as tuas perguntas arriscam-se a esgotá-lo…): “Real, real, porque me abandonaste? / E, no entanto, às vezes bem preciso / de entregar nas tuas mãos o meu espírito / e que, por um momento, baste // que seja feita a tua vontade / para tudo de novo ter sentido, / não digo a vida, mas ao menos o vivido, / nomes e coisas, livre arbítrio, causalidade. // Oh, juntar os pedaços de todos os livros / e desimaginar o mundo, descriá-lo, / amarrando-me ao mastro mais altivo / do passado. Mas onde encontrar um passado?”

FM – Há uma edição de tua poesia prevista para este ano por uma editora brasileira. Dois outros poetas portugueses estão fazendo sua estréia no Brasil este ano: António Osório e Ana Marques Gastão. Como a poesia brasileira é percebida em Portugal?

MAP – Acho que foi Bernard Shaw (ou foi Oscar Wilde?) quem comentou que a Inglaterra e a América vivem separadas por uma língua comum. Com o Brasil e Portugal sucede o mesmo. Alguma da poesia brasileira é relativamente conhecida em Portugal (pelo menos tão bem como alguma da própria poesia portuguesa): Drummond, João Cabral, Bandeira, Jorge de Lima, Murilo, os concretistas (divulgados sobretudo pelos congéneres portugueses); Haroldo e Augusto de Campos, principalmente pelas suas traduções de poesia; ou Carlos Nejar, que nos anos 60 foi presença assídua em Lisboa e no Porto. Alguma outra começa lentamente a sê-lo, mesmo que só em círculos limitados: Ferreira Gullar, Adélia Prado, Affonso Romano de Sant’Anna. Recentemente saíram livros de Carlito Azevedo, de Eucanãa Ferraz, de Maria Ângela Alvim, e julgo que está para sair um de Duda Machado. A revista Inimigo Rumor, agora em edição luso-brasileira, começa a ser um agente importante do conhecimento da poesia do Brasil em Portugal (e espero que também da poesia portuguesa no Brasil). E há ainda a Net (a Agulha Revista de Cultura é um bom exemplo). Mas os leitores de poesia brasileira são, como os da portuguesa, sobretudo outros poetas. Como escreveu Alexandre O’Neil: “Quem vos lê a vós? Somos nós/ E quem nos lê a nós? Sois vós./ Tudo fica, pois,/ entre nós, entre nós”. E quem, como eu, procura poesia do Brasil, sempre a pode ir encontrando numa livraria especializada em literatura brasileira e em importar livros do Brasil: a Nova Fronteira. Mas a sensação que existe (falo por mim, mas a situação há-de ser semelhante para a grande maioria dos leitores portugueses de poesia) é que o Brasil, no que respeita à poesia, continua a ser um imenso território ainda por descobrir.

FM – Dentro dessa perspectiva há ainda as dificuldades internas, em cada país, de fazer circular a produção mais expressiva de sua poesia. Aqui conseguimos identificar os nossos dilemas, percebendo o quanto há de equívoco em alguma poesia brasileira que se difunde em Portugal. Decerto o mesmo se passa com os portugueses. Mas o que me dirias tu desses dilemas editoriais em teu país?

MAP – Com a edição de poesia em Portugal passa-se o que, em geral, se passa na Europa ocidental: as maiores editoras e distribuidoras fogem-lhe como o diabo da cruz. A não ser que a editora seja suficientemente grande para poder dar-se ao luxo da poesia, como a Gallimard em França. Ou, em Portugal, e à nossa medida, como a Asa, a Caminho ou a Campo das Letras. Editar poesia entra então nos custos da política de imagem, porque, mesmo quando não dá danos emergentes, sempre implica os lucros cessantes da ficção. Porque a poesia parece ter algum incompreensível prestígio, que leva não só muita gente a escrever poesia como muita mais a ser incapaz de confessar como a poesia a aborrece. Os políticos usam-na na lapela e nos discursos e a citação de um verso dá sempre uma espécie de nobreza “exquise” e a imagem de pertença a um aristocrático grupo de eleitos. O grosso da edição de poesia, a dos poetas mais novos e a dos que não estão no panteão, fica, pois, ao cuidado de pequenas editoras. No meio surgem algumas raras editoras de média dimensão “especializadas”, digamos assim, em poesia. Em Portugal, o “caso” é, sem dúvida, a Assírio & Alvim (ao lado, talvez, da Relógio d’Água): um catálogo de grande qualidade, onde avultam nomes como os de Pessoa, Herberto Hélder, Mário Cesariny, Alexandre O’Neil, Ruy Belo, Teixeira de Pascoaes e outros, servido por uma identidade gráfica igualmente notável, fazem da Assírio & Alvim o rosto da edição de poesia em Portugal. De qualquer modo, as tiragens continuam a ser pequenas, salvas algumas poucas excepções, como Pessoa, Herberto ou Eugénio de Andrade. Os meus livros, por exemplo (e vendem relativamente bem), andam entre os 1000 e os 2000 exemplares. Por outro lado, a edição de poesia portuguesa no estrangeiro vive de apoios específicos do IPLB, que subsidia a tradução (assim aconteceu com as minhas traduções francesas e búlgaras) ou de iniciativas individuais, como a edição da minha poesia no Brasil, que devo à generosidade e à diligência de um poeta brasileiro que um dia se interessou por ela, Carlito Azevedo.

FM – Tua geração vem logo a seguir aos turbulentos anos do Surrealismo. Havia acaso um sentido de responsabilidade em ir além do que haviam proposto poetas como Cesariny de Vasconcelos, António Maria Lisboa, Herberto Helder e Cruzeiro Seixas, por exemplo? E como convives com teus pares geracionais?

MAP – Como disse antes, escreve-se sempre com e contra o passado, principalmente contra o passado recente. Julgo, no entanto, que a minha poesia sempre conviveu mais saudavelmente com o passado recente surrealista (e com o modernista) do que a da generalidade dos poetas da minha geração. A minha poesia nunca teve vocação geracional; pelo contrário, procurou mais a companhia dos mais velhos do que a dos poetas da minha idade. Não me parece, por exemplo, que ela tenha alguma coisa que ver com a de Joaquim Manuel Magalhães (cujo proselitismo, aliás, me incomoda), a de João Miguel Fernandes Jorge ou a de António Franco Alexandre, que têm também pouco que ver uns com os outros. Ou com a dos poetas de 60, responsáveis imediatos da ruptura com o surrealismo e o neo-realismo.

FM – Além de extensa obra poética, tens uma larga produção também no que diz respeito à literatura infantil. Como trafegas entre essas duas categorias?

MAP – Uma coisa e outra, a poesia e a literatura por assim dizer infantil, são, acho eu, nomes da mesma escrita, ou antes, da mesma relação com a escrita. Muitas vezes principio um poema sem me aperceber de que ele quer ser um poema “para” crianças. Por isso meto entre aspas esse “para”. Porque não escrevo “para”, escrevo apenas. Há decerto um leitor no horizonte de toda a escrita, quanto mais não seja pelo simples facto da língua. A língua, diz Barthes, é a familiaridade social do poeta. Mas é um leitor sem rosto. Do meu ponto de vista de escritor, a literatura “para” crianças completa (ou tenta completar) a outra. Não sou uno (e quem é?) e a minha escrita também não (tenho escrito igualmente teatro e crónica, até crónica desportiva, e publicado um ou outro ensaio). 

[2003]

NOTA
Ao fundo de todas as coisas, o que melhor se escuta é o silêncio? Por mais que se creia nisto, o mais provável é que não se perceba tão bem a sua extensão ou significado essencial. Nosso tempo, por exemplo, está tomado por uma forma frenética de ruído que se propaga e desdobra de maneira vertiginosa, absorvendo atributos existenciais que costumam ser imprescindíveis à compreensão do ser: intimidade e estética. Tais conceitos é que nos permitem a criação de um estilo de vida, uma maneira singular de estar no mundo. Sem eles, talvez o melhor a fazer seja cair fora do mundo. Diz o poeta português Manuel António Pina (1943), em algum poema: “Às vezes, como num sonho, / vejo formas como um rosto / e pergunto: ‘De quem é este rosto?’ / E ainda: ‘Quem pergunta isto?’” Há duas coisas básicas que um poeta deve fazer em nome do silêncio: questionar-se e expor a resultante desse embate de forma elegante. Assim um poeta constrói sua razão de ser, e todo o mundo à sua volta.
Dentro dessa perspectiva do poeta que se envolve consigo e aí percebe o quanto está arraigado a seu entorno, temos em Manuel António Pina um poeta que trafega, com notável senso de humor, por entre as vértebras do tempo, captando as singularidades da sociedade portuguesa, acentuando-lhe pequenos vícios, provocando prodígios existenciais e discretos entusiasmos. Ele próprio diz que a poesia age hoje no território de um “sem-tempo”, decerto uma maneira sua de entender o abismo em que nos encontramos. Melhor que fale o poeta: “Independente de à poesia pouco mais ser dado dizer do que o silêncio do mundo (silêncio que é, na língua, abertura ao sentido e sentido aberto), ela pode constituir uma espécie de epifania sem revelação daquilo que talvez saibamos sem sabermos que o sabemos”.
A trajetória deste notável poeta envolve algumas dezenas de livros, tanto de poemas quanto de literatura infantil. De um lado ou outro, os títulos são bastante sugestivos: O país das pessoas de pernas para o ar (1973), Aquele que quer morrer (1978), O pássaro da cabeça (1983), Um sítio onde pousar a cabeça(1991), A guerra do tabuleiro de xadrez (1985) e Cuidados intensivos (1994), dentre outros. Em 2003, além das reedições de Os Piratas (novela) e O Inventão(teatro) – ambos pela Editora Asa -, acaba de sair a novela Os papéis de K., pela Assírio & Alvim, mesma editora que publicará Os livros (poesia). No Brasil, está prevista ainda para este mês a estréia de António Pina, com Nenhuma palavra e nenhuma lembrança (poesia), pela Cosac & Naify.
Manuel António Pina é um poeta das sutilezas, de uma voragem existencial que segue um preceito surrealista defendido pelo argentino Aldo Pellegrini, o de aproveitar a incidência do acaso “para fazer surgir imagens que existiam latentes em seu próprio espírito”. Consciente de que o homem hoje não pode invocar senão a si mesmo, arrisca-se a toda forma de diálogo com os excessos da contemporaneidade. Sua relação paródica com a memória deve ser entendida juntamente com sua percepção do instante seguinte: “o poeta vê-se cegamente também como vidente (leitor) de si mesmo, como uma sombra”.
Sendo poeta inteiramente desconhecido do leitor brasileiro, melhor que comecemos por sua poesia. Depois traçamos a rota de singularidades que tornam quando menos incompreensível o fato de que as culturas brasileira e portuguesa, unidas por um mesmo idioma e separadas apenas pelo Atlântico (nosso riachão), tenham levado a vida a dar as costas uma para a outra. Abraxas

Entrevista publicada na Agulha Revista de Cultura # 36 — Outubro de 2003.

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