FM De que maneira a poesia começa a se
expressar através de Luis Carlos Patraquim? Penso aqui tanto na tinta quanto
no sangue, ou seja, nos múltiplos sentidos do verbo.
LCP Hierático para alguns, “intimista” para
outros – refiro-me à recepção que ela vem tendo em Moçambique – a minha
leitura disso é marcada pela perplexidade e pela estranheza. Concebo o poema,
como magnificamente afirmou Herberto Hélder, como uma “clandestinidade na
ditadura do mundo” e tento seguir, na exacta insignificância da minha altura,
a máxima de Nietzsche: “Escreve com o sangue e verás que o sangue é
espírito”. Venho das utopias atropeladas por elas mesmas e pelas armadilhas
circundantes e céu só o da boca por onde se evolam, às vezes,
pássaros-palavras, um voo rente à língua que é o chão de onde a palavra
nasce.
FM No diálogo buscado com a tradição lírica de
língua portuguesa a crítica habitualmente situa uma diversidade continental,
que aqui sintetizo nos nomes de Luandino Vieira (Moçambique), Antonio Ramos
Rosa (Portugal) e Carlos Drummond de Andrade (Brasil). Por mais simpático que
possa parecer este colar de influências apontado pela crítica, ele pode ser
restritivo e inclusive comprometedor de uma percepção das particularidades da
voz poética comentada. Como te relacionas com este tipo de aproximação? Em
teu caso, são corretas as identificações apontadas pela crítica?
LCP A crítica, que respeito quando o merece,
pouco me ajuda nos meus infernos nocturnos. Aceito-a e logo a esqueço se o
impulso for o de mergulhar no círculo mágico onde exorcizo a morte. Como no
cinema faço inserts, recolho vozes, recombino-as, no exacto
sentido do feiticeiro que incorpora os espíritos. Todos os mortos são
magníficos vivos. Passejo-lhes as almas, à noite, visto-me deles porque, como
o deles, o meu medo e indagação e silêncio e grito e tropeçar em palavras ou
jubilatórias ou ejaculatórias ou padecendo de susto, e nisso perceber cesuras
como abismos e ritmar tudo no que possa ser uma particular voz, é a
aproximação ao que sei ser da ordem do indizível.
Não obstante, escrevendo em português, tenho consciência de revisitar
um cânone que também me constitui. Mas, como dizia Rui Knopfli, outros rios e
savanas e árvores se intrometem.
FM Quais aspectos mais decisivos na formação e
desdobramento de tua poética atribuirias a essas identificações?
LCP Devo a Drummond uma exigência e uma
aprendizagem: sair das palavras em estado de dicionário, procurar a chave. A
minha. E louvo e convoco Craveirinha e Grabato e Herberto e o poeta cujo nome
e texto nunca conhecerei e que, algures, no Tempo, terá escrito o poema que
anularia toda a minha demanda porque nele me encontraria.
FM E para além da lírica de língua portuguesa,
em que podemos pensar? E mais, para além do próprio território literário,
inclusive aqui pensando em tua relação com o cinema, como anda tua atenção
aos demais campos de criação artística?
LCP Num tempo histórico marcado por invenções e
reivindicações identitários, com o peso de um país novo às costas e uma
geografia de cidades e de seres cujo labiríntico mapeamento tento
descortinar, a minha atenção é inteira e total. Sei muito pouco. Formas e
cores e narrativas e materiais se reelaboram em mim num turbilhão imagético:
da pintura à música, da fotografia ao cinema, da escultura às artes
performativas. Mas impõe-se-me como uma ordem a ordem de Rimbaud: tens de ser
vidente, tens de fazer de ti um vidente.
FM Antes que este nosso diálogo sugira a ti ou
ao leitor que estou a fazer defesa da recorrente – e para mim equívoca – angústia
da influência (risos), observo que minha intenção é discutir até que
ponto ainda persistem dois aspectos: o isolamento do escritor (o poeta
sobretudo) no universo da literatura e o isolamento da literatura de língua
portuguesa em relação à larga abrangência internacional de literaturas de
outros idiomas.
LCP Fundacional embora, o poema é excêntrico,
rodopia “vertigínico”, como queria Raul Leal, é da ordem duma insularidade em
arquipélago. Os tempos não estão de feição, quiçá nunca estiveram, para a
celebração da palavra essencial. Tudo se fragmentou, já não há nem o ethos
para uma religação de sentido onde epopeia coubesse e a História põe-nos os
cornos todos os dias. Clio é volúvel.
Sobre a literatura em língua portuguesa – dando de barato a existência
de um sistema que não persigo – é verdade que falta uma estratégia para a
língua comum, a língua grávida de outras, a língua metamorfose. Na
geopolítica geral o poeta é para abater. Felizmente que os senhores não sabem
que ele é o verdadeiro “terrorista” e que, mesmo expulso da cidade, a
urdidura para a “mudança de respiração”, como queria Celan, estende seus
laços, luminosos laços riscando a noite.
FM Ao escrever sobre tua poesia, Adelto Gonçalves
evoca teu afastamento “do tom triunfalista de caráter eminentemente
ideológico que marcou a produção poética da fase pós-independência” de
Moçambique. Os processos de independência de países colonizados
invariavelmente estabelecem uma relação entre poesia e revolução. Ao
conversar sobre o tema com o poeta nicaragüense Pablo Antonio Cuadra ele me
disse o seguinte: “nossa revolução foi possível faze-la porque iam, adiante,
abrindo-lhe caminho, uma poesia e um canto”. Um mérito extraordinário – mesmo
que parcial – de sua geração, o que não evitou a ação do triunfalismo na
lírica nicaragüense que lhe sucedeu. Qual a raiz do problema, segundo teu
entendimento? Demasiado provincianismo, vontade de afirmação poética a partir
do político, exacerbação de um complexo de culpa do poeta como uma vítima de
Platão?
LCP Tudo o que perguntas como raiz do problema,
se assim quisermos considerar, está lá. É isso, o que enumeras. Quanto ao tom
triunfalista, tal nunca me deu jeito. Sou de corcunda e pé boto, ossos,
linfa, carne e desejo, assumpção de um Todo que nos escapa sempre,
denodadamente perseguindo-o e não há uma gramática para isso.
FM A multiplicidade de vanguardas propostas
pelos modernismos na primeira metade do século XX de certo modo desorientou o
criador ao ponto da arte arrastar seu interlocutor imediato para um pomar de
contradições, lhe deixando atônito em relação a aspectos que mesclariam ética
e estética de uma maneira até o presente não de todo solucionada. Como
sobreviveste a tudo isto? O que busca a poesia a partir de Luis Carlos
Patraquim?
LCP Vou sobrevivendo. E confesso uma
ingenuidade: tento viver poeticamente para além do poema. Gostava de poder
citar como irmãos todos os seres da natureza com a mesma grandeza com que o
fez San Juan de la Cruz. Mas falta-me deus. Não subo, desço, precipito-me
para dentro, para citar uma fórmula definitiva de Herberto.
FM Esquecemos algo?
LCP Sim, acho que esquecemos tudo. Ficaram duas
ou três coisas que (não) sei (sabemos) dele: o poema.
[2008]
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[Posfácio do livro O osso côncavo & outros poemas, de
Luís Carlos Patraquim (Moçambique, 1953). Organização de Floriano Martins para a Coleção Ponte
Velha da Escrituras Editora. São Paulo, 2008.]
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quinta-feira, 21 de agosto de 2014
LUÍS CARLOS PATRAQUIM | As relações essenciais da poesia
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