quinta-feira, 21 de agosto de 2014

LUÍS CARLOS PATRAQUIM | As relações essenciais da poesia



FM De que maneira a poesia começa a se expressar através de Luis Carlos Patraquim? Penso aqui tanto na tinta quanto no sangue, ou seja, nos múltiplos sentidos do verbo.

LCP Hierático para alguns, “intimista” para outros – refiro-me à recepção que ela vem tendo em Moçambique – a minha leitura disso é marcada pela perplexidade e pela estranheza. Concebo o poema, como magnificamente afirmou Herberto Hélder, como uma “clandestinidade na ditadura do mundo” e tento seguir, na exacta insignificância da minha altura, a máxima de Nietzsche: “Escreve com o sangue e verás que o sangue é espírito”. Venho das utopias atropeladas por elas mesmas e pelas armadilhas circundantes e céu só o da boca por onde se evolam, às vezes, pássaros-palavras, um voo rente à língua que é o chão de onde a palavra nasce.

FM No diálogo buscado com a tradição lírica de língua portuguesa a crítica habitualmente situa uma diversidade continental, que aqui sintetizo nos nomes de Luandino Vieira (Moçambique), Antonio Ramos Rosa (Portugal) e Carlos Drummond de Andrade (Brasil). Por mais simpático que possa parecer este colar de influências apontado pela crítica, ele pode ser restritivo e inclusive comprometedor de uma percepção das particularidades da voz poética comentada. Como te relacionas com este tipo de aproximação? Em teu caso, são corretas as identificações apontadas pela crítica?

LCP A crítica, que respeito quando o merece, pouco me ajuda nos meus infernos nocturnos. Aceito-a e logo a esqueço se o impulso for o de mergulhar no círculo mágico onde exorcizo a morte. Como no cinema faço inserts, recolho vozes, recombino-as, no exacto sentido do feiticeiro que incorpora os espíritos. Todos os mortos são magníficos vivos. Passejo-lhes as almas, à noite, visto-me deles porque, como o deles, o meu medo e indagação e silêncio e grito e tropeçar em palavras ou jubilatórias ou ejaculatórias ou padecendo de susto, e nisso perceber cesuras como abismos e ritmar tudo no que possa ser uma particular voz, é a aproximação ao que sei ser da ordem do indizível.
Não obstante, escrevendo em português, tenho consciência de revisitar um cânone que também me constitui. Mas, como dizia Rui Knopfli, outros rios e savanas e árvores se intrometem.

FM Quais aspectos mais decisivos na formação e desdobramento de tua poética atribuirias a essas identificações?

LCP Devo a Drummond uma exigência e uma aprendizagem: sair das palavras em estado de dicionário, procurar a chave. A minha. E louvo e convoco Craveirinha e Grabato e Herberto e o poeta cujo nome e texto nunca conhecerei e que, algures, no Tempo, terá escrito o poema que anularia toda a minha demanda porque nele me encontraria.

FM E para além da lírica de língua portuguesa, em que podemos pensar? E mais, para além do próprio território literário, inclusive aqui pensando em tua relação com o cinema, como anda tua atenção aos demais campos de criação artística?

LCP Num tempo histórico marcado por invenções e reivindicações identitários, com o peso de um país novo às costas e uma geografia de cidades e de seres cujo labiríntico mapeamento tento descortinar, a minha atenção é inteira e total. Sei muito pouco. Formas e cores e narrativas e materiais se reelaboram em mim num turbilhão imagético: da pintura à música, da fotografia ao cinema, da escultura às artes performativas. Mas impõe-se-me como uma ordem a ordem de Rimbaud: tens de ser vidente, tens de fazer de ti um vidente.

FM Antes que este nosso diálogo sugira a ti ou ao leitor que estou a fazer defesa da recorrente – e para mim equívoca – angústia da influência (risos), observo que minha intenção é discutir até que ponto ainda persistem dois aspectos: o isolamento do escritor (o poeta sobretudo) no universo da literatura e o isolamento da literatura de língua portuguesa em relação à larga abrangência internacional de literaturas de outros idiomas.

LCP Fundacional embora, o poema é excêntrico, rodopia “vertigínico”, como queria Raul Leal, é da ordem duma insularidade em arquipélago. Os tempos não estão de feição, quiçá nunca estiveram, para a celebração da palavra essencial. Tudo se fragmentou, já não há nem o ethos para uma religação de sentido onde epopeia coubesse e a História põe-nos os cornos todos os dias. Clio é volúvel.
Sobre a literatura em língua portuguesa – dando de barato a existência de um sistema que não persigo – é verdade que falta uma estratégia para a língua comum, a língua grávida de outras, a língua metamorfose.  Na geopolítica geral o poeta é para abater. Felizmente que os senhores não sabem que ele é o verdadeiro “terrorista” e que, mesmo expulso da cidade, a urdidura para a “mudança de respiração”, como queria Celan, estende seus laços, luminosos laços riscando a noite.

FM Ao escrever sobre tua poesia, Adelto Gonçalves evoca teu afastamento “do tom triunfalista de caráter eminentemente ideológico que marcou a produção poética da fase pós-independência” de Moçambique. Os processos de independência de países colonizados invariavelmente estabelecem uma relação entre poesia e revolução. Ao conversar sobre o tema com o poeta nicaragüense Pablo Antonio Cuadra ele me disse o seguinte: “nossa revolução foi possível faze-la porque iam, adiante, abrindo-lhe caminho, uma poesia e um canto”. Um mérito extraordinário – mesmo que parcial – de sua geração, o que não evitou a ação do triunfalismo na lírica nicaragüense que lhe sucedeu. Qual a raiz do problema, segundo teu entendimento? Demasiado provincianismo, vontade de afirmação poética a partir do político, exacerbação de um complexo de culpa do poeta como uma vítima de Platão?

LCP Tudo o que perguntas como raiz do problema, se assim quisermos considerar, está lá. É isso, o que enumeras. Quanto ao tom triunfalista, tal nunca me deu jeito. Sou de corcunda e pé boto, ossos, linfa, carne e desejo, assumpção de um Todo que nos escapa sempre, denodadamente perseguindo-o e não há uma gramática para isso.

FM A multiplicidade de vanguardas propostas pelos modernismos na primeira metade do século XX de certo modo desorientou o criador ao ponto da arte arrastar seu interlocutor imediato para um pomar de contradições, lhe deixando atônito em relação a aspectos que mesclariam ética e estética de uma maneira até o presente não de todo solucionada. Como sobreviveste a tudo isto? O que busca a poesia a partir de Luis Carlos Patraquim?

LCP Vou sobrevivendo. E confesso uma ingenuidade: tento viver poeticamente para além do poema. Gostava de poder citar como irmãos todos os seres da natureza com a mesma grandeza com que o fez San Juan de la Cruz. Mas falta-me deus. Não subo, desço, precipito-me para dentro, para citar uma fórmula definitiva de Herberto.

FM Esquecemos algo?

LCP Sim, acho que esquecemos tudo. Ficaram duas ou três coisas que (não) sei (sabemos) dele: o poema.

[2008]
[Posfácio do livro O osso côncavo & outros poemas, de Luís Carlos Patraquim (Moçambique, 1953). Organização de Floriano Martins para a Coleção Ponte Velha da Escrituras Editora. São Paulo, 2008.]

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